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Quem é negro, quem é branco: desempenho escolar e classificação racial de alunos

Who is black, who is white: school performance and the racial classification of school children

Resumos

Baseado em pesquisa desenvolvida junto às turmas de 1ª a 4ª séries de uma escola pública no Município de São Paulo, este artigo discute as diferenças entre a classificação racial dos alunos feita pelas professoras ou por eles mesmos. O conceito de raça adotado é o de "raça social", isto é, um construto social baseado numa idéia biológica errônea, mas eficaz na manutenção de privilégios. Conclui que o fato de a desigualdade de desempenho escolar entre brancos e negros na escola estudada ser maior quando se usa a classificação das professoras em lugar da auto-classificação decorre tanto de as professoras clarearem crianças de melhor desempenho quanto de avaliarem com maior rigor crianças que percebem como negras, principalmente os meninos. Enfatiza ainda que não se trata de acusar as professoras de uma deliberada discriminação racial, mas de perceber como o racismo, presente na sociedade brasileira como um todo, penetra também nas relações escolares.

racismo; ensino fundamental; desempenho escolar; avaliação


This article is based on research undertaken with classes from the 1st to 4th grades of primary education in a public school in the municipality of São Paulo and discusses the differences between the racial classification of school children carried out by teachers and that made by the children themselves. The concept of race adopted is that of "social race", that is, a social construct based on an erroneous biological idea but which has proved efficient for maintaining privileges. Concludes that the fact that the difference in school performance between white and black children in the school is greater when the teachers' classification is employed in place of self-classification results as much from teachers 'whitening' children with good performance as from their evaluating children, chiefly boys, they perceive as Negroes with greater rigour. It further emphasises that it is not a case of accusing the teachers of deliberate racial discrimination but of investigating the ways in which racism, present in Brazilian society as a whole, also penetrates school relations.

racism; primary education; school performance; evaluation


ARTIGOS

Quem é negro, quem é branco: desempenho escolar e classificação racial de alunos

Who is black, who is white: school performance and the racial classification of school children

Marília Carvalho

Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação

RESUMO

Baseado em pesquisa desenvolvida junto às turmas de 1ª a 4ª séries de uma escola pública no Município de São Paulo, este artigo discute as diferenças entre a classificação racial dos alunos feita pelas professoras ou por eles mesmos. O conceito de raça adotado é o de "raça social", isto é, um construto social baseado numa idéia biológica errônea, mas eficaz na manutenção de privilégios. Conclui que o fato de a desigualdade de desempenho escolar entre brancos e negros na escola estudada ser maior quando se usa a classificação das professoras em lugar da auto-classificação decorre tanto de as professoras clarearem crianças de melhor desempenho quanto de avaliarem com maior rigor crianças que percebem como negras, principalmente os meninos. Enfatiza ainda que não se trata de acusar as professoras de uma deliberada discriminação racial, mas de perceber como o racismo, presente na sociedade brasileira como um todo, penetra também nas relações escolares.

Palavras-chave: racismo; ensino fundamental; desempenho escolar; avaliação

ABSTRACT

This article is based on research undertaken with classes from the 1st to 4th grades of primary education in a public school in the municipality of São Paulo and discusses the differences between the racial classification of school children carried out by teachers and that made by the children themselves. The concept of race adopted is that of "social race", that is, a social construct based on an erroneous biological idea but which has proved efficient for maintaining privileges. Concludes that the fact that the difference in school performance between white and black children in the school is greater when the teachers' classification is employed in place of self-classification results as much from teachers 'whitening' children with good performance as from their evaluating children, chiefly boys, they perceive as Negroes with greater rigour. It further emphasises that it is not a case of accusing the teachers of deliberate racial discrimination but of investigating the ways in which racism, present in Brazilian society as a whole, also penetrates school relations.

Key-words: racism; primary education; school performance; evaluation

Introdução

Este texto apresenta parte dos resultados de uma pesquisa sobre o fracasso escolar de meninos nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, tema do qual venho ocupando-me desde 1999.1 1 Trata-se da pesquisa "O fracasso escolar de meninos e meninas: articulações entre gênero e cor/raça", financiada pelo CNPq, que integra o projeto "A gestão da violência e da diversidade na escola", do Programa de Cooperação Internacional Brasil-França (Convênio CAPES-COFECUB). Partindo da constatação de que os índices de evasão e repetência, em âmbito nacional, têm sido mais altos para as crianças do sexo masculino, em especial os meninos negros, a investigação procura compreender os processos cotidianos que os têm conduzido a um pior desempenho escolar. Com esses objetivos, foi desenvolvido um estudo com o conjunto das crianças e professoras de 1ª a 4ª séries de uma escola pública no Município de São Paulo, entre 2002 e 2003, que envolveu entrevistas semi-estruturadas com as oito professoras de classe e com a coordenadora pedagógica, um questionário de caracterização socioeconômica preenchido pelas famílias dos alunos e alunas, e um breve questionário de autoclassificação racial respondido pelas crianças em sala de aula.

Aqui discutimos especificamente as diferenças entre a classificação racial dos alunos feita pelas professoras (heteroatribuição) ou por eles mesmos (auto-atribuição), procurando evidenciar em que medida a classificação feita pelas educadoras estava relacionada ao desempenho escolar das crianças. Partimos da hipótese suscitada na fase anterior da pesquisa, de que, no âmbito da escola, a classificação racial das crianças não estava relacionada apenas a suas características físicas e a seu status socioeconômico, como já foi verificado para o conjunto da sociedade brasileira, mas também a seu desempenho escolar, com uma associação, por parte das educadoras, entre pertencimento à raça negra e problemas de desempenho (Carvalho, 2004b). Também com base nas etapas anteriores da pesquisa, a noção de "desempenho escolar" buscou incorporar tanto aspectos de avaliação de aprendizagem quanto de disciplina e comportamento.

O conceito de raça adotado é o de "raça social", conforme explicitado por Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (1999), isto é, não se trata de um dado biológico, mas de "construtos sociais, formas de identidade baseadas numa idéia biológica errônea, mas eficaz socialmente, para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios" (p. 153). Para esse autor, se a existência de raças humanas não encontra qualquer comprovação no bojo das ciências biológicas, elas são, contudo, "plenamente existentes no mundo social, produtos de formas de classificar e de identificar que orientam as ações dos seres humanos" (idem). Ou, nas palavras de Tereza Cristina Araújo (1987), a raça pode ser concebida como "um fato social, referido aos significados atribuídos pelas pessoas a atributos físicos e que servem para demarcar indivíduos e grupos, como uma percepção social que categoriza" (p. 15).

No Brasil — e em diversos países da América Latina — a classificação racial apóia-se tanto na aparência (características fenotípicas, como a cor da pele ou o tipo de cabelo) e na ascendência, quanto no status socioeconômico da pessoa. Assim, a classificação racial no Brasil é fluida e variável, com a possibilidade de se ultrapassar a linha de cor em decorrência da combinação entre aparência e status social.

Nesse contexto, a cor seria apenas um dos elementos de que se lança mão na construção social das relações raciais. Para Araújo, a cor, no Brasil é "uma metáfora, a categoria mais freqüentemente acionada para demarcar diferenças e desigualdades com base na raça" (1987, p. 15). Dessa forma, neste estudo é utilizada uma classificação por cor, baseada nas categorias usadas pelo IBGE, e também seu agrupamento em termos mais propriamente raciais: um grupo de negros, composto por aqueles classificados como pretos ou como pardos, e um de brancos.

Perante a complexidade do processo de classificação assim constituído, é preciso atentar, como nos indica Araújo, para a situação social específica em que ele se desenrola e que lhe confere significado:

[...] a percepção social da cor e a escolha e/ou atribuição de categorias de cor é uma operação complexa que envolve não apenas uma apreensão de características fenotípicas, aqui imbuídas de valor e carregadas de significado, mas em que as categorias compõem um sistema e esta operação se processa num contexto de interação social. (1987, p. 15)

Idéias semelhantes estão presentes em estudo de Edward Telles e Nelson Lim (1998), baseado num survey de âmbito nacional do Instituto Data Folha, de 1995, que incluía tanto a autoclassificação por cor quanto a classificação pelo entrevistador, e cuja análise foi retomada e ampliada posteriormente por Telles (2003). Esses autores enfatizam o quanto critérios que chamam de não-físicos afetam as características raciais dos brasileiros, que devem ser tomadas não como fatos objetivos e inquestionáveis, mas como um sistema cambiante, sujeito à percepção social, na qual o status socioeconômico tem um peso considerável. Eles nos mostram que, na determinação das diferenças de classificação entre entrevistadores e entrevistados da pesquisa Data Folha que analisaram, ao lado da renda do entrevistado também tinham influência significativa sua escolaridade, a moradia em cada uma das regiões fisiográficas do país e em zona urbana ou rural (p. 470). Além desses aspectos, é pertinente o comentário feito por Edith Piza e Fulvia Rosemberg (2002, p. 104), a partir do mesmo survey do Instituto Data Folha, quando lembram que também devem ser consideradas características dos entrevistadores, em especial sua cor ou raça, já que se trata de uma relação. Essas autoras lamentam que não haja dados disponíveis a respeito, embora se afirme que esses entrevistadores eram em sua maioria brancos e de média ou alta escolaridade.

