Redondilhas, de Luís de Camões

 

Texto-base:

CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas de Luís Camões. Direção Literária Dr. Álvaro Júlio da Costa Pimpão.

 

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Agradecimentos especiais à Dra. Maria Teresa Perdigão Costa Bettencourt d'Ávila, herdeira do Dr. Álvaro Júlio da Costa Pimpão (responsável pela direção literária da obra-base), que gentilmente autorizou-nos a publicação desta obra.

 

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REDONDILHAS

Luís de Camões

 

 

Amor cuja providência (1595 - redondilha 038)

Amor que em meu pensamento (1595 - redondilha 032)

Ana quisestes que fosse (1668 - redondilha 033)

Aquela cativa (1595 - redondilha 106)

Aquele rosto que traz (1595 - redondilha 062)

A verdura amena (1598 redondilha 014)

Baixos e honestos andais (1595 - redondilha 081)

Campo, que te estendes (1598 - redondilha 011)

Campos cheios de prazer (1595 - redondilha 051)

Caterina é mais fermosa (1595 - redondilha 060)

Cinco galinhas e meia (1616 - redondilha 101)

Conde, cujo ilustre peito (1595 - redondilha 112)

Corre sem vela e sem leme (1595 - redondilha 117)

Costumadas artes sao (1595 - redondilha 071)

Cousa que este corpo não tem (1595 - Redondilha 063)

Cum real de amor (1598 - redondilha 093)

Da lindeza vossa (1595 - redondilha 026)

Dama d'estranho primor (1595 - redondilha 015)

D'Amor e seus danos (1595 - redondilha 105)

De maneira me sucede (1668 - redondilha 056)

Despois de sempre sofrer (1595 - redondilha 031)

Después que Amor me formo (1595 - redondilha 083)

Desque una vez miré (1616 - redondilha 035)

 

 

De ver-vos a não vos ver (1595 - redondilha 077)

Dióme Amor tormentos dos (1595 - redondilha 073)

Dotou em vos natureza (1595 - redondilha 007)

Dous tormentos vejo (1616 - redondilhas 004)

É muito pera notar (1595 - redondilha 041)

Eles verdes são (1595 - redondilha 012)

Entre estes penedos (1598 - redondilha 010)

E se a pena não me atiça (1598 - redondilha 085)

Esses alfinetes vao (1595 - redondilha 022)

Este mundo es el camino (1595 - redondilha 115)

Este tempo vão (1595 - redondilha 002)

Eu, pera levar a palma (1668 - redondilha 091)

Eu sou boa testemunha (l595 - redondilha 013)

Falsos loores os dán (1595 - redondilha 048)

Foi a Esperança julgada (1595 - redondilha 065)

Ja'gora certo conheço (1598 - redondilha 088)

Juravas-me que outras cabras (1598 - redondilha 057)

Leva na cabeça o pote (1668 - redondilha 053)

Madre. si me fuere (1595 - redondilha - 089)

Menina mais que na idade (1595 - redondilha 040)

Mi corazón me han robado (1595 - redondilha 068)

Mi nueva y dulce querella (1595 - redondilha 069)

N'alma ua so ferida (1598 - redondilha 086)

Nao posso chegar ao cabo (1616 - redondilha 100)

Não sabendo Amor curar (1595 - redondilha 043)

Não sei quem assela (1598 - redondilha 019)

Não vos guardei, quando vinha (1668 - redondilha 055)

Ninguém vos pode tirar (1616 - redondilha 008)

Nos seus olhos belos (1616 - redondilha 005)

NÜa casada fui pôr (1595 - redondilha 064)

Nunca em prazeres passados (1668 - redondilha 084)

Nunca o prazer se conhece (1595 - redondilha 029)

O coração envejoso (1595 - redondilha 066)

Olhai que dura sentença (1595 - redondilha 042)

Os bons vi sempre passar (1598 - redondilha 116)

Os gostos, que tantas dores (1598 - redondilha 082)

Os privilégios que os reis (1595 - redondilha 052)

Para evitar dias maus (1860 - redondilha 049)

Peço-vos que me digais (1595 - redondilha 020)

Pelo meu apartamento (1616 - redondilha 024)

Para quem vos soube olhar (1595 - redondilha 072)

Perdigão, que o pensamento (1598 - redondilha 092)

Pois a tantas perdições (1598 - redondilha 027)

Pois onde te hão-de falar? (1616 - redondilha 103)

Pois o ver-vos tenho em mais (1595 - redondilha 045)

Por cousa tão pouca (1595 - redondilha 017)

Posible es a mi cuidado (1595 - redondilha 059)

Posto o pensamento nele (1616 - redondilha 054)

Pues me distes tal herida (1668 - redondilha 030)

Quando me quer enganar (1595 - redondilha 023)

Quando vos eu via (1595 - redondilha 003)

Que diabo há tão danado (1616 - redondilha 109)

Quem no mundo quiser ser (1595 - redondilha 108)

Quem põe suas confianças (1616 - redondilha 036)

Quem quer que viu, ou que leu (1595 - redondilha 099)

Quem tão mal vos empregou (1595 - redondilha 079)

 

 

Quem viveu sempre num ser (1595 - redondilha 080)

Querendo Amor esconder-vos (1668 - redondilha 039)

Querendo escrever um dia (1595 - redondilha 006)

Quererdes profano Amor (1595 - redondilha 107)

Reinando Amor em dous peitos (1595 redondilha 090)

Se de dó vestida andais (1595 - redondilha 061)

Se derivais de verdade (1595 - redondilha 018)

Se de saudade (1595 - redondilha 021)

Se desejos fui jà ter (1595 - redondilha 076)

Se me for e vos deixar (1598 - redondilha 087)

Se na alma e no pensamento (1598 - redondilha 097)

Se não quereis padecer (1595 - redondilha 113)

Se só no ser puramente (1595 - redondilha 034)

Se trocar desejo (1595 - redondilha 025)

Se vos quereis embarcar (1668 - redondilha 050)

Sem olhos vi o mal claro (1598 - redondilha 098)

Sendo os restos envidados (1595 - redondilha 114)

Senhora, se eu alcançasse (1595 - redondilha 001)

Sepa quién padece (1616 - redondilha 095)

Sôbolos rios que vôo (1595 - redondilha 118)

Só porque é rapaz ruim (1598 - redondilha 094)

Suspeitas que me quereis (1595 - redondilha 016)

Tanto maiores tormentos (1595 - redondilha 028)

Tem tal jurdição Amor (1595 - redondilha 046)

Tenho-me persuadido (1595 - redondilha 070)

Tiempo perdido es aquel (1595 - redondilha 047)

Todo o trabalhado bem (1595 - redondilha 044)

Trataram-me com cautela (1595 - redondilha 075)

Tudo tendes singular (1616 - redondilha 009)

Üa Dama, de malvada (1595 - redondilha 067)

Üa diz que me quer bem (1595 - redondilha 078)

Ved que enganos señorea (1595 - redondilha 058)

Vêm-se rosas e boninas (1616 - redondilha 104)

Vendo amor que, com vos ver (redondilha 037)

Vi-o moço o pequenino (1595 - redondilha 074)

Viver eu, sendo mortal (1595 - redondilha 111)

Vossa Senhoria creia (redondilha 110)

[Vós] sois ua Dama (1668 - redondilha 096)

-Vuelve acá, no estês pasmado (1616 - redondilha 102)

 

 

XXXVIII

Glosa a este moto alheio:

 

Sem vós e com meu cuidado

olhai com quem, e sem quem.

 

Amor, cuja providência

foi sempre que não errasse,

porque n'alma vos levasse,

respeitando o mal de ausência

quis que em vós me transformasse.

E vendo-me ir maltratado,

eu e meu cuidado sós,

proveio nisso, de atentado,

por não me ausentar de vós,

sem vós e com meu cuidado.

Mas est'alma que eu trazia

porque vós nela morais,

deixa-me cego, e sem guia;

que há por milhor companhia

ficar onde vós ficais.

Assi me vou de meu bem

onde quer a forte estrela,

sem alma, que em si vos tem,

co mal de viver sem ela:

olhai com quem, e sem que

 

XXXII

Glosa a este moto seu (acróstico):

 

A morte, pois que sou vosso,

não na quero, mas se vem,

[h]a-de ser todo meu bem.

 

Amor, que em meu pensamento

com tanta fé se fundou,

me tem dado um regimento

que, quando vir meu tormento,

me salve com cujo sou.

E com esta defensão,

com que tudo vencer posso,

diz a causa ao coração:

não tem em mim jurdição

A morte, pois que sou vosso.

Por exprimentar um dia

Amor se me achava forte

nesta fé, como dizia,

me convidou com a morte,

só por ver se a tomaria.

E, como ele seja a cousa

onde está todo o meu bem,

respondi-lhe (como quem

quer dizer mais, e não ousa):

não na quero, mas se vem...

Não disse mais, porque então

entendeu quanto me toca;

e se tinha dito o não,

muitas vezes diz a boca

o que nega o coração.

Toda a cousa defendida

em mais estima se tem:

por isso é cousa sabida

que perder por vós a vida

[h]a-de ser todo meu bem.

 

 

 

XXXIII

A B C em motos

 

AAAA

Ana quisestes que fosse

o vosso nome da pia,

para mor minha agonia.

Apeles, se fora vivo

e a ver-vos alcançara,

por vós retratos tirara.

Aquiles morreu no templo,

contemplando de giolhos;

eu, quando vejo esses olhos.

Artemisa sepultou

a seu irmão e marido;

vós a mim, e a meu sentido.

 

B

Bem vejo que sois, Senhora,

extremo de fermosura,

para minha sepultura.

 

CC

Cleópatra se matou

vendo morto a seu amante;

e eu por vós, em ser constante.

Cassandra disse de Tróia

que havia ser destruída;

e eu por vós, d'alma e da vida.

 

DD

Dido morreu por Enéas,

e vós matais quem vos ama;

julgai se sois cruel dama!

Dianira, inocente,

da má morte causadora;

vós, da minha, sabedora.

 

E

Eurídice foi a causa

de Orfeu ir ao Inferno;

vos, de ser meu mal eterno.

 

FF

Fedra, só de puro amor,

morreu por seu enteado;

eu, morro de desamado.

Febo vai escurecendo

ante vossa claridade;

e eu, sem ter liberdade.

 

GG

Galateia sois, Senhora,

Da fermosura extremo;

e eu, perdido Polifemo.

Genebra, que foi rainha,

se perdeu por Lançarote;

e vós, por me dar a morte.

 

HH

Hércules, uma camisa

de chamas o consumiu;

minha alma, dês que vos viu.

Hébis e Dido morreram

com origor da mudança;

eu, vendo vossa esquivança.

 

JJJJ

Judit, que o duro Holofernes

degolou, se viva fora,

mate lhe déreis, Senhora.

Júlio César conquistou

o mundo com fortaleza;

vós a mim com gentileza.

Júlio César se livrou

dos imigos com abrolhos;

eu, não posso desses olhos.

Jazia-se o Minotauro

preso no seu labirinto;

mas eu mais preso me sinto.

 

LL

Leandro se afogou

e foi sua causa Hero;

e a mim o que vos quero.

Leandro se afogou

no mar de sua bonança;

eu, no de vossa esperança.

 

MM

Minerva dizem que foi,

e Palas, deusas da guerra:

e vós, Senhora, da terra.

Medeia foi mui cruel,

mas não chegou a metade

de vossa grã crueldade.

 

NN

Narciso o siso perdeu

em vendo a sua figura;

eu, por vossa fermosura;

Ninfas enganam mil Faunos

com seu ar e fermosura;

e, a mim, vossa figura.

 

OO

Os olhos choram o dano

que em vos verem sentiram,

mas eu pago o que eles viram.

Orfeu com a doce harpa

venceu o reino de Plutão;

vós a mim, com perfeição.

 

PP

Páris a Helena roubou,

por quem Tróia foi perdida;

e vós a mim, alma e vida.

Pirro matou Policena,

perfeita em todos sinais;

e vós a mim me matais.

 

QQ

Quanto mais desejo ver-vos,

menos vos vejo, Senhora:

não vos ver milhor me fora.

Querendo ver a Diana,

Actéon perdeu a vida,

que eu por vós trago perdida.

 

RR

Remédio nenhum não vejo

que romedeie meu mal;

nem crueza à vossa igual.

Roma o mundo sujeita

com armas, saber, temor

vós a mim só por amor.

 

S

Sirena, na mor fortuna

com enganos vai cantando;

e vós, sempre a mim matando.

 

TT

Tisbe morreu por Píramo,

a ambos matou o Amor;

a mim, vosso desfavor.

Tisbe pelo seu amante

morreu com amor sobejo;

mas eu mais morto me vejo.

 

WW

Vénus, que por mais fermosa

lhe deu Páris a maçã,

não foi quanto vós louçã.

Vénus levou a maçã

por vós não serdes, Senhora,

nascida naquela hora.

 

XX

Xpõ vos acabe em graça,

e vos faça piadosa

tanto, quanto sois fermosa.

Xantopea tornou atrás

por Apónio a invocar;

e vós não, a meu chamar.

 

 

 

CVI

Trovas a üa cativa com quem andava de amores na Índia, chamada

Bárbora

 

Aquela cativa,

que me tem cativo,

porque nela vivo

já não quer que viva.

Eu nunca vi rosa

em suaves molhos,

que para meus olhos

fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,

nem no céu estrelas,

me parecem belas

como os meus amores.

Rosto singular,

olhos sossegados,

pretos e cansados,

mas não de matar.

üa graça viva,

que neles lhe mora,

para ser senhora

de quem é cativa.

Pretos os cabelos,

onde o povo vão

perde opinião

que os louros são belos.

Pretidão de Amor,

tão doce a figura,

que a neve lhe jura

que trocara a cor.

Leda mansidão

que o siso acompanha;

bem parece estranha,

mas bárbora não.

Presença serena

que a tormenta amansa;

nela enfim descansa

toda a minha pena.

Esta é a cativa

que me tem cativo,

e, pois nela vivo,

é força que viva.

 

 

 

LXVI

Cantiga a Dona Guiamar de Blasfé, que se queimara no rosto

com üa vela

 

MOTO:

Amor que todos ofende

teve, Senhora, por gosto,

que sentisse o vosso rosto

o que nas almas acende.

 

VOLTAS

Aquele rosto que traz

o mundo todo abrasado,

se foi da flama tocado,

foi porque sinta o que faz.

Bem sei que Amor se lhe rende;

porém o seu pros[s]uposto

foi sentir o vosso rosto

o que nas almas acende.

 

 

 

XIV

Cantiga a este meto seu:

 

Se Helena apartar do

campo seus olhos,

nascerão abrolhos.

 

VOLTAS

A verdura amena,

gados, que pasceis,

sabei que a deveis

aos olhos de Helena.

Os ventos serena,

faz flores de abrolhos

o ar de seus olhos.

Faz serras floridas,

faz claras as fontes:

se isto faz nos montes,

que fará nas vidas?

Trá-las suspendidas

como ervas em molhos,

na luz de seus olhos.

Os corações prende

com graça inumana

de cada pestana

ü alma lhe pende.

Amor se lhe rende,

e, posto em giolhos,

pasma nos seua olhos

 

 

 

LXXXI

Cantiga a üa Dama que lhe virou o rosto

 

MOTO

Olhos, não vos mereci

que tenhais tal condição:

tão liberais para o chão,

tão irosos para mi.

