Os Lusíadas, de Luís de Camões
Fonte:
CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas.
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OS LUSÍADAS
Luís de Camões
Canto
I
As
armas e os Barões assinalados
Que
da Ocidental praia Lusitana
Por
mares nunca de antes navegados
Passaram
ainda além da Taprobana,
Em
perigos e guerras esforçados
Mais
do que prometia a força humana,
E
entre gente remota edificaram
Novo
Reino, que tanto sublimaram;
E
também as memórias gloriosas
Daqueles
Reis que foram dilatando
A
Fé, o Império, e as terras viciosas
De
África e de Ásia andaram devastando,
E
aqueles que por obras valerosas
Se
vão da lei da Morte libertando,
Cantando
espalharei por toda parte,
Se
a tanto me ajudar o engenho e arte.
Cessem
do sábio Grego e do Troiano
As
navegações grandes que fizeram;
Cale-se
de Alexandro e de Trajano
A
fama das vitórias que tiveram;
Que
eu canto o peito ilustre Lusitano,
A
quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse
tudo o que a Musa antiga canta,
Que
outro valor mais alto se alevanta.
E
vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes
em mi um novo engenho ardente,
Se
sempre em verso humilde celebrado
Foi
de mi vosso rio alegremente,
Dai-me
agora um som alto e sublimado,
Um
estilo grandíloco e corrente,
Por
que de vossas águas Febo ordene
Que
não tenham enveja às de Hipocrene.
Dai-me
üa fúria grande e sonorosa,
E
não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas
de tuba canora e belicosa,
Que
o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me
igual canto aos feitos da famosa
Gente
vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que
se espalhe e se cante no universo,
Se
tão sublime preço cabe em verso.
E,
vós, ó bem nascida segurança
Da
Lusitana antiga liberdade,
E
não menos certíssima esperança
De
aumento da pequena Cristandade;
Vós,
ó novo temor da Maura lança,
Maravilha
fatal da nossa idade,
Dada
ao mundo por Deus, que todo o mande,
Pera
do mundo a Deus dar parte grande;
Vós,
tenro e novo ramo florecente
De
üa árvore, de Cristo mais amada
Que
nenhüa nascida no Ocidente,
Cesárea
ou Cristianíssima chamada
(Vede-o
no vosso escudo, que presente
Vos
amostra a vitória já passada,
Na
qual vos deu por armas e deixou
As
que Ele pera si na Cruz tomou);
Vós,
poderoso Rei, cujo alto Império
O
Sol, logo em nascendo, vê primeiro,
Vê-o
também no meio do Hemisfério,
E
quando dece o deixa derradeiro;
Vós,
que esperamos jugo e vitupério
Do
torpe Ismaelita cavaleiro,
Do
Turco Oriental e do Gentio
Que
inda bebe o licor do santo Rio:
Inclinei
por um pouco a majestade
Que
nesse tenro gesto vos contemplo,
Que
já se mostra qual na inteira idade,
Quando
subindo ireis ao eterno templo;
Os
olhos da real benignidade
Ponde
no chão: vereis um novo exemplo
De
amor dos pátrios feitos valerosos,
Em
versos divulgado numerosos.
Vereis
amor da pátria, não movido
De
prémio vil, mas alto e quási eterno;
Que
não é prémio vil ser conhecido
Por
um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi:
vereis o nome engrandecido
Daqueles
de quem sois senhor superno,
E
julgareis qual é mais excelente,
Se
ser do mundo Rei, se de tal gente.
Ouvi,
que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas,
fingidas, mentirosas,
Louvar
os vossos, como nas estranhas
Musas,
de engrandecer-se desejosas:
As
verdadeiras vossas são tamanhas
Que
excedem as sonhadas, fabulosas,
Que
excedem Rodamonte e o vão Rugeiro
E
Orlando, inda que fora verdadeiro.
Por
estes vos darei um Nuno fero,
Que
fez ao Rei e ao Reino tal serviço,
Um
Egas e um Dom Fuas, que de Homero
A
cítara par'eles só cobiço;
Pois
polos Doze Pares dar-vos quero
Os
Doze de Inglaterra e o seu Magriço;
Dou-vos
também aquele ilustre Gama,
Que
para si de Eneias toma a fama.
Pois
se a troco de (Carlos, Rei de França,
Ou
de César, quereis igual memória,
Vede
o primeiro Afonso, cuja lança
Escura
faz qualquer estranha glória;
E
aquele que a seu Reino a segurança
Deixou,
com a grande e próspera vitória;
Outro
Joane, invicto cavaleiro;
O
quarto e quinto Afonsos e o terceiro.
Nem
deixarão meus versos esquecidos
Aqueles
que nos Reinos lá da Aurora
Se
fizeram por armas tão subidos,
Vossa
bandeira sempre vencedora:
Um
Pacheco fortíssimo e os temidos
Almeidas,
por quem sempre o Tejo chora,
Albuquerque
terríbil, Castro forte,
E
outros em quem poder não teve a morte.
E,
enquanto eu estes canto - e a vós não posso,
Sublime
Rei, que não me atrevo a tanto - ,
Tomai
as rédeas vós do Reino vosso:
Dareis
matéria a nunca ouvido canto.
Comecem
a sentir o peso grosso
(Que
polo mundo todo faça espanto)
De
exércitos e feitos singulares,
De
África as terras e do Oriente os mares.
Em
vós os olhos tem o Mouro frio,
Em
quem vê seu exício afigurado;
Só
com vos ver, o bárbaro Gentio
Mostra
o pescoço ao jugo já inclinado;
Tétis
todo o cerúleo senhorio
Tem
pera vós por dote aparelhado,
Que,
afeiçoada ao gesto belo e tento,
Deseja
de comprar-vos pera genro.
Em
vós se vêm, da Olímpica morada,
Dos
dous avós as almas cá famosas;
üa,
na paz angélica dourada,
Outra,
pelas batalhas sanguinosas.
Em
vós esperam ver-se renovada
Sua
memória e obras valerosas;
E
lá vos têm lugar, no fim da idade,
No
templo da suprema Eternidade.
Mas,
enquanto este tempo passa lento
De
regerdes os povos, que o desejam,
Dai
vós favor ao novo atrevimento,
Pera
que estes meus versos vossos sejam,
E
vereis ir cortando o salso argento
Os
vossos Argonautas, por que vejam
Que
são vistos de vós no mar irado,
E
costumai-vos já a ser invocado.
Já
no largo Oceano navegavam,
As
inquietas ondas apartando;
Os
ventos brandamente respiravam,
Das
naus as velas côncavas inchando;
Da
branca escuma os mares se mostravam
Cobertos,
onde as proas vão cortando
As
marítimas águas consagradas,
Que
do gado de Próteu são cortadas,
Quando
os Deuses no Olimpo luminoso,
Onde
o governo está da humana gente,
Se
ajuntam em consílio glorioso,
Sobre
as cousas futuras do Oriente.
Pisando
o cristalino Céu fermoso,
Vêm
pela Via Láctea juntamente,
Convocados,
da parte de Tonante,
Pelo
neto gentil do velho Atlante.
Deixam
dos sete Céus o regimento,
Que
do poder mais alto lhe foi dado,
Alto
poder, que só co pensamento
Governa
o Céu, a Terra e o Mar irado.
Ali
se acharam juntos num momento
Os
que habitam o Arcturo congelado
E
os que o Austro têm e as partes onde
A
Aurora nasce e o claro Sol se esconde.
Estava
o Padre ali, sublime e dino,
Que
vibra os feros raios de Vulcano,
Num
assento de estrelas cristalino,
Com
gesto alto, severo e soberano;
Do
rosto respirava um ar divino,
Que
divino tornara um corpo humano:
Com
üa coroa e ceptro rutilante,
De
outra pedra mais clara que diamante.
Em
luzentes assentos, marchetados
De
ouro e de perlas, mais abaixo estavam
Os
outros Deuses, todos assentados
Como
a Razão e a Ordem concertavam
(Precedem
os antigos, mais honrados,
Mais
abaixo os menores se assentavam);
Quando
Júpiter alto, assi dizendo,
Cum
tom de voz começa grave e horrendo:
-
«Eternos moradores do luzente,
Estelífero
Pólo e claro Assento:
Se
do grande valor da forte gente
De
Luso não perdeis o pensamento,
Deveis
de ter sabido claramente
Como
é dos Fados grandes certo intento
Que
por ela se esqueçam os humanos
De
Assírios, Persas, Gregos e Romanos.
«Já
lhe foi (bem o vistes) concedido,
Cum
poder tão singelo e ao pequeno,
Tomar
ao Mouro forte e guarnecido
Toda
a terra que rega o Tejo ameno.
Pois
contra o Castelhano ao temido
Sempre
alcançou favor do Céu sereno:
Assi
que sempre, enfim, com fama e glória.
Teve
os troféus pendentes da vitória.
«Deixo,
Deuses, atrás a fama antiga,
Que
co a gente de Rómulo alcançaram,
Quando
com Viriato, na inimiga
Guerra
Romana, tanto se afamaram;
Também
deixo a memória que os obriga
A
grande nome, quando alevantaram
Um
por seu capitão, que, peregrino,
Fingiu
na cerva espírito divino.
«Agora
vedes bem que, cometendo
O
duvidoso mar num lenho leve,
Por
vias nunca usadas, não temendo
de
Áfrico e Noto a força, a mais s'atreve:
Que,
havendo tanto já que as partes vendo
Onde
o dia é comprido e onde breve,
Inclinam
seu propósito e perfia
A
ver os berços onde nasce o dia.
«Prometido
lhe está do Fado eterno,
Cuja
alta lei não pode ser quebrada,
Que
tenham longos tempos o governo
Do
mar que vê do Sol a roxa entrada.
Nas
águas têm passado o duro Inverno;
A
gente vem perdida e trabalhada;
Já
parece bem feito que lhe seja
Mostrada
a nova terra que deseja.
«E
porque, como vistes, têm passados
Na
viagem tão ásperos perigos,
Tantos
climas e céus exprimentados,
Tanto
furor de ventos inimigos,
Que
sejam, determino, agasalhados
Nesta
costa Africana como amigos;
E,
tendo guarnecida a lassa frota,
Tornarão
a seguir sua longa rota.
Estas
palavras Júpiter dizia,
Quando
os Deuses, por ordem respondendo,
Na
sentença um do outro diferia,
Razões
diversas dando e recebendo.
O
padre Baco ali não consentia
No
que Júpiter disse, conhecendo
Que
esquecerão seus feitos no Oriente
Se
lá passar a Lusitana gente.
Ouvido
tinha aos Fados que viria
üa
gente fortíssima de Espanha
Pelo
mar alto, a qual sujeitaria
Da
Índia tudo quanto Dóris banha,
E
com novas vitórias venceria
A
fama antiga, ou sua ou fosse estranha.
Altamente
lhe dói perder a glória
De
que Nisa celebra inda a memória.
Vê
que já teve o Indo sojugado
E
nunca lhe tirou Fortuna ou caso
Por
vencedor da Índia ser cantado
De
quantos bebem a água de Parnaso.
Teme
agora que seja sepultado
Seu
tão célebre nome em negro vaso
D'água
do esquecimento, se lá chegam
Os
fortes Portugueses que navegam.
Sustentava
contra ele Vénus bela,
Afeiçoada
à gente Lusitana
Por
quantas qualidades via nela
Da
antiga, tão amada, sua Romana;
Nos
fortes corações, na grande estrela
Que
mostraram na terra Tingitana,
E
na língua, na qual quando imagina,
Com
pouca corrupção crê que é a Latina
Estas
causas moviam Citereia
E
mais, porque das Parcas claro entende
Que
há-de ser celebrada a clara Deia
Onde
a gente belígera se estende.
Assi
que, um, pela infâmia que arreceia,
E o
outro, pelas honras que pretende,
Debatem,
e na perfia permanecem;
A
qualquer seus amigos favorecem.
Qual
Austro fero ou Bóreas na espessura
De
silvestre arvoredo abastecida,
Rompendo
os ramos vão da mata escura
Com
ímpeto e braveza desmedida,
Brama
toda montanha, o som murmura,
Rompem-se
as folhas, ferve a serra erguida:
Tal
andava o tumulto, levantado
Entre
os Deuses, no Olimpo consagrado.
Mas
Marte, que da Deusa sustentava
Entre
todos as partes em porfia,
Ou porque
o amor antigo o obrigava,
Ou
porque a gente forte o merecia,
De
antre os Deuses em pé se levantava:
Merencório
no gesto parecia;
O
forte escudo, ao colo pendurado,
Deitando
pera trás, medonho e irado;
A
viseira do elmo de diamante
Alevantando
um pouco, mui seguro,
Por
dar seu parecer se pôs diante
De
Júpiter, armado, forte e duro;
E
dando üa pancada penetrante
Co
conto do bastão no sólio puro,
O
Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
Um
pouco a luz perdeu, como enfiado;
E
disse assi:- «Ó Padre, a cujo império
Tudo
aquilo obedece que criaste:
Se
esta gente que busca outro Hemisfério.