Enfim, Telles (2003) chama a nossa atenção para o fato de que, apesar da discriminação e desigualdade raciais dependerem da classificação racial feita por terceiros, isso raramente é considerado nas análises sociológicas, sendo a raça normalmente tomada como fixa ou essencial: "Embora a sociologia moderna amplamente aceite a idéia de que o conceito de raça é construído socialmente e é portador de ambigüidades, raramente essa idéia é incorporada na análise sociológica" (p. 113).

No campo educacional, um exemplo de pesquisa em que essa complexidade do processo de atribuição racial foi considerada em sua ampla gama de conseqüências é a dissertação de mestrado de Eliana de Oliveira (1994). Interessada nas relações raciais no âmbito das creches diretas do Município de São Paulo, a autora colocou-se como um primeiro objetivo descrever a composição racial do conjunto de crianças ali atendidas, e para tanto lançou mão de fotos de uma amostra de crianças atendidas em diferentes equipamentos, que foram classificadas, cada uma, por duas funcionárias do sistema municipal de creches. Na análise dos resultados, Oliveira atentou para as características tanto das crianças classificadas (sexo e idade) quanto das classificadoras, em especial seu sexo, sua auto-atribuição de cor e sua função nas creches. A principal conclusão, no que tange a esse aspecto, foi de que "observa-se uma tendência de as pessoas que se autoclassificam como brancas apresentarem as maiores proporções na atribuição da cor branca às crianças fotografadas", em comparação às proporções apresentadas por pessoas autoclassificadas como pretas ou como pardas (p. 25).

As reflexões desse conjunto de autores, desenvolvidas para pensar a escala macro das estatísticas colhidas por meio de pesquisas quantitativas e amostragens, parecem ser também úteis em escala cotidiana, qualitativa. Esse enfoque permite uma ênfase especial na produção de significados associados a características fenotípicas e a atribuições de cor, assim como nas inter-relações pelas quais emergem as classificações de cor e de raça. Diferentemente da perspectiva da maioria desses estudos, porém, não se trata aqui de encontrar a verdadeira cor de uma criança, nem de buscar instrumentos para minimizar as discrepâncias entre diferentes classificações, mas, ao contrário, o interesse maior é localizar e qualificar essas diferenças. Também não se toma como objetivo buscar contribuir de forma genérica para o combate ao racismo, seja no âmbito deste artigo, seja da pesquisa mais ampla da qual ele representa um recorte, mas apenas tentar apreender os significados escolares, em especial aqueles associados ao sucesso escolar, que se articulam às relações de gênero e à categorização racial, sem perder de vista, ao mesmo tempo, as determinações socioeconômicas.

O que as crianças escreveram

A escola pública investigada atende a 670 alunos do ensino fundamental e médio, nos turnos da manhã e da tarde, e apresenta condições de funcionamento particularmente adequadas, se comparada a outras escolas públicas da mesma região. São 40 professores e professoras, todos com curso superior, quase todos com jornada de 40 horas semanais e apenas 20 delas em sala de aula. O prédio é grande, arejado e espaçoso e, embora apresente problemas de conservação, conta com laboratórios, biblioteca e sala de informática. Todas as classes têm 30 alunos e mesclam crianças provenientes de setores populares, médios e médios intelectualizados, abrangendo um grupo bastante heterogêneo em termos socioeconômicos e culturais.

A pesquisa aqui descrita teve como foco as oito classes de 1ª a 4ª séries, totalizando 243 crianças. Desde 1999 a escola adotara o sistema de avaliação por conceitos, com dois ciclos no ensino fundamental (de 1ª a 4ª e de 5ª a 8ª séries), ao final dos quais podia haver retenção. Existia um sistema de recuperação paralela ao longo do ano, chamado de "oficinas de reforço", que nas quatro primeiras séries era oferecido pelas professoras de classe aos alunos que elas próprias indicavam.

No que se refere à atribuição de cor aos alunos, foi solicitado às professoras, durante a entrevista, que os classificassem de acordo com as categorias utilizadas pelo IBGE (branco, preto, pardo, amarelo, indígena), a elas apresentadas por escrito, seguindo a lista de chamada fornecida pela secretaria. Já as crianças responderam, em suas classes, durante o horário de aula, a um pequeno questionário composto de duas questões: a primeira, aberta, perguntava: "Qual a sua cor ou raça?"; a segunda pedia que a criança se classificasse dentro das mesmas categorias de cor do IBGE: "Como você se classifica na lista abaixo? Marque apenas um".

Não foi simples a construção desse pequeno questionário, uma vez que não dispúnhamos de uma literatura anterior na qual se discutisse a construção de pesquisas sobre percepção das relações raciais por crianças brasileiras e mesmo os questionários para adultos têm colocado desafios complexos para os pesquisadores.2 2 A grande complexidade e a decorrente dificuldade em construir perguntas sobre como uma pessoa (adulta) se classifica em termos raciais no Brasil, assim como algumas soluções possíveis, estão bem discutidas em Guimarães (2003). A necessidade de comparar os resultados obtidos com as respostas das professoras (e mesmo eventualmente com outras pesquisas) levou-nos a incluir a questão fechada utilizando os critérios de cor do IBGE. Baseamo-nos também em experiência própria anteriormente desenvolvida junto a duas classes de 4ª série da mesma escola (Carvalho, 2004b), na qual, como também se verá em seguida, tanto as dificuldades quanto as facilidades das crianças ante as perguntas e as opções oferecidas foram consideradas como dados relevantes para análise.3 3 De toda forma, devemos destacar que não se trata de uma pesquisa especificamente voltada para os processos de construção do pertencimento racial em crianças, trabalho que certamente poderia enriquecer o debate sobre relações raciais no Brasil, mas que ainda está por ser feito. Justamente frente a essa lacuna é que pareceu-nos interessante divulgar as anotações que se seguem, que, embora iniciais, podem se constituir numa provocação para outros(as) pesquisadores(as).

Ao todo, 230 alunos e alunas responderam a essas questões e parecem ter cumprido a tarefa com grande seriedade: apenas um menino deixou em branco a questão fechada, um outro interferiu nessas opções e uma única menina respondeu na questão aberta "cor azul" e assinalou a opção amarelo, anulando assim seu questionário.

Foi reveladora a experiência de percorrer as classes desde a 1ª série4 4 Participou desse trabalho a aluna Marina Rocha Figueiredo de Oliveira, bolsista de iniciação científica do CNPq. Tanto a pesquisadora quanto a bolsista se autoclassificam como brancas. e acompanhar as dificuldades dos alunos e alunas para compreender o que estava sendo perguntado ou fazer uma escolha entre as opções oferecidas. Especialmente acentuadas entre os menores, essas dificuldades apontam claramente a identificação racial como um processo social construído ao longo da vida, que não decorre de uma percepção imediata de dados naturais. Ao contrário, como acentuam, por exemplo, Edith Piza e Fulvia Rosemberg (2002), "o pertencimento racial não constitui um dado imutável na vida das pessoas" e é possível que na sua trajetória "haja mudanças no processo de autoclassificação de cor" (p. 114). Se isso pode ser percebido junto aos adultos, no caso das crianças esse processo apareceu em plena formação, evidenciando ainda mais seu caráter de ser uma aquisição social, uma parte do processo de socialização.