 

VOLTAS

Baixos e honestos andais,

por vos negardes a quem

não quer mais que aquele bem

que vós no chão espalhais.

Se pouco vos mereci,

não me estimais mais que o chão,

a quem vós o galardão

dais, e mo neguis a mi.

 

 

 

*XI

Campo, que te estendes

Esta redondilha não foi disponibilizado pela

FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional

<http://www.fccn.pt>

que realizou a edição digital desta obra.

Agradecemos sua compreensão.

 

 

 

LI

Glosa a este mato alheio:

 

Campos bem-aventurados,

tornai-vos agora tristes,

que os dias em que me vistes

alegre são já passados.

 

Campos cheios de prazer,

vós, que estais reverdecendo,

já me alegrei com vos ver;

agora venho a temer

que entristeçais em me vendo.

E, pois a vista alegrais

dos olhos desesperados,

não quero que me vejais,

para que sempre sejais

campos bem-aventurados.

Porém, se por acidente,

vos pesar de meu tormento,

sabereis que Amor consente

que tudo me descontente,

senão descontentamento.

Por isso vós, arvoredos,

que já nos meus olhos vistes

mais alegrias que medos,

se mos quereis fazer ledos,

tornai-vos agora tristes.

Já me vistes ledo ser,

mas despois que o falso Amor

tão triste me fez viver, .

ledos folgo de vos ver,

porque me dobreis a dor.

E se este gosto sobejo

de minha dor me sentistes,

julgai quanto mais desejo

as horas que vos não vejo

que os dias em que me vistes.

O tempo, que é desigual,

de secos, verdes vos tem;

porque em vosso natural

se muda o mal para o bem,

mas o meu para mor mal.

Se perguntais, verdes prados,

pelos tempos diferentes

que de Amor me foram dados,

tristes, aqui são presentes,

alegres, já são passados.

 

 

 

LX

Cantiga a este moto alheio:

 

Caterina bem promete;

eramá I como ela mente I

 

VOLTAS

Caterina é mais fermosa

para mim que a luz do dia;

mas mais fermosa seria

se não fosse mentirosa.

Hoje a vejo piadosa,

amanhã tão diferente

que sempre cuido que mente.

Caterina me mentiu

muitas vezes, sem ter lei,

mas todas lhe perdoei

por üa só que cumpriu.

Se, como me consentiu

falar, o mais me consente,

nunca mais direi que mente.

Má, mentirosa, malvada,

dizei: para que mentis?

Prometeis, e não cumpris?

Pois sem cumprir, tudo é nada.

Não sois bem aconselhada;

que quem promete, se mente,

o que perde não no sente.

Jurou-me aquela cadela

de vir, pela alma que tinha;

enganou-me; tem a minha;

dá-lhe pouco de perdê-la.

A vida gasto após ela,

porque ma dá se promete,

mas tira-ma quando mente.

Tudo vos consentiria

quanto quisésseis fazer,

se esse vosso prometer

fosse prometer um dia

todo então me desfaria

convosco; e vós, de contente,

zombaríeis de quem mente.

Prometou-me ontem de vir,

nunca mais me apareceu;

creio que não prometeu

senão só por me mentir.

Faz-me enfim chorar e rir;

rio quando me promete,

mas choro quando me mente.

Mas pois folgais de mentir,

prometendo de me ver,

eu vos deixo o prometer,

deixai-me vós o cumprir:

haveis então de sentir

quanto fica mais contente

o que cumpre que o que mente.

 

 

 

CI

Volta a D. António, senhor de Cascais, que prometera a Luís de Camões seis

galinhas recheadas por uma cópia que Ihe fizera, e Ihe mandava, por

princípio de paga, meia galinha

 

Cinco galinhas e meia

deve o Senhor de Cascais;

e a meia vinha cheia

de apetites para as mais.

 

 

 

CXII

Trovas mandadas ao Vizo-Rei, com o mato anterior:

 

Conde, cujo ilustre peito

merece nome de Rei,

do qual muito certo sei

que lhe fica sendo estreito

o cargo de Vizo-Rei;

servirdes-vos de ocupar-me,

tanto contra meu planeta,

não foi senão asas dar-me,

com as quais vou a queimar-me,

como faz a borboleta.

E se eu a pena tomar

que tão mal cortada tenho,

será para celebrar

vosso valor singular,

dino de mais alto engenho.

Que, se o meu vos celebrasse,

necessário me seria

que os olhos da águia tomasse,

só para que não cegasse

no sol de vossa valia.

Vossos feitos sublimados,

nas armas dinos de glória,

são no mundo tão soados

que em vós de vossos passados

se ressuscita a memória.

Pois aquele animo estranho,

pronto para todo efeito,

espanta todo o conceito,

como coração tamanho

vos pode caber no peito.

A clemência que asserena

coração tão singular,

se eu nisso pusesse a pena,

seria encerrar o mar

em cova muito pequena

Bem basta, Senhor, que agora

vos sirvais de me ocupar,

que assi fareis aparar

a pena com que algüa hora

vos vereis ao Céu voar.

Assi vos irei louvando,

vós a mim do chão erguendo,

ambos o mundo espantando:

vós, co a espada cortando,

eu, co a pena escrevendo.

 

 

 

CXVII

Labirinto do Autor a queixar-se do mundo

 

Corre sem vela e sem leme

o tempo desordenado,

dum grande vento levado;

o que perigo não teme

é de pouco exprimentado.

As rédeas trazem na mão

os que rédeas não tiveram:

vendo quando mal fizeram

a cobiça e ambição

disfarçados se acolheram.

A nau que se vai perder

destrue mil esperanças;

vejo o mau que vem a ter;

vejo perigos correr

quem não cuida que há mudanças.

Os que nunca sem sela andaram

na sela postos se vêm:

de fazer mal não deixaram;

de demónio hábito têm

os que o justo profanaram.

Que poderá vir a ser

o mal nunca refreado?

Anda, por certo, enganado

aquele que quer valer,

levando o caminho errado.

É para os bons confusão

ver que os maus prevaleceram;

posto que se detiveram

com esta simulação,

sempre castigos tiveram.

Não porque governe o leme

em mar envolto e turbado,

quem tem seu rumo mudado,

se perece, grita e geme

em tempo desordenado.

Terem justo galardão

e dor dos que mereceram,

sempre castigos tiveram

sem nenhüa redenção,

posto que se detiveram.

Na tormenta, se vier,

desespere na bonança

quem manhas não sabe ter.

Sem que lhe valha gemer

verá falsar a balança.

Os que nunca trabalharam,

tendo o que lhes não convém,

se ao inocente enganaram

perderão o eterno bem

se do mal não se apartaram.

 

 

 

LXXI

Cantiga a esta cantiga velha:

 

Falso cavaleiro ingrato,

enganais-me:

vós dizeis que eu vos mato,

e vós matais-me.

 

VOLTAS

Costumadas artes são

para enganar inocências,

piadosas aparências

sobre isento coração.

Eu vos amo, e vós, ingrato,

magoais-me,

dizendo que eu vos mato,

e vós matais-me.

Vede agora qual de nós

anda mais perto do fim,

que a justiça faz-se em mim

e o pregão diz que sois vós.

Quando mais verdade trato,

levantais-me

que vos desamo e vos mato,

e vós matais-me.

 

 

 

LXIII

Cantiga a este mato seu:

 

Da alma, e de quanto tiver,

quero que me despojeis,

contanto que me deixeis

os olhos para vos ver.

 

VOLTAS

Cousa que este corpo não tem

que já não tenhais rendida;

depois de tirar-lhe a vida,

tirai-lhe a morte também.

Se mais tenho que perder

mais quero que me leveis,

cantento que me deixeis

os olhos para vos ver.

 

 

 

XCIII

Cantiga a esta cantiga alheia:

 

Tende-me mão nele

qu'um real me deve I

 

VOLTAS

Cum real de amor,

dous de confiança

e três de esperança

me foge o tredor.

Falso desamor

se encerra naquele

qu'um real me deve.

Pediu-mo emprestado,

não lhe quis penhor;

é mau pagador,

tendo-mo aferrado.

Cum cordel atado,

ao Tronco se leve,

qu'um real me deve.

Por esta travessa

se vai acolhendo;

ei-lo vai correndo,

fugindo a grã pressa.

Nesta mão e nessa

o falso s'atreve,

qu'um real me deve.

Comprou-me amor

sem lhe fazer preço:

eu não lhe mereço

dar-me desfavor.

Dá-me tanta dor

que ando após ele

pelo que me deve.

Eu de cá bradando,

ele vai fugindo;

ele sempre rindo,

eu sempre chorando.

{El} de quando em quando

no amor s'atreve,

como que não deve.

A falar verdade,

ele já pagou;

mas inda ficou

devendo ametade.

Minha liberdade

é a que me deve:

só nela se atreve.

 

 

 

XXVI

Cantiga à tenção de Miraguarda

 

MOTO:

Ver, e mais guardar

de ver outro dia,

quem o acabaria ?

 

VOLTAS

Da lindeza vossa,

Dama, quem a vê,

impossível é

que guardar-se possa.

Se faz tanta mossa

ver-vos um só dia,

quem se guardaria?

Milhor deve ser

neste aventurar,

ver, e não guardar,

que guardar de ver.

Ver, e defender,

muito bom seria;

mas... quem poderia?

 

 

 

XV

Trovas a üa Dama

 

Dama d'estranho primor,

se vos for

pesada minha firmeza,

olhai não me deis tristeza,

porque a converto em amor.

Se cuidais de

me matar quando usais

de esquivança,

irei tomar por vingança

amar-vos cada vez mais.

Porém vosso pensamento,

como isento,

seguirá sua tenção

crendo que em tanta afeição

não haja acrescentamento.

 

Não creiais

que destarte vos façais

invencível;

que Amor sobre o impossível

amostra que pode mais.

Mas já da tenção que sigo

me desdigo;

que, se há tanto poder nele

também vós podeis mais qu'ele

neste mal que usais comigo.

Mas se for

o vosso poder maior

entre nós,

quem poderá mais que vós

se vós podeis mais que Amor?

Despois que, Dama, vos vi,

entendi

que perdera Amor seu preço;

pois o favor que lhe eu peço

vos pede ele para si.

Nem duvido

que não pode, de sentido,

resistir;

pois, em vez de vos ferir,

ficou, de vos ver,

ferido.

Mas, pois vossa vista e tal

em meu mal,

que posso de vós querer?

Que mal poderei valer

onde o mesmo Amor não val?

Se atentar,

nenhum bem posso esperar;

e oxalá

Que vos

alembrasse já,

sequer para me matar.

Mas nem com isto creiais

que façais

meus serviços mais pequenos;

porqu'eu, quando espero menos,

sabei que então quero mais.

Nada espero,

mas de mim crede este fero

que, em ser vosso,

vos quero tudo o que posso

e não posso quanto quero.

Só por esta fantasia

merecia

de meus males algum fruito;

que ainda não quero muito

para o muito que queria.

 

De maneira

que não é, na derradeira,

grande espanto,

que quem, Dama, vos quer tanto

que outro tanto de vós queira.

 

 

 

CV

Cantiga a este moto:

 

Quem ora soubesse

onde o Amor nasce,

que o semeasse!

 

VOLTAS

D'amor e seus danos

me fiz lavrador;

semeava amor

e colhia enganos;

não vi, em meus anos,

homem que apanhasse

o que semeasse.

Vi terra florida

de lindos abrolhos,

lindos para os olhos,

duros para a vida;

mas a rês perdida

que tal erva pace

em forte hora nace.

Com quanto perdi,

trabalhava em vão;

se semeei grão,

grande dor colhi.

Amor nunca vi

que muito durasse,

que não magoasse.

 

 

 

LVI

Cantiga a este moto:

 

A alma que está ofrecida a

tudo, nada lhe é forte; assi

passa o bem da vida como

passa o mal da morte

 

VOLTAS

De maneira me sucede

o que temo, e o que desejo,

que sempre o que temo, vejo,

nunca o que a vontade pede.

Tenho tão oferecida

alma e vida a toda a sorte

que isso me dera da morte

como já me dá da vida.

 

 

 

XXXI

Glosa a este moto de Francisco

de Morais:

 

Triste vida se me ordena,

pois quer vossa condição

que os males, que dais por pena,

me fiquem por galardão,

 

Despois de sempre sofrer,

Senhora, vossas cruezas,

apesar de meu querer,

me quereis satisfazer

meus serviços com tristezas.

Mas pois embalde resiste

quem vossa vista condena,

prestes estou para a pena,

que, de galardão, tão triste,

triste vida se me ordena.

De contente do mal meu

a tão grande extremo vim,

que consinto em minha fim:

assi que, vos e mais eu,

ambos somos contra mim.

Mas que sofra meu tormento

sem querer mais galardão,

não é fora de razão

que queraa meu sofrimento,

pois quer vossa condição.

O mel, que vós dais por bem,

esse, Senhora, é mortal;

que o mal que dais como mal,

em muito menos se tem,

por costume natural.

Mas porém nesta vitória,

que comigo é bem pequena,

a maior dor me condena

a pena, que dais por glória,

que os males, que dais por pena.

 

Que mor bem me possa vir,

que servir-vos, não o sei.

Pois que mais quero eu pedir,

se quanto mais vos

servir, tanto mais vos deverei?

Se vossos merecimentos

de tão alta estima são,

assaz de favor me dão

em querer que meus tormentos

me fiquem por galardão.

 

 

 

LXXXIII

Glosa a esta Trova de Boscão:

 

Justa fué mi perdición,

de mis males soy contento;

ya no espero galardón,

pues vuestro merecimiento

satistizo a mi pasiôn.

 

Después que Amor me formó

todo de amor, cual me veo,

en las leyes que me dió,

el mirar me consintió,

y defendióme el deseo.

Mas el alma, como injusta,

en viendo tal perfección,

dió a al deseo ocasión:

y pues quebré ley tan justa,

justa fué mi perdición.

Mostrándoseme el Amor

más benigno que cruel,

sobre tirano, traidor,

de celos de mi dolor,

quiso tomar parte en él.

Yo, que tan dulce tormento

no quieto dallo, aunque peco,

resisto, y no lo consiento;

mas si me lo toma á trueco,

de mis males soy contento.

Señora, ved lo que ordena

este Amor tan falso nuestro!

Por pagar á costa ajena

manda que de un mirar vuestro

haga el premio de mi pena.

Mas vos, para que veáis

tan engañosa tención,

aunque muerto me sintáis,

no miréis, que, si miráis,

ya no espero galardón.

¿Pues que premio (me diréis)

esperas que será bueno?

Sabed, si no lo sabéis,

que es lo más de lo que peno

lo menos que merecéis.

¿Quién hace al mal tan ufano,

y tan libre al sentimiento?

¿El deseo? No, que es vano.

¿El Amor? No, que es tirano

¿Pues? Vuestro merecimiento.

No pudiendo Amor robarme

de mis tan caros despojos,

aunque fué por más honrarme,

vos sola para matarme

le prestastes vuestros ojos.

Matáronme ambos á dos;

mas á vos con mas razón

debe él la satisfacción;

que á mi por él, y por vos,

satisfizo mi pasión,

 

 

 

XXXV

Glosa a este moto:

 

¿Qué veré que me contente?

 

Desque una vez miré,

Señora, vuestra beldad,

jamás por mi voluntad

los ojos de vos quité.

Pues sin vos placer no siente

mi vida, ni lo desea,

si no quereis que os vea,

¿qué veré que me contente?