Cuja
valia e obras tanto amaste,
Não
queres que padeçam vitupério,
Como
há já tanto tempo que ordenaste,
Não
ouças mais, pois és juiz direito,
Razões
de quem parece que é suspeito.
«Que,
se aqui a razão se não mostrasse
Vencida
do temor demasiado,
Bem
fora que aqui Baco os sustentasse,
Pois
que de Luso vêm, seu tão privado;
Mas
esta tenção sua agora passe,
Porque
enfim vem de estâmago danado;
Que
nunca tirará alheia enveja
O
bem que outrem merece e o Céu deseja.
E
tu, Padre de grande fortaleza,
Da
determinação que tens tomada
Não
tornes por detrás, pois é fraqueza
Desistir-se
da cousa começada.
Mercúrio,
pois excede em ligeireza
Ao
vento leve e à seta bem talhada,
Lhe
vá mostrar a terra onde se informe
Da
Índia, e onde a gente se reforme.»
Como
isto disse, o Padre poderoso,
A
cabeça inclinando, consentiu
No
que disse Mavorte valeroso
E
néctar sobre todos esparziu.
Pelo
caminho Lácteo glorioso
Logo
cada um dos Deuses se partiu,
Fazendo
seus reais acatamentos,
Pera
os determinados apousentos.
Enquanto
isto se passa na fermosa
Casa
etérea do Olimpo omnipotente,
Cortava
o mar a gente belicosa
Já
lá da banda do Austro e do Oriente,
Entre
a costa Etiópica e a famosa
Ilha
de São Lourenço; e o Sol ardente
Queimava
então os Deuses que Tifeu
Co
temor grande em pexes converteu.
Tão
brandamente os ventos os levavam
Como
quem o Céu tinha por amigo;
Sereno
o ar e os tempos se mostravam,
Sem
nuvens, sem receio de perigo.
O
promontório Prasso já passavam
Na
costa de Etiópia, nome antigo,
Quando
o mar, descobrindo, lhe mostrava
Novas
ilhas, que em torno cerca e lava.
Vasco
da Gama, o forte Capitão,
Que
a tamanhas empresas se oferece,
De
soberbo e de altivo coração,
A
quem Fortuna sempre favorece,
Pera
se aqui deter não vê razão,
Que
inabitada a terra lhe parece.
Por
diante passar determinava,
Mas
não lhe sucedeu como cuidava.
Eis
aparecem logo em companhia
Uns
pequenos batéis, que vêm daquela
Que
mais chegada à terra parecia,
Cortando
o longo mar com larga vela.
A
gente se alvoroça e, de alegria,
Não
sabe mais que olhar a causa dela.
-
«Que gente será esta?» (em si diziam)
«Que
costumes, que Lei, que Rei teriam?»
As
embarcações eram na maneira
Mui
veloces, estreitas e compridas;
Ás
velas com que vêm eram de esteira,
Düas
folhas de palma, bem tecidas;
A
gente da cor era verdadeira
Que
Fáëton, nas terras acendidas,
Ao
mundo deu, de ousado e não prudente
(O
Pado o sabe e Lampetusa o sente).
De
panos de algodão vinham vestidos,
De
várias cores, brancos e listrados;
Uns
trazem derredor de si cingidos,
Outros
em modo airoso sobraçados;
Das
cintas pera cima vêm despidos;
Por
armas têm adagas e tarçados;
Com
toucas na cabeça; e, navegando,
Anafis
sonorosos vão tocando.
Cos
panos e cos braços acenavam
Às
gentes Lusitanas, que esperassem;
Mas
já as proas ligeiras se inclinavam,
Pera
que junto às Ilhas amainassem.
A
gente e marinheiros trabalhavam
Como
se aqui os trabalhos s'acabassem:
Tomam
velas, amaina-se a verga alta,
Da
âncora o mar ferido em cima salta.
Não
eram ancorados, quando a gente
Estranha
polas cordas já subia.
No
gesto ledos vêm, e humanamente
O
Capitão sublime os recebia.
As
mesas manda pôr em continente;
Do
licor que Lieu prantado havia
Enchem
vasos de vidro; e do que deitam
Os
de Fáëton queimados nada enjeitam.
Comendo
alegremente, perguntavam,
Pela
Arábica língua, donde vinham,
Quem
eram, de que terra, que buscavam,
Ou
que partes do mar corrido tinham?
Os
fortes Lusitanos lhe tornavam
As
discretas repostas que convinham:
-
«Os Portugueses somos do Ocidente,
Imos
buscando as terras do Oriente.
«Do
mar temos corrido e navegado
Toda
a parte do Antártico e Calisto,
Toda
a costa Africana rodeado;
Diversos
céus e terras temos visto;
Dum
Rei potente somos, tão amado,
Tão
querido de todos e benquisto,
Que
não no largo mar, com leda fronte,
Mas
no lago entraremos de Aqueronte.
«E,
por mandado seu, buscando andamos
A
terra Oriental que o Indo rega;
Por
ele o mar remoto navegamos,
Que
só dos feios focas se navega.
Mas
já razão parece que saibamos
(Se
entre vós a verdade não se nega),
Quem
sois, que terra é esta que habitais,
Ou
se tendes da Índia alguns sinais?»
-
«Somos (um dos das Ilhas lhe tornou)
Estrangeiros
na terra, Lei e nação;
Que
os próprios são aqueles que criou
A
Natura, sem Lei e sem Razão.
Nós
temos a Lei certa que ensinou
O
claro descendente de Abraão,
Que
agora tem do mundo o senhorio;
A
mãe Hebreia teve e o pai, Gentio.
«Esta
Ilha pequena, que habitamos,
É
em toda esta terra certa escala
De
todos os que as ondas navegamos,
De
Quíloa, de Mombaça e de Sofala;
E,
por ser necessária, procuramos,
Como
próprios da terra, de habitá-la;
E
por que tudo enfim vos notifique,
Chama-se
a pequena Ilha - Moçambique.
«E
já que de tão longe navegais,
Buscando
o Indo Idaspe e terra ardente,
Piloto
aqui tereis, por quem sejais
Guiados
pelas ondas sàbiamente.
Também
será bem feito que tenhais
Da
terra algum refresco, e que o Regente
Que
esta terra governa, que vos veja
E
do mais necessário vos proveja.»
Isto
dizendo, o Mouro se tornou
A
seus batéis com toda a companhia;
Do
Capitão e gente se apartou
Com
mostras de devida cortesia.
Nisto
Febo nas águas encerrou
Co
carro de cristal, o claro dia,
Dando
cargo à Irmã que alumiasse
O
largo mundo, enquanto repousasse.
A
noite se passou na lassa frota
Com
estranha alegria e não cuidada,
Por
acharem da terra tão remota
Nova
de tanto tempo desejada.
Qualquer
então consigo cuida e nota
Na
gente e na maneira desusada,
E
como os que na errada Seita creram,
Tanto
por todo o mundo se estenderam.
Da
Lüa os claros raios rutilavam
Polas
argênteas ondas Neptuninas;
As
Estrelas os Céus acompanhavam,
Qual
campo revestido de boninas;
Os
furiosos ventos repousavam
Polas
covas escuras peregrinas;
Porém
da armada a gente vigiava,
Como
por longo tempo costumava.
Mas,
assi como a Aurora marchetada
Os
fermosos cabelos espalhou
No
Céu sereno, abrindo a roxa entrada
Ao
claro Hiperiónio, que acordou,
Começa
a embandeirar-se toda a armada
E
de toldos alegres se adornou,
Por
receber com festas e alegria
O
Regedor das Ilhas, que partia.
Partia,
alegremente navegando,
A
ver as naus ligeiras Lusitanas,
Com
refresco da terra, em si cuidando
Que
são aquelas gentes inumanas
Que,
os apousentos Cáspios habitando,
A
conquistar as terras Asianas
Vieram
e, por ordem do Destino,
O
Império tomaram a Costantino.
Recebe
o Capitão alegremente
O
Mouro e toda sua companhia;
Dá-lhe
de ricas peças um presente,
Que
só pera este efeito já trazia;
Dá-lhe
conserva doce e dá-lhe o ardente,
Não
usado licor, que dá alegria.
Tudo
o Mouro contente bem recebe,
E
muito mais contente come e bebe
Está
a gente marítima de Luso
Subida
pela enxárcia, de admirada,
Notando
o estrangeiro modo e uso
E a
linguagem tão bárbara e enleada.
Também
o Mouro astuto está confuso,
Olhando
a cor, o trajo e a forte armada;
E,
perguntando tudo, lhe dizia
Se
porventura vinham de Turquia.
E
mais lhe diz também que ver deseja
Os
livros de sua Lei, preceito ou fé,
Pera
ver se conforme à sua seja,
Ou
se são dos de Cristo, como crê;
E
por que tudo note e tudo veja,
Ao
Capitão pedia que lhe dê
Mostra
das fortes armas de que usavam
Quando
cos inimigos pelejavam.
Responde
o valeroso Capitão,
Por
um que a língua escura bem sabia:
-«Dar-te-ei,
Senhor ilustre, relação
De
mi, da Lei, das armas que trazia.
Nem
sou da terra, nem da geração
Das
gentes enojosas de Turquia,
Mas
sou da forte Europa belicosa;
Busco
as terras da Índia tão famosa.
«A
Lei tenho d'Aquele a cujo império
Obedece
o visíbil e invisíbil,
Aquele
que criou todo o Hemisfério,
Tudo
o que sente e todo o insensíbil;
Que
padeceu desonra e vitupério,
Sofrendo
morte injusta e insofríbil,
E
que do Céu à Terra enfim deceu,
Por
subir os mortais da Terra ao Céu.
«Deste
Deus-Homem, alto e infinito,
Os
livros que tu pedes não trazia,
Que
bem posso escusar trazer escrito
Em
papel o que na alma andar devia.
Se
as armas queres ver, como tens dito,
Cumprido
esse desejo te seria;
Como
amigo as verás, porque eu me obrigo
Que
nunca as queiras ver como inimigos».
Isto
dizendo, manda os diligentes
Ministros
amostrar as armaduras:
Vêm
arneses e peitos reluzentes,
Malhas
finas e lâminas seguras,
Escudos
de pinturas diferentes,
Pelouros,
espingardas de aço puras,
Arcos
e sagitíferas aljavas,
Partazanas
agudas, chuças bravas.
As
bombas vêm de fogo, e juntamente
As
panelas sulfúreas, tão danosas;
Porém
aos de Vulcano não consente
Que
dêm fogo às bombardas temerosas;
Porque
o generoso ânimo e valente,
Entre
gentes tão poucas e medrosas,
Não
mostra quanto pode; e com razão,
Que
é fraqueza entre ovelhas ser lião.
Porém
disto que o Mouro aqui notou,
E
de tudo o que viu com olho atento,
Um
ódio certo na alma lhe ficou,
üa
vontade má de pensamento;
Nas
mostras e no gesto o não mostrou,
Mas,
com risonho e ledo fingimento,
Tratá-los
brandamente determina,
Até
que mostrar possa o que imagina.
Pilotos
lhe pedia o Capitão,
Por
quem pudesse à Índia ser levado;
Diz-lhe
que o largo prémio levarão
Do
trabalho que nisso for tomado.
Promete-lhos
o Mouro, com tenção
De
peito venenoso e tão danado
Que
a morte, se pudesse, neste dia,
Em
lugar de pilotos lhe daria.
Tamanho
o ódio foi e a má vontade
Que
aos estrangeiros súpito tomou,
Sabendo
ser sequaces da Verdade
Que
o filho de David nos ensinou!
Ó
segredos daquela Eternidade
A
quem juízo algum não alcançou:
Que
nunca falte um pérfido inimigo
Àqueles
de quem foste tanto amigo!
Partiu-se
nisto, enfim, co a companhia,
Das
naus o falso Mouro despedido,
Com
enganosa e grande cortesia,
Com
gesto ledo a todos e fingido.
Cortaram
os batéis a curta via
Das
águas de Neptuno; e, recebido
Na
terra do obseqüente ajuntamento,
Se
foi o Mouro ao cógnito apousento.
Do
claro Assento etéreo, o grão Tebano,
Que
da paternal coxa foi nascido,
Olhando
o ajuntamento Lusitano
Ao
Mouro ser molesto e avorrecido,
No
pensamento cuida um falso engano,
Com
que seja de todo destruído;
E,
enquanto isto só na alma imaginava,
Consigo
estas palavras praticava:
-«Está
do Fado já determinado
Que
tamanhas vitórias, tão famosas,
Hajam
os Portugueses alcançado
Das
Indianas gentes belicosas;
E
eu só, filho do Padre sublimado,
Com
tantas qualidades generosas,
Hei-de
sofrer que o Fado favoreça
Outrem,
por quem meu nome se escureça?