Em geral, a reação das crianças foi de dúvida perante as perguntas. Particularmente na questão aberta, demoravam bastante a se decidir, não sabiam o que estava sendo perguntado: "Não entendi"; "O que é raça?"; "Mas qual é a minha cor?". Havia certa perplexidade ante a questão, como se ela não devesse ser formulada. Talvez ela não fosse uma questão esperada dentro da escola, como parece indicar a reação de um aluno que me chamou à carteira e disse: "Eu não entendi o que é para responder", ao que retruquei: "De que cor você acha que é?". Ele afirmou sem vacilar "moreno", mas precisou da minha autorização para escrever isso, perguntando-me duas vezes se podia fazê-lo. Essa dificuldade em responder foi maior quanto menores eram as crianças, e tendeu a desaparecer nas 4as séries. Não parecia relacionada à habilidade de ler e escrever, pois quase todos cumpriram essas tarefas sem dificuldade. Aparentemente era antes um problema conceitual ou uma pergunta fora do lugar. Muitos alunos conversavam entre si buscando solução, o que em parte explica respostas coincidentes em uma mesma classe; diversos fizeram, apagaram, corrigiram, mudaram mais de uma vez de opinião. Alguns recorriam à lista da segunda questão (fechada) e assim colocaram, por exemplo, pardo na resposta à questão aberta, termo que dificilmente usariam em outro contexto. Enfim, a perplexidade diante da questão e da ausência de respostas prontas, principalmente para as crianças menores, indicam um processo em construção.

Se retomamos a idéia expressa por Araújo (1987), de que a cor é uma metáfora acionada para demarcar diferenças e desigualdades com base na raça, que por sua vez é um conceito socialmente construído, fica mais fácil compreender parte das dificuldades das crianças para definirem sua cor. Algumas delas, percebidas pelas pesquisadoras como brancas, olhavam as próprias peles e diziam que sua cor não era branca, comparando-se com as camisetas que usavam ou com as folhas de papel. Frente às opções disponíveis, algumas crianças sem qualquer traço oriental evidente optaram pelo amarelo por considerarem que era a cor mais parecida com suas próprias peles. Isso ocorreu com nove crianças da mesma classe de 1ª série e com outras quatro de diferentes classes, que parecem ter optado pelo amarelo na questão fechada (e por expressões como "amarelado" ou "amarelo puxado para branco" na questão aberta) pensando na cor em seu sentido literal, uma vez que nenhuma delas foi classificada pelas professoras como amarela, nem apresentava sobrenome que pudesse identificá-la como oriental.

Essa idéia literal remete à noção de que a cor da pessoa seria aquela utilizada para pintar um boneco que a representasse, e esteve presente também num grupo de sete crianças, todas de 1ª ou 2ª série, que utilizaram a expressão "cor de pele" para se autodescreverem. Sabemos que a cor rosa-claro ou salmão é freqüentemente chamada de "cor de pele" entre as crianças em nossas escolas, uma identificação que só é possível devido ao sentido universal da branquitude,5 que estabelece essa tonalidade como cor da pele normal dos seres humanos. É interessante ressaltar que dessas sete crianças, quatro se autoclassificaram como brancos e três como pardos, na questão fechada. Nesse mesmo sentido da branquitude como norma ou referência básica, foi expressiva a resposta de outras três crianças, todas da mesma classe, que acrescentaram a palavra normal em suas respostas (por exemplo: "branca, normal, neta de italianos"), todas elas assinalando a opção branco na questão fechada.

Outros treze alunos, mais uma vez a maioria de 1ª ou 2ª séries, utilizaram "rosa", "bege", "marrom", "saumão" (sic), "café com leite" e "clara" para descrever suas próprias cores, indicando que para eles em alguma medida a cor não era tomada apenas como metáfora das relações raciais e mantinha fortes associações com seu sentido literal. Além de expressar um momento do processo de aquisição de identidade racial e uma forma de percepção da complexidade dessas relações sociais, as dificuldades das crianças são também reflexo de um sistema de classificação racial extremamente ambíguo, no qual essa conotação literal está presente também para os adultos, ao lado do sentido metafórico da cor de uma pessoa, carregada de conteúdos simbólicos e combinada à origem, aos traços físicos, à etnia e ao status socioeconômico, uma complexidade perceptível nas dificuldades e ambigüidades presentes também em pesquisas feitas com adultos, assim como nas contagens oficiais e na cultura popular brasileira (Guimarães, 2003).

Outro aspecto que se evidenciou durante a aplicação dos questionários foi a dimensão relacional das identidades raciais ou, como expressaram Piza e Rosemberg (2002), a "incessante troca entre o olhar de si e o olhar do outro que (in)forma o campo da identidade racial" (p. 93). Buscando respostas, algumas crianças comentavam em voz alta: "Minha mãe diz que eu sou café com leite" ou "Minha mãe me chama de branquinha". Um garoto mencionou o apelido familiar de "neguinho". Isso pode indicar o peso do olhar do outro na constituição de uma identidade racial, um olhar que é inicialmente da família, e em especial da mãe. Qual seria o peso da instituição escolar nessa construção? Pelo menos naquele momento, colegas ou situações escolares não foram mencionados de forma explícita, e certamente o tema continua em aberto para novas investigações.

Enquanto 89 alunos se autoclassificaram como brancos, a segunda categoria mais utilizada na resposta aberta foi moreno, empregada por 53 crianças. Os questionários com a resposta moreno estão presentes em todas as séries e classes, e em sua maioria correspondem à resposta pardo na pergunta fechada, embora também estejam correlacionados a todas as demais opções. Apenas dois meninos e uma menina empregaram o termo mulato. A larga utilização popular do termo moreno, nunca incluído nos questionários oficiais do censo brasileiro, tem sido bastante discutida na literatura sobre relações raciais. Na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1976, por exemplo, que apresentou uma questão aberta sobre a cor da população, apesar da grande variedade de respostas, predominou a categoria moreno entre aqueles que se classificaram como pardos no quesito fechado (Araújo, 1987). Já na pesquisa realizada pelo Data Folha em 1995 e comentada por Edward Telles (2003), 42% dos respondentes usaram branco, seguidos de 32% moreno, 7% pardo e 6% moreno-claro, dividindo-se os restantes 13% entre outras categorias (p. 107). Para Telles, a importância do termo moreno na classificação popular brasileira decorreria de "sua ambigüidade e propensão a subestimar as diferenças raciais, enfatizando uma brasilidade comum" (2003, p. 108).

Contudo, entre nossos alunos, foram principalmente crianças brancas que se apresentaram como "brasileiros". Oito alunos de 3ª e 4ª série escreveram respostas do tipo "a minha cor é branco e minha raça é brasileiro", sendo que cinco deles escolheram branco na questão fechada, dois se autoclassificaram como pardos e um como amarelo. Além dessas, outras quatorze crianças autoclassificadas como brancas e três como pardas mencionaram ascendências de origem européia (italianos, portugueses, alemães, espanhóis, um polonês e um belga) ou regional, como "paulista" e "paranaense".

Apenas duas meninas e um menino se auto-identificaram como descendentes de japoneses, todos eles com sobrenomes típicos. O menino assinalou a opção pardo e ambas as garotas escolheram amarelo. Para as professoras, havia ao todo cinco crianças amarelas, que elas disseram identificar pelos sobrenomes e por seus traços faciais. A fraca coincidência entre o grupo classificado pelas professoras e o autoclassificado como amarelo, e o fato de alunos com traços fenotípicos e sobrenomes nitidamente orientais não terem se referido à sua própria ascendência parecem indicar, por parte desses alunos, processos de assimilação à cultura brasileira e de negação de sua herança cultural e étnica.6 6 Na etapa anterior da pesquisa (Carvalho 2004b), a presença de um número maior de crianças que se autoclassificaram na questão aberta como orientais ou descendentes, acrescentando comentários, permitiu alguma discussão sobre esse tema.

Já a utilização dos termos negro ou africano foi feita por 12 crianças: seis meninos e seis meninas, oito deles mais velhos, de 3ª ou 4ª série. Dentre esses alunos, seis marcaram a opção preto na pergunta de múltipla escolha, cinco optaram por pardo e um por indígena. Suas respostas abertas foram do tipo "minha cor é negra e minha raça é negra" ou "sou descendente de africanos", que podem indicar alguma politização e um esforço de recuperação de um sentido positivo para a negritude. O termo negro vem sendo utilizado pelo movimento anti-racista brasileiro desde os anos 1930, buscando reverter seu sentido pejorativo, e é empregado por aqueles que buscam desestigmatizar a negritude e diminuir a ambigüidade de nossa classificação racial, ressaltando a polaridade entre brancos e negros. De acordo com Telles (2003), o termo tem um uso limitado, mas crescente, especialmente entre os jovens. Entre nossos alunos, chama a atenção seu uso pelas crianças um pouco maiores, de 3ª ou 4ª série. Do ponto de vista da renda, a maioria delas (seis crianças) provinha de famílias com renda mensal inferior a dez salários mínimos, quatro de famílias mais abastadas, e dois não informaram. É possível que ao menos em parte sejam filhos de pais e mães que têm militância junto ao movimento negro, cuja presença e atuação na escola foram relatadas pelas professoras.