 

 

 

LXXVII

Cantiga a este moto seu:

 

Pois me faz dano olhar-vos

não quero, por não perder-vos

que ninguém me veja ver-vos.

 

VOLTAS

De ver-vos a não vos ver

há dous extremos mortais;

e são eles em si tais

que um por um me faz morrer;

mas antes quero escolher

que possa viver sem ver-vos

minh'alma, por não perder-vos.

Deste tamanho perigo

que remédio posso ter,

se vivo só com vos ver,

se vos não vejo, perigo?

Quero acabar comigo

que ninguém me veja ver-vos,

Senhora, por não perder-vos.

 

 

 

LXXIII

Cantiga a este moto alheio:

 

Amor loco amor loco,

yo por vos, y vos por o otro.

 

VOLTAS

Dióme Amor tormentos dos

para que pene doblado:

uno es verme desamado,

otro es mancilla de vos.

!Ved que ordena Amor en nos!

Porque me vos hacéis loca?

que seáis loca por otro.

Tratáis Amor de manera

que porque así me tratáis

quiere que, pues no me amáis,

que améis otro que no os quiera.

Mas con todo, so no os viera

de todo loca por otro,

con mas razón fuera loco.

Y tan contrario viviendo,

alfin, alfin, conformamos,

pues ambos a dos buscamos

lo que más nos va huyendo.

Voy tras vos siempre siguiendo,

y vos huyendo por otro:

andáis loca, y me hacéis loco.

 

 

 

VII

Cantiga a este moto alheio

 

Vós, Senhora, tudo tendes,

senão que tendes os olhos verdes.

 

VOLTAS

Dotou em vós Natureza

o sumo da perfeição,

que, o que em vós é senão,

é em outras gentileza:

o verde não se despreza,

que, agora que vós o tendes,

são belos os olhos verdes.

Ouro e azul é a milhor

cor por que a gente se perde;

mas, a graça desse verde

tira a graça a toda a cor.

Fica agora sendo a flor

a cor que nos olhos tendes,

porque são vossos... e verdes!

 

 

 

IV

Outra volta à mesma cantiga

 

Dous tormentos vejo

grandes por extremo;

se vos vejo, temo,

e, se não, desejo.

Quando me despejo

e venho a escolher

se temo o desejo,

desejo o temer.

 

 

 

XLI

Cantiga a este moto:

 

Da doença em que ardeis eu

fora vossa mezinha,

só com vós serdes minha

 

VOLTAS

É muito para notar

cura tão bem acertada,

que podereis ser curada

somente com me curar.

e quereis, Dama, trocar,

ambos temos a mezinha:

 

eu a vossa, e vos a minha.

Olhai que não quer Amor

(porque fiquemos iguais

pois meu ardor não curais,

que se cure vosso ardor.

Eu cá sinto a vossa dor;

e se vós sentis a minha,

dai e tomai a mezinha

 

 

 

XII

Cantiga a este mato alheio:

 

Menina dos olhos verdes,

porque me não vedes?

 

VOLTAS

Eles verdes são,

e têm por usança

na cor, esperança

e nas obras, não.

Vossa condição

não é d'olhos verdes,

porque me não vedes.

Isenções a molhos

que eles dizem terdes,

não são d'olhos verdes,

nem de verdes olhos.

Sirvo de giolhos,

e vós não me credes

porque me não vedes.

Haviam de ser,

porque possa vê-los,

que uns olhos tão belos

não se hão-de esconder;

mas fazeis-me crer

que já não são verdes,

porque me não vedes.

Verdes não o são

no que alcanço deles;

verdes são aqueles

que esperança dão.

Se na condição

está serem verdes,

porque me não vedes?

 

 

 

X

Cantiga a este moto alheio.

 

Verdes são as hortas

com rosas e flores;

moças que as regam

matam-me d'amores.

 

VOLTAS

Entre estes penedos

que daqui parecem,

verdes ervas crecem,

altos arvoredos.

Vai destes rochedos

água com que as flores

d'outras são regadas

que matam d'amores.

Co a água que cai

daquela espessura,

outra se mestura

que dos olhos sai:

toda junta vai

regar brancas flores,

onde há outros olhos

que matam d'amores.

Celestes jardins,

as flores, estrelas,

horteloas delas

são uns serafins.

Rosas e jasmins

de diversas cores;

Anjos que as regam

matam-me d'amores.

 

 

 

LXXXV

Cantiga a üa Dama que perguntou

ao Autor quem o matava

 

MOTO:

Pergunteis-me quem me mata?

Não quero responder nada,

por vos não fazer culpada.

 

VOLTAS

E se a pena neo me atiça

a dizer pena tão forte,

quero-me entregar à morte,

antes que vós à justiça.

Porém, se tendes cobiça

de vos verdes tão culpada,

direi que não sinto nada.

 

 

 

XXII

Trovas que mandou com um papel

d'alfinetes a üa Dama

 

Esses alfinetes vão

a vos picarem, não mais,

só porque julgueis então,

o como me picarão

os com que vós me picais.

Mas os que dessas estrelas

vêm, têm pontas tão agudas

que, em que estoutros vão co elas,

podem-vos dar picadelas,

mas os vossos dão feridas.

Assi que, se bem notais,

no como ambos debatem,

nunca podem ser iguais,

que, inda que esses lá maltratem,

estes cá maltratam mais.

Porém, já que Amor consente

em piques tão desiguais,

onde vós sois mais valente,

eu, Senhora, sou contente

do que vos contentar mais.

Venham os alfinetes cá

desses olhos, porque acertem

donde acerto já não há;

porém os meus que vão lá,

só quero que vos apertem.

E deixando o mais passado,

fazei que este papel seja

pregado, digo, empregado,

porque do seu gasalhado

eu mesmo lhe tenho enveja.

E se eles em vós se pregam,

por força os hei-de envejar,

não só porque bem se empregam,

mas porque, Senhora, chegam

onde eu não posso chegar.

Lá vão e lá ficarão

adonde continuamente

a par de si vos terão; e

enfim, lá vos picarão,

eu cá picarei no dente.

 

 

 

CXV

Trovas do Autor, na Índia, conhecidas

pelo nome de «Disparates»

 

Este mundo es el camino

adó ay ducientos vaus

ou por onde bons e maus

todos somos del menino.

Mas os maus são de teor

que, dês que mudam a cor,

chamam logo a el-Rei compadre;

e, enfim, dejalhos, mi madre,

que sempre tem um sabor

de «Quem torto naeo, tarde se

[endireita».

Deixai a um que se abone,

diz logo de muito sengo:

villas e castillos tengo,

todos a mi mandar sone.

Então eu, que estou de molho,

com a lágrima no olho,

pelo virar do envés,

digo-lhe: tu insanus es,

e por isso não to talho:

pois «Honra e proveito não cabem |

[num saco».

Vereis uns, que no seu seio

cuidam que trazem Paris,

e querem com dous ceitis

fender anca pelo meio.

Vereis mancebinho de arte

com espada em talabarte;

não há mais Italiano.

A este direis:-Meu mano,

vós sais galante que farte:

mas «Pan y vino anda el camino, que

no mozo garrido».

Outros em cada teatro

por ofício lhe ouvireis

que se matarán con tres

y lo mismo harán com cuatro.

Prezam-se de dar respostas

com palavras bem compostas;

mas, se lhe meteis a mão,

na paz mostram coração,

na guerra mostram as costas:

porque «Aqui torce a porca o rabo».

Outros vejo por aqui,

a que se acha mal o fundo,

que andam emendando o mundo

e não se emendam a si.

Estes respondem a quem

deles não entende bem

el dolor que está secreto;

mas porém quem for discreto

responder-lhe há muito bem:

«Assi entrou o mundo, assi há-de sair».

Achareis rafeiro velho,

que se quer vender por galgo:

diz que o dinheiro é fidalgo,

que o sangue todo é vermelho.

Se ele mais alto o dissera,

este pelote pusera;

que o seu eco lhe responda,

que su padre era de Ronda,

y su madre de Antequera

e «Quer cobrir o céu cüa joeira».

Fraldas largas, grave aspeito

para senador romano.

Õ que grandíssimo engano!

Que Momo lhe abrisse o peito!

Consciência que sobeja,

siso, com que o mundo reja,

mansidão outro que si;

mas que lobo está em ti,

metido em pele de oveja!

E sabem-no poucos.

Guardai-vos d'uns meus senhores,

que ainda compram e vendem;

uns que é certo que descendem

da geração de pastores;

mostram-se-vos bons amigos,

mas, se vos vêm em perigos,

escarram-vos nas paredes;

que de fora dormiredes,

irmão, que é tempo de figos;

porque «De rabo de porco nunca

bom virote».

[Que dizeis duns, qu'as entranhas

lhe estão ardendo em cobiça?

E, se têm mando, a justiça

fazem de teias de aranhas,

com suas hipocrisias

que são de vós as espias?

Para os pequenos, uns Neros;

para os grandes, tudo feros.

Pois tu, parvo, não sabias

que «Lá vão leis, onde querem

cruzados»?

Mas tornando a uns enfadonhos

cujas cousas são notórias;

uns, que contam mil histórias

mais desmanchadas que sonhos;

uns, mais parvos que zamboas,

que estudam palavras boas,

[a que ignorancia os atiça;]

estes paguem por justiça,

que têm morto mil pessoas,

por vida de quanto quero

Adónde ienen las mentes

uns secretos trovadores,

que fazem cartas d'amores,

de que ficam mui contentes?

Não querem sair à praça;

trazem trova por negaça;

e se lha gabais, que é boa,

diz que é de certa pessoa.

Ora que quereis que faça,

senão ir-me por esse mundo?

Ó tu, como me atarracas,

escudeiro de solia,

com bocais de fidalguia,

trazidos quase com vacas;

importuno a importunar,

morto por desenterrar

parentes que cheiram já!

Voto a tal, que me fará

um destes nunca falar

mais com viva alma.

Uns que falam muito, vi,

de que quisera fugir;

uns que, enfim, sem se sentir,

andam falando entre si;

porfiosos sem razão;

e dês que tomam a mão,

falam sem necessidade;

e se algüa hora é verdade,

deve ser na confissão;

porque «Quem não mente...» Já me

[entendeis.

Õ vós, quem quer que me ledes,

que haveis de ser avisado,

que dizeis ao namorado

que caça vento com redes?

Jura por vida da Dama,

fala consigo na cama,

passa de noite, e escarra;

por falsete na guitarra

põe sempre: viva quem ama,

porque calça a seu propósito.

Mas deixemos, se quiserdes,

por um pouco as travessuras

porque entre quatro maduras

leveis também cinco verdes.

Deitemo-nos mais ao mar;

e, se algum se arrecear,

passe três ou quatro trovas.

E vós tomais cores novas?

Mas não é para espantar;

que «Quem porcos há menos, em cada

[mouta lhe roncam».

Ó vós, que sois secretários

das conciências reais,

que entre os homens estais

por senhores ordinários;

porque não pondes um freio

ao roubar que vai sem meio,

debaixo de bom governo?

Pois um pedaço d'inferno

por pouco dinheiro alheio

se vende a Mouro e a Judeu

Porque a mente, afeiçoada

sempre à real dignidade,

vos faz julgar por bondade

a malícia desculpada.

Move a presença real

üa afeição natural,

que logo inclina ao juiz

a seu favor; e não diz

um rifão muito geral

que «O abade donde canta,

[daí janta»?

E vós bailhais a esse som?

Por isso, gentis pastores,

vos chama a vós mercadores

um que só foi pastor bom.]

 

 

 

II

Cantiga A este cantar velho:

 

Saudade minha,

quando vos veria?

 

VOLTAS

Este tempo vão,

esta vida escassa,

para todos passa,

só para mim não.

Os dias se vão

sem ver este dia,

quando vos veria?

Vede esta mudança

se está bem perdida,

em tão curta vida

tão longa esperança!

Se este bem se alcança,

tudo sofreria,

quando vos veria.

Saudosa dor,

eu bem vos entendo;

mas não me defendo,

porque ofendo Amor.

Se fôsseis maior,

em maior valia

vos estimaria.

Minha saudade,

caro penhor meu,

a quem direi eu

tamanha verdade?

Na minha vontade,

de noite e de dia

sempre vos teria.

 

 

 

XCI

Cantiga a este moto:

 

Com razão queixar-me posso

de vós, que mel vos queixais;

pois, Senhora, vos sangrais,

que seja num corpo vosso.

 

VOLTAS

Eu, para levar a palma

com que ser vosso mereça,

quero que o corpo padeça

por vós, que dele sois alma.

Vós do corpo vos queixais,

eu queixar-me de vós posso,

porque, tendo um corpo vosso,

na minh'alma vos sangrais.

 

E sem fazer diferença

no que de mim possuís,

pelo pouco que sentis,

dais à minh'alma doença.

Pois que dous aventurais

oh! não seja o dano nosso:

sangre-se este corpo vosso,

porque, minh'alma, vivais.

E inda, se atentardes bem,

seguis medicina errada,

porque para ser sangrada

üa alma sangue não tem.

E pois em mim sarar posso

males, que à minha alma dais,

se inda outra vez vos sangrais,

seja neste corpo vosso.

 

 

 

XIII

Cantiga a este moto [seu?]

 

Com vossos olhos Gonçalves,

Senhora, cativo tendes

este meu coração Mendes.

 

VOLTAS

Eu sou boa testemunha

que Amor tem por cousa má

que olhos, que são homens já,

se nomeiem sem alcunha,

pois o coração apunha

e diz: olhos, pois vós tendes,

chamai-me coração Mendes.

 

 

 

XLVIII

Cantiga a este moto alheio:

 

De vuestros ojos centellas,

que encienden pechos de hielo

suben por el aire al cielo,

y en llegando son estrellas.

 

VOLTAS

Falsos loores os dan,

que essas centellas tan raras

no son nel cielo más claras

que en los ojos donde están.

Porque cuando miro en ellas

de como alumbran el suelo

no sé que serán nel cielo;

mas sé que acá son estrellas.

Ni se puede presumir

que al cielo suban, Senora,

que la lumbre que en vos mora

no tiene más que subir;

mas pienso que dán querellas

a Dios nel octavo cielo,

porque son acá en el suelo,

dos tan hermosas estrellas.

 

 

 

LXV

Cantiga a este mato seu:

 

Enforquei minha esperança;

mas Amor foi tão madraço

que lhe cortou o baraço.

 

VOLTAS

Foi a Esperança julgada

por sentença da Ventura,

que, pois me teve à pendura,

que fosse dependurada.

Vem Cupido co a espada,

corta-lhe cerco o baraço.

Cupido, foste madraço!

 

 

 

LXXXVIII

Cantiga a este moto alheio

 

Vosso bem querer, Senhora:

vosso mal milhor me fora.

 

VOLTAS

Já'gora certo conheço

ser milhor todo tormento

onde o arrependimento

se compra por justo preço.

Enganou-me um bom começo;

mas o fim me diz agora

que o mal milhor me fora.

 

Quando um bem é tão danoso

que, sendo bem, dá cuidado,

o dano fica obrigado

a ser menos perigoso.

Mas se a mim, por desditoso,

co bem me foi mal, Senhora,

co vosso mal bem me fora.

 

 

 

LVII

Cantiga a este moto:

 

Esconjuro-te, Domingas,

pois me dás tanto cuidado,

que me digas se te vingas:

viverei menos penado.

