Dom Casmurro - Machado de Assis
CAPÍTULO V / O AGREGADO
Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se
descompunha em acionados, era muita vez rápido e lépido
nos movimentos, tão natural nesta como naquela maneira. Outrossim,
ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo,
a tal ponto ás bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, toda
a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, gravíssimo.
Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga
fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali
vendendo-se por médico homeopata; levava um Manual e uma botica.
Havia então um andaço de febres; José Dias curou
o feitor e uma escrava, e não quis receber nenhuma remuneração.
Então meu pai propôs-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado.
José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à
casa de sapé do pobre.
Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde
quiser, mas fique morando conosco.
Voltarei daqui a três meses.
Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipêndio,
salvo o que quisessem dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado
e veio para o Rio de Janeiro com a família, ele veio também,
e teve o seu quarto ao fundo da chácara. Um dia, reinando outra
vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que fosse ver a nossa
escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou
confessando que não era médico. Tomara este título
para ajudar a propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar
muito e muito; mas a consciência não lhe permitia aceitar
mais doentes.
Mas, você curou das outras vezes.
Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer
que foram os remédios indicados nos livros. Eles, sim, eles, abaixo
de Deus. Eu era um charlatão... Não negue; os motivos do
meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia é a verdade,
e, para servir à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer
tudo.
Não foi despedido, como pedia então; meu pai já não podia dispensá-lo.
Tinha o dom de se fazer aceito e necessário; dava-se por falta dele, como
de pessoa da família. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme,
disseram-me; não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata, e não consentiu
que ele deixasse o quarto da chácara; ao sétimo dia. depois da missa,
ele foi despedir-se dela.
Fique, José Dias.
Obedeço, minha senhora.
Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de
louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por
cima da cama. "Esta é a melhor apólice", dizia ele muita vez. Com o tempo,
adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava,
e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem
tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias
que fizesse vinham antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe
muito; ao contrário das pessoas que enxovalham depressa o vestido novo,
ele trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado, de uma elegância
pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o bastante para divertir
ao serão e à sobremesa, ou explicar algum fenômeno, falar dos efeitos
do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre. Contava muita vez uma
viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria
voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele,
abaixo de Deus, era tudo.
Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.
Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.
E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus
no devido lugar, e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça.
Minha mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio Cosme,
que era advogado, confiava-lhe a cópia de papéis de autos.
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