A discussão explícita sobre o racismo, contudo, evidenciou-se apenas numa das classes durante o processo de resposta ao questionário, quando um aluno (preto, de acordo com minha percepção) disse em voz alta, para toda a classe, que não sabia responder às perguntas, mas mencionou: "Existem os racistas". O assunto rendeu alguma conversa entre as crianças, e posteriormente verifiquei que nessa classe duas meninas responderam "Sou branca e não sou rasista" (sic).

Ao todo, nove crianças espalhadas por todas as séries, das quais cinco do sexo masculino, mencionaram de alguma forma ascendência ou pertencimento racial indígena. Sete escolheram essa opção na questão fechada, combinando-a com respostas abertas como "moreno", "marrom", "pardo" ou "tenho pele de índio". Um garoto assinalou a opção branco e afirmou ser de "raça indígena e espanhol", enquanto uma menina escreveu: "Eu sou morena e minha raça é indígena", escolhendo a opção pardo na questão fechada. Essas diferentes combinações parecem, em primeiro lugar, confirmar a suspeita de Telles (2003) de que o termo pardo, utilizado nos censos brasileiros, pode estar incluindo também indígenas aculturados ou pessoas com ascendência predominantemente indígena. Ao classificar as crianças, as professoras em alguns momentos fizeram exatamente esse movimento, afirmando, por exemplo, que classificariam tal aluna como parda, pois sabiam que ela tinha uma avó indígena.

Em segundo lugar, é preciso considerar os significados pejorativos da palavra índio, evocados por alguns alunos. Durante a aplicação do questionário, em duas classes, quando expliquei, em resposta a indagações, que os indígenas foram os primeiros habitantes do Brasil, as crianças mencionaram o termo "índio" como sinônimo e alguns meninos disseram "é isso que o fulano é" ou acusaram-se mutuamente de serem índios, dando risadas. Como as crianças apontadas não tinham qualquer traço indígena e o tom era de chacota, ficou subentendido que se tratava de um adjetivo ligado a ser bagunceiro, agitado, incivilizado. Ao comentar o fato, professoras lembraram-se de já ter utilizado a expressão "parecem um bando de índios" diante de classes desordeiras e levantaram a hipótese de que alguns meninos poderiam ter utilizado a classificação indígena apenas "de brincadeira". Não há grupos cultural ou etnicamente identificados como indígenas na área atendida pela escola.

Em face dessa situação, ao lado dos problemas surgidos na utilização do termo amarelo pelas crianças, optei por construir as tabulações que se seguem, desconsiderando tanto os alunos e alunas que se autoclassificaram na pergunta de múltipla escolha como amarelos ou como indígenas quanto aqueles que foram classificados pelas professoras em uma dessas duas opções. Esse grupo, somado aos dez alunos que não responderam ao questionário de autoclassificação racial (por estarem ausentes naquele dia letivo), significa um total de 40 alunos. Esse subgrupo se distribuía por todas as classes estudadas e sua análise com relação às variáveis sexo, renda e "problema escolar" (presença de problema disciplinar ou de aprendizagem, conforme veremos a seguir) não indicou especificidades ante o total de alunos.

Assim, embora reconheça a urgência de desenvolver estudos especialmente sobre as populações indígenas — e também sobre outras minorias étnicas —, o tipo de informação que foi possível obter nessa pesquisa só me permitiu tratar da desigualdade entre negros e brancos nos processos de construção do sucesso e do fracasso escolar.

Quem são as crianças com problemas escolares?

Alunos e alunas estão caracterizados nos Quadros de 1 a 4 em relação aos tipos de problema escolar que apresentavam.7 7 Agradeço a Amélia Cristina de Abreu Artes, aluna do mestrado em educação da FEUSP, pela tabulação desses dados. A primeira linha de cada quadro traz os dados gerais para as oito classes, considerando o total de 203 crianças que resultou da exclusão daqueles que não responderam o questionário, autoclassificaram-se ou foram categorizados pelas professoras como amarelos ou indígenas, conforme discutido acima. Os conjuntos seguintes foram construídos a partir das indicações das professoras nas entrevistas, quando lhes perguntamos: quem eram os alunos ou alunas indicados para o reforço; quem causava problemas de disciplina; e, finalmente, quem elas elogiariam como bons alunos.





Como se vê, buscamos obter das professoras informações tanto sobre a avaliação de aprendizagem (que deveria resultar ou não em indicação para o reforço) quanto sobre uma avaliação de comportamento das crianças, pois consideramos que o sucesso escolar, em sua construção cotidiana, envolve no mínimo esses dois aspectos. Em cada entrevista procuramos ouvir as professoras a respeito de seus critérios de avaliação e pudemos perceber a grande dificuldade encontrada pela equipe escolar para definir, com precisão, objetivos de aprendizagem e critérios de avaliação, uma dificuldade em verdade partilhada pelo conjunto do sistema escolar brasileiro e presente até mesmo no plano internacional (Perrenoud, 2003). A escola adotava o sistema de conceitos, mas não havia clareza sobre o significado de cada um deles e a maioria das professoras declarava-se confusa e insatisfeita, havendo, ao longo de 2002, um processo de debate em toda a escola sobre a avaliação. Elas afirmavam avaliar os alunos a partir de uma multiplicidade de instrumentos: trabalhos individuais sem consulta, do tipo "prova", trabalhos em grupo feitos em classe e em casa, participação nas aulas, lições de casa, testes orais, elaboração de cartazes etc. E diziam levar em conta tanto o desempenho na aprendizagem propriamente dita quanto o que denominavam "compromisso do aluno" ou "relação da criança com o cotidiano da escola". Nas palavras de duas delas:

Eu acho que entra toda essa coisa do compromisso, a responsabilidade, eu acho que tá tudo envolvido. [...] Tá tudo muito misturado, é muito difícil, acho, a gente separar essas coisas. Muitas vezes, talvez, a falta de compromisso da criança influencie bastante no fato dela não conseguir alcançar aqueles objetivos. Mas a gente tem outras crianças que são supercompromissadas e que mesmo assim não conseguem alcançar minimamente os objetivos. [ênfase na fala]

Olha, eu acho que existe um [critério] de aprendizagem mesmo, de assimilação daquilo que a gente trabalha em classe. E também acho que a participação da criança na aula, o interesse dela de estar participando na aula. Basicamente é nessa participação, nessas atividades, que a gente vê o envolvimento do aluno, acho que esse é um critério forte. Além, logicamente, da aprendizagem, se ele assimilou ou não o que a gente está conversando.8 8 A atual etapa da pesquisa debruça-se exatamente sobre essa questão, indagando se a definição de objetivos pedagógicos claros e a conseqüente adoção de critérios de avaliação de aprendizagem bem delimitados poderiam (ou não) minimizar os desequilíbrios socioeconômicos, de sexo e de raça que vimos constatando no interior do grupo de alunos apontados como portadores de dificuldades de aprendizagem.

Também foi consultado o livro de ocorrências da escola, no qual ficam registradas punições formais como comunicado aos pais, advertência e suspensão. As crianças que não foram mencionadas em quaisquer dessas situações compõem o grupo de "não citados". Deve-se lembrar que há superposições entre os grupos, já que tinham problemas de disciplina tanto algumas crianças indicadas para o reforço como outras elogiadas por seu desempenho acadêmico.

A renda mensal familiar foi obtida por meio de questionário respondido pelas famílias, e é apresentada com referência ao valor do salário mínimo. Enquanto o sexo das crianças não foi difícil de determinar, sua cor é considerada aqui, conforme já vimos, como uma classificação ambígua, não fixa, e que buscamos estudar exatamente em suas relações com as demais "variáveis". Procuramos perceber se a classificação de cor das crianças feita pelas professoras (heteroatribuição) variava conforme seu sexo, sua renda familiar, seu desempenho e comportamento escolares, comparando-a com a classificação feita pelas próprias crianças (auto-atribuição).9 9 Nos quadros utilizamos somente a auto-atribuição de cor feita a partir das categorias do IBGE (questão de múltipla escolha respondida pelas crianças). E não consideramos qualquer delas como a classificação verdadeira ou mais adequada.

No caso das classes de 3as e 4as séries, atendidas por duas professoras que dividiam entre si as disciplinas, cada criança foi classificada duas vezes, gerando um grupo de "discordâncias", casos em que as professoras divergiram em relação à cor do aluno. Tomando-se a cor (branco, preto ou pardo) foram 19 divergências, e em relação à raça (negro ou branco) foram 14 casos. Assim, alguns quadros apresentam um total de 189 alunos, excluindo essas 14 crianças. É interessante destacar que nessas classes o grau de concordância das professoras em relação a quem seriam os alunos com problemas de aprendizagem ou disciplina e quem merecia elogios foi muito mais alto (apenas duas divergências) do que em relação a sua classificação racial.