 

VOLTAS

Juravas-me que outras cabras

folgavas de apacentar;

eu, por nao me magoar,

fingia que eram palavras.

Agora d'arte te vingas

d'algum meu doudo pecado,

qu'inda [que] queiras, Domingas,

não posso ser enganado.

Qualquer cousa busca o seu;

a fonte vai para o Tejo,

e tu para o teu desejo

por te vingares do meu.

De mi te esqueces, Domingas,

como eu faço do meu gado.

Praza a Deus que, se te vingas,

que moura desesperado.

Na fantasia te pinto;

falo-te, responde o monte;

busco o rio, busco a fonte,

endoudeço, e não o sinto.

Domingas! no vale brado;

responde o eco:-Domingas!

E tu ainda te não vingas

de me ver doudo tornado?

 

 

 

LIII

Cantiga a este moto:

 

Descalça vai para a fonte

Leanor pela verdura;

vai fermosa, e não segura.

 

VOLTAS

Leva na cabeça o pote,

o testo nas mãos de prata,

cinta de fina escarlata,

sainho de chamalote;

traz a vasquinha de cote,

mais branca que a nove pura;

vai fermosa, e não segura.

Descobre a touca a garganta,

cabelos d'ouro o trançado,

-fita, de cor d'encarnado,

tão linda que o mundo espanta-;

chave nela graça tanta

que dá graça à fermosura;

vai fermosa, e não segura.

 

 

 

LXXXIX

Cantiga a este moto:

 

Irme quieto, madre,

á aquella galera,

con el marinero

á ser marinera.

 

VOLTAS

Madre, si me fuere,

dó quiera que vó,

no lo quiero yo,

que el Amor lo quiere.

Aquél niño fiero

hace que me muera,

por un marinero

á ser marinera.

Él, que todo puede,

madre, no podrá,

pues el alma vá,

que el cuerpo se quede.

Con él, por quién muero,

voy, porque no muera;

que, si es marinero,

seré marinera.

Es tirana ley,

del niño Señor,

que por un amor

se desenhe un Rey:

pues desta manera

quiere, yo me quiero

por un marinero

hacer marinera.

Decid, ondas, ¿cuándo

vistes vos doncella,

siendo tierna y bella,

andar navegando?

|Pues| más no se espera

daquel niño fiero,

vea yo quién quiero,

sea marinera.

 

 

 

XL

Cantiga a este moto:

 

Menina fermosa e crua,

bem sei eu

quem deixará de ser seu,

se vós quiséreis ser sua.

 

VOLTAS

Menina mais que na idade,

se, para me querer bem,

vos não vejo ter vontade,

é porque outrem vo-la tem;

tem-vo-la, e faz-vo-la crua.

Porém eu

já tomara não ser meu,

se vós não fôreis tão sua.

Nos olhos e na feição

vos vi, quando vos olhava,

tanta graça que vos dava

de graça este coração;

não no quisestes de crua,

por ser meu:

se outrem vos dera o seu

pode ser fôreis mais sua.

Menina, tende maneira

que ainda não venha a ser

-pois não quereis quem vos quer, -

que queirais quem vos não queira.

Olhai, não me sejais crua;

que pois eu

quero ser vosso e não meu,

sede vós minha e não sua.

 

 

 

LXVIII

Glosa a este moto:

 

Vos tenéis mi corazón.

Mi corazón me han robado,

y Amor, viendo mis enojos,

me dijo: fuéte llevado

por los más hermosos hojos

que desque vivo he mirado.

Gracias sobrenaturales,

te lo tienen en prisión,

y si Amor tiene razón,

Señora, por la señales

vos tenéis mi corazón.

 

 

 

LXIX

Cantiga a este moto alheio:

 

De dentro tengo mi mal,

que de fuera no hay señal.

 

VOLTAS

Mi nueva y dulce querella,

es invisible á la gente;

el alma sola la siente,

que el cuerpo no es dino della.

Como la viva centena

se encubra en el pedernal

de dentro tengo mi mal.

 

 

 

LXXXVI

Cantiga a este moto alheio:

 

Se alma ver-se não pode

onde pensamentos ferem,

que farei para me crerem?

 

VOLTAS SUAS

N'alma üa só ferida

faz na vida mil sinais;

tanto se descobre mais

quanto é mais escondida.

Se esta dor tão conhecida

me não vêm, porque não querem,

que farei para me crerem?

Se se pudesse bem ver

quanto calo, e quanto sento,

despois de tanto tormento

cuidaria alegre ser.

Mas se não me querem crer

olhos que tão mal me ferem,

que farei para me crerem?

 

 

 

C

Esparsa ao mesmo assunto

 

Não posso chegar ao cabo

de tamanho desarranjo,

que sendo vós, Senhora, «Anjo»,

vos queira tanto o «diabo».

Dais manifesto sinal

de minha muita firmeza,

que os «diabos» querem mal

aos «Anjos», por natureza.

 

 

 

XLIII

Cantiga a este moto:

 

Deu, Senhora, por sentença

Amor, que fôsseis doente,

para fazerdes à gente

doce e fermosa a doença.

 

VOLTAS

Não sabendo Amor curar,

foi a doença fazer

fermosa, para se ver,

doce para se passar.

Então, vendo a diferença

que há de vós a toda a gente,

mandou que fôsseis doente

para glória da doença.

E digo-vos, de verdade,

que a saúde anda envejosa,

por ver estar tão fermosa

em vós essa enfermidade.

Não façais logo detença,

Senhora, em estar doente,

porque adoecerá a gente

com desejos da doença.

Que eu, por ter, fermosa Dama,

a doença que em vós vejo,

vos confesso que desejo

de cair convosco em cama.

Se consentis que me vença

este mal, não houve gente

de saúde tão contente

como eu serei da doença.

 

 

 

XIX

Cantiga a esta cantiga alheia:

 

Minina fermosa

dizei: de que vem

serdes rigorosa

a quem vos quer bem?

 

VOLTAS

Não sei quem assela

vossa fermosura;

que quem é tão dura

não pode ser bela.

Vós sereis fermosa,

mas a razão tem

que quem é irosa

não parece bem.

A mostra é de bela,

as o obras são cruas;

pois qual destas duas

ficará na sela?

Se ficar irosa

não vos está bem.

fique antes fermosa,

que mais força tem.

O Amor, fermoso

se pinta e se chama:

se é amor, ama,

se ama, é piadoso.

Diz agora a grosa

que este texto tem,

que quem é fermosa

seca-se a bonina.

Sede piadosa;

não veja ninguém

que, por rigorosa,

percais tanto bem.

 

 

 

LV

Cantiga a este moto:

 

Ferro, fogo, frio e calma,

todo o mundo acabarão;

mas nunca vos tirarão,

alma minha da minh'alma!

 

VOLTAS

Não vos guardei, quando vinha,

em torre, força, ou engenho;

que mais guardada vos tenho

em vós, que sois alma minha.

Ali, nem frio nem calma,

não podem ter jurdição;

na vida sim, porém não

em vós, que tenho por alma.

 

 

 

VIII

Cantiga a este cantar velho:

 

Sois fermosa e tudo tendes,

senão que tendes os olhos verdes.

 

VOLTAS

Ninguém vos pode tirar

[o] serdes bem assombrada;

mas heis-me de perdoar,

que os olhos não valem nada.

Fostes mal aconselhada

em querer que fossem verdes:

trabalhai de os esconderdes.

A vossa testa é jardim,

onde Amor se desenfada;

é branca e bem talhada,

há-de querer bem.

Havei dó, minina,

dessa fermosura;

que se a terra é dura,

que parece de marfim.

Assim é; e, quanto a mim,

isso nasce de a terdes

tão perto dos olhos verdes.

Os cabelos desatados

o mesmo Sol escurecem;

senão que, por serem ondados,

algum tanto desmerecem:

mas, à fé, que se parecem

a furto dos olhos verdes,

não vos pese de os terdes.

As pestanas têm mostrado

ser raios que abrasam vidas;

se não foram tão compridas

tudo o mais era pintado:

elas me tinham levado

já sem o vós saberdes,

se não foram os olhos verdes.

O mimo desse carão

nem pôr-lhe os olhos consente:

e ser liso e transparente

rouba todo o coração.

Inda assim achareis gente

que lhe não pese de o terdes;

mas não seja cos olhos verdes.

Esse riso é composto

de quantas graças nasceram;

senão que alguns me disseram

vos faz covinhas no rosto.

Na vontade tenho posto

dar-vos a alma, se quiserdes,

a troco dos olhos verdes.

Nunca se viu, nem se escreve

boca nem graça igual,

se não fora de coral

e os dentes de cor de neve.

Dou-me a Deus, que me leve!

Sofrerei quanto tiverdes,

não me tenhais os olhos verdes.

Essa garganta merece

outras palavras, não minhas,

senão que é feita em rosquinhas

de alfenim, o que parece.

Eu sei quem se ofrece

a tomar tudo o que tendes,

e também os olhos verdes.

Essas mãos são ferropeias,

só o vê-las, enfeitiça;

senão que são alvas e cheias,

e têm a feição roliça,

com que apelais por justiça,

pera com elas prenderdes

quem vê vossos olhos verdes.

A vossa galantaria

matará a quem falardes;

tendes uns desdéns e tardes

que eu logo vos roubaria.

Dou-me a Santa Maria!

Sou cujo de quanto tendes,

também desses olhos verdes.

 

 

 

V

Cantiga a esta cantiga alheia:

 

Pastora da serra,

da serra da Estrela,

perco-me por ela.

 

VOLTAS

Nos seus olhos belos

tanto Amor se atreve,

que abrasa entre a neve

quantos ousam vê-los.

Não solta os cabelos

Aurora mais bela:

perco-me por ela.

Não teve esta serra

no meio da altura

mais que a fermosura

que nela se encerra.

Bem céu fica a terra

que tem tal estrela:

perco-me por ela.

Sendo entre pastores

causa de mil males,

não se ouvem nos vales

senão seus louvores.

Eu só por amores

não sei falar nela:

sei morrer por ela.

De alguns que, sentindo,

seu mal vão mostrando,

se ri, não cuidando

que inda paga, rindo.

Eu, triste, encobrindo

só meus males dela,

perco-me por ela.

Se flores deseja

por ventura delas,

das que colhe, belas,

mil morrem de enveja.

Não há quem não veja

todo o milhor nela:

perco-me por ela.

Se na água corrente

seusolhos inclina,

faz luz cristalina

parar a corrente.

Tal se vê, que sente,

por ver-se, água nela:

perco-me por ela.

 

 

 

LXIV

Cantiga a este moto alheio:

 

Amores de ua casada

que eu vi pelo meu mel.

 

VOLTAS

Nüa casada fui pôr

os olhos, de si senhores;

cuidei que fossem amores,

eles fizeram-se Amor.

Faz-se o desejo maior

donde o remédio não val

em perigo de meu mal.

Não me pareceu que Amor

pudesse tanto comigo

que donde entra por amigo

se levante por senhor.

Leva-me de dor em dor

e de sinal em sinal,

cada vez para mor mal.

 

 

 

LXXXIV

Glosa a este moto: Foi-se gastando a esperança,

fui entendendo os enganos; do mal ficaram meus danos e do bem só a lembrança.

 

Nunca em prazeres passados

tive firmeza segura,

antes tão arrebatados

que inda não eram chegados

quando mos levou ventura.

E como quem desconfia

ter em tal sorte mudança,

no meio desta porfia,

de quanto bem pretendia

foi-se gastando a esperança.

Não tive por desatino

a ocasião de perdê-la;

mas foi culpa do destino,

que a ninguém, como mais dino,

Amor pudera sustê-la.

Dei-lhe tudo o que era seu,

não receando tais danos

deste, a quem alma lhe deu;

quando já não era meu,

foi entendendo os enganos.

Fiquei, deste mal sobejo

a quem a causa compete,

dizer-lhe tudo o que vejo,

que Amor aceita o desejo,

mas mente no que promete.

Que, se a mim se me obrigou

a dar-me bens soberanos,

foi engano que ordenou,

que do bem tudo levou,

do mal ficaram meus danos.

E se de dor tão desigual

sofro em mim com padecê-los,

quero de novo sofrê-los;

que, por a causa ser tal,

não determino ofendê-los.

Dobre-se o mal, falte a vida,

creça a fé, falte a esperança,

pois foi mal agradecida;

fique a dor n'alma imprimida,

e do bem só a lembrança.

 

 

 

XXIX

Glosa a este mato alheio:

 

Trabalhos descansariam

se para vós trabalhasse;

tempos tristes passariam

se algüa hora vos lembrasse.

 

GLOSA

Nunca o prazer se conhece

senão despois da tormenta;

tão pouco o bem permanece

que, se o descanso florece,

logo o trabalho arrebenta.

Sempre os bens se lograriam,

mas os males tudo atalham;

porém, já que assi porfiam,

onde descansos trabalham,

trabalhos descansariam.

Qualquer trabalho me fora

por vós grão contentamento;

nada sentira, Senhora,

se vira disto algüa hora

em vós um conhecimento.

Por mal que o mal me tratasse

tudo por bem tomaria;

posto que o corpo cansasse,

a alma descansaria,

se para vós trabalhasse.

Quem vossas cruezas já

sofreu, a tudo se pôs;

costumado ficará;

e muito milhor será,

se trabalhar para vós.

Tristezas esqueceriam,

posto que mal me trataram;

anos não me lembrariam,

que, como estoutros passaram,

tempos tristes passariam.

Se fosse galardoado

este trabalho tão duro,

não vivera magoado;

mas não o foi o passado,

como o será o futuro?

De cansar não cansaria,

se quiséreis que cansasse;

cansar, morrer, fá-lo-ia,

tudo, enfim, me esqueceria,

se algüa hora vos lembrasse.

 

 

 

LXVI

Cantiga a este moto seu:

 

Pus o coração nos olhos

e os olhos pus no chão,

por vingar o coração.

 

VOLTAS

O coração envejoso

como dos olhos andava,

sempre remoques me dava

que não era o meu mimoso:

venho eu, de piadoso

do senhor meu coração,

boto os meus olhos no chão.

 

 

 

XLII

Trovas a üa dama doente

 

Olhai que dura sentença

foi Amor dar contra mi:

que, porque em vós me

perdi, em vós me busca a doença.

Claro está

que em vós só me achará;

que em mim, se me vem buscar,

não poderá mais achar

que a forma do que eu fui já.

Que se em vós Amor se pôs,

Senhora, é forçado assi

que o mal, que me busca a mi,

que vos faça mal a vós.

Sem mentir,

Amor me quis destruir

por modo nunca cuidado,

pois vos há-de ser forçado

pesar-vos de vos servir.

Mas sois tão desconhecida,

e são meus males de sorte

que vos ameaça a morte

porque me negais a vida.

Se por boa

tal justiça se pregoa,

quando desta sorte for,

havei vós perdão de Amor,

que a parte já vos perdoa.

Mas o que mais temo, enfim,

é que nesta diferença

que se não torne a doença

se me não tornais a mim.

De verdade,

que já vossa humanidade

de que se queixe não tem;

pois para as almas também

fez Amor enfermidade.

 

 

 

CXVI

Esparsa do Autor ao desconcerto do mundo

 

Os bons vi sempre passar

no mundo graves tormentos;

e, para mais m'espantar,

os maus vi sempre nadar

em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim

o bem tão mal ordenado,

fui mau, mas fui castigado.

Assim que, só para mim

anda o mundo concertado.