«Já
quiseram os Deuses que tivesse
O
filho de Filipo nesta parte
Tanto
poder que tudo sometesse
Debaixo
do seu jugo o fero Marte;
Mas
há-se de sofrer que o Fado desse
A
tão poucos tamanho esforço e arte,
Qu'eu,
co grão Macedónio e Romano,
Dêmos
lugar ao nome Lusitano?
«Não
será assi, porque, antes que chegado
Seja
este Capitão, astutamente
Lhe
será tanto engano fabricado
Que
nunca veja as partes do Oriente.
Eu
decerei à Terra e o indignado
Peito
revolverei da Maura gente;
Porque
sempre por via irá direita
Quem
do oportuno tempo se aproveita.»
Isto
dizendo, irado e quási insano,
Sobre
a terra Africana descendeu,
Onde,
vestindo a forma e gesto humano,
Pera
o Prasso sabido se moveu.
E,
por milhor tecer o astuto engano,
No
gesto natural se converteu
Dum
Mouro, em Moçambique conhecido,
Velho,
sábio, e co Xeque mui valido.
E,
entrando assi a falar-lhe, a tempo e horas,
A
sua falsidade acomodadas,
Lhe
diz como eram gentes roubadoras
Estas
que ora de novo são chegadas;
Que
das nações na costa moradoras,
Correndo
a fama veio que roubadas
Foram
por estes homens que passavam,
Que
com pactos de paz sempre ancoravam.
-
«E sabe mais (lhe diz), como entendido
Tenho
destes Cristãos sanguinolentos,
Que
quási todo o mar têm destruído
Com
roubos, com incêndios violentos;
E
trazem já de longe engano urdido
Contra
nós; e que todos seus intentos
São
pera nos matarem e roubarem,
E
mulheres e filhos cativarem.
«E
também sei que tem determinado
De
vir por água a terra, muito cedo,
O
Capitão, dos seus acompanhado,
Que
da tenção danada nasce o medo
Tu
deves de ir também cos teus armado
Esperá-lo
em cilada, oculto e quedo;
Porque,
saindo a gente descuidada,
Caïrão
fàcilmente na cilada.
«E
se inda não ficarem deste jeito
Destruídos
ou mortos totalmente,
Eu
tenho imaginada no conceito
Outra
manha e ardil que te contente:
Manda-lhe
dar piloto que de jeito
Seja
astuto no engano, e tão prudente
Que
os leve aonde sejam destruídos,
Desbaratados,
mortos ou perdidos.»
Tanto
que estas palavras acabou
O
Mouro, nos tais casos sábio e velho,
Os
braços pelo colo lhe lançou,
Agradecendo
muito o tal conselho;
E
logo nesse instante concertou
Pera
a guerra o belígero aparelho,
Pera
que ao Português se lhe tornasse
Em
roxo sangue a água que buscasse.
E
busca mais, pera o cuidado engano,
Mouro
que por piloto à nau lhe mande,
Sagaz,
astuto e sábio em todo o dano,
De
quem fiar se possa um feito grande.
Diz-lhe
que, acompanhando o Lusitano,
Por
tais costas e mares co ele ande,
Que,
se daqui escapar, que lá diante
Vá
cair onde nunca se alevante.
Já
o raio Apolíneo visitava
Os
Montes Nabateios acendido,
Quando
Gama cos seus determinava
De
vir por água a terra apercebido.
A
gente nos batéis se concertava
Como
se fosse o engano já sabido;
Mas
pôde suspeitar-se facilmente,
Que
o coração pres[s]ago nunca mente.
E
mais também mandado tinha a terra,
De
antes, pelo piloto necessário,
E
foi-lhe respondido em som de guerra,
Caso
do que cuidava mui contrário.
Por
isto, e porque sabe quanto erra
Quem
se crê de seu pérfido adversário,
Apercebido
vai como podia
Em
três batéis somente que trazia.
Mas
os Mouros, que andavam pela praia
Por
lhe defender a água desejada,
Um
de escudo embraçado e de azagaia,
Outro
de arco encurvado e seta ervada,
Esperam
que a guerreira gente saia,
Outros
muitos já postos em cilada;
E,
por que o caso leve se lhe faça,
Põem
uns poucos diante por negaça.
Andam
pela ribeira alva, arenosa,
Os
belicosos Mouros acenando
Com
a adarga e co a hástea perigosa,
Os
fortes Portugueses incitando
Não
sofre muito a gente generosa
Andar-lhe
os Cães os dentes amostrando;
Qualquer
em terra salta, tão ligeiro,
Que
nenhum dizer pode que é primeiro:
Qual
no corro sanguino o ledo amante,
Vendo
a fermosa dama desejada,
O
touro busca e, pondo-se diante,
Salta,
corre, sibila, acena e brada,
Mas
o animal atroce, nesse instante,
Com
a fronte cornígera inclinada,
Bramando,
duro corre e os olhos cerra,
Derriba,
fere e mata e põe por terra.
Eis
nos batéis o fogo se levanta
Na
furiosa e dura artelharia;
A
plúmbea péla mata, o brado espanta;
Ferido,
o ar retumba e assovia.
O
coração dos Mouros se quebranta,
O
temor grande o sangue lhe resfria.
Já
foge o escondido, de medroso,
E
morre o descoberto aventuroso.
Não
se contenta a gente Portuguesa,
Mas,
seguindo a vitória, estrui e mata;
A
povoação sem muro e sem defesa
Esbombardeia,
acende e desbarata.
Da
cavalgada ao Mouro já lhe pesa,
Que
bem cuidou comprá-la mais barata;
Já
blasfema da guerra, e maldizia,
O
velho inerte e a mãe que o filho cria.
Fugindo,
a seta o Mouro vai tirando
Sem
força, de covarde e de apressado,
Apedra,
o pau e o canto arremessando;
Dá-lhe
armas o furor desatinado.
Já
a Ilha, e todo o mais, desemparando,
À
terra firme foge amedrontado;
Passa
e corta do mar o estreito braço
Que
a Ilha em torno cerca em pouco espaço.
Uns
vão nas almadias carregadas,
Um
corta o mar a nado, diligente;
Quem
se afoga nas ondas encurvadas,
Quem
bebe o mar e o deita juntamente.
Arrombam
as miúdas bombardadas
Os
pangaios sutis da bruta gente.
Destarte
o Português, enfim, castiga
A
vil malícia, pérfida, inimiga.
Tornam
vitoriosos pera a armada,
Co
despojo da guerra e rica presa,
E
vão a seu prazer fazer aguada,
Sem
achar resistência nem defesa.
Ficava
a Maura gente magoada,
No
ódio antigo mais que nunca acesa;
E,
vendo sem vingança tanto dano,
Sòmente
estriba no segundo engano.
Pazes
cometer manda, arrependido,
O
Regedor daquela inica terra,
Sem
ser dos Lusitanos entendido
Que
em figura de paz lhe manda guerra;
Porque
o piloto falso prometido,
Que
toda a má tenção no peito encerra,
Pera
os guiar à morte lhe mandava,
Como
em sinal das pazes que tratava.
O
Capitão, que já lhe então convinha
Tornar
a seu caminho acostumado,
Que
tempo concertado e ventos tinha
Pera
ir buscar o Indo desejado,
Recebendo
o piloto que lhe vinha,
Foi
dele alegremente agasalhado,
E
respondendo ao mensageiro, a tento,
As
velas manda dar ao largo vento.
Destarte
despedida, a forte armada
As
ondas de Anfítrite dividia,
Das
filhas de Nereu acompanhada,
Fiel,
alegre e doce companhia.
O
Capitão, que não caía em nada
Do
enganoso ardil que o Mouro urdia,
Dele
mui largamente se informava
Da
Índia toda e costas que passava.
Mas
o Mouro, instruído nos enganos
Que
o malévolo Baco lhe ensinara,
De
morte ou cativeiro novos danos,
Antes
que à Índia chegue, lhe prepara.
Dando
razão dos portos Indianos,
Também
tudo o que pede lhe declara,
Que,
havendo por verdade o que dizia,
De
nada a forte gente se temia.
E
diz-lhe mais, co falso pensamento
Com
que Sínon os Frígios enganou,
Que
perto está üa Ilha, cujo assento
Povo
antigo Cristão sempre habitou.
O
Capitão, que a tudo estava atento,
Tanto
co estas novas se alegrou
Que
com dádivas grandes lhe rogava
Que
o leve à terra onde esta gente estava.
O
mesmo o falso Mouro determina
Que
o seguro Cristão lhe manda e pede;
Que
a Ilha é possuída da malina
Gente
que segue o torpe Mahamede.
Aqui
o engano e morte lhe imagina,
Porque
em poder e forças muito excede
À
Moçambique esta Ilha, que se chama
Quíloa,
mui conhecida pola fama.
Pera
lá se inclinava a leda frota;
Mas
a Deusa em Citere celebrada,
Vendo
como deixava a certa rota
Por
ir buscar a morte não cuidada,
Não
consente que em terra tão remota
Se
perca a gente dela tanto amada,
E
com ventos contrairos a desvia
Donde
o piloto falso a leva e guia.
Mas
o malvado Mouro, não podendo
Tal
determinação levar avante,
Outra
maldade inica cometendo,
Ainda
em seu propósito constante,
Lhe
diz que, pois as águas, discorrendo,
Os
levaram por força por diante,
Que
outra Ilha tem perto, cuja gente
Eram
Cristãos com Mouros juntamente.
Também
nestas palavras lhe mentia,
Como
por regimento, enfim, levava;
Que
aqui gente de Cristo não havia,
Mas
a que a Mahamede celebrava.
O
Capitão, que em tudo o Mouro cria,
Virando
as velas, a Ilha demandava;
Mas,
não querendo a Deusa guardadora,
Não
entra pela barra, e surge fora.
Estava
a Ilha à terra tão chegada
Que
um estreito pequeno a dividia;
üa
cidade nela situada,
Que
na fronte do mar aparecia,
De
nobres edifícios fabricada,
Como
por fora, ao longe, descobria,
Regida
por um Rei de antiga idade:
Mombaça
é o nome da Ilha e da cidade.
E
sendo a ela o Capitão chegado,
Estranhamente
ledo, porque espera
De
poder ver o povo baptizado,
Como
o falso piloto lhe dissera,
Eis
vêm batéis da terra com recado
Do
Rei, que já sabia a gente que era;
Que
Baco muito de antes o avisara,
Na
forma doutro Mouro, que tomara.
O
recado que trazem é de amigos,
Mas
debaxo o veneno vem coberto,
Que
os pensamentos eram de inimigos,
Segundo
foi o engano descoberto.
Ó
grandes e gravíssimos perigos,
Ó
caminho de vida nunca certo,
Que
aonde a gente põe sua esperança
Tenha
a vida tão pouca segurança!
No
mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas
vezes a morte apercebida!
Na
terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta
necessidade avorrecida!
Onde
pode acolher-se um fraco humano,
Onde
terá segura a curta vida,
Que
não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra
um bicho da terra tão pequeno?
Canto
II
Já
neste tempo o lúcido Planeta
Que
as horas vai do dia distinguindo,
Chegava
à desejada e lenta meta,
A
luz celeste às gentes encobrindo;
E
da casa marítima secreta he estava o Deus
Nocturno
a porta abrindo,
Quando
as infidas gentes se chegaram
Às
naus, que pouco havia que ancoraram.
Dantre
eles um, que traz encomendado
O
mortífero engano, assi dizia:
«Capitão
valeroso, que cortado
Tens
de Neptuno o reino e salsa via,
O
Rei que manda esta Ilha, alvoraçado
Da
vinda tua, tem tanta alegria
Que
não deseja mais que agasalhar-te,
Ver-te
e do necessário reformar-te.
«E
porque está em extremo desejoso
De
te ver, como cousa nomeada,
Te
roga que, de nada receoso,
Entres
a barra, tu com toda armada;
E
porque do caminho trabalhoso
Trarás
a gente débil e cansada,
Diz
que na terra podes reformá-la,
Que
a natureza obriga a desejá-la.
«E
se buscando vás mercadoria
Que
produze o aurífero levante,
Canela,
cravo, ardente especiaria
Ou
droga salutífera e prestante;
Ou
se queres luzente pedraria,
O
rubi fino, o rígido diamante,
Daqui
levarás tudo tão sobejo
Com
que faças o fim a teu desejo.»