Todas as entrevistadas demonstraram algum incômodo com as categorias de cor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), particularmente pardo e preto. Em geral, apenas alunos classificados como pardos ou pretos foram objeto de comentários, dúvidas, explicitação de critérios e mudanças de opinião, enquanto as classificações como brancos ocorreram mais rápida e silenciosamente. Todas as educadoras, ao final, mencionaram ter considerado principalmente a cor da pele em sua classificação, e secundariamente outros traços como tipo de cabelo, ao lado das características de pais ou mães ou informações sobre outros familiares. A distinção entre branco e pardo seria a mais dificultosa:

Porque preto, amarelo e índio a gente não tem muita [dúvida]. O índio, até que às vezes a gente fica em dúvida se é índio ou pardo, no caso da D., por exemplo. Mas eu acho que entre o branco e o pardo é mais complicado. Porque o branco existe várias tonalidades. Mesmo até o sol faz diferença. Eu, na verdade, estou moreninha. Estou morena por causa do feriado, peguei um sol danado na praia, mas eu sou muito mais branca que isso. Então, a cor de pele às vezes varia.

Embora não fossem generalizadas, falas que podem ser interpretadas como preconceitos explícitos estiveram presentes, assim como certa curiosidade em saber como as crianças tinham se autoclassificado:

A J. é pardinha, tem o cabelo ruim, hein [ri]. Esse menino aqui eu vou colocar PA, para você saber que é pardo. O J., a mãe dele é bem preta, retinta, mas ele é branco, fazer o quê? [ri]. A mãe dele é bem acentuada, o cabelo ruim, mesmo, daqueles bem bombril; mas ele deve ter colocado branco. A L. também é branca. Esse L. eu classificaria como preto. Como dizia a minha bisavó — minha bisavó era dona de escravos, então na minha família o preconceito era muito forte. Pro meu pai, preto para ser bom tinha de ter alguma coisa de branco, pelo menos a alma. Você lembra disso?

Além disso, todas as professoras relataram que a questão racial não era objeto de discussão na equipe escolar:

Não, entre colegas, assim, uma vez ou outra eu acho que a gente acaba falando alguma coisa a respeito, mesmo porque preconceito não é só racial, existe em qualquer instância, né? E a gente acaba discutindo essas questões. Alguma discussão específica não me recordo agora, provavelmente nós devemos ter discutido sobre isso.

E isso levava a que o tema fosse tratado apenas esporadicamente com as classes, de acordo com as convicções pessoais de cada professora, e em geral diante de situações de conflitos e xingamentos racistas entre as crianças:

Eu trabalho muito esse tipo de coisa com as crianças. [...] O que é que a gente tem de comum, o que é que a gente tem de diferente. Somos todos iguais, a gente não fala isso? [...] Então, ontem mesmo, a gente estava trabalhando em função justamente disso: "Olha, se eu tiver cabelo crespo, continuo ser humano". [sic]

Como estou há bastante tempo trabalhando com Matemática e Ciências, eu discuto, mas só assim... na classe, é momentâneo, quando tem alguma crise entre os alunos por conta de cor. A gente conversa, discute, mostra as diferenças e as semelhanças. Agora, eu não costumo trabalhar o tema porque ele é mais trabalhado em Língua Portuguesa e em História e Geografia.

Contudo, parece que a própria situação de pesquisa na escola, e principalmente a presença de uma professora de Educação Física negra bastante atenta às questões de discriminação racial, vinham modificando esse quadro e criando condições para uma discussão coletiva do tema, como indicou a coordenadora pedagógica:

Eu acho que tem sido uma coisa que as pessoas estão ficando mais atentas. Eu acho que assim, por exemplo, não sei como foi sua entrevista com os professores, mas todos os professores dizem que não são preconceituosos, que não tem nada disso, mais ou menos como senso comum. Mas eu acho que é muito interessante a gente ter uma oportunidade de ficar mais atento a essa questão.

Um primeiro olhar ao Quadro 1 revela que, dos 203 alunos em questão, 67 estiveram no reforço e 43 tinham problemas de disciplina, num total de 91 crianças com algum tipo de problema escolar. Ao mesmo tempo, 60 crianças foram elogiadas por seu desempenho e 65 não foram mencionadas, seja para elogios seja para queixas. Lembremos que todos os números nessa pesquisa são pequenos, não se tratando de um estudo quantitativo, mas da análise comparativa de dados, daí a utilidade das porcentagens. Essas proporções devem ser tomadas apenas como indicadores de tendências, e é preciso olhar com cautela as pequenas variações.

De forma resumida,10 10 Uma análise desses dados foi desenvolvida em Carvalho (2004a), com ênfase para as relações de gênero. podemos afirmar que a renda faz diferença para o desempenho escolar dos alunos dessa escola (Quadro 1), particularmente para aqueles provenientes de famílias com rendimento mensal de até cinco salários mínimos: mais da metade (53%) das crianças nessa faixa de renda estavam no reforço, enquanto o mesmo acontecia com apenas 15% daquelas pertencentes a famílias com renda mensal acima de 20 salários mínimos. Quanto à disciplina, porém, a renda não era decisiva, e em quase todas as faixas de renda as crianças estavam representadas no grupo com problemas disciplinares em proporções próximas à sua presença na escola, com exceção da faixa entre cinco e dez salários mínimos, sobre-representada em sete pontos percentuais.

Quando consideramos o sexo dos alunos e alunas (Quadro 2), percebemos que é um fator decisivo para ambos os tipos de problema: enquanto os meninos eram 49% na escola, eles eram 65% no reforço e 71% no grupo com problemas de disciplina. As meninas eram mais elogiadas e menos visíveis que os meninos, compondo 65% do grupo de "não citados".

Também a raça atribuída pelas professoras correspondia a diferenças significativas na composição do grupo de reforço (Quadro 3): enquanto percebiam 28% de todas as crianças da escola como negras (pretas ou pardas), no reforço essa proporção era de 38%. É também significativamente maior a proporção de alunos percebidos como brancos entre os elogiados (oito pontos percentuais a mais que no conjunto da escola), resultando no fato de que 32% dos classificados como brancos e apenas 21% dos negros tenham recebido elogios. Contudo, no que se refere à disciplina, a percepção era de proporções de negros muito semelhantes no total da escola e entre os alunos com problemas (28% e 29%, respectivamente); ou, visto de outra forma, de acordo com a classificação das professoras, exatamente 20% do total de alunos brancos e 20% dos negros eram "indisciplinados".

Comparando os Quadros 3 e 4, percebe-se que as professoras tenderam a classificar um número muito maior de alunos como brancos do que eles mesmos o fizeram na auto-atribuição de cor (ver também o Quadro 5). Para as educadoras, seriam 136 crianças brancas e 53 negras (pretas ou pardas), enquanto para os alunos e alunas seriam 80 brancos e 109 negros. Além disso, podemos observar que, segundo a autoclassificação, alunos negros e brancos estavam representados no grupo indicado para o reforço em proporção quase equivalente a seu total na escola. Isto é, de forma diferente à percepção das professoras, para alunos e alunas não havia maior concentração de negros no reforço e apenas pequena diferença nas proporções de crianças não citadas e elogiadas, em relação ao conjunto da escola. No que se refere à disciplina, porém, os alunos autoclassificados como brancos estavam sobre-representados no grupo em dez pontos percentuais frente ao total da escola, enquanto para as professoras a proporção era equivalente.


Para contextualizar a situação encontrada naquela escola, procurei considerar como as pesquisas de âmbito nacional vêm coletando informações sobre o pertencimento racial e o desempenho escolar. A principal fonte para essas pesquisas é o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), cujo questionário é respondido pelos próprios alunos e apresenta a seguinte questão: "Como você se considera? 1.Branco(a); 2. Pardo(a)/Mulato(a); 3. Negro(a); 4.Amarelo(a); 5. Indígena." Trata-se, portanto, de autoclassificação, utilizando categorias diferentes daquelas empregadas nos questionários do IBGE no que se refere aos pretos e pardos, aqui categorizados como pardo/mulato e negro, o que nos coloca ressalvas a possíveis comparações. Maria Eugênia Ferrão e colaboradores (2001), por exemplo, analisando os resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) de 1999, afirmam que "em todas as regiões, os alunos declarados de raça/cor preta (sic) apresentam desempenho inferior comparativamente aos demais alunos" (p. 29).11 11 Supomos que os autores referem-se aos alunos que marcaram a opção negro(a) na pergunta sobre classificação racial.