 

 

 

LXXXII

Cantiga a esta cantiga alheia:

 

Pequenos contentamentos,

i buscar quem contenteis,

que a mim não me conheceis,

 

VOLTAS

Os gostos, que tantas dores

fizeram já valer menos,

não os aceita pequenas,

quem nunca teve maiores.

Bem parecem vãos favores,

pois tão tarde me quereis

qu'inda me não conheceis.

Ofereceis-me alegria,

tendo-me já cego e mouco:

é baixeza aceitar pouco

quem tanto vos merecia.

Ide-vos por outra via,

pois o bem que me deveis

nunca mo satisfareis.

 

 

 

LII

Cantiga a este mato seu:

 

Descalça vai pela neve:

assi faz quem Amor serve.

 

VOLTAS

Os privilégios que os reis

não podem dar, pode Amor,

que faz qualquer amador

livre das humanas leis.

Mortes e guerras cruéis,

ferro, frio, fogo e neve,

tudo sofre quem o serve.

Moça fermosa despreza

todo o frio e toda a dor

(olhai quanto pode Amor

mais que a própria natureza):

medo nem delicadeza

lhe impede que passe a nove;

assi faz quem Amor serve.

Por mais trabalhos que leve,

a tudo se ofreceria;

passa pela nove fria,

mais alva que a própria neve;

com todo o frio se atreve;

vede em que fogo ferve

o triste que o Amor serve.

 

 

 

XLIX

Improviso A üas Senhoras que, jogando perto de üa janela, Ihes cairam

«três paus» e deram na cabeça de Camões:

 

Para evitar dias maus

da vida triste que passo,

mandem-me dar um baraço,

que já cá tenho três paus.

 

 

 

XX

Trovas a üa Senhora que estava rezando por üas contas

 

Peço-vos que me digais

as orações que rezastes

se são pelos que matastes,

se por vós, que assi matais?

Se são por vós, sãoperdidas;

que, qual será a oração

que seja satisfação,

Senhora, de tantas vidas?

Que, se vedes quantos vêm

a só vida vos pedir,

como vos há Deus ouvir

se vós não ouvis ninguém?

Não podeis ser perdoada

com mãos a matar tão prontas,

que, se nüa trazeis contas,

na outra trazeis espada

Se dizeis que encomendando

os que matastes andais,

se rezais por quem matais,

para que matais rezando?

Que, se na força do orar

levantais as mãos aos

Céus, não as ergueis para Deus,

erguei-las para matar.

E quando os olhos cerrais

todaenlevada na fé,

cerram-se os de quem vos vê,

para nunca verem mais.

Pois se assi forem tratados

os que vos vêm quando orais,

essas horas que rezais

são as horas dos finados.

Pois logo, se sais servida

que tantos mortos não sejam,

não rezeis onde vos vejam,

ou vede para dar vida.

Ou, se quereis escusar

estes males que causastes,

ressuscitai quem matastes,

não tereis por quem rezar.

 

 

 

XXIV

Cantiga a este moto:

 

Vi chorar uns claros olhos

quando deles me partia.

Oh! que mágoa! Oh! que alegria!

 

VOLTAS

Pelo meu apartamento

se arrasaram todos d'água.

Quem cuidou que em tanta mágoa

achasse contentamento?

Julgue todo entendimento

qual mais sentir se devia:

se esta dor, se esta alegria!

Quando mais perdido estive,

então deu a esta alma minha

na maior mágoa que tinha

o maior gosto que tive.

Assi, se minh'alma vive

foi porque me defendia

desta dor esta alegria.

O bem que Amor me não deu no

tempo que o desejei,

quando dele me apartei

me confessou que era meu.

Agora, que farei eu

se a fortuna me desvia

de lograr esta alegria?

Não sei se foi enganado,

pois me tinha defendido

das iras de mal querido

no mel de ser apartado.

Agora peno dobrado,

achando no fim do dia

o princípio d'alegria.

 

 

 

LXXII

Cantiga a este moto sei:

 

Se de meu mal me contento,

é porque para vós vejo

em todo o mundo desejo

e em ninguém merecimento.

 

VOLTAS

Para quem vos soube olhar,

tão impossível foi ser

o poder-vos merecer,

como o não vos desejar.

Pois logo a meu pensamento

nenhum remédio lhe vejo,

senão se der o desejo

asas ao merecimento.

 

 

 

XCII

Cantiga a esta cantiga alheia

 

Perdigão perdeu a pena,

não há mal que lhe não venha:

 

VOLTAS

Perdigão, que o pensamento

subiu em alto lugar,

perde a pena do voar,

ganha a pena do tormento.

Não tem no ar nem no vento

asas, com que se sustenha:

não há mal que lhe não venha.

Quis voar a üa alta torre

mas achou-se desasado;

e, vendo-se depenado,

de puro penado morre.

Se a queixumes se socorre,

lança no fogo mais lenha:

não há mal que lhe não venha.

 

 

 

XXVII

Trovas a üna Senhoras que haviam de ser terceiras para com üa Dama sua

 

Pois a tantas perdições,

Senhoras, quereis dar vida,

ditosa seja a ferida

que tem tais cerurgiões!

Pois ventura

me subiu a tanta altura

que me sejais valedoras,

ditosa seja a tristura

que se cura

por vossos rogos, Senhoras!

Ser minha pena mortal,

já que entendeis que é assim,

não quero falar por mim,

que por mim fala meu mal.

Sois fermosas,

haveis de ser piadosas,

por ser tudo düa cor;

que pois Amor vos fez rosas

milagrosas,

fazei milagres d'amor.

Pedi a quem vós sabeis

que saiba de meu trabalho,

não pelo que eu nisso valho,

mas pelo que vós valeis.

Que o valer

de vosso alto merecer,

com lho pedir de giolhos,

fará que em meu padecer

possa ver

o poder que têm seus olhos.

Vossa muita fermosura

co a sua tanto val

que me rio de meu mal

quando cuido em quem mo cura.

A meus ais

peço-vos que lhe valhais,

Damas de Amor tão validas,

que nunca tal dor sintais

que queirais

onde não sejais queridas.

 

 

 

CIII

Cantiga a este vilancete pastoril

 

-Deus te salve, Vasco amigo

Não me falas ? Como assi ?

-Bofé, Gil, não estava aqui

 

VOLTAS

Pois onde te hão-de falar,

se não estás onde apareces?

-Se Madanela conheces,

nela me podes achar.

-E como te hão-de ir buscar,

aonde fogem de ti?

-Pois nem eu estou em mi.

 

Porque te não acharei

em ti, como em Madanela?

-Porque me fui perder nela

o dia que me ganhei.

-Quem tão bem fala, não sei

como anda fora de si.

-Ela fala dentro em mi.

Como estás aqui presente,

se lá tens a alma e a vida?

-Porque é de üa alma perdida

aparecer sempre à gente.

-Se és morto, bem se consente

que todos fujam de ti.

-Eu também fujo de mi.

 

 

 

XLV

Glosa a este moto alheio:

 

Minha alma, lembrai-vos dela.

Pois o ver-vos tenho em mais

que mil vidas que me deis,

assi como a que me dais,

meu bem, já que mo negais,

meus olhos, não mos negueis.

E se a tal estado vim,

guiado de minha estrela,

quando houverdes dó de mim,

minha vida, dai-lhe a fim,

minha alma. lembrai-vos dela.

 

 

 

XVII

Cantiga a este cantar velho:

 

Coifa de beirame

namorou Joane.

 

VOLTAS

por cousa tão pouca

andas namorado?

Amas a toucado

e não quem o touca?

Ando cega e louca

por ti, meu Joane;

tu, pelo beirame.

 

Amas o vestido?

És falso amador.

Tu não vês que Amor

se pinta despido?

Cego e perdido

andas por beirame,

e eu por ti, Joane.

Se alguém te vir,

que dirá de ti?

Que deixas a mi

por cousa tão vil!

Terá bem que rir,

pois amas beirame,

e a mim não, Joane.

Quem ama assi

há-de ser amada;

ando maltratada

de amores, por ti.

Ama-me a mi,

e deixa o beirame,

que é razão, Joane!

A todos encanta

tua parvoíce;

de tua doudice

Gonçalo se espanta

e zombando canta:

-Coifa de beirame

namorou Joane!

Eu não sei que viste

neste meu toucado,

que tão namorado

dele te sentiste.

Não te veja triste:

ama-me, Joane,

e deixa o beirame!

(Joane gemia,

Maria chorava,

assi lamentava

o mal que sentia;

os olhos feria,

e não o beirame

que matou Joane.)

Não sei de que vem

Amares vestido;

que o mesmo Cupido

vestido não tem.

Sabes de que vem

amares beirame?

Vem de ser Joane.

 

 

 

LIX

Glosa ao mesmo moto

 

Posible es a mi cuidado

poderme hacer satisfecho,

si fuera posible al hado

hacer no echo lo echo,

y futuro lo pasado.

Si olvido pudiera haber,

fuera remedio sufrible;

mas ya que no puede ser,

para contento me hacer,

todo es poco lo posible.

 

 

 

LIV

Cantiga a esta cantiga alheia:

 

Na fonte está Leanor

lavando a talha e chorando,

as amigas perguntando:

vistes lá o meu amor?

 

VOLTAS

Posto o pensamento nele,

porque a tudo o Amor a obriga,

cantava, mas a cantiga

eram suspiros por ele.

Nisto estava Leanor

o seu desejo enganando,

às amigas perguntando:

vistes lá o meu amor?

O rosto sobre üa mão,

os olhos no chão pregados,

que, do chorar já cansados,

algum descanso lhe dão.

Desta sorte Leanor

suspende de quando em quando

sua dor; e, em si tornando,

mais pesada sente a dor.

Não deita dos olhos água,

que não quer que a dor se abrande

Amor, porque em mágoa grande

seca as lágrimas a mágoa.

Que, despois de seu amor

soube novas, perguntando,

d'emproviso a vi chorando.

Olhai que extremos de dor!

 

 

 

XXX

Cantiga a este moto:

 

Ojos, herido me habéis,

acabad ya de matarme;

mas, muerto, volve á mirarme,

por que me resucitéis.

 

VOLTAS

Pues me distes tal herida,

con gana de darme muerte,

el morir me es dulce suerte,

pues con morir me dais vida.

Ojos, ¿qué os detenéis?

Acabad ya de matarme;

mas muerto volved á mirarme,

por que me resuscitéis.

La llaga cierto ya es mía,

aunque, ojos, vos no queráis;

mas si la muerte me dais,

el morir me es alegría.

Y así digo que acabéis,

ojos, ya de matarme;

mas muerto, volved á mirarme,

por que me resucitéis.

 

 

 

XXIII

Trovas a üa Dama que lhe jurara sempre por seus olhos

 

Quando me quer enganar

a minha bela perjura,

para mais me confirmar

o que quer certificar,

pelos seus olhos mo jura.

Como meu contentamento

todo se rege por eles,

imagina o pensamento

que se faz agravo a eles

não crer tão grão juramento.

Porém, como em casos tais

ando já visto e corrente,

sem outros certos sinais,

quanto me ela jura mais

tanto mais cuido que mente.

Então, vendo-lhe ofender

uns tais olhos como aqueles,

deixo-me antes tudo crer,

só pela não constranger

a jurar falso por eles.

 

 

 

III

Cantiga a esta cantiga alheia:

 

Vida da minh'alma

não vos posso ver:

isto não é vida

para se sofrer!

 

VOLTAS

Quando vos eu via,

esse bem lograva,

a vida estimava;

mais então vivia,

porque vos servia

só para vos ver.

Já que vos não vejo,

para que é viver?

Vivo sem rezão,

porque em minha dor

não a pôs Amor,

que inimigos são.

Mui grande treição

me obriga a fazer

que viva, Senhora,

sem vos poder ver.

Não me atrevo já,

minha tão querida,

a chamar-vos vida,

porque a tenho má.

Ninguém cuidará,

que isto pode ser,

sendo-me vós vida,

não poder viver!

 

 

 

CIX

Trovas que o Autor mandou da cadeia em que o tinha embargado por

üa dívida Miguel Roiz, «Fios-Secos» de alcunha, que se embarcava para fora,

ao Conde do Redondo, Vizo-Rei, pedindo-lhe o fizesse desembargar

 

Que diabo há tão danado

que não tema a cutilada

dos fios secos da espada

do fero Miguel armado?

Pois se tanto um golpe seu

soa na infernal cadeia,

do que o demónio arreceia,

como não fugirei eu?

Com razão lhe fugiria,

se contra ele, e contra tudo,

não tivesse um forte escudo

só em Vossa Senhoria.

Portanto, Senhor, proveja,

pois me tem ao remo atado,

que, antes que seja embarcado,

eu desembargado seja.

 

 

 

CVIII

Esparsa a um fidaldo, na Índia, que lhe tardava com uma camisa galante,

que lhe prometera

 

Quem no mundo quiser ser

havido por singular,

para mais se engrandecer

há-de trazer sempre o dar

nas ancas do prometer.

E já que vossa mercê

largueza tem por divisa,

como todo mundo vê,

há mister que tanto dê

que venha [a] dar a camisa.

 

 

 

XXXVI

Cantiga a este moto:

 

Quem se confia em olhos,

nas meninas deles vê,

que meninas não têm fé.

 

VOLTAS

Quem põe suas confianças

em meninas sem assento,

ofereça o sofrimento

a duzentas mil mudanças.

Mostram no ar esperanças,

mas em seus olhos se vê

como não têm n'alma fé.

Enganam ao parecer,

porque, no caso de amar,

são mulheres no matar

e meninas no querer.

Quem em seus olhos se crer,

cem mil graças neles vê;

vê-las, sim, mas não ter fé.

Amostram-vos num momento

favores assi a molhos;

mas na mudança dos olhos

se lhe muda o pensamento.

Em nada têm assento,

e o que mais neles se vê

é fermosura sem fé.

 

 

 

XCIX

Cantiga a uma Dama de apelido Anjos,

que lhe chamou diabo

 

MOTO:

Senhora, pois me chamais

tão sem razão tão mau nome,

inda o diabo vos tome,

 

VOLTAS

Quem quer que viu, ou que leu,

terá por novo e moderno

ter quem vive no Inferno

o pensamento no Céu.

Mas se a vós vos pareceu

que me estava bem tal nome,

esse diabo vos tome.

Perdido mais que ninguém

confesso, Senhora, ser;

mas «diabo» não quer

aos «Anjos» tamanho bem.

Pois logo não me convém,

ou se me convém tal nome

será para que vos tome.

Se vos benzeis com cautela,

como de Anjo, e não de luz,

mal pode fugir da Cruz

quem vós tendes posto nela.

Mas já que foi minha estrela,

ser «diabo», e ter tal nome,

guardai-vos, que vos não tome

Já que chegais tanto ao cabo,

co as mãos postas aos Céus,

vou sempre pedindo a Deus

que vos leve este «diabo».

Eu, Senhora, não me gabo;

mas, pois que me dais tal nome,

tomo-o, para que vos tome.

 

 

 

LXXIX

Cantiga a üa Dama mal empregada

 

MOTO SEU:

Minina, não sei dizer,

vendo vos tão acabada,

quão triste estou por vos ver

fermosa e mal empregada.

 

VOLTAS

Quem tão mal vos empregou,

pouco de mi se doía,

pois não viu quanto me ia

em tirar-me o que tirou.

Obriga o primor que tem

lindeza tão extremada

que digam quantos a vêm:

- Fermosa e mal empregada!