Ao
mensageiro o Capitão responde,
As
palavras do Rei agradecendo,
E
diz que, porque o Sol no mar se esconde,
Não
entra pera dentro, obedecendo;
Porém
que, como a luz mostrar por onde
Vá
sem perigo a frota, não temendo,
Cumprirá
sem receio seu mandado,
Que
a mais por tal senhor está obrigado.
Pergunta-lhe
despois se estão na terra
Cristãos,
como o piloto lhe dizia;
O
mensageiro astuto, que não erra,
Lhe
diz que a mais da gente em Cristo cria.
Desta
sorte do peito lhe desterra
Toda
a suspeita e cauta fantasia;
Por
onde o Capitão seguramente
Se
fia da infiel e falsa gente.
E
de alguns que trazia, condenados
Por
culpas e por feitos vergonhosos,
Por
que pudessem ser aventurados
Em
casos desta sorte duvidosos,
Manda
dous mais sagazes, ensaiados,
Por
que notem dos Mouros enganosos
A
cidade e poder, e por que vejam
Os
Cristãos, que só tanto ver desejam.
E
por estes ao Rei presentes manda,
Por
que a boa vontade que mostrava
Tenha
firme, segura, limpa e branda,
A
qual bem ao contrário em tudo estava.
Já
a companhia pérfida e nefanda
Das
naus se despedia e o mar cortava:
Foram
com gestos ledos e fingidos
Os
dous da frota em terra recebidos.
E
despois que ao Rei apresentaram
Co
recado os presentes que traziam,
A
cidade correram, e notaram
Muito
menos daquilo que queriam;
Que
os Mouros cautelosos se guardaram
De
lhe mostrarem tudo o que pediam;
Que
onde reina a malícia, está o receio
Que
a faz imaginar no peito alheio.
Mas
aquele que sempre a mocidade
Tem
no rosto perpétua, e foi nascido
De
duas mães, que urdia a falsidade
Por
ver o navegante destruído,
Estava
nüa casa da cidade,
Com
rosto humano e hábito fingido,
Mostrando-se
Cristão, e fabricava
Um
altar sumptuoso que adorava.
Ali
tinha em retrato afigurada
Do
alto e Santo Espírito a pintura,
A
cândida Pombinha, debuxada
Sobre
a única Fénix, virgem pura;
A
companhia santa está pintada,
Dos
doze, tão torvados na figura
Como
os que, só das línguas que caíram
De
fogo, várias línguas referiram.
Aqui
os dous companheiros, conduzidos
Onde
com este engano Baco estava,
Põem
em terra os giolhos, e os sentidos
Naquele
Deus que o Mundo governava.
Os
cheiros excelentes, produzidos
Na
Pancaia odorífera, queimava
O
Tioneu, e assi por derradeiro
O
falso Deus adora o verdadeiro.
Aqui
foram de noite agasalhados,
Com
todo o bom e honesto tratamento
Os
dous Cristãos, não vendo que enganados
Os
tinha o falso e santo fingimento
Mas,
assi como os raios espalhados
Do
Sol foram no mundo, e num momento
Apareceu
no rúbido Horizonte
Na
moça de Titão a roxa fronte,
Tornam
da terra os Mouros co recado
Do
Rei pera que entrassem, e consigo
Os
dous que o Capitão tinha mandado,
A
quem se o Rei mostrou sincero amigo;
E sendo
o Português certificado
De
não haver receio de perigo
E
que gente de Cristo em terra havia,
Dentro
no salso rio entrar queria.
Dizem-lhe
os que mandou que em terra viram
Sacras
aras e sacerdote santo;
Que
ali se agasalharam e dormiram
Enquanto
a luz cobriu o escuro manto;
E
que no Rei e gentes não sentiram
Senão
contentamento e gosto tanto
Que
não podia certo haver suspeita
Nüa
mostra tão clara e tão perfeita.
Co
isto o nobre Gama recebia
Alegremente
os Mouros que subiam
Que
levemente um ânimo se fia
De
mostras que tão certas pareciam.
A
nau da gente pérfida se enchia,
Deixando
a bordo os barcos que traziam.
Alegres
vinham todos porque crêm
Que
a presa desejada certa têm.
Na
terra cautamente aparelhavam
Armas
e munições, que, como vissem
Que
no rio os navios ancoravam,
Neles
ousadamente se subissem;
E
nesta treïção determinavam
Que
os de Luso de todo destruíssem,
E
que, incautos, pagassem deste jeito
O
mal que em Moçambique tinham feito.
As
âncoras tenaces vão levando,
Com
a náutica grita costumada;
Da
proa as velas sós ao vento dando,
Inclinam
pera a barra abalizada.
Mas
a linda Ericina, que guardando
Andava
sempre a gente assinalada,
Vendo
a cilada grande e tão secreta,
Voa
do Céu ao mar como üa seta.
Convoca
as alvas filhas de Nereu,
Com
toda a mais cerúlea companhia,
Que,
porque no salgado mar nasceu,
Das
águas o poder lhe obedecia;
E,
propondo-lhe a causa a que deceu,
Com
todos juntamente se partia
Pera
estorvar que a armada não chegasse
Aonde
pera sempre se acabasse.
Já
na água erguendo vão, com grande pressa,
Com
as argênteas caudas branca escuma;
Cloto
co peito corta e atravessa
Com
mais furor o mar do que costuma;
Salta
Nise, Nerine se arremessa
Por
cima da água crespa em força suma;
Abrem
caminho as ondas encurvadas,
De
temor das Nereidas apressadas.
Nos
ombros de um Tritão, com gesto aceso,
Vai
a linda Dione furiosa;
Não
sente quem a leva o doce peso,
De
soberbo com carga tão fermosa.
Já
chegam perto donde o vento teso
Enche
as velas da frota belicosa;
Repartem-se
e rodeiam nesse instante
As
naus ligeiras, que iam por diante.
Põe-se
a Deusa com outras em direito
Da
proa capitaina, e ali fechando
O
caminho da barra, estão de jeito
Que
em vão assopra o vento, a vela inchando:
Põem
no madeiro duro o brando peito
Pera
detrás a forte nau forçando;
Outras
em derredor levando-a estavam
E
da barra inimiga a desviavam.
Quais
pera a cova as próvidas formigas,
Levando
o peso grande acomodado
As
forças exercitam, de inimigas
Do
inimigo Inverno congelado;
Ali
são seus trabalhos e fadigas,
Ali
mostram vigor nunca esperado:
Tais
andavam as Ninfas estorvando
À
gente Portuguesa o fim nefando.
Torna
pera detrás a nau, forçada,
Apesar
dos que leva, que, gritando,
Mareiam
velas; ferve a gente irada,
O
leme a um bordo e a outro atravessando;
O
mestre astuto em vão da popa brada,
Vendo
como diante ameaçando
Os
estava um marítimo penedo,
Que
de quebrar-lhe a nau lhe mete medo.
A
celeuma medonha se alevanta
No
rudo marinheiro que trabalha;
O
grande estrondo a Maura gente espanta,
Como
se vissem hórrida batalha;
Não
sabem a razão de fúria tanta,
Não
sabem nesta pressa quem lhe valha:
Cuidam
que seus enganos são sabidos
E
que hão-de ser por isso aqui punidos.
Ei-los
subitamente se lançavam
A
seus batéis veloces que traziam;
Outros
em cima o mar alevantavam
Saltando
n'água, a nado se acolhiam;
De
um bordo e doutro súbito saltavam,
Que
o medo os compelia do que viam;
Que
antes querem ao mar aventurar-se
Que
nas mãos inimigas entregar-se.
Assi
como em selvática alagoa
As
rãs, no tempo antigo Lícia gente,
Se
sentem porventura vir pessoa,
Estando
fora da água incautamente,
Daqui
e dali saltando (o charco soa),
Por
fugir do perigo que se sente,
E,
acolhendo-se ao couto que conhecem,
Sós
as cabeças na água lhe aparecem:
Assi
fogem os Mouros; e o piloto,
Que
ao perigo grande as naus guiara,
Crendo
que seu engano estava noto,
Também
foge, saltando na água amara
Mas,
por não darem no penedo imoto,
Onde
percam a vida doce e cara,
A
âncora solta logo a capitaina,
Qualquer
das outras junto dela amaina.
Vendo
o Gama, atentado, a estranheza
Dos
Mouros, não cuidada, e juntamente
O
piloto fugir-lhe com presteza,
Entende
o que ordenava a bruta gente,
E
vendo, sem contraste e sem braveza
Dos
ventos ou das águas sem corrente.
Que
a nau passar avante não podia,
Havendo-o
por milagre, assi dizia:
«Ó
caso grande, estranho e não cuidado!
Ó
milagre claríssimo e evidente,
Ó
descoberto engano inopinado,
Ó
pérfida, inimiga e falsa gente!
Quem
poderá do mal aparelhado
Livrar-se
sem perigo, sàbiamente,
Se
lá de cima a Guarda Soberana
Não
acudir à fraca força humana?
«Bem
nos mostra a Divina Providência
Destes
portos a pouca segurança,
Bem
claro temos visto na aparência
Que
era enganada a nossa confiança;
Mas
pois saber humano nem prudência
Enganos
tão fingidos não alcança,
Ó
tu, Guarda Divina, tem cuidado
De
quem sem ti não pode ser guardado!
«E,
se te move tanto a piedade
Desta
mísera gente peregrina,
Que,
só por tua altíssima bondade,
Da
gente a salvas pérfida e malina,
Nalgum
porto seguro de verdade
Conduzir-nos
já agora determina,
Ou
nos amostra a terra que buscamos,
Pois
só por teu serviço navegamos.»
Ouviu-lhe
estas palavras piadosas
A
fermosa Dione e, comovida,
Dantre
as Ninfas se vai, que saüdosas
Ficaram
desta súbita partida.
Ja
penetra as Estrelas luminosas,
Já
na terceira Esfera recebida
Avante
passa, e lá no sexto Céu,
Pera
onde estava o Padre, se moveu.
E,
como ia afrontada do caminho,
Tão
fermosa no gesto se mostrava
Que
as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho
E
tudo quanto a via, namorava.
Dos
olhos, onde faz seu filho o ninho,
Uns
espíritos vivos inspirava,
Com
que os Pólos gelados acendia,
E
tornava do Fogo a Esfera, fria.
E,
por mais namorar o soberano
Padre,
de quem foi sempre amada e cara,
Se
lh'apresenta assi como ao Troiano,
Na
selva Ideia, já se apresentara.
Se
a vira o caçador que o vulto humano
Perdeu,
vendo Diana na água clara,
Nunca
os famintos galgos o mataram,
Que
primeiro desejos o acabaram.
Os
crespos fios d'ouro se esparziam
Pelo
colo que a neve escurecia;
Andando,
as lácteas tetas lhe tremiam,
Com
quem Amor brincava e não se via;
Da
alva petrina flamas lhe saíam,
Onde
o Minino as almas acendia.
Polas
lisas colunas lhe trepavam
Desejos,
que como hera se enrolavam.
Cum
delgado cendal as partes cobre
De
quem vergonha é natural reparo;
Porém
nem tudo esconde nem descobre
O
véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas,
pera que o desejo acenda e dobre,
L'he
põe diante aquele objecto raro.
Já
se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes
em Vulcano, amor em Marte.
E
mostrando no angélico sembrante
Co
riso üa tristeza misturada,
Como
dama que foi do incauto amante
Em
brincos amorosos mal tratada,
Que
se aqueixa e se ri num mesmo instante
E
se torna entre alegre, magoada,
Destarte
a Deusa a quem nenhüa iguala,
Mais
mimosa que triste ao Padre fala:
«Sempre
eu cuidei, ó Padre poderoso,
Que,
pera as cousas que eu do peito amasse,
Te
achasse brando, afábil e amoroso,
Posto
que a algum contrairo lhe pesasse;
Mas,
pois que contra mi te vejo iroso,
Sem
que to merecesse nem te errasse,
Faça-se
como Baco determina;
Assentarei,
enfim, que fui mofina.
«Este
povo, que é meu, por quem derramo.
As
lágrimas que em vão caídas vejo,
Que
assaz de mal lhe quero, pois que o amo,
Sendo
tu tanto contra meu desejo;
Por
ele a ti rogando, choro e bramo,
E
contra minha dita enfim pelejo.
Ora
pois, porque o amo é mal tratado;
Quero-lhe
querer mal, será guardado.
«Mas
moura enfim nas mãos das brutas gentes,
Que
pois eu fui.» E nisto, de mimosa,
O
rosto banha em lágrimas ardentes,
Como
co orvalho fica a fresca rosa.
Calada
um pouco, como se entre os dentes
Lhe
impedira a fala piedosa,
Torna
a segui-la; e indo por diante,
Lhe
atalha o poderoso e grão Tonante.