Entretanto, como esses autores não apresentam, pelo menos nos trabalhos a que tivemos acesso, os dados que fundamentam essa informação, e como, além disso, são escassos os estudos sobre os resultados do SAEB na 4ª série,12 12 Considera-se que há pouca confiabilidade nos dados coletados no questionário de caracterização que acompanha o teste do SAEB e que é respondido pelas próprias crianças, pois elas não teriam informações sobre a escolaridade dos pais, a renda familiar etc, o que tem levado muitos pesquisadores a trabalharem apenas com os resultados relativos à 8ª série ou ao ensino médio. é difícil estabelecer comparações mais detalhadas, para além da constatação de uma incidência de problemas de desempenho menor entre crianças autoclassificadas como brancas do que entre aquelas que se autoclassificam seja como pardas, seja como mulatas, pretas ou negras.

Além disso, essa pesquisa lida com a avaliação escolar feita pelas próprias professoras, enquanto os estudos baseados no SAEB utilizam os resultados obtidos pelas crianças em testes padronizados. E, embora outros autores tenham identificado uma forte correlação entre a avaliação feita pelas professoras e o desempenho das crianças nesse tipo de testes (Barbosa, 1999), é preciso considerar a fluidez e mesmo indefinição dos critérios utilizados naquela escola para avaliar os alunos.

O que determinava a classificação racial das professoras?

Nossa hipótese para explicar a classificação racial feita pelas professoras, que direcionou a construção dessa etapa da pesquisa, é que, pelo menos no âmbito da escola, a atribuição de raça às crianças teria como referência não apenas características fenotípicas, sexo e nível socioeconômico, elementos presentes na sociedade brasileira como um todo, mas também seu desempenho escolar.

Em pesquisas mais amplas, o nível socioeco-nômico muitas vezes é auferido por meio da escolaridade ou, conforme alguns autores (Piza & Rosemberg, 2002; Telles, 2003), a escolaridade percebida pelo entrevistador acaba funcionando como indicador de status social e o influencia em sua atribuição de raça ao entrevistado, o que aconteceria com bastante freqüência até mesmo na coleta de informações do Censo, apenas hipoteticamente baseada na auto-atribuição de raça.

No estudo já citado, Telles (2003), utilizando os dados da pesquisa realizada pelo Instituto Data Folha em 1995, mostra que os entrevistadores tenderam a clarear as pessoas com mais anos de escolaridade e concordavam com muito mais freqüência com a autoclassificação preto quando o entrevistado tinha baixa escolaridade (p. 123). No caso de nossas professoras, a sugestão é de que o desempenho escolar cumpra o mesmo papel, como uma promessa de futura escolaridade, mas com o agravante de que elas próprias têm influência decisiva na determinação desse futuro, seja no que se refere às trajetórias escolares, seja na constituição de identidades raciais.

Isto é, sugerimos que, na escola, a hetero-classificação de raça seria influenciada pela existência ou não de problemas escolares — disciplinares ou de aprendizagem —, considerados como parte constituinte do status da criança, com uma nítida articulação entre pertencimento à raça negra, masculinidade e dificuldades na escola. À medida que adentramos o cotidiano escolar, contudo, passamos a indagar também a respeito da noção de "dificuldades na escola", sucesso ou fracasso escolar, assim como sobre os critérios de avaliação utilizados, separando, ou tentando separar, problemas disciplinares de problemas de aprendizagem.

Que tipo de problemas escolares estariam influenciando a classificação racial feita pelas professoras: a indisciplina ou a dificuldade de aprendizagem? Há uma imagem social da masculinidade negra, presente de forma marcante, por exemplo, na mídia brasileira, que a associa a características como violência e agressividade. Também a literatura internacional (Connolly, 1998; Ferguson, 2000) relata com freqüência essa associação por parte do pessoal escolar e indica uma intensa transferência desses estereótipos para os alunos de sexo masculino, transformados em potenciais suspeitos de toda indisciplina. É o que aponta, por exemplo, a análise de Paul Connolly dos discursos correntes entre os professores de uma escola primária de Londres:

Na medida em que esses discursos eram eles próprios construídos por meio de estereótipos racistas relacionados a uma suposta natureza indisciplinada e violenta dos homens negros, não era surpreendente que os meninos negros na escola tendessem a se tornar agudamente visíveis em momentos de crise. Isto é, pode-se argumentar que quanto mais o/a professor/a era forçado a agir rapidamente, sem a oportunidade de investigar e discernir qual criança era a principal culpada por qualquer indisciplina específica, mais esses discursos racializados tinham tendência a encorajar alguns professores a focalizar nas crianças negras em meio ao mar de rostos nas assembléias ou nas salas de aula. (Connolly, 1998, p. 78, tradução nossa)

Na escola investigada, contudo, não verificamos esse tipo de situação e as professoras, conforme comentado acima, não faziam uma associação entre indisciplina e pertencimento à raça negra, classificando como pretas ou pardas a mesma proporção de crianças entre as consideradas indisciplinadas e no total da escola. Para elas, o fator decisivo na composição do grupo de "indisciplinados" era o sexo da criança: o Gráfico 1 mostra que nesse grupo estavam praticamente um terço dos meninos vistos como brancos (20 em 63), e também dos classificados como negros (8 em 27), enquanto as proporções de meninas indisciplinadas são significativamente menores. Alguns estudos têm mostrado como os critérios de avaliação de comportamento variam conforme o sexo dos alunos em escolas brasileiras (Bernardes, 1989; Moreira & Santos, 2002).


Além disso, a renda familiar, como já esboçamos acima, não era um fator linear na definição do comportamento classificado como indisciplinado, sendo os meninos provenientes de famílias com renda entre cinco e dez salários mínimos os mais propensos a participar desse grupo. É possível supor que as crianças de mais baixa renda desenvolvessem comportamentos mais submissos, particularmente tendo em vista a heterogeneidade sociocultural presente naquela escola e uma possível percepção por parte dessas crianças e suas famílias de que o acesso àquela instituição, considerada de boa qualidade, era uma chance de ascensão social a ser bem aproveitada. Mas qualquer afirmação nessa direção exigiria estudos junto a esse grupo específico.

No que tange ao conjunto do grupo com problemas de disciplina, entretanto, novas indicações surgem, se consideramos não apenas as diferenças entre proporções de negros e brancos na escola e no grupo, conforme a heteroclassificação, mas também as diferenças entre hetero e autoclassificação de cor (branco, pardo ou preto). De acordo com a autoclassificação, as crianças brancas estariam sobre-representadas em dez pontos percentuais no grupo de indisciplinados (Quadro 4) em comparação ao conjunto da escola. O mesmo fenômeno pode ser observado no Quadro 5, que indica os casos em que professora e aluno concordaram na classificação de cor da criança, e aqueles em que a professora clareou-a ou escureceu-a, ante a autoclassificação. Embora a tendência mais marcante das professoras em todos os grupos fosse de clarear os alunos, o grupo em que houve maior proporção de escurecimentos foi exatamente aquele dos alunos com problemas de disciplina (18%).

Trata-se aqui de categorias de cor (branco, preto e pardo), e seria possível supor que as professoras teriam classificado como pretos alunos que se percebiam como pardos, isto é, que o comportamento indisciplinado estivesse associado ao menino preto, mais intensamente que ao pardo. Entretanto, essa hipótese não se sustenta, já que mesmo considerando os alunos percebidos como pretos por pelo menos uma das professoras (um total de 21), apenas três apresentavam problemas de disciplina.13 13 A maioria dessas crianças às quais as professoras atribuíram a cor preta não foi citada nem para queixas nem para elogios (12) e apenas um menino foi elogiado. Trata-se, portanto, de uma atribuição da cor parda pelas professoras a crianças que se percebiam como brancas.

Se compararmos o alto índice de concordância entre auto e heteroclassificação de cor (Quadro 5) verificado entre os alunos do reforço (63%) com a concordância de 55% entre os "indisciplinados", podemos supor que mais alunos teriam uma identidade racial negra consolidada entre os indicados para o reforço do que entre aqueles com problemas disciplinares. Isto é, entre os alunos com problemas de aprendizagem (e é interessante assinalar que um número significativo deles permanecia no reforço ao longo dos quatro anos do primeiro ciclo do ensino fundamental) a identidade negra estaria presente não apenas no olhar das professoras, mas também internalizada, levando a uma alta taxa de concordância e a uma baixa taxa de escurecimentos pelas professoras.