Tomastes da fermosura

quanto dela desejastes,

e com ela me guardastes

para tão triste ventura.

Matáveis sendo solteira,

matais agora em casada;

matais de toda a maneira;

Fermosa e mal empregada!

 

 

 

LXXX

Cantiga a este moto alheio:

 

Há um bem que chega e foge;

e chama-se este bem tal,

ter bem para sentir mal.

 

VOLTAS

Quem viveu sempre num ser,

inda que seja em pobreza,

não viu o bem da riqueza,

nem o mal de empobrecer:

não ganhou para perder;

mas ganhou com vida igual

não ter bem nem sentir mal.

 

 

 

XXXIX

Glosa ao mesmo moto

 

Querendo Amor esconder-vos

em parte que vos não visse,

com extremos de querer-vos

cegou-me os olhos com ver-vos,

levou-os, sem que vos visse.

Eu, cego, mas atinado,

quando vi que vos não via,

do mesmo Amor indinado,

já vedes qual ficaria

sem vós e com meu cuidado.

 

 

 

VI

Cantiga a uma Dama,

em forma de carta

 

Querendo escrever um dia

o mal que tanto estimei,

cuidando no que poria,

vi Amor que me dizia:

escreve, que eu notarei.

E como para se ler

não era história pequena

a que de mim quis fazer,

das asas tirou a pena

com que me fez escrever.

E, logo como a tirou,

me disse: Aviva os espritos,

que, pois em teu favor sou,

esta pena que te dou

fará voar teus escritos.

E dando-me a padecer

tudo o que quis que pusesse,

pude, enfim, dele dizer

que me deu com que escrevesse

o que me deu a escrever.

Eu, qu' este engano entendi,

disse-lhe:-que escreverei ?

Respondeu, dizendo assi:

-Altos afeitos de ti,

e daquela a quem te dei.

E já que te manifesto

todas minhas estranhezas,

escreve, pois que te prezas,

milagres dum claro gesto

e, de quem o viu, tristezas.

Ah! Senhora, em quem se apura,

a fé de meu pensamento!

Escutai e estai a tento,

que, com vossa fermosura,

iguala Amor meu tormento.

E, posto que tão remota

estejais de me escutar,

por me não remediar,

ouvi, que, pois Amor nota,

milagres se hão-de notar:

Nota

Escrevem vários autores,

que, junto da clara fonte

do Ganges, os moradores

vivem do cheiro das flores

que nascem naquele monte.

Se os sentidos podem dar

mantimento ao viver,

não é, logo, d'espantar,

se estes vivem de cheirar,

que viv' eu só de vos ver.

üa árvore se conhece,

que, na geral alegria,

ela só tanto entristece, que,

como é noite, florece,

e perde as flores de dia.

Eu, que em ver-vos sinto o preço

que em vossa vista consiste,

em a vendo me entristeço,

porque sei que não mereço

a glória de viver triste.

Um rei de grande poder

com veneno foi criado,

porque, sendo costumado,

não lhe pudesse empecer

se despois lhe fosse dado.

Eu, que criei de pequena

a vida a quanto padece,

desta sorte me acontece,

que não me faz mal a pena

senão quando me falece.

Quem da doença real,

de longe, enfermo se sente,

por segredo natural

fica são, vendo somente

um volátil animal.

Do mal que Amor em mim cria,

quando aquela Fénix vejo,

são de todo ficaria;

mas fica-me hidropesia,

que quanto mais, mais desejo.

Da bívora é verdadeiro

se a consorte vai buscar,

que, em se querendo juntar,

deixa a peçonha primeiro,

porque lhe impede o gerar.

Assi quando me apresento

à vossa vista inumana,

a peçonha do tormento

deixo a parte, porque dana

tamanho contentamento.

Querendo Amor sustentar-se,

fez üa vontade esquiva

düa estátua namorar-se;

despois, por manifestar-se,

converteu-a em mulher viva.

De quem me irei queixando,

ou quem direi que m'engana,

se vou seguindo e buscando

üa imagem que, de humana,

em pedra se vai tornando?

De üa fonte se sabia,

da qual certo se provava

que, quem sobr' ela jurava,

se falsidade dizia,

dos olhos logo cegava.

 

Vós, que minha liberdade,

Senhora, tiranizais,

injustamente mandais

quando vos falo verdade

que vos não possa ver mais.

Da palma se escreve e canta

ser tão dura e tão forçosa,

que peso não a quebranta,

mas antes, de presunçosa,

com ele mais se levanta.

Co peso do mal que dais,

a constancia que em mim vejo

não somente ma dobrais,

mas dobra-se meu desejo,

com que então vos quero mais.

Se alguém os olhos quiser

as andorinhas quebrar,

logo a mãe, sem se deter,

üa erva lhe vai buscar,

que lhe faz outros nascer.

Eu, que os olhos tenho a tento

nos vossos, que estrelas são,

cegam-se os do entendimento,

mas nascem-me os da razão

de folgar com meu tormento.

Lá para onde o sol sai

descobrimos, navegando,

um novo rio admirando,

que o lenho que nele cai,

em pedra se vai tornando.

Não se espantem disto as gentes;

mais razão será que espante

um coração tão possante

que, com lágrimas ardentes,

se converte em diamante.

Pode um mudo nadador

na linha e cana influir

tão venenoso vigor

que faz mais não se bulir

o braço do pescador.

Se começam de beber

deste veneno excelente

meus olhos, sem se deter,

não se sanem mais mover

a nada que se apresente.

Isto são claros sinais

do muito que em mim podeis:

nem podeis desejar mais;

que, se ver-vos desejais,

em mim claro vos vereis.

E quereis ver a que fim

em mim tanto bem se pôs?

Porque quis Amor assim

que, por vos verdes a vós,

também me vísseis a mim.

Dos males que me ordenais,

que inda tenho por pequenos,

sabei, se mos escutais,

que ja não sei dizer mais,

nem vós podeis saber menos.

Mas já que a tanto tormento

não se acha quem resista,

eu, Senhora, me contento

de terdes meu sofrimento

por alvo de vossa vista.

Quantos contrários consente

Amor, por mais padecer!

Que aquela vista excelente,

que me faz viver contente,

me faça tão triste ser!

Mas dou este entendimento

ao mal que tanto me ofende,

como na vela se entende

que, se se apaga co vento,

co mesmo vento se acende.

Exprimentou-se algüa hora

da ave que chamam Camão,

que, se da casa onde mora

vê adúltera a senhora,

morre de pura paixão.

A dor é tão sem medida,

que remédio lhe não val;

mas, oh ditoso animal,

que pode perder a vida

quando vê tamanho mal!

Nos gostos de vos querer

estava agora enlevado,

se não fora salteado

das lembranças de temer

ser por outrem desamado.

Estas suspeitas tão frias,

com que o pensamento sonha,

são assi como as Harpias,

que as mais doces iguarias,

vão converter em peçonha.

Faz-me este mal infinito

não poder já mais dizer,

por não vir a corromper

os gostos que tenho escrito

cos males que hei-de escrever.

Não quero que se apregoe

mal tanto para encobrir,

porque, enquanto aqui se ouvir,

nenhüa outra coisa soe

que a glória de vos servir.

 

 

 

CVII

Cantiga a üa mulher que foi açoutada

por um homem de apelido Quaresma, na Índia

 

MOTO:

Não estejais agravada,

senão se for de vós mesma;

porque a mulher que é errada

com razão pela Coresma

deve ser desciprinada.

 

VOLTAS

Quererdes profano amor

em Coresma, é consciência:

açoutes e penitência

vos está muito milhor.

Não fiqueis disto afrontada,

pois a culpa é vossa mesma;

que mulher que é tão malvada

é bem que pela Coresma

seja bem desciprinada.

Se a penitência vos val,

mui bem açoutada estais;

pois por Coresma pagais

vossos vícios do carnal.

Não torneis a ser errada,

nem condeneis a vós mesma,

pois estais já emendada;

e não sereis por Coresma

outra vez desciprinada.

 

 

 

XC

Cantiga a üa Dama a quem

não podia encontrar

 

MOTO:

Qual terá culpa de nós

neste mal que todo é meu?

quando vindes, não vou eu,

quando vou, não vindes vós

 

VOLTAS

Reinando Amor em dous peitos,

tece tantas falsidades,

que, de conformes vontades,

faz desconformes efeitos.

Igualmente vive em nós;

mas, por desconcerto seu,

vos leva, se venho eu,

me leva, se vindes vós.

 

 

 

LXI

Cantiga a üa Dama que estava

vestida de dó

 

MOTO:

De atormentado e perdido,

já vos não peço senão

que tenhais no coração

o que tendes no vestido.

 

VOLTAS

Se de dó vestida andais

por quem já vida não tem,

porque não no haveis de quem

vós tantas vezes matais?

Que brado sem ser ouvido,

e nunca vejo senão

cruezas no coração,

e grande dó no vestido.

 

 

 

XVIII

Trovas a üa Senhora a quem deram um pedaço de cetim amarelo pera hüa

filha de quem se tinha suspeita

 

Se derivais da verdade

esta palavra Sitim,

achareis, sem falsidade,

que após o Si, tem o Tim,

que tine em toda a cidade.

Bem vejo que me entendeis;

mas porque não fale em vão,

sabei que a esta nação

tanto que o Si concedeis

o Tim logo está na mão.

E quem da fama se arreda,

que tudo vai descobrir,

deve sempre de fugir

de sitins, porque da seda

seu natural é rugir.

Mas pano fino e delgado,

qual raxa e outros assi,

dura, aquenta e é calado,

amoroso, e dá de si,

mais que sitim, nem borcado.

Mas estes, que sedas são

com quem s'enganam mil Damas,

mais vos tomam do que dão;

prometem, mas não darão

senão nódoas para as famas.

E se não me quereis crer,

ou tomais outro caminho,

por exemplo o podeis ver,

quando lá virdes arder

a casa de algum vezinho.

Ó feminina simpreza,

donde estão culpas a pares,

que por um Dom de nobreza,

deixam dões de natureza,

mais altos e singulares

-um dom que anda enxertado

no nome, e nas obras não!-

(Falo como exprimentado;

que, sitim desta feição,

eu tenho muito cortado.)

Dizem-me que era amarelo;

a quem assi o quis dar,

só para me Deus vingar,

se vem à mão, amarelo,

o que eu não posso cuidar.

Porque quem sabe viver

por estas artes manhosas

(isto bem pode não ser),

dá a mininas fermosas

somente polas fazer.

Quem vos isto diz, Senhora,

serviu nas vossas armadas

muito, mas anda já fora;

e pode ser que inda agora

traz abertas as frechadas.

E, posto que desfavores

o tiram de servidor,

quer-vos ventura milhor;

que dos antigos amores

inda lhe fica este amor.

 

 

 

XXI

Cantiga a este mato alheio:

 

Se me levam águas

nos olhos as levo.

 

VOLTAS

Se de saudade

morrerei ou não,

meus olhos dirão

de mim a verdade.

Por eles me atrevo

a lançar as águas

que mostrem as mágoas

que nesta alma levo.

As águas que em vão

me fazem chorar,

se elas são do mar

estas d'amar são.

Por elas relevo

todas minhas mágoas;

que, se força d'águas

me leva, eu as levo.

Todas me entristecem,

todas são salgadas;

porém as choradas

doces me parecem.

Correi, doces águas,

que, se em vós me enlevo,

não doem as mágoas

que no peito levo!

 

 

 

LXXVI

Cantiga a este moto alheio:

 

Vede bem se nos meus dias

os desgostos vi sobejos,

pois tenho medo a desejos

e quero mal a alegrias.

 

VOLTAS

Se desejos fui já ter,

serviram de atormentar-me;

se algum pôde alegrar-me,

quis-me antes entristecer.

Passei anos, passei dias,

em desgostos tão sobejas

que, só por não ter desejos,

perderei mil alegrias.

 

 

 

LXXXVII

Cantiga a esta cantiga alheia:

 

Se me desta terra for,

eu vos levarei, amor.

 

VOLTAS

Se me for, e vos deixar

(ponho, por caso, que possa),

esta alma minha, que é vossa,

convosco me há-de ficar.

Assi que, só por levar

a minh'alma, se me for,

vos levarei, meu amor.

Que mal pode maltratar-me

que convosco seja mal?

Ou que bem pode ser tal

que sem vós possa alegrar-me?

O mal não pode enojar-me,

o bem me será maior

se vos levar, meu amor.

 

 

 

XCVII

Esparsa a üa Dama por quem penava

 

Se na alma e no pensamento

por vosso me manifesto,

não me pesa do que sento;

que, se não sofrer tormento,

faço ofensa a vosso gesto.

E, pois quanto Amor ordena

e quanto esta alma deseja

tudo à morte me condena,

não quero senão que seja

tudo pena, pena, pena.

 

 

 

CXIII

Trovas que Luís de Camões fez, na Índia,

a certos fidalgos a quem convidara para cear

 

A primeira iguaria foi posta

a Casco de Ataíde. entre dous pratos,

e diria assim:

Se não quereis padecer

üa ou duas horas tristes,

sabeis que haveis de fazer?

Volveros por do venistes,

que aqui não há que comer.

E posto que aqui leiais

trovinha que vos enleia,

corrido não estejais;

porque por mais que corrais

não heis-de alcançar a ceia.

A segunda, a D. Franeisco d'Almeida:

Heliogábalo zombava

das pessoas convidadas,

e de sorte as enganava

que as iguarias que dava

vinham nos pratos pintadas.

Não temais tal travessura,

pois já não pode ser nova;

que a ceia está mui segura

de vos não vir em pintura,

mas há-de vir toda em trova.

A terecira, a Heitor da Silveira:

Ceia não a papareis;

contudo, porque não minta,

para beber achareis,

não Caparica, mas tinta,

e mil cousas que papeis.

E vós torceis o focinho,

com esta anfibologia?

Pois sabei que a Poesia

vos dá aqui tinta por vinho,

e papéis por iguaria.

A quarta foi posta a João Lopes Leitão,

a quem o Autor mandou um moto,

que vai adiante, sobre uma peça

de cacha, que este mandas ü a da Dama:

Porque os que vos convidaram

vosso estâmago não danem,

por justa causa ordenaram,

se trovas vos enganaram,

que trovas vos desenganem.

Vós tereis isto por tacha,

converter tudo em trovar;

pois se me virdes zombar,

não cuideis, Senhor, que é cacha,

que aqui não há cachar.

Finge que, responde João Lopes Leitão:

Pesar ora não de São!

Eu juro pelo Céu bento

se de comer me não dão,

que eu não sou camaleão

que me hei-de manter do vento.

Finge que responde o Autor:

Senhor, não vos agasteis,

porque Deus vos proverá;

e se mais saber quereis,

nas costas deste lereis

as iguarias que há.

Vira o papel, que dizia assi:

Tendes nem migalha assada,

cousa ne~nua de molho,

e nada feito em empada,

e vento de tigelada,

picar no dente em remalho.

De fumo tendes tassalhos,

aves da pena que sente

quem de fome anda doente;

bocejar de vinho e de alhos,

manjar em branco excelente.

A quinta e derradeira iguaria foi posta

a Francisco de Melo e dizia:

De um homem que teve o ceptro

da veia maravilhosa,

não foi cousa duvidosa

que se lhe tornava em metro

o que ia a dizer em prosa.

De mim vos quero apostar

que faça cousas mais novas

de quanto podeis cuidar:

esta ceia, que é manjar,

vos faça na boca em trovas.