E
destas brandas mostras comovido,
Que
moveram de um tigre o peito duro,
Co
vulto alegre, qual, do Céu subido,
Torna
sereno e claro o ar escuro,
As
lágrimas lhe alimpa e, acendido,
Na
face a beija e abraça o colo puro;
De
modo que dali, se só se achara,
Outro
novo Cupido se gerara
E,
co seu apertando o rosto amado,
Que
os saluços e lágrimas aumenta,
Como
minino da ama castigado,
Que
quem no afaga o choro lhe acrecenta,
Por
lhe pôr em sossego o peito irado,
Muitos
casos futuros lhe apresenta.
Dos
Fados as entranhas revolvendo,
Desta
maneira enfim lhe está dizendo:
-
«Fermosa filha minha, não temais
Perigo
algum nos vossos Lusitanos,
Nem
que ninguém comigo possa mais
Que
esses chorosos olhos soberanos;
Que
eu vos prometo, filha, que vejais
Esquecerem-se
Gregos e Romanos,
Pelos
ilustres feitos que esta gente
Há-de
fazer nas partes do Oriente.
«Que,
se o facundo Ulisses escapou
De
ser na Ogígia Ilha eterno escravo,
E
se Antenor os seios penetrou
Ilíricos
e a fonte de Timavo,
E
se o piadoso Eneias navegou
De
Cila e de Caríbdis o mar bravo,
Os
vossos, mores cousas atentando,
Novos
mundos ao mundo irão mostrando.
«Fortalezas,
cidades e altos muros
Por
eles vereis, filha, edificados;
Os
Turcos belacíssimos e duros
Deles
sempre vereis desbaratados;
Os
Reis da Índia, livres e seguros,
Vereis
ao Rei potente sojugados,
E
por eles, de tudo enfim senhores,
Serão
dadas na terra leis milhores.
«Vereis
este que agora, pressuroso,
Por
tantos medos o Indo vai buscando,
Tremer
dele Neptuno de medroso,
Sem
vento suas águas encrespando.
Ó
caso nunca visto e milagroso,
Que
trema e ferva o mar, em calma estando!
Ó
gente forte e de altos pensamentos,
Que
também dela hão medo os Elementos!
«Vereis
a terra que a água lhe tolhia,
Que
inda há-de ser um porto mui decente,
Em
que vão descansar da longa via
As
naus que navegarem do Ocidente
Toda
esta costa, enfim, que agora urdia
O
mortífero engano, obediente
Lhe
pagará tributos, conhecendo
Não
poder resistir ao Luso horrendo.
«E
vereis o Mar Roxo, tão famoso,
Tornar-se-lhe
amarelo, de enfiado;
Vereis
de Ormuz o Reino poderoso
Duas
vezes tomado e sojugado.
Ali
vereis o Mouro furioso
De
suas mesmas setas traspassado;
Que
quem vai contra os vossos, claro veja
Que,
se resiste, contra si peleja.
«Vereis
a inexpugnábil Dio forte
Que
dous cercos terá, dos vossos sendo;
Ali
se mostrará seu preço e sorte,
Feitos
de armas grandíssimos fazendo.
Envejoso
vereis o grão Mavorte
Do
peito Lusitano, fero e horrendo;
Do
Mouro ali verão que a voz extrema do falso.
Mahamede
ao Céu blasfema.
Goa
vereis aos Mouros ser tomada,
O
qual virá despois a ser senhora
De
todo o Oriente, e sublimada
Cos
triunfos da gente vencedora.
Ali,
soberba, altiva e exalçada,
Ao
Gentio que os Ídolos adora
Duro
freio porá, e a toda a terra
Que
cuidar de fazer aos vossos guerra.
«Vereis
a fortaleza sustentar-se
De
Cananor, com pouca força e gente;
E
vereis Calecu desbaratar-se,
Cidade
populosa e tão potente;
E
vereis em Cochim assinalar-se
Tanto
um peito soberbo e insolente
Que
cítara jamais cantou vitória
Que
assi mereça eterno nome e glória.
«Nunca
com Marte instruto e furioso
Se
viu ferver Leucate, quando Augusto
Nas
civis Áctias guerras, animoso,
O
Capitão venceu Romano injusto,
Que
dos povos de Aurora e do famoso
Nilo
e do Bactra Cítico e robusto
A
vitória trazia e presa rica,
Preso
da Egípcia linda e não pudica,
«Como
vereis o mar fervendo aceso
Cos
incêndios dos vossos, pelejando,
Levando
o Idololatra e o Mouro preso,
De
nações diferentes triunfando;
E,
sujeita a rica Áurea Quersoneso,
Até
o longico China navegando
E
as Ilhas mais remotas do Oriente,
Ser-lhe-á
todo o Oceano obediente.
«De
modo, filha minha, que de jeito
Amostrarão
esforço mais que humano,
Que
nunca se verá tão forte peito,
Do
Gangético mar ao Gaditano,
Nem
das Boreais ondas ao Estreito
Que
mostrou o agravado Lusitano,
Posto
que em todo o mundo, de afrontados,
Re[s]sucitassem
todos os passados.»
Como
isto disse, manda o consagrado
Filho
de Maia à Terra, por que tenha
Um
pacífico porto e sossegado,
Pera
onde sem receio a frota venha;
E,
pera que em Mombaça, aventurado,
O
forte Capitão se não detenha,
Lhe
manda mais que em sonhos lhe mostrasse
A
terra onde quieto repousasse.
Já
pelo ar o Cileneu voava;
Com
as asas nos pés à Terra dece;
Sua
vara fatal na mão levava,
Com
que os olhos cansados adormece;
Com
esta, as tristes almas revocava
Do
Inferno, e o vento lhe obedece;
Na
cabeça o galero costumado;
E
destarte a Melinde foi chegado.
Consigo
a Fama leva, por que diga
Do
Lusitano o preço grande e raro,
Que
o nome ilustre a um certo amor obriga,
E
faz, a quem o tem, amado e caro.
Destarte
vai fazendo a gente, amiga,
Co
rumor famosíssimo e perclaro.
Já
Melinde em desejos arde todo
De
ver da gente forte o gesto e modo.
Dali
pera Mombaça logo parte,
Aonde
as naus estavam temerosas,
Pera
que à gente mande que se aparte
Da
barra imiga e terras suspeitosas;
Porque
mui pouco val esforço e arte
Contra
infernais vontades enganosas;
Pouco
val coração, astúcia e siso,
Se
lá dos Céus não vem celeste aviso.
Meio
caminho a noite tinha andado,
E
as Estrelas no Céu, co a luz alheia,
Tinham
largo Mundo alumiado,
E
só co sono a gente se recreia.
O
Capitão ilustre, já cansado
De
vigiar a noite que arreceia,
Breve
repouso antão aos olhos dava,
A
outra gente a quartos vigiava;
Quando
Mercúrio em sonhos lhe aparece,
Dizendo:
- «fuge, fuge, Lusitano,
Da
cilada que o Rei malvado tece,
Por
te trazer ao fim e extremo dano!
Fuge,
que o vento e o Céu te favorece;
Sereno
o tempo tens e o Oceano,
E
outro Rei mais amigo, noutra parte,
Onde
podes seguro agasalhar-te!
«Não
tens aqui senão aparelhado
O
hospício que o cru Diomedes dava,
Fazendo
ser manjar acostumado
De
cavalos a gente que hospedava;
As
aras de Busíris infamado,
Onde
os hóspedes tristes imolava,
Terás
certas aqui, se muito esperas:
Fuge
das gentes pérfidas e feras!
-
«Vai-te ao longo da costa discorrendo
E
outra terra acharás de mais verdade
Lá
quási junto donde o Sol, ardendo,
Iguala
o dia e noite em quantidade;
Ali
tua frota alegre recebendo,
Um
Rei, com muitas obras de amizade,
Gasalhado
seguro te daria
E,
pera a Índia, certa e sábia guia.»
Isto
Mercúrio disse, e o sono leva
Ao
Capitão, que, com mui grande espanto,
Acorda
e vê ferida a escura treva
De
üa súbita luz e raio santo;
E
vendo claro quanto lhe releva
Não
se deter na terra inica tanto,
Com
novo esprito ao mestre seu mandava
Que
as velas desse ao vento que assoprava.
-
«Dai velas (disse) dai ao largo vento,
Que
o Céu nos favorece e Deus o manda;
Que
um mensageiro vi do claro Assento,
Que
só em favor de nossos passos anda.»
Alevanta-se
nisto o movimento
Dos
marinheiros, de üa e de outra banda;
Levam
gritando as âncoras acima,
Mostrando
a ruda força que se estima.
Neste
tempo que as ancoras levavam,
Na
sombra escura os Mouros escondidos
Mansamente
as amarras lhe cortavam,
Por
serem, dando à costa, destruídos;
Mas
com vista de linces vigiavam
Os
Portugueses, sempre apercebidos;
Eles,
como acordados os sentiram,
Voando,
e não remando, lhe fugiram.
Mas
já as agudas proas apartando
Iam
as vias húmidas de argento;
Assopra-lhe
galerno o vento e brando,
Com
suave e seguro movimento.
Nos
perigos passados vão falando,
Que
mal se perderão do pensamento
Os
casos grandes, donde em tanto aperto
A
vida em salvo escapa por acerto.
Tinha
üa volta dado o Sol ardente
E
noutra começava, quando viram
No
longe dous navios, brandamente
Cos
ventos navegando, que respiram.
Porque
haviam de ser da Maura gente,
Pera
eles arribando, as velas viram.
Um,
de temor do mal que arreceava,
Por
se salvar a gente à costa dava.
Não
é o outro que fica tão manhoso,
Mas
nas mãos vai cair do Lusitano,
Sem
o rigor de Marte furioso.
E
sem a fúria horrenda de Vulcano;
Que,
como fosse débil e medroso.
Da
pouca gente o fraco peito humano,
Não
teve resistência; e, se a tivera,
Mais
dano, resistindo, recebera.
E
como o Gama muito desejasse
Piloto
pera a Índia, que buscava,
Cuidou
que entre estes Mouros o tomasse,
Mas
não lhe sucedeu como cuidava;
Que
nenhum deles há que lhe ensinasse
A
que parte dos céus a Índia estava;
Porém
dizem-lhe todos que tem perto
Melinde,
onde acharão piloto certo.
Louvam
do Rei os Mouros a bondade,
Condição
liberal, sincero peito,
Magnificência
grande e humanidade,
Com
partes de grandíssimo respeito.
O
Capitão o assela por verdade,
Porque
já lho dissera deste jeito
O
Cileneu em sonhos; e partia
Pera
onde o sonho e o Mouro lhe dizia.
Era
no tempo alegre, quando entrava
No
roubador de Europa a luz Febeia,
Quando
um e o outro corno lhe aquentava,
E
Flora derramava o de Amalteia;
A
memória do dia renovava
O
pres[s]uroso Sol, que o Céu rodeia,
Em
que Aquele a quem tudo está sujeito
O
selo pôs a quanto tinha feito;
Quando
chegava a frota àquela parte
Onde
o Reino Melinde já se via,
De
toldos adornada e leda de arte
Que
bem mostra estimar o Santo dia.
Treme
a bandeira, voa o estandarte,
A cor
purpúrea ao longe aparecia;
Soam
os atambores e pandeiros;
E
assi entravam ledos e guerreiros.
Enche-se
toda a praia Melindana
Da
gente que vem ver a leda armada,
Gente
mais verdadeira e mais humana
Que
toda a doutra terra atrás deixada.
Surge
diante a frota Lusitana,
Pega
no fundo a âncora pesada;
Mandam
fora um dos Mouros que tomaram,
Por
quem sua vinda ao Rei manifestaram.
O
Rei, que já sabia da nobreza
Que
tanto os Portugueses engrandece,
Tomarem
o seu porto tanto preza
Quanto
a gente fortíssima merece;
E
com verdadeiro ânimo e pureza,
Que
os peitos generosos ennobrece,
Lhe
manda rogar muito que saíssem
Pera
que de seus reinos se servissem.
São
oferecimentos verdadeiros
E
palavras sinceras, não dobradas,
As
que o Rei manda aos nobres cavaleiros
Que
tanto mar e terras têm passadas.
Manda-lhe
mais lanígeros carneiros
E
galinhas domésticas cevadas,
Com
as frutas que antão na terra havia;
E a
vontade à dádiva excedia.
Recebe
o Capitão alegremente
O
mensageiro ledo e seu recado;
E
logo manda ao Rei outro presente,
Que
de longe trazia aparelhado:
Escarlata
purpúrea, cor ardente,
O
ramoso coral, fino e prezado,
Que
debaxo das águas mole crece,
E,
como é fora delas, se endurece.
Manda
mais um, na prática elegante,
Que
co Rei nobre as pazes concertasse
E
que de não sair, naquele instante,
De
suas naus em terra, o desculpasse.