Já os problemas de disciplina não teriam o mesmo efeito marcador, estando menos intensamente associados à autopercepção como negro (preto ou pardo), o que teria como resultado as taxas mais altas de escurecimento por parte das professoras, que eram de 18% entre os "indisciplinados" e apenas 9% no total de crianças (Quadro 5).

Considerando-se a raça e a renda familiar, parece haver um problema específico junto ao pequeno grupo de dez crianças de renda alta que as professoras percebiam como negras: quatro delas (40%) foram indicadas como indisciplinadas, índice muito mais alto do que em todos os demais grupos, já que tinham problemas disciplinares apenas 16% das crianças de renda alta e 24% das de renda baixa vistas como brancas, ao lado de 19% das de renda baixa percebidas como negras (Gráfico 2). Uma investigação específica sobre esse grupo poderia revelar os processos de construção tanto das posturas das crianças quanto das percepções das professoras, possivelmente um círculo em que cada pólo reforça e confirma atitudes e pressupostos do outro pólo.


Há indicações, de toda forma, de que naquela escola nem a classificação de cor (branco, pardo, preto) nem a racial (branco e negro) estavam estreitamente associadas a problemas disciplinares. Na avaliação das educadoras, os problemas de disciplina que enfrentavam não eram graves nem muito freqüentes, como é comum acontecer nas primeiras séries do ensino fundamental. Esse tema não se constituía em prioridade, por exemplo, em sua pauta de discussões, embora seja preciso destacar a ambigüidade da separação entre "problemas disciplinares" e "problemas de aprendizagem", como indicado acima. Ainda assim, cremos poder afirmar que o fenômeno descrito por Connolly (1998), Ferguson (2000) e outros não se apresentava na escola estudada, e que as educadoras não associavam intensamente sua classificação das crianças como negras a comportamentos tidos como indisciplinados. Da mesma forma, para as próprias crianças, fazer parte do grupo percebido pelas professoras como indisciplinado não parecia conduzir à construção de uma autopercepção como negros.

Uma classificação racial relacionada ao desempenho na aprendizagem

No Quadro 6, que compara auto e heteroclassificação de cor (considerando três das categorias de cor utilizadas pelo IBGE, quais sejam, branco, pardo e preto), observamos, antes de mais nada, que a categoria preto foi a menos utilizada tanto pelas crianças (13) quanto pelas professoras (15). Branco foi a classificação majoritária entre as educadoras, alcançando 136 alunos e alunas, mas sendo utilizada apenas por 86 crianças. Finalmente, enquanto para as professoras havia somente 33 crianças pardas na escola, para os próprios alunos e alunas havia 103.14 14 Nesse quadro, trabalhamos com o total de 203 alunos, incluindo as crianças de 3ª e 4ª séries, a respeito de cuja cor as professoras da classe divergiram entre si (grupo "discordância").


Na diagonal desse quadro podemos acompanhar a porcentagem de consistência entre hetero e auto-atribuição de cor. Quase não há divergências com relação às crianças autoclassificadas como brancas: 93% delas foram classificadas pelas professoras da mesma forma, e quanto às restantes houve discordância entre as educadoras, com uma delas escolhendo branco. No caso dos pardos, a consistência cai para 29% dos casos, pois a metade das crianças que se autoclassificaram como pardas foram classificadas pelas professoras como brancas (51%), um número equivalente a 53 alunos e alunas, ao lado de uma minoria classificada pelas professoras como pretas (nove crianças). Já no caso dos pretos, houve concordância em quase a metade dos casos (seis num total de 13 autoclassificações). Destaque-se que as professoras classificaram como pretos um número ligeiramente maior (15) que os próprios alunos (13).

As divergências entre as professoras referem-se a alunos que se auto atribuíram a cor branca (seis casos) e principalmente a cor parda (11 casos). O fato de essas divergências serem exceção entre os autoclassificados como pretos (apenas um caso), reforça a idéia de que há consistência na identidade de cor dos poucos alunos "pretos" da escola e indica que a maior ambigüidade se situa entre alunos que se percebem como pardos.

Esse fenômeno de forte branqueamento pode ter sido influenciado pela cor das classificadoras. Em suas entrevistas, as oito professoras de classe foram solicitadas a se autoclassificarem utilizando as mesmas categorias do IBGE, e sete delas se declararam brancas. A única a se considerar parda foi aquela que indicou maior número de crianças pardas e pretas ao fazer a classificação, com isso coincidindo em maior proporção com a autoclassificação de seus alunos. Essa professora explicitou como utilizava os mesmos critérios para si e para os alunos:

Eu acho que são poucas categorias pra classificar, devia ter maior variação. Por exemplo, comparando comigo, se eu me chamo de parda, a D. também é parda; o F. é pardo. [...] Às vezes eu lembro da pele, às vezes do cabelo.

Como já comentado acima, Eliana de Oliveira (1994) encontrou a mesma tendência entre as funcionárias de creche a quem solicitou que classificassem crianças atendidas nesses equipamentos por fotografias, com as pessoas autoclassificadas como brancas indicando maior porcentagem de brancos entre as crianças, as pessoas autoclassificadas como pretas indicando maior porcentagem dessa categoria, e assim por diante. Devemos considerar que, se havia semelhança com nossa pesquisa pelo fato de serem em sua maioria mulheres adultas atribuindo cor a crianças, havia também a diferença de que, no caso da pesquisa de Oliveira, as funcionárias não trabalhavam diretamente com as crianças classificadas, como faziam nossas professoras. Também é preciso ressalvar que Oliveira compara diferentes classificações externas (heteroatribuições), enquanto aqui comparamos autoclassificações feitas pelos próprios alunos com o olhar de suas professoras. Mas é possível afirmar uma tendência a que mulheres adultas brancas clareiem crianças ao classificá-las por cor, pelo menos no que se refere aos pardos.

No entanto, assim como na amostra estudada por Oliveira (1994), não foi possível identificar qualquer tendência de clareamento ou escurecimento das crianças com relação a sua idade, com as variações entre séries muito mais associadas às características da classificação individual dessa ou daquela professora do que a uma seqüência etária.

De toda forma, parece que era constrangedor ou até mesmo ofensivo para as professoras classificar as crianças como pardas ou pretas. A idéia mesma de classificar seus alunos por cor parecia desconfortável:

São coisas, assim, que a gente... sei lá, você não pára muito para pensar. Você não se vê assim. E eu procuro não ver as crianças assim, se é verde, amarelo, azul, branco. Você procura ver crianças, alunos. Daí... meio que dá uma... não sei. Não é uma coisa que eu fico muito procurando: "fulaninho é assim ou assado". Não é uma coisa que eu fico muito preocupada pensando, que eu me preocupe, não.

Nessa fala aparecem não apenas a diluição das raças em cores neutras do ponto de vista social (verde, azul), mas também a possibilidade — característica da branquitude — de não perceber-se a si mesma como um ser "racializado", com identidade racial ("Você não se vê assim").

Parece que, para professoras brancas, habituadas a essa postura pretensamente neutra com relação a si mesmas, reconhecer algum pertencimento racial nas crianças é embaraçoso. Sendo esse pertencimento mais freqüentemente percebido nos negros e, além disso, tão intimamente associado a características negativas, elas pareciam fazê-lo apenas em último caso, particularmente quando se tratava de "suas crianças", alunos com quem mantinham relações afetivas e uma convivência estreita, como se tentassem protegê-los desse contexto, desses problemas relativos ao pertencimento racial. Esse movimento apareceu em seu extremo no caso de uma professora que não classificou qualquer de seus alunos como preto, e apenas uma menina como parda, tendo revelado-se, ao longo da entrevista, profundamente envolvida com sua classe e com grande clareza em seus objetivos pedagógicos e critérios de avaliação.

Em relação ao sexo das crianças (Quadro 7), evidencia-se uma tendência das professoras em clarearem mais as meninas: enquanto 60% delas percebem a si mesmas como negras, para as professoras seriam apenas 26%. No que se refere aos meninos, os índices seriam de 55% e 30%, respectivamente. O Quadro 8 reforça essa idéia, mostrando que as professoras concordaram mais com a autoclassificação dos meninos, clarearam 28% deles e 37% das alunas e, inversamente, escureceram 12% dos meninos, mas apenas 7% das meninas.