 

 

 

XXXIV

Glosa a este moto alheio:

 

Vejo-a n'alma pintada

quando me pede o desejo

o natural que não vejo.

Se só no ver puramente

me transformei no que vi,

de vista tão excelente

mal poderei ser ausente

enquanto o não for de mi.

Porque a alma namorada

a traz tão bem debuxada,

e a memória tanto voa

que se a não vejo em pessoa,

vejo-a n'alma pintada.

O desejo, que se estende

ao que menos se concede,

sobre vós pede e pretende,

como o doente que pede

o que mais se lhe defende.

Eu, que em ausência não vejo,

tenho piadade e pejo

de me ver tão pobre estar,

que então não tenho que dar

quando me pede o desejo,

Como aquele que cegou

é cousa vista e notória

que a natureza ordenou

que se lhe dobre em memória

o que em vista lhe faltou;

assi a mim, que não rejo

os olhos ao que desejo,

na memória e na firmeza

me concede a natureza

o natural que não vejo.

 

 

 

XXV

Cantiga a este mato alheio:

 

Trocai o cuidado,

Senhora, comigo;

vereis o perigo

que é ser desamado.

 

VOLTAS

Se trocar desejo

o amor entre nós,

é para que em vós

vejais o que vejo.

E sendo trocado

este amor comigo,

ser-vos-á castigo

terdes meu cuidado.

Tendes o sentido

d'amor livre e isento;

e cuidais que é vento

ser tão mal querido.

Não seja o cuidado

tão vosso inimigo

que queira o perigo

de ser desamado.

Mas nunca foi tal

este meu querer,

que a quem tanto quer

queira tanto mal.

Seja eu maltratado,

e nunca o castigo

vos mostre o perigo

que é ser desamado.

 

 

 

L

Cantiga este moto:

 

Quem disser que a barca pende,

dir-lhe hei, mana, que mente.

 

VOLTAS

Se vos quereis embarcar

e para isso estais no cais,

entrai logo; que tardais?

Olhai que está preiamar!

E se outrem, por vos fretar,

vos disser que esta que pende,

dir-lhe hei, mana, que mente.

Esta barca é de carreira,

tem seus aparelhos novos;

não há como ela outra em Povos,

boa de leme e veleira.

Mas, se por ser a primeira,

vos disser alguém que pende,

dir-lhe hei, mana, que mente.

 

 

 

XCVIII

Esparsa a üa Dama que lhe chamou

«cara-sem-olhos»

 

Sem olhos vi o mal claro

que dos olhos se seguiu:

pois «cara-sem-olhos» viu

olhos que lhe custam caro.

De olhos não faço menção,

pois quereis que olhos neo sejam;

vendo-vos, olhos sobejam,

não vos vendo olhos não são.

 

 

 

CXIV

Cantiga a João Lopez, Leitão, na Índia, por causa de~ua peça de cacha que este mandou a ~ua Dama

que se lhe fazia donzela

 

MOTO:

Se vossa dama vos dá

tudo quanto vós quisestes,

dizei: para que lhe destes

o que vos ela fez já?

 

VOLTAS

Sendo os restos envidados

e vós de cachas mil contos,

sabeis com quão poucos pontos

que lhos achastes quebrados.

Se o que tem, isso vos dá,

vós mui bem lho merecestes,

porque, se a cacha lhe destes,

tinha-vo-la feita já.

 

 

 

I

Trovas a uma Dama que lhe mandou

pedir algumas obras suas

 

Senhora, se eu alcançasse

no tempo que ler quereis,

que a dita dos meus papéis

pola minha se trocasse;

e por ver

tudo o que posso escrever

em mais breve relação,

indo eu onde eles vão,

por mim só quisésseis ler;

Depois de ver um cuidado

tão contente de seu mal,

veríeis o natural

do que aqui vedes pintado;

que o perfeito

Amor, de que sou sujeito,

vereis áspero e cruel,

aqui com tinta e papel,

em mim co sangue no peito.

Que um contino imaginar

naquilo que Amor ordena,

é pena que, enfim, por pena

se não pode declarar;

que, se eu levo

dentro n'alma quanto devo

de trasladar em papéis,

vede qual melhor lereis:

se a mim, se aquilo que escrevo?

 

 

 

XCV

Cantiga a este moto:

 

Dó la mi ventura?

Que no veo alguna.

 

VOLTAS

Sepa quién padece

que en la sepultura

se esconde ventura de

quién la merece.

Allá me parece

que quiere fortuna

que yo halle alguna.

Naciendo mezquino,

dolor fué mi cama;

tristeza fué el ama,

cuidado el padrino.

Vestióse el destino,

negra vestidura;

huyó la ventura.

No se halló tormento,

que allí no se hallase;

ni bien que pasase,

sino como viento.

 

¡Oh, que nacimiento,

que luego en la cuna

me seguió fortuna!

Esta dicha mía,

que siempre busqué,

buscandola, hallé

que no la hallaría;

que quién nace en día

d'estrella tan dura,

nunca halla ventura.

No puso mi estrella

más ventura en mí;

así vive en fin

quién nace sin ella.

No me quejo della;

quéjome que atura

vida tan escura.

 

 

 

CXVIII

SUPER FLUMINA ...

 

Sôbolos rios que vão

por Babilónia, m'achei,

onde sentado chorei

as lembranças de Sião

e quanto nela passei.

Ali o rio corrente

de meus olhos foi manado,

e tudo bem comparado,

Babilónia ao mal presente,

Sião ao tempo passado.

Ali, lembranças contentes

n'alma se representaram,

e minhas cousas ausentes

se fizeram tão presentes

como se nunca passaram.

Ali, despois de acordado,

co rosto banhado em água,

deste sonho imaginado,

vi que todo o bem passado

não é gosto, mas é mágoa.

E vi que todos os danos

se causavam das mudanças

e as mudanças dos anos;

onde vi quantos enganos

faz o tempo às esperanças.

Ali vi o maior bem

quão pouco espaço que dura,

o mal quão depressa vem,

e quão triste estado tem

quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val,

que então se entende milhor

quanto mais perdido for;

vi o bem suceder mal,

e o mal, muito pior.

E vi com muito trabalho

comprar arrependimento;

vi nenhum contentamento,

e vejo-me a mim, que espalho

tristes palavras ao vento.

Bem são rios estas águas,

com que banho este papel;

bem parece ser cruel

variedade de mágoas

e confusão de Babel.

Como homem que, por exemplo

dos transes em que se achou,

despois que a guerra deixou,

pelas paredes do templo

suas armas pendurou:

Assi, despois que assentei

que tudo o tempo gastava,

da tristeza que tomei nos

salgueiros pendurei os órgãos

com que cantava.

Aquele instrumento ledo

deixei da vida passada,

dizendo:-Música amada,

deixo-vos neste arvoredo

à memória consagrada.

Frauta minha que, tangendo,

os montes fazíeis vir

para onde estáveis, correndo;

e as águas, que iam decendo,

tornavam logo a subir:

jamais vos não ouvirão

os tigres, que se amansavam,

e as ovelhas, que pastavam,

das ervas se fartarão

que por vos ouvir deixavam.

Já não fareis docemente

em rosas tornar abrolhos

na ribeira florecente;

nem poreis freio à corrente,

e mais, se for dos meus olhos.

Não movereis a espessura,

nem podereis já trazer

atrás vós a fonte pura,

pois não pudestes mover

desconcertos da ventura

Ficareis oferecida

à Fama, que sempre vela,

frauta de mim tão querida;

porque, mudando-se a vida,

se mudam os gostos dela.

Acha a tenta mocidade

prazeres acomodados,

e logo a maior idade

já sente por pouquidade

aqueles gostos passados.

Um gosto que hoje se alcança,

amanhã já o não vejo;

assi nos traz a mudança

de esperança em esperança,

e de desejo em desejo.

Mas em vida tão escassa

que esperança será forte?

Fraqueza da humana sorte,

que, quanto da vida passa

está receitando a morte!

Mas deixar nesta espessura

o canto da mocidade,

não cuide a gente futura

que será obra da idade

o que é força da ventura.

Que idade, tempo, o espanto

de ver quão ligeiro passe,

nunca em mim puderam tanto

que, posto que deixe o canto,

a causa dele deixasse.

Mas, em tristezas e enojas

em gosto e contentamento,

por sol, por neve, por vento,

terné presente a los ojos

por quien muero tan contento.

Orgãos e frauta deixava,

despojo meu tão querido,

no salgueiro que ali estava

que para troféu ficava

de quem me tinha vencido.

Mas lembranças da afeição

que ali cativo me tinha,

me perguntaram então:

que era da música minha

que eu cantava em Sião?

Que foi daquele cantar

das gentes tão celebrado?

Porque o deixava de usar?

Pois sempre ajuda a passar

qualquer trabalho passado.

 

Canta o caminhante ledo

no caminho trabalhoso.

por antr'o espesso arvoredo

e, de noite, o temeroso

cantando, refreia o medo.

Canta o preso documente

os duros grilhões tocando;

canta o segador contente;

e o trabalhador, cantando,

o trabalho menos sente.

Eu, qu'estas cousas senti

n'alma, de mágoas tão cheia

Como dirá, respondi,

quem tão alheio está de si

doce canto em terra alheia?

Como poderá cantar

quem em choro banh'o peito?

Porque se quem trabalhar

canta por menos cansar,

eu só descansos enjeito.

Que não parece razão

nem seria cousa idónea,

por abrandar a paixão,

que cantasse em Babilónia

as cantigas de Sião.

Que, quando a muita graveza

de saudade quebrante

esta vital fortaleza,

antes moura de tristeza

que, por abrandá-la, cante.

Que se o fino pensamento

só na tristeza consiste,

não tenho medo ao tormento

que morrer de puro triste,

que maior contentamento?

Nem na frauta cantarei

O que passo, e passei já,

nem menos o escreverei,

porque a pena cansará,

e eu não descansarei.

Que, se vida tão pequena

se acrecenta em terra estranha,

e se amor assi o ordena,

razão é que canse a pena

de escrever pena tamanha.

Porém se, para assentar

o que sente o coração,

a pena já me cansar

não canse para voar

a memória em Sião.

Terra bem-aventurada,

se, por algum movimento,

d'alma me fores mudada,

minha pena seja dada

a perpétuo esquecimento.

A pena deste desterro,

que eu mais desejo esculpida

em pedra, ou em duro ferro,

essa nunca sela ouvida,

em castigo de meu erro.

E se eu cantar quiser,

em Babilónia sujeito,

Hierusalém, sem te ver,

a voz, quando a mover,

se me congele no peito.

A minha língua se apegue

às fauces, pois te perdi,

se, enquanto viver assi,

houver tempo em que te negue

ou que me esqueça de ti.

Mas ó tu, terra de Glória,

se eu nunca vi tua essência,

como me lembras na ausência?

Não me lembras na memória,

senão na reminiscência.

Que a alma é tábua rasa,

que, com a escrita doutrina

celeste, tanto imagina,

que voa da própria casa

e sobe à pátria divina.

Não é, logo, a saudade

das terras onde naceu

a carne, mas é do Céu,

daquela santa cidade,

donde esta alma descendeu.

E aquela humana figura,

que cá me pôde alterar,

não é quem se há-de buscar:

é raio de fermosura,

que só se deve de amar.

Que os olhos e a luz que ateia

o fogo que cá sujeita,

não do sol, mas da candeia,

é sombra daquela Ideia

que em Deus está mais perfeita.

E os que cá me cativaram

são poderosos afeitos

que os corações têm sujeitos;

sofistas que me ensinaram

maus caminhos por direitos.

Destes, o mando tirano

me obriga, com desatino,

a cantar ao som do dano

cantares d'amor profano

por versos d'amor divino.

Mas eu, lustrado co santo

Raio, na terra de dor,

de confusão e de espanto,

como hei-de cantar o canto

que só se deve ao Senhor?

Tanto pode o beneficio

da Graça, que dá saúde,

que ordena que a vida mude;

e o que tomei por vício

me faz grau para a virtude;

e faz que este natural

amor, que tanto se preza,

suba da sombra ao Real,

da particular beleza

para a Beleza geral.

Pique logo pendurada

a frauta com que tangi,

ó Hierusalém sagrada,

e tome a lira dourada,

para só cantar de ti.

Não cativo e ferrolhado

na Babilónia infernal,

mas dos vícias desatado,

e cá desta a ti levado,

Pátria minha natural.

E se eu mais der a cerviz

a mundanos acidentes,

duros, tiranos e urgentes,

risque-se quanto já fiz

do grão livro dos viventes.

E tomando já na mão

a lira santa, e capaz

doutra mais alta invenção,

cale-se esta confusão,

cante-se a visão da paz.

Ouça-me o pastor e o Rei,

retumbe este acento santo,

mova-se no mundo espanto,

que do que já mal cantei

a palinódia já canto.

A vós só me quero ir,

Senhor e grão Capitão

da alta torre de Sião,

à qual não posso subir

se me vós não dais a mão.

No grão dia singular

que na lira o douto som

Hierusalém celebrar,

lembrai-vos de castigar

os ruins filhos de Edom.

 

Aqueles que tintos vão

no pobre sangue inocente,

soberbos co poder vão,

arrasai-os igualmente,

conheçam que humanos são.

E aquele poder tão duro

dos afeitos com que venho,

que encendem alma e engenho,

que já me entraram o muro

do livre alvídrio que tenho;

estes, que tão furiosos

gritando vêm a escalar-me,

maus espíritos danosos,

que querem como forçosos

do alicerce derrubar-me;

Derrubui-os, fiquem sós,

de forças fracos, imbeles,

porque não podemos nós

nem com eles ir a Vós,

nem sem Vós tirar-nos deles.

Não basta minha fraqueza,

para me dar defensão,

se vós, santo Capitão,

nesta minha fortaleza

não puserdes guarnição.

E tu, ó carne que encantas,

filha de Babel tão feia,

toda de misérias cheia,

que mil vezes te levantas,

contra quem te senhoreia:

beato só pode ser

quem co a ajuda celeste

contra ti prevalecer,

e te vier a fazer

o mal que lhe tu fizeste;

Quem com disciplina crua

se fere mais que üa vez,

cuja alma, de vícios nua,

faz nódoas na carne sua,

que já a carne n'alma fez.

E boato quem tomar

seus pensamentos recentes

e em nacendo os afogar,

por não virem a parar

em vícios graves e urgentes;

Quem com eles logo der

na pedra do furar santo,

e, batendo, os desfizer

na Pedra, que veio a ser

enfim cabeça do Canto;

Quem logo, quando imagina

nos vícios da carne má,

os pensamentos declina

 

VOLTAS

Só porque é rapaz ruim,

dei-lhe um bofete, zombando;

diz-me:-Ó mau, estais-me dando

porque sois maior que mim?

pois se vos eu descarrego...

Em dizendo isto, chaz!

torna-m'outra. Tá! rapaz,

que dás porrada de cego!

 

a este moto seu:

 

Venceu-me Amor, não o nego;

tem mais força qu'eu assaz;

que, como é cego, e rapaz,

dá-me porrada de cego!

àquela Carne divina

que na Cruz esteve já.

Quem do vil contentamento

cá deste mundo visível,

quanto ao homem for possível,

passar logo o entendimento

para o mundo inteligível:

ali achará alegria

em tudo perfeita e cheia,

de tão suave harmonia

que nem, por pouca, recreia,

nem, por sobeja, enfastia.