Partido
assi o embaixador prestante,
Como
na terra ao Rei se apresentasse,
Com
estilo que Palas lhe ensinava,
Estas
palavras tais falando orava:
-
«Sublime Rei, a quem do Olimpo puro
Foi
da suma Justiça concedido
Refrear
o soberbo povo duro,
Não
menos dele amado, que temido:
Como
porto mui forte e mui seguro,
De
todo o Oriente conhecido,
Te
vimos a buscar, pera que achemos
Em
ti o remédio certo que queremos.
«Não
somos roubadores que, passando
Pelas
fracas cidades descuidadas,
A
ferro e a fogo as gentes vão matando,
Por
roubar-lhe as fazendas cobiçadas;
Mas,
da soberba Europa navegando,
Imos
buscando as terras apartadas
Da
Índia, grande e rica, por mandado
De
um Rei que temos, alto e sublimado.
«Que
geração tão dura há i de gente,
Que
bárbaro costume e usança feia,
Que
não vedem os portos tão somente,
Mas
inda o hospício da deserta areia?
Que
má tenção, que peito em nós se sente,
Que
de tão pouca gente se arreceia?
Que,
com laços armados, tão fingidos,
Nos
ordenassem ver-nos destruídos?
«Mas
tu, em quem mui certo confiamos
Achar-se
mais verdade, ó Rei benino,
E aquela
certa ajuda em ti esperamos
Que
teve o perdido Ítaco em Alcino,
A
teu porto seguros navegamos,
Conduzidos
do intérprete divino;
Que,
pois a ti nos manda, está mui
Claro
Que és de peito sincero, humano e raro.
«E
não cuides, ó Rei, que não saísse
O
nosso Capitão esclarecido
A
ver-te ou a servir-te, porque visse
Ou
suspeitasse em ti peito fingido;
Mas
saberás que o fez, por que cumprisse
O
regimento, em tudo obedecido,
De
seu Rei, que lhe manda que não saia,
Deixando
a frota, em nenhum porto ou praia.
«E
porque é de vassalos o exercício
Que
os membros têm, regidos da cabeça,
Não
quererás, pois tens de Rei o ofício,
Que
ninguém a seu Rei desobedeça;
Mas
as mercês e o grande benefício
Que
ora acha em ti, promete que conheça
Em
tudo aquilo que ele e os seus puderem,
Enquanto
os rios pera o mar correrem.»
Assi
dizia; e todos juntamente,
Uns
com outros em prática falando,
Louvavam
muito o estâmago da gente
Que
tantos céus e mares vai passando;
E o
Rei ilustre, o peito obediente
Dos
Portugueses na alma imaginando,
Tinha
por valor grande e mui subido
O
do Rei que é tão longe obedecido;
E
com risonha vista e ledo aspeito,
Responde
ao embaixador, que tanto estima:
-
«Toda a suspeita má tirai do peito,
Nenhum
frio temor em vós se imprima,
Que
vosso preço e obras são de jeito
Pera
vos ter o mundo em muita estima;
E
quem vos fez molesto tratamento
Não
pode ter subido pensamento.
«De
não sair em terra toda a gente,
Por
observar a usada preminência,
Ainda
que me pese estranhamente,
Em
muito tenho a muita obediência
Mas,
se lho o regimento não consente,
Nem
eu consentirei que a excelência
De
peitos tão leais em si desfaça,
Só
porque a meu desejo satisfaça.
«Porém,
como a luz crástina chegada
Ao
mundo for, em minhas almadias
Eu
irei visitar a forte armada,
Que
ver tanto desejo há tantos dias.
E,
se vier do mar desbaratada
Do
furioso vento e longas vias,
Aqui
terá de limpos pensamentos
Piloto,
munições e mantimentos.»
Isto
disse; e nas águas se escondia
O
filho de Latona; e o mensageiro,
Co
a embaixada, alegre se partia
Pera
a frota no seu batel ligeiro.
Enchem-se
os peitos todos de alegria,
Por
terem o remédio verdadeiro
Pera
acharem a terra que buscavam;
E
assi ledos a noite festejavam.
Não
faltam ali os raios de artifício,
Os
trémulos cometas imitando;
Fazem
os bombardeiros seu ofício,
O
céu, a terra e as ondas atroando;
Mostra-se
dos Ciclopas o exercício,
Nas
bombas que de fogo estão queimando;
Outros
com vozes com que o céu feriam,
Instrumentos
altíssonos tangiam.
Respondem-lhe
da terra juntamente,
Co
raio volteando com zunido;
Anda
em giros no ar a roda ardente,
Estoira
o pó sulfúreo escondido;
A
grita se alevanta ao céu, da gente;
O
mar se via em fogos acendido
E
não menos a terra; e assi festeja
Um
ao outro, à maneira de peleja.
Mas
já o Céu inquieto, revolvendo,
As
gentes incitava a seu trabalho;
E
já a mãe de Menon, a luz trazendo
Ao
sono longo punha certo atalho;
Iam-se
as sombras lentas desfazendo,
Sobre
as flores da terra em frio orvalho,
Quando
o Rei Melindano se embarcava,
A
ver a frota que no mar estava.
Viam-se
em derredor ferver as praias,
Da
gente que a ver só concorre leda;
Luzem
da fina púrpura as cabaias,
Lustram
os panos da tecida seda.
Em
lugar de guerreiras azagaias
E
do arco que os cornos arremeda
Da
Lüa, trazem ramos de palmeira,
Dos
que vencem, coroa verdadeira.
Um
batel grande e largo, que toldado
Vinha
de sedas de diversas cores,
Traz
o Rei de Melinde, acompanhado
De
nobres de seu Reino e de senhores.
Vem
de ricos vestidos adornado,
Segundo
seus costumes e primores;
Na
cabeça, üa fota guarnecida
De
ouro, e de seda e de algodão tecida;
Cabaia
de Damasco rico e dino,
Da
Tíria cor, entre eles estimada;
Um
colar ao pescoço, de ouro fino,
Onde
a matéria da obra é superada,
Cum
resplandor reluze adamantino;
Na
cinta a rica adaga, bem lavrada;
Nas
alparcas dos pés, em fim de tudo,
Cobrem
ouro e aljôfar ao veludo.
Com
um redondo emparo alto de seda,
Nüa
alta e dourada hástea enxerido,
Um
ministro à solar quentura veda
Que
não ofenda e queime o Rei subido.
Música
traz na proa, estranha e leda,
De
áspero som, horríssono ao ouvido,
De
trombetas arcadas em redondo,
Que,
sem concerto, fazem rudo estrondo.
Não
menos guarnecido, o Lusitano,
Nos
seus batéis, da frota se partia,
A
receber no mar o Melindano,
Com
lustrosa e honrada companhia.
Vestido
o Gama vem ao modo Hispano,
Mas
Francesa era a roupa que vestia,
De
cetim da Adriática Veneza,
Carmesi,
cor que a gente tanto preza;
De
botões d'ouro as mangas vêm tomadas
Onde
o Sol, reluzindo, a vista cega;
As
calças soldadescas, recamadas
Do
metal que Fortuna a tantos nega;
E
com pontas do mesmo, delicadas,
Os
golpes do gibão ajunta e achega;
Ao
Itálico modo a áurea espada;
Pruma
na gorra, um pouco declinada.
Nos
de sua companhia se mostrava
Da
tinta que dá o múrice excelente
A
vária cor, que os olhos alegrava,
E a
maneira do trajo diferente.
Tal
o fermoso esmalte se notava
Dos
vestidos, olhados juntamente,
Qual
aparece o arco rutilante
Da
bela Ninfa, filha de Taumante.
Sonorosas
trombetas incitavam
Os
ânimos alegres, ressoando;
Dos
Mouros os batéis o mar coalhavam,
Os
toldos pelas águas arrojando;
As
bombardas horríssonas bramavam,
Com
as nuvens de fumo o Sol tomando;
Amiúdam-se
os brados acendidos,
Tapam
com as mãos os Mouros os ouvidos.
Já
no batel entrou do Capitão
O
Rei, que nos seus braços o levava;
Ele,
co a cortesia que a razão
(Por
ser Rei) requeria, lhe falava.
Cüas
mostras de espanto e admiração,
O
Mouro o gesto e o modo lhe notava,
Como
quem em mui grande estima tinha
Gente
que de tão longe à Índia vinha.
E
com grandes palavras lhe oferece
Tudo
o que de seus reinos lhe cumprisse,
E
que, se mantimento lhe falece,
Como
se próprio fosse, lho pedisse.
Diz-lhe
mais que por fama bem conhece
A
gente Lusitana, sem que a visse;
Que
já ouviu dizer que noutra terra
Com
gente de sua Lei tivesse guerra;
E
como por toda Africa se soa,
Lhe
diz, os grandes feitos que fizeram
Quando
nela ganharam a coroa
Do
Reino onde as Hespéridas viveram;
E
com muitas palavras apregoa
O
menos que os de Luso mereceram
E o
mais que pela fama o Rei sabia;
Mas
desta sorte o Gama respondia:
-
«Ó tu que, só, tiveste piedade,
Rei
benigno, da gente Lusitana,
Que
com tanta miséria e adversidade
Dos
mares exprimenta a fúria insana:
Aquela
alta e divina Eternidade
Que
o Céu revolve e rege a gente humana,
Pois
que de ti tais obras recebemos,
Te
pague o que nós outros não podemos.
«Tu
só, de todos quantos queima Apolo,
Nos
recebes em paz, do mar profundo;
Em
ti, dos ventos hórridos de Eolo
Refúgio
achamos, bom, fido e jocundo.
Enquanto
apacentar o largo Pólo
As
Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,
Onde
quer que eu viver, com fama e glória
Viverão
teus louvores em memória.»
Isto
dizendo, os barcos vão remando
Pera
a frota, que o Mouro ver deseja;
Vão
as naus üa e üa rodeando,
Por
que de todas tudo note e veja.
Mas
pera o Céu Vulcano fuzilando,
A
frota co as bombardas o festeja
E
as trombetas canoras lhe tangiam;
Cos
anafis os Mouros respondiam.
Mas,
despois de ser tudo já notado
Do
generoso Mouro, que pasmava
Ouvindo
o instrumento inusitado,
Que
tamanho terror em si mostrava,
Mandava
estar quieto e ancorado
N'água
o batel ligeiro que os levava,
Por
falar de vagar co forte Gama
Nas
cousas de que tem notícia e fama.
Em
práticas o Mouro diferentes
Se
deleitava, perguntando agora
Pelas
guerras famosas e excelentes
Co
povo havidas que a Mafoma adora;
Agora
lhe pergunta pelas gentes
De
toda a Hespéria última, onde mora;
Agora,
pelos povos seus vizinhos,
Agora,
pelos húmidos caminhos.
-
«Mas antes, valeroso Capitão,
Nos
conta (lhe dizia), diligente,
Da
terra tua o clima e região
Do
mundo onde morais, distintamente;
E
assi de vossa antiga geração,
E o
princípio do Reino tão potente,
Cos
sucessos das guerras do começo,
Que,
sem sabê-las, sei que são de preço;
«E
assi também nos conta dos rodeios
Longos
em que te traz o Mar irado,
Vendo
os costumes bárbaros, alheios,
Que
a nossa Africa ruda tem criado;
Conta,
que agora vêm cos áureos freios
Os
cavalos que o carro marchetado
Do
novo Sol, da fria Aurora trazem;
O
vento dorme, o mar e as ondas jazem.
«E
não menos co tempo se parece
O
desejo de ouvir-te o que contares;
Que
quem há que por fama não conhece
As
obras Portuguesas singulares?
Não
tanto desviado resplandece
De
nós o claro Sol, pera julgares
Que
os Melindanos têm tão rudo peito
Que
não estimem muito um grande feito.
«Cometeram
soberbos os Gigantes,
Com
guerra vã, o Olimpo claro e puro;
Tentou
Perito e Teseu, de ignorantes,
O
Reino de Plutão, horrendo e escuro.
Se
houve feitos no mundo tão possantes,
Não
menos é trabalho ilustre e duro,
Quanto
foi cometer Inferno e Céu,
Que
outrem cometa a fúria de Nereu.
«Queimou
o sagrado templo de Diana,
Do
sutil Tesifónio fabricado,
Heróstrato,
por ser da gente humana
Conhecido
no mundo e nomeado.
Se
também com tais obras nos engana
O
desejo de um nome aventajado,
Mais
razão há que queira eterna glória
Quem
faz obras tão dinas de memória.».
Canto
III
AGORA
tu, Calíope, me ensina
O
que contou ao Rei o ilustre Gama;
Inspira
imortal canto e voz divina
Neste
peito mortal, que tanto te ama.