Essa tendência foi encontrada em outros estudos, particularmente no que se refere à categoria preto. Entre nossos alunos, 21 foram classificados pelo menos por uma professora como preto (incluindo-se os casos em que houve discordância entre professoras), sendo 14 do sexo masculino e apenas sete meninas. Nenhuma dessas crianças provinha de famílias com renda mensal superior a 20 salários mínimos e 13 delas pertenciam a famílias que recebiam menos de dez salários mínimos. Assim, é possível supor que nossas professoras tenham feito o mesmo movimento detectado por Telles na sociedade brasileira como um todo, quando afirma:

[...] dada a conotação especialmente negativa atribuída ao termo preto e uma maior cordialidade oferecida às mulheres, os brasileiros talvez evitem ofender uma mulher de pele escura de alto status social não classificando-a de preta. (2003, p. 125)

Isto é, de forma geral, a renda teve uma influência marcante na classificação feita pelas professoras. Embora elas tendessem a clarear os alunos de todas as faixas de renda em relação à sua autopercepção (Quadro 9), faziam-no de forma mais acentuada conforme se ascendia na escala social: a diferença entre a porcentagem de alunos auto e heteroclassificados como negros (pretos e pardos) é de 24 pontos percentuais na faixa de renda mais baixa (até cinco salários mínimos) e sobe para 40 e 35 pontos nas faixas seguintes. A proporção é de uma para uma e meia heteroatribuição de raça negra entre os mais pobres e de uma para três nas faixas intermediárias de renda. Já entre as crianças provenientes de famílias com renda mensal acima de 20 salários mínimos, enquanto oito delas se autoclassificaram como negras, as professoras classificaram apenas uma (proporção de um para oito). Trata-se de uma menina, auto e heteroclassificada como parda e que foi indicada para o reforço.


Enfim, a comparação entre a classificação das professoras e a autoclassificação dos alunos em cada faixa de renda mostra que elas, dentro da propensão ampla de clarear os alunos, tenderam a diminuir ainda mais a proporção de negros entre os de alta renda e inversamente ampliar essa mesma proporção entre os de baixa renda.

As crianças de famílias com renda acima de dez salários mínimos e percebidas como negras eram somente dez em toda a escola, e eram muito visíveis para as professoras: nenhuma delas deixou de ser citada (Quadro 10). No caso dessas crianças, a renda não tinha peso suficiente para livrá-las dos problemas de aprendizagem, como podemos observar no Gráfico 2: 40% delas (quatro em dez) estavam no grupo de reforço, exatamente a mesma proporção dos alunos de renda baixa classificados pelas professoras como negros. Já para as crianças percebidas como brancas, entre as provenientes de famílias na faixa de renda acima de dez salários mínimos, 25% estavam no reforço e 37% entre as de famílias de renda baixa, índice muito próximo ao das crianças negras de qualquer renda. Destaquemos ainda que são elogiados como bons alunos 37% dos brancos e apenas 20% dos negros (heteroatribuição) com renda acima de dez salários mínimos (Quadro 10). Portanto, a renda não consegue explicar, isoladamente, o sucesso ou fracasso escolar das crianças, de acordo com a avaliação feita pelas professoras.


Assim sendo, essas proporções são bastante eloqüentes para nos permitir afirmar que a atribuição de raça feita pelas professoras não se relacionava exclusivamente às características fenotípicas das crianças, a seu sexo e à percepção que tinham quanto à renda de suas famílias, mas também a seu desempenho na aprendizagem, independentemente de seu comportamento ser considerado como disciplinado ou não. Isto é, nossa hipótese inicial foi confirmada no que se refere à avaliação de aprendizagem das crianças, embora não no que se refere aos problemas de disciplina. Se lembrarmos que a avaliação escolar utilizada nesse caso é construída pelas próprias professoras, podemos supor que elas tanto tendiam a perceber como negras crianças com problemas de aprendizagem, com relativa independência de sua renda familiar, quanto tendiam a avaliar negativamente ou com maior rigor o desempenho de crianças percebidas como negras.

Isto é, se pensarmos que o status da criança no âmbito da escola depende tanto de sua renda familiar quanto de seu desempenho, podemos supor que o fato de a desigualdade de desempenho escolar entre brancos e negros na escola estudada ser maior quando se usa a classificação das professoras do que quando a autoclassificação é usada, decorreria tanto de as professoras clarearem crianças de melhor desempenho quanto de, simultaneamente, avaliarem com maior rigor crianças que percebem como negras. Esse fenômeno é particularmente intenso em relação aos meninos, o que indica a presença de uma associação, no quadro de referências utilizado pelas professoras para avaliar as crianças, entre um tipo de masculinidade negra e o baixo desempenho na aprendizagem.

Cabe enfatizar que não se trata de acusar as professoras individualmente por uma deliberada discriminação racial e de gênero, nem de apenas afirmar que o racismo presente na sociedade brasileira como um todo penetra as relações escolares. Trata-se de qualificar essa presença, perceber de que formas a desigualdade racial marca processos cotidianos tais como a avaliação de aprendizagem. Em especial no caso deste artigo, esperamos ter mostrado como o racismo está presente na avaliação de aprendizagem de alunos e alunas, marcando-a com injustiças que muitos ainda julgam distantes do mundo da sala de aula.

Recebido em março de 2004

Aprovado em dezembro de 2004

MARÍLIA CARVALHO é professora na Faculdade de Educação da USP, onde concluiu seu doutorado em 1998. Vem pesquisando as relações de gênero na escola desde os anos 1980. Além de vários artigos sobre o tema, publicou o livro No coração da sala de aula: gênero e trabalho docente nas séries iniciais (São Paulo, Xamã, 1999). E-mail: mariliac@usp.br

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  • 1
    Trata-se da pesquisa "O fracasso escolar de meninos e meninas: articulações entre gênero e cor/raça", financiada pelo CNPq, que integra o projeto "A gestão da violência e da diversidade na escola", do Programa de Cooperação Internacional Brasil-França (Convênio CAPES-COFECUB).
  • 2
    A grande complexidade e a decorrente dificuldade em construir perguntas sobre como uma pessoa (adulta) se classifica em termos raciais no Brasil, assim como algumas soluções possíveis, estão bem discutidas em Guimarães (2003).
  • 3
    De toda forma, devemos destacar que não se trata de uma pesquisa especificamente voltada para os processos de construção do pertencimento racial em crianças, trabalho que certamente poderia enriquecer o debate sobre relações raciais no Brasil, mas que ainda está por ser feito. Justamente frente a essa lacuna é que pareceu-nos interessante divulgar as anotações que se seguem, que, embora iniciais, podem se constituir numa provocação para outros(as) pesquisadores(as).
  • 4
    Participou desse trabalho a aluna Marina Rocha Figueiredo de Oliveira, bolsista de iniciação científica do CNPq. Tanto a pesquisadora quanto a bolsista se autoclassificam como brancas.
  • 5
    O termo "branquitude" vem sendo utilizado como tradução de "
    whiteness" para designar o pertencimento à raça branca.
  • 6
    Na etapa anterior da pesquisa (Carvalho 2004b), a presença de um número maior de crianças que se autoclassificaram na questão aberta como orientais ou descendentes, acrescentando comentários, permitiu alguma discussão sobre esse tema.
  • 7
    Agradeço a Amélia Cristina de Abreu Artes, aluna do mestrado em educação da FEUSP, pela tabulação desses dados.
  • 8
    A atual etapa da pesquisa debruça-se exatamente sobre essa questão, indagando se a definição de objetivos pedagógicos claros e a conseqüente adoção de critérios de avaliação de aprendizagem bem delimitados poderiam (ou não) minimizar os desequilíbrios socioeconômicos, de sexo e de raça que vimos constatando no interior do grupo de alunos apontados como portadores de dificuldades de aprendizagem.
  • 9
    Nos quadros utilizamos somente a auto-atribuição de cor feita a partir das categorias do IBGE (questão de múltipla escolha respondida pelas crianças).
  • 10
    Uma análise desses dados foi desenvolvida em Carvalho (2004a), com ênfase para as relações de gênero.
  • 11
    Supomos que os autores referem-se aos alunos que marcaram a opção negro(a) na pergunta sobre classificação racial.
  • 12
    Considera-se que há pouca confiabilidade nos dados coletados no questionário de caracterização que acompanha o teste do SAEB e que é respondido pelas próprias crianças, pois elas não teriam informações sobre a escolaridade dos pais, a renda familiar etc, o que tem levado muitos pesquisadores a trabalharem apenas com os resultados relativos à 8ª série ou ao ensino médio.
  • 13
    A maioria dessas crianças às quais as professoras atribuíram a cor preta não foi citada nem para queixas nem para elogios (12) e apenas um menino foi elogiado.
  • 14
    Nesse quadro, trabalhamos com o total de 203 alunos, incluindo as crianças de 3ª e 4ª séries, a respeito de cuja cor as professoras da classe divergiram entre si (grupo "discordância").
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 2005

    Histórico

    • Aceito
      Dez 2004
    • Recebido
      Mar 2004
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