Ali verá tão-profundo

mistério na suma alteza

que, vencida a natureza,

os mores faustos do mundo

julgue por maior baixesa

Ó tu, divino aposento,

minha pátria singular!

Se só com te imaginar

tanto sobe o entendimento,

que fará se em ti se achar?

Ditoso quem se partir

para ti, terra excelente,

tão justo e tão penitente

que, despois de a ti subir

lá descanse eternamente.

 

 

 

XCIV

Cantiga

 

 

 

XVI

Trovas a üas suspeitas

 

Suspeitas, que me quereis?

Que eu vos quero dar lugar,

que, de certas, me mateis,

se a causa de que nasceis

vos quisesse confessar.

Que de não lhe achar desculpa

a grande mágoa passada

me tem a alma tão cansada

que, se me confessa a culpa, tê-la-ei por desculpada.

Ora vede que perigos

têm cercado o coração,

que, no meio da opressão,

a seus próprios inimigos

vai pedir a defensão!

Que, suspeitas, eu bem sei,

como se claro vos visse,

que é certo o que já cuidei;

que nunca mal suspeitei

que certo me não saísse.

Mas queria esta certeza

daquela que me atormenta;

por que em tamanha estreiteza

ver que disso se contenta

é descanso da tristeza.

Porque se esta só verdade

me confessa, limpa e nua

de cautela e falsidade,

não pode a minha vontade

desconformar-se da sua.

Por segredo namorado

é certo estar conhecido

que o mal de ser enjeitado

mais atormenta sabido,

mil vezes, que suspeitado.

Mas eu só, em quem se ordena

novo modo de querela,

de medo da dor pequena,

venho achar na maior pena

o refrigério para ela.

Já nas iras me inflamei,

nas vinganças, nos furores

que já, doudo, imaginei;

e já mais doudo o jurei

de arrancar d'alma os amores.

Já determinei mudar-me

pra outra parte com ira;

depois vim a concertar-me que

era bom certificar-me

no que mostrava a mentira.

Mas depois já de cansadas

as fúrias do imaginar,

vinha enfim a arrebentar

em lágrimas magoadas

e bem para magoar.

E deixando-se vencer

os meus fingidos enganos,

de tão claros desenganos

não posso menos fazer

que contentar-me cos danos.

E pedir que me tirassem

este mal de suspeitar

que me vejo atormentar,

ainda que me confessassem

quanto me pode matar.

Olhai bem se me trazeis,

Senhora, posto no fim;

pois neste estado a que vim,

para que vós confesseis

se dão os tratos a mim.

Mas para que tudo possa

Amor, que tudo encaminha,

tal justiça lhe convinha;

porque da culpa que é vossa

venha a ser a morte minha.

Justiça tão mal olhada,

olhai com que-cor se doura,

que quer, no fim da jornada,

que vós sejais confessada

para que eu seja o que moura!

Pois confessai-vos já' gora,

inda que tenho temor

que nem nest' última hora

me há-de perdoar Amor

vossos pecados, Senhora.

E assi vou desesperado,

porque estes são os costumes

de amor que é mal empregado,

do qual vou já condenado

ao inferno, de ciúmes!

 

 

 

XXVIII

Glosas ao moto que lhe enviou Dona

Francisca de Aragão para que Iho glosasse:

 

Mas porém a que cuidados ?

1ª.

Tanto maiores tormentos

foram sempre os que sofri,

daquilo que cabe em mi,

que não sei que pensamentos

são os para que nasci.

Quando vejo este meu peito

a perigos arriscados

inclinado, bem suspeito

que a cuidados sou sujeito;

Mas porém a que cuidados ?

2ª.

Que vindes em mim buscar,

cuidados, que sou cativo,

e não tenho que vos dar?

Se vindes a me matar,

já há muito que não vivo;

se vindes, porque me dais

tormentos desesperados,

eu, que sempre sofri mais,

não digo que não venhais;

Mas porém a quê, cuidados?

3ª.

Se as penas que Amor me deu

vêm por tão suaves meios,

não há que temer receios,

que val um cuidado meu

por mil descansos alheios.

Ter nuns olhos tão fermosos

os sentidos enlevados,

bem sei que em baixos estados

são cuidados perigosos;

Mas porém, ah! que cuidados!

Carta

que Luís de Camões mandou

a Dona Francisca de Aragão,

com as glosas acima:

 

Senhora

Deixei-me enterrar no esquecimento de v. m., crendo me

seria assi mais seguro: mas agora que é servida de me

tornar a ressuscitar, por mostrar seus poderes, lembro-lhe

que üa vida trabalhosa é menos de agradecer que üa

morte descansada. Mas se esta vida, que agora de novo

me dá, for para ma tornar a tomar, servindo-se dela, não

me fica mais que desejar, que poder acertar com este

moto de v. m., ao qual dei três entendimentos, segundo as

palavras dele puderam sofrer: se forem bons, é o moto de

v. m.; se maus, são as glosas minhas.

 

 

 

XLVI

Glosa a este moto alheio:

 

Tudo pode üa afeição.

 

Tem tal jurdição Amor

n'alma donde se aposenta

e de que se faz senhor,

que a liberta e isenta

de todo o humano temor.

E com mui justa razão,

como senhor soberano,

que Amor não consente dano;

e pois me sofre tenção,

gritarei por desengano:

tudo pode üa afeição.

 

 

 

LXX

Cantiga a este moto seu:

 

De que me serve fugir

da morte, dor e perigo,

se me eu levo comigo?

 

VOLTAS

Tenho-me persuadido,

por razão conveniente,

que não posso ser contente,

pois que pude ser nacido.

Anda sempre tão unido

o meu tormento comigo

que eu mesmo sou meu perigo.

E se de mi me livrasse,

nenhum gosto me seria;

que, não sendo eu, não teria

mal que esse bem me tirasse.

 

Força é logo que assi passe,

ou com desgosto comigo,

ou sem gosto e sem perigo.

 

 

 

XLVII

Cantiga a este moto alheio:

 

¿Para que me dan tormento,

aprovechando tan poco?

Perdido, mas no tan loco

que descubra lo que siento.

 

VOLTAS

Tiempo perdido es aquel

que se pasa en darme afán,

pues quanto más me lo dán

tanto menos siento del.

¿Que descubra lo que siento?

No lo haré, que no es tan poco;

que no puede ser tan loco

quién tiene tal pensamiento.

Sepan que me manda Amor,

que de tan dulce querella,

a nadie dé parte della,

porque la sienta mayor.

Es tan dulce mi tormento

que aun se me antoja poco;

y si es mucho, quedo loco

de gusto de lo que siento.

 

 

 

XLIV

Glosa a este moto alheio:

 

Sem ventura é por de mais.

 

Todo o trabalhado bem

promete gostoso fruito,

mas os trabalhos que vêm

para quem dita não tem,

valem pouco e custam muito.

Rompe toda a pedra dura,

faz os homens imortais

o trabalho, quando atura;

mas querer achar ventura

sem ventura, é por de mais.

 

 

 

LXXV

Cantiga a esta cantiga velha:

 

Apartaram-se os meus olhos

de mim tão longe...

Falsos amores,

falsos, maus, enganadores !

 

VOLTAS

Trataram-me com cautela

por me enganar mais asinha;

dei-lhe posse da alma minha,

foram-me fugir co ela.

Não há vê-los, nem há vê-la,

de mim tão longe...

Falsos amores,

falsos, maus, enganadores!

Entreguei-lhe a liberdade,

e enfim, da vida o milhor:

foram-se, e do desamor

fizeram necessidade.

Quem teve a sua vontade

de mim tão longe?

Falsos amores,

e tão cruéis matadores!

Não se pôs serra nem mar

entre nós, que fora em vão;

pôs-se vossa condição,

que não doce é de passar.

Só ela vos quis leixar

de mim tão longe!

Falsos amores!

...e oxalá que enganadores!

 

 

 

IX

Outras voltas ao mesmo moto

 

Tudo tendes singular,

com que os corações rendeis,

senão que rindo fazeis

covinhas para enterrar;

e para ressuscitar

em força a graça que tendes;

senão que tendes os olhos verdes.

Tudo, Senhora, alcançais,

quanto ser fermosa alcança;

senão que dais esperança

cos olhos com que matais.

Se acaso os alevantais,

[é para as almas renderdes;

senão que tendes os olhos verdes].

 

 

 

LXVII

Cantiga a este moto seu:

 

Pus meus olhos nüa funda,

e fiz um tiro com ela

às grades de üa janela.

 

VOLTAS

üa Dama, de malvada,

tomou seus olhos na mão

e tirou me üa pedrada

com eles ao coração.

Armei minha funda então,

e pus os meus olhos nela:

trape! quebro-lh'a janela.

 

 

 

LXXVIII

Cantiga a três Damas que lhe diziam que o amavam

 

MOTO:

Não sei se me engana Helena,

se Maria, se Joana,

não sei qual delas me engana.

 

VOLTAS

Üa diz que me quer bem,

outra jura que mo quer;

mas, em jura de mulher

quem crerá, se elas não crêm?

Não posso não crer a Helena,

a Maria, nem Joana,

mas não sei qual mais me engana.

Üa faz-me juramentos

que só meu amor estima;

a outra diz que se fina;

Joana, que bebe os ventos.

Se cuido que mente Helena,

também mentirá Joana;

mas quem mente, não me engana.

 

 

 

LVIII

Glosa a este moto alheio:

 

Todo es poco lo posible.

 

Ved que enganos señorea

nuestro juicio tan loco,

que por mucho que se crea,

todo el bien que se desea,

alcançado, queda poco.

Un bien de cualquiera grado,

si de haberse es imposible,

queda mucho deseado,

mas para mucho, alcanzado,

todo es poco lo posible

 

 

 

CIV

Cantiga a üa mulher que se chamava Grada de Morais

 

MOTO:

Olhos em que estão mil flores

e com tanta graça olhais,

que parece que os Amores

moram onde vós morais.

 

VOLTAS

Vêm-se rosas e boninas,

olhos, nesse vosso ver;

vêm-se mil almas arder

no fogo dessas mininas.

E di-lo hão minhas dores,

meus suspiros, e meus ais;

e dirão mais, que os Amores

moram onde vós morais.

 

 

 

XXXVII

Glosa a este moto:

 

Sem vós e com meu cuidado

Olha; com quem e sem quem.

 

Vendo amor que, com vos ver,

mais levemente sofria

os males que me fazia,

não me pode isto sofrer;

conjurou-se com meu fado,

um novo mal me ordenou;

ambos me levam forçado

não sei onde, pois que sou

sem vós e com meu cuidado.

Não sei qual é mais estranho

destes dous males que sigo,

se não vos ver, se comigo

levar imigo tamanho.

O que fica e o que vem,

um me mata, outro desejo.

Com tal mal e sem tal bem,

em tais extremos me vejo:

olhai com quem e sem quem,

 

 

 

LXXIV

Cantiga a este moto alheio:

 

De pequena tomei Amor,

porque o não entendi;

agora que o conheci,

mata-me com desfavor.

 

VOLTAS

Vi-o moço e pequenino,

e a mesma idade ensina

que se incline üa minina,

às mostras de um minino.

Ouvi-lhe chamar Amor,

pelo nome me venci;

nunca tal engano vi,

nem tamanho desamor.

Creceu-me de dia em dia

com a idade a afeição,

porque amor de criação,

n'alma e na vida se cria.

Criou-se em mim este amor,

e senhoreou-se de mi:

agora que o conheci,

mata-me com desfavor.

As flores me torna abrolhos,

a morte me determina

quem eu trouxe de minina

nas mininas dos meus olhos.

Desta mágoa e desta dor

tenho sabido enfim,

por amor me perco a mim,

por quem de mim perde o amor.

Parece ser caso estranho

o que Amor em mim ordena,

que em idade tão pequena

haja tormento tamanho.

milagres de Amor,

hei-os de sofrer assi,

até que haja dó de mi

quem entender esta dor.

 

 

 

CXI

Cantiga a este moto que lhe mandou

o Vizo-Rei, na Índia, para que Luís de Camões lhe

fizesse üas voltas

 

MOTO:

Muito sou meu inimigo,

pois que não tiro de mi

cuidados com que nasci,

que põem a vida em perigo.

Oxalá que fora assi!

 

VOLTAS

Viver eu, sendo mortal,

de cuidados rodeado,

parece meu natural;

que a peçonha não faz mal

a quem foi nela criado.

Tanto sou meu inimigo,

que, por não tirar de mi

cuidados, com que naci,

porei a vida em perigo.

Oxalá que fora assi!

Tanto vim a acrecentar

cuidados, que nunca amansam

enquanto a vida durar,

que canso já de cuidar

como cuidados não cansam.

Se estes cuidados que digo

dessem fim a mi e a si,

fariam pazes comigo;

que pôr a vida em perigo,

o bom fora para mi.

 

 

 

CX

Trovas que Heitor da Silveira mandou ao

mesmo Conde, invernando em Goa

 

Vossa Senhoria creia

que não apura o engenho

fome, se é como a que tenho,

mas afraca e corta a veia.

E quem o contrário sente

está farto em toda a hora,

como estou faminto agora.

Mas Marta, se está contente,

dá-lhe pouco de quem chora.

E pois Vossa Senhoria,

em geral, a tudo acode,

acuda a mim, que só

dar-me no engenho valia.

Esperte esta musa minha,

que o tempo traz sonorenta,

valha-me nesta tormenta

com essa doce mezinha

que só dá vida e a contenta.

Acuda com provisão

não de papel, mas provida

de ouro e prata: que esta vida

não sustentam papéis, não.

De feitor a tesoureiro

ser-me hia trabalho grande;

Vossa Senhoria mande

algum remédio primeiro

com que a morte o ferro abrande.

Ajuda de Luís de Camões:

Nos livros doutos se trata,

que o grande Aquiles insano

deu a morte a Heitor troiano;

mas agora a fome mata

o nosso Heitor lusitano.

Só ela o pode acabar,

se essa vossa condição

liberal e singular

não mete entre eles bastão

bastante para o fartar.

 

 

 

XCVI

Trovas

 

{Vós} sois üa dama

das feias do mundo;

de toda a má fama

sois cabo profundo.

A vossa figura

não é para ver;

em vosso poder

não há fermosura.

{Vós} fostes dotada

de toda a maldade;

perfeita beldade

de vós é tirada.

Sois muito acabada

de tacha e de glosa:

pois, quanto a fermosa,

em vós não há nada.

De grão merecer

sois bem apartada;

andais alongada

do bem parecer.

Bem claro mostrais

em vós fealdade:

não há i maldade

que não precedais.

De fresco carão

vos vejo ausente;

em vós é presente

a má condição.

De ter perfeição

mui alheia estais;

mui muito alcançais

de pouca razão.

 

 

 

CII

Cantiga a este vilancete pastoril:

 

-¿Porqué no miras, Giraldo,

mi zampoña como suena ?

-Porque no me mira Elena.

 

VOLTAS

-Vuelve acá, no estês pasmado,

¡mira que gentil sonar!

-¿Como te podrá mirar quién

no puede ser mirado?

-{¡Y} que bueno enamorado!

¿No dirás, si es mala o buena?

-No, que me hizo mudo Elena.

-Mira tan dulce armonía,

déjate desos enojes.

-Tengo clavados los ojos

con que mirar te podía.

-Así Dios te de alegría:

¿no vés cuán dulce y serena?

-No, porque no veo Elena.

 

 

 

FIM