Assi
o claro inventor da Medicina,
De
quem Orfeu pariste, ó linda Dama,
Nunca
por Dafne, Clície ou Leucotoe,
Te
negue o amor devido, como soe.
Põe
tu, Ninfa, em efeito meu desejo,
Como
merece a gente Lusitana;
Que
veja e saiba o mundo que do Tejo
O
licor de Aganipe corre e mana.
Deixa
as flores de Pindo, que já vejo
Banhar-me
Apolo na água soberana;
Senão
direi que tens algum receio
Que
se escureça o teu querido Orfeio.
Prontos
estavam todos escuitando
O
que o sublime Gama contaria,
Quando,
despois de um pouco estar cuidando
Alevantando
o rosto, assi dizia:
-
«Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De
minha gente a grão genealogia;
Não
me mandas contar estranha história,
Mas
mandas-me louvar dos meus a glória.
«Que
outrem possa louvar esforço alheio,
Cousa
é que se costuma e se deseja;
Mas
louvar os meus próprios, arreceio
Que
louvor tão suspeito mal me esteja;
E,
pera dizer tudo, temo e creio
Que
qualquer longo tempo curto seja;
Mas,
pois o mandas, tudo se te deve;
Irei
contra o que devo, e serei breve.
«Além
disso, o que a tudo enfim me obriga
É
não poder mentir no que disser,
Porque
de feitos tais, por mais que diga,
Mais
me há-de ficar inda por dizer.
Mas,
porque nisto a ordem leve e siga,
Segundo
o que desejas de saber,
Primeiro
tratarei da larga terra,
Despois
direi da sanguinosa guerra.
«Entre
a Zona que o Cancro senhoreia,
Meta
Setentrional do Sol luzente,
E
aquela que por fria se arreceia
Tanto,
como a do meio por ardente,
Jaz
a soberba Europa, a quem rodeia,
Pela
parte do Arcturo e do Ocidente.
Com
suas salsas ondas o Oceano,
E
pela Austral, o Mar Mediterrano.
Da
parte donde o dia vem nascendo,
Com
Asia se avizinha; mas o rio
Que
dos Montes Rifeios vai correndo
Na
alagoa Meótis, curvo e frio,
As
divide, e o mar que, fero e horrendo,
Viu
dos Gregos o irado senhorio,
Onde
agora de Tróia triunfante
Não
vê mais que a memória o navegante.
«Lá
onde mais debaxo está do Pólo
Os
Montes Hiperbóreos aparecem
E
aqueles onde sempre sopra Eolo,
E
co nome dos sopros se ennobrecem
Aqui
tão pouca força têm de Apolo
Os
raios que no mundo resplandecem,
que
a nEve está contino pelos montes,
Gelado
o mar, geladas sempre as fontes.
«Aqui
dos Citas grande quantidade
Vivem,
que antigamente grande guerra
Tiveram,
sobre a humana antiguidade,
Cos
que tinham antão a Egípcia terra;
Mas
quem tão fora estava da verdade
(Já
que o juízo humano tanto erra),
Pera
que do mais certo se informara,
Ao
campo Damasceno o perguntara.
«Agora
nestas partes se nomeia
A
Lápia fria, a inculta Noruega,
Escandinávia
Ilha, que se arreia
Das
vitórias que Itália não lhe nega.
Aqui,
enquanto as águas não refreia
O
congelado Inverno, se navega
Um
braço do Sarmático Oceano
Pelo
Brús[s]io, Suécio e frio Dano.
«Entre
este Mar e o Tánais vive estranha
Gente,
Rutenos, Moscos e Livónios,
Sármatas
outro tempo; e na montanha
Hircínia
os Marcomanos são Polónios.
Sujeitos
ao Império de Alemanha
São
Saxones, Boémios e Panónios
E
outras várias nações, que o Reno frio
Lava,
e o Danúbio, Amásis e Álbis rio.
«Entre
o remoto Istro e o claro Estreito
Aonde
Hele deixou, co nome, a vida,
Estão
os Traces de robusto peito,
Do
fero Marte pátria tão querida,
Onde,
co Hemo, o Ródope sujeito
Ao
Otomano está, que sometida
Bizâncio
tem a seu serviço indino:
-
Boa injúria do grande Costantino!
«Logo
de Macedónia estão as gentes,
A
quem lava do Áxio a água fria;
E
vós também, ó terras excelentes
Nos
costumes, engenhos e ousadia,
Que
criastes os peitos eloquentes
E
os juízos de alta fantasia,
Com
quem tu, clara Grécia, o Céu penetras,
E
não menos por armas, que por letras.
«Logo
os Dálmatas vivem; e no seio
Onde
Antenor já muros levantou,
A
soberba Veneza está no meio
Das
águas, - que tão baxa começou.
Da
terra um braço vem ao mar, que, cheio
De
esforço, nações várias sujeitou;
Braço
forte, de gente sublimada
Não
menos nos engenhos que na espada.
«Em
torno o cerca o Reino Neptunino,
Cos
muros naturais por outra parte;
Pelo
meio o divide o Apenino,
Que
tão ilustre fez o pátrio Marte;
Mas,
despois que o Porteiro tem divino,
Perdendo
o esforço veio e bélica arte;
Pobre
está já de antiga potestade.
Tanto
Deus se contenta de humildade!
«Gália
ali se verá, que nomeada
Cos
Cesáreos triunfos foi no mundo;
Que
do Séquana e Ródano é regada
E
do Garuna frio e Reno fundo.
Logo
os montes da Ninfa sepultada,
Pirene,
se alevantam, que, segundo
Antiguidades
contam, quando arderam,
Rios
de ouro e de prata antão correram.
«Eis
aqui se descobre a nobre Espanha,
Como
cabeça ali de Europa toda,
Em
cujo senhorio e glória estranha
Muitas
voltas tem dado a fatal roda;
Mas
nunca poderá, com força ou manha,
A
Fortuna inquieta por-lhe noda
Que
lha não tire o esforço e ousadia
Dos
belicosos peitos que em si cria.
«Com
Tingitânia entesta; e ali parece
Que
quer fechar o Mar Mediterrano
Onde
o sabido Estreito se ennobrece
Co
extremo trabalho do Tebano.
Com
nações diferentes se engrandece,
Cercadas
com as ondas do Oceano;
Todas
de tal nobreza e tal valor
Que
qualquer delas cuida que é milhor.
«Tem
o Tarragonês, que se fez claro
Sujeitando
Parténope inquieta;
O
Navarro, as Astúrias, que reparo
Já
foram contra a gente Mahometa;
Tem
o Galego cauto e o grande e raro
Castelhano,
a quem fez o seu Planeta
Restituidor
de Espanha e senhor dela;
Bétis,
Lião, Granada, com Castela.
«Eis
aqui, quási cume da cabeça
De
Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde
a terra se acaba e o mar começa
E
onde Febo repousa no Oceano.
Este
quis o Céu justo que floreça
Nas
armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o
de si fora; e lá na ardente
África
estar quieto o não consente.
«Esta
é a ditosa pátria minha amada,
À
qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne,
com esta empresa já acabada,
Acabe-se
esta luz ali comigo.
Esta
foi Lusitânia, derivada
De
Luso ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos
foram, parece, ou companheiros,
E
nela antão os íncolas primeiros.
«Desta
o pastor nasceu que no seu nome
Se
vê que de homem forte os feitos teve;
Cuja
fama ninguém virá que dome,
Pois
a grande de Roma não se atreve.
Esta,
o Velho que os filhos próprios come,
Por
decreto do Céu, ligeiro e leve,
Veio
a fazer no mundo tanta parte,
Criando-a
Reino ilustre; e foi destarte:
«Um
Rei, por nome Afonso, foi na Espanha,
Que
fez aos Sarracenos tanta guerra,
Que,
por armas sanguinas, força e manha,
A
muitos fez perder a vida e a terra.
Voando
deste Rei a fama estranha
Do
Herculano Calpe à Cáspia Serra,
Muitos,
pera na guerra esclarecer-se,
Vinham
a ele e à morte oferecer-se.
«E
com um amor intrínseco acendidos
Da
Fé, mais que das honras populares,
Eram
de várias terras conduzidos,
Deixando
a pátria amada e próprios lares.
Despois
que em feitos altos e subidos
Se
mostraram nas armas singulares,
Quis
o famoso Afonso que obras tais
Levassem
prémio dino e dões iguais.
«Destes
Anrique (dizem que segundo
Filho
de um Rei de Hungria exprimentado)
Portugal
houve em sorte, que no mundo
Então
não era ilustre nem prezado;
E,
pera mais sinal de amor profundo,
Quis
o Rei Castelhano que casado
Com
Teresa, sua filha, o Conde fosse;
E
com ela das terras tomou posse.
«Este,
despois que contra os descendentes
Da
escrava Agar vitórias grandes teve,
Ganhando
muitas terras adjacentes,
Fazendo
o que a seu forte peito deve,
Em
prémio destes feitos excelentes
Deu-lhe
o supremo Deus, em tempo breve,
Um
filho que ilustrasse o nome ufano
Do
belicoso Reino Lusitano.
«Já
tinha vindo Anrique da conquista
Da
cidade Hierosólima sagrada,
E
do Jordão a areia tinha vista,
Que
viu de Deus a carne em si lavada
(Que,
não tendo Gotfredo a quem resista,
Despois
de ter Judeia sojugada,
Muitos
que nestas guerras o ajudaram
Pera
seus senhorios se tornaram);
«Quando,
chegado ao fim de sua idade,
O
forte e famoso Húngaro estremado,
Forçado
da fatal necessidade,
O
esprito deu a Quem lho tinha dado.
Ficava
o filho em tenra mocidade,
Em
quem o pai deixava seu traslado,
Que
do mundo os mais fortes igualava:
Que
de tal pai tal filho se esperava.
«Mas
o velho rumor - não sei se errado,
Que
em tanta antiguidade não há certeza -
Conta
que a mãe, tomando todo o estado,
Do
segundo himeneu não se despreza.
O
filho órfão deixava deserdado,
Dizendo
que nas terras a grandeza
Do
senhorio todo só sua era,
Porque,
pera casar, seu pai lhas dera.
«Mas
o Príncipe Afonso (que destarte
Se
chamava, do avô tomando o nome),
Vendo-se
em suas terras não ter parte,
Que
a mãe com seu marido as manda e come,
Fervendo-lhe
no peito o duro Marte,
Imagina
consigo como as tome:
Revolvidas
as causas no conceito,
Ao
propósito firme segue o efeito.
«De
Guimarães o campo se tingia
Co
sangue proprio da intestina guerra,
Onde
a mãe, que tão pouco o parecia,
A
seu filho negava o amor e a terra.
Co
ele posta em campo já se via;
E
não vê a soberba o muito que erra
Contra
Deus, contra o maternal amor;
Mas
nela o sensual era maior.
«Ó
Progne crua, ó mágica Medeia!
Se
em vossos próprios filhos vos vingais
Da
maldade dos pais, da culpa alheia,
Olhai
que inda Teresa peca mais!
Incontinência
má, cobiça feia,
São
as causas deste erro principais:
Cila,
por üa mata o velho pai;
Esta,
por ambas, contra o filho vai.
«Mas
já o Príncipe claro o vencimento
Do
padrasto e da inica mãe levava;
Já
lhe obedece a terra, num momento,
Que
primeiro contra ele pelejava;
Porém,
vencido de ira o entendimento,
A
mãe em ferros ásperos atava;
Mas
de Deus foi vingada em tempo breve.
Tanta
veneração aos pais se deve!
«Eis
se ajunta o soberbo Castelhano
Pera
vingar a injúria de Teresa,
Contra
o, tão raro em gente, Lusitano,
A
quem nenhum trabalho agrava ou pesa.
Em
batalha cruel, o peito humano,
Ajudado
da Angélica defesa,
Não
só contra tal fúria se sustenta,
Mas
o inimigo aspérrimo afugenta.
«Não
passa muito tempo, quando o forte
Príncipe
em Guimarães está cercado
De
infinito poder, que desta sorte
Foi
refazer-se o imigo magoado;
Mas,
com se oferecer à dura morte
O
fiel Egas amo, foi livrado;
Que,
de outra arte, pudera ser perdido,
Segundo
estava mal apercebido.
«Mas
o leal vassalo, conhecendo
Que
seu senhor não tinha resistência,
Se
vai ao Castelhano, prometendo
Que
ele faria dar-lhe obediência.
Levanta
o inimigo o cerco horrendo,
Fiado
na promessa e consciência
De
Egas Moniz; mas não consente o peito
Do
moço ilustre a outrem ser sujeito.
«Chegado
tinha o prazo prometido,
Em
que o Rei Castelhano já aguardava
Que
o Príncipe, a seu mando sometido.
Lhe
desse a obediência que esperava.
Vendo
Egas que ficava fementido,
O
que dele Castela não cuidava,
Determina
de dar a doce vida
A
troco da palavra mal cumprida.
«E
com seus filhos e mulher se parte
A
alevantar co eles a fiança,
Descalços
e despidos, de tal arte
Que
mais move a piedade que a vingança.
-
«Se pretendes, Rei alto, de vingar-te
De
minha temerária confiança
(Dizia)
eis aqui venho oferecido
A
te pagar co a vida o prometido
«Vés
aqui trago as vidas inocentes
Dos
filhos sem pecado e da consorte;
Se
a peitos generosos e excelentes
Dos
fracos satisfaz a fera morte,
Vês
aqui as mãos e a língua delinquentes:
Nelas
sós exprimenta toda sorte
De
tormentos, de mortes, pelo estilo
De
Sínis e do touro de Perilo.»
«Qual
diante do algoz o condenado,
Que
já na vida a morte tem bebido,
Põe
no cepo a garganta e já entregado
Espera
pelo golpe tão temido:
Tal
diante do Príncipe indinado
Egas
estava, a tudo oferecido.
Mas
o Rei vendo a estranha lealdade,
Mais
pôde, enfim, que a ira, a piedade.
«Ó
grão fidelidade Portuguesa
De
vassalo, que a tanto se obrigava!
Que
mais o Persa fez naquela empresa
Onde
rosto e narizes se cortava?
Do
que ao grande Dario tanto pesa,
Que
mil vezes dizendo suspirava
Que
mais o seu Zopiro são prezara
Que
vinte Babilónias que tomara.
«Mas
já o Príncipe Afonso aparelhava
O
Lusitano exército ditoso,
Contra
o Mouro que as terras habitava
De
além do claro Tejo deleitoso;
Já
no campo de Ourique se assentava
O
arraial soberbo e belicoso,
Defronte
do inimigo Sarraceno,
Posto
que em força e gente tão pequeno,
«Em
nenhüa outra cousa confiado,
senão
no sumo Deus que o Céu regia,
Que
tão pouco era o povo bautizado,
Que,
pera um só, cem Mouros haveria.
Julga
qualquer juízo sossegado
Por
mais temeridade que ousadia
Cometer
um tamanho ajuntamento,
Que
pera um cavaleiro houvesse cento.
«Cinco
Reis Mouros são os inimigos,
Dos
quais o principal Ismar se chama;
Todos
exprimentados nos perigos
Da
guerra, onde se alcança a ilustre fama.
Seguem
guerreiras damas seus amigos,
Imitando
a fermosa e forte Dama
De
quem tanto os Troianos se ajudaram,
E
as que o Termodonte já gostaram.
«A
matutina luz, serena e fria,
As
Estrelas do Pólo já apartava,
Quando
na Cruz o Filho de Maria,
Amostrando-se
a Afonso, o animava.
Contra
o touro remete, que fiado
Na
força está do corno temeroso;
Ora
pega na orelha, ora no lado,
Latindo
mais ligeiro que forçoso,
Até
que enfim, rompendo-lhe a garganta,
Do
bravo a força horrenda se quebranta:
«Tal
do Rei novo o estâmago acendido
Por
Deus e polo povo juntamente,
O
Bárbaro comete, apercebido
Co
animoso exército rompente.
Levantam
nisto os Perros o alarido
Dos
gritos; tocam a arma, ferve a gente,
As
lanças e arcos tomam, tubas soam,
Instrumentos
de guerra tudo atroam!
«Bem
como quando a flama, que ateada
Foi
nos áridos campos (assoprando
O
sibilante Bóreas), animada
Co
vento, o seco mato vai queimando;
A
pastoral companha, que deitada
Co
doce sono estava, despertando
Ao
estridor do fogo que se ateia,
Recolhe
o fato e foge pera a aldeia:
«Destarte
o Mouro, atónito e Torvado,
Toma
sem tento as armas mui depressa;
Não
foge, mas espera confiado,
E o
ginete belígero arremessa.
O
Português o encontra denodado, Pelos peitos as lanças lhe atravessa;
Uns
caem meios mortos e outros vão
A
ajuda convocando do Alcorão.
«Ali
se vêm encontros temerosos,
Pera
se desfazer üa alta serra,
E
os animais correndo furiosos
Que
Neptuno amostrou, ferindo a terra;
Golpes
se dão medonhos e forçosos;
Por
toda a parte andava acesa a guerra;
Mas
o de Luso arnês, couraça e malha,
Rompe,
corta desfaz abola e talha.
«Cabeças
pelo campo vão saltando,
Braços,
pernas, sem dono e sem sentido,
E
doutros as entranhas palpitando,
Pálida
a cor, o gesto amortecido.
Ele,
adorando Quem lhe aparecia,
Na
Fé todo inflamado assi gritava:
-
«Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis,
E
não a mi, que creio o que podeis!»
«Com
tal milagre os ânimos da gente
Portuguesa
inflamados, levantavam
Por
seu Rei natural este excelente
Príncipe,
que do peito tanto amavam;
E
diante do exército potente
Dos
imigos, gritando, o céu tocavam,
Dizendo
em alta voz: - «Real, real,
Por
Afonso, alto Rei de Portugal!»
«Qual
cos gritos e vozes incitado,
Pela
montanha, o rábido moloso
Já
perde o campo o exército nefando;
Correm
rios do sangue desparzido,
Com
que também do campo a cor se perde,
Tornado
carmesi, de branco e verde.
«Já
fica vencedor o Lusitano,
Recolhendo
os troféus e presa rica;
Desbaratado
e roto o Mauro Hispano
Três
dias o grão Rei no campo fica.
Aqui
pinta no branco escudo ufano,
Que
agora esta vitória certifica,
Cinco
escudos azuis esclarecidos,
Em
sinal destes cinco Reis vencidos.
«E
nestes cinco escudos pinta os trinta
Dinheiros
por que Deus fora vendido,
Escrevendo
a memória, em vária tinta,
Daquele
de Quem foi favorecido.
Em
cada um dos cinco, cinco pinta,
Porque
assi fica o número cumprido,
Contando
duas vezes o do meio,
Dos
cinco azuis que em cruz pintando veio.
«Passado
já algum tempo que passada
Era
esta grão vitória, o Rei subido
A
tomar vai Leiria, que tomada
Fora,
mui pouco havia, do vencido.
Com
esta a forte Arronches sojugada
Foi
juntamente; e o sempre ennobrecido
Scabelicastro,
cujo campo ameno
Tu,
claro Tejo, regas tão sereno.
«A
estas nobres vilas sometidas
Ajunta
também Mafra, em pouco espaço,
E,
nas serras da Lüa conhecidas,
Sojuga
a fria Sintra o duro braço;
Sintra,
onde as Naiades, escondidas
Nas
fontes, vão fugindo ao doce laço
Onde
Amor as enreda brandamente,
Nas
águas acendendo fogo ardente.
«E
tu, nobre Lisboa, que no mundo
Fàcilmente
das outras és princesa,
Que
edificada foste do facundo
Por
cujo engano foi Dardânia acesa;
Tu
a quem obedece o Mar profundo
Obedeceste
à força Portuguesa,
Ajudada
também da forte armada
Que
das Boreais partes foi mandada.
«Lá
do Germânico Álbis e do Reno
E
da fria Bretanha conduzidos,
A
destruir o povo Sarraceno
Muitos
com tenção santa eram partidos.
Entrando
a boca já do Tejo ameno,
Co
arraial do grande Afonso unidos,
Cuja
alta fama antão subia aos céus,
Foi
posto cerco aos muros Ulisseus.
«Cinco
vezes a Lüa se escondera
E
outras tantas mostrara cheio o rosto,
Quando
a cidade, entrada, se rendera
Ao
duro cerco que lhe estava posto
Foi
a batalha tão sanguina e fera
Quanto
obrigava o firme pros[s]uposto
De
vencedores ásperos e ousados
E
de vencidos já desesperados.
«Destarte,
enfim, tomada se rendeu
Aquela
que, nos tempos já passados,
À
grande força nunca obedeceu
Dos
frios povos Cíticos ousados,
Cujo
poder a tanto se estendeu
Que
o Ibero o viu e o Tejo amedrontados;
E,
enfim, co Bétis tanto alguns puderam
Que
à terra, de Vandália nome deram.
«Que
cidade tão forte porventura
Haverá
que resista, se Lisboa
Não
pôde resistir à força dura
Da
gente cuja fama tanto voa?
Já
lhe obedece toda a Estremadura,
Óbidos,
Alanquer, por onde soa
O
tom das frescas águas entre as pedras,
Que
murmurando lava, e Torres Vedras.
«E
vós também, ó terras Transtaganas,
Afamadas
co dom da flava Ceres,
Obedeceis
às forças mais que humanas,
Entregando-lhe
os muros e os poderes;
E
tu, lavrador Mouro, que te enganas,
Se
sustentar a fértil terra queres:
Que
Elvas e Moura e Serpa, conhecidas,
E
Alcáçare do Sal estão rendidas.
«Eis
a nobre cidade, certo assento
Do
rebelde Sertório antigamente,
Onde
ora as águas nítidas de argento
Vêm
sustentar de longo a terra e a gente
Pelos
arcos reais, que, cento e cento,
Nos
ares se alevantam nobremente,
Obedeceu
por meio e ousadia
De
Giraldo, que medos não temia.
«Já
na cidade Beja vai tomar
Vingança
de Trancoso destruída
Afonso,
que não sabe sossegar,
Por
estender co a fama a curta vida.
Não
se lhe pode muito sustentar
A
cidade; mas, sendo já rendida,
Em
toda a cousa viva a gente irada
Provando
os fios vai da dura espada.
«Com
estas sojugada foi Palmela
E a
piscosa Sesimbra e, juntamente,
Sendo
ajudado mais de sua estrela,
Desbarata
um exército potente
(Sentiu-o
a vila e viu-o a serra dela),
Que
a socorrê-la vinha diligente
Pela
fralda da serra, descuidado
Do
temeroso encontro inopinado.
«O
Rei de Badajoz era, alto Mouro,
Com
quatro mil cavalos furiosos,
Inúmeros
peões, de armas e de ouro
Guarnecidos,
guerreiros e lustrosos;
Mas,
qual no mês de Maio o bravo touro,
Cos
ciúmes da vaca, arreceosos,
Sentindo
gente, o bruto e cego amante
Salteia
o descuidado caminhante:
«Destarte
Afonso, súbito mostrado,
Na
gente dá, que passa bem segura;
Fere,
mata, derriba, denodado;
Foge
o Rei Mouro e só da vida cura;
Dum
pânico terror todo assombrado,
Só
de segui-lo o exército procura;
Sendo
estes que fizeram tanto abalo
Nô
mais que só sessenta de cavalo.
«Logo
segue a vitória, sem tardança,
O
grão Rei incansábil, ajuntando
Gentes
de todo o Reino, cuja usança
Era
andar sempre terras conquistando.
Cercar
vai Badajoz e logo alcança
O
fim de seu desejo, pelejando
Com
tanto esforço e arte e valentia,
Que
a fez fazer às outras companhia.
«Mas
o alto Deus, que pera longe guarda
O
castigo daquele que o merece,
Ou
pera que se emende, às vezes tarda,
Ou
por segredos que homem não conhece
Se
até qui sempre o forte Rei resguarda
Dos
perigos a que ele se oferece,
Agora
lhe não deixa ter defesa
Da
maldição da mãe que estava presa:
«Que,
estando na cidade que cercara,
Cercado
nela foi dos Lioneses,
Porque
a conquista dela lhe tomara,
De
Lião sendo, e não dos Portugueses.
A
pertinácia aqui lhe custa cara,
Assi
como acontece muitas vezes,
Que
em ferros quebra as pernas, indo aceso
À
batalha, onde foi vencido e preso.
«Ó
famoso Pompeio, não te pene
De
teus feitos ilustres a ruína,
Nem
ver que a justa Némesis ordene
Ter
teu sogro de ti vitória dina,
Posto
que o frio Fásis ou Siene,
Que
pera nenhum cabo a sombra inclina,
O
Bootes gelado e a linha ardente
Temessem
o teu nome geralmente.
«Posto
que a rica Arábia e que os feroces
Heníocos
e Colcos, cuja fama
O
Véu dourado estende, e os Capadoces
E
Judeia, que um Deus adora e ama,
E
que os moles Sofenos e os atroces
Cilícios,
com a Arménia, que derrama
As
águas dos dous rios cuja fonte
Está
noutro mais alto e santo monte,
«E
posto, enfim, que desd'o mar de Atlante
Até
o Cítico Tauro, monte erguido,
Já
vencedor te vissem, não te espante
Se
o campo Emátio só te viu vencido;
Porque
Afonso verás, soberbo e ovante,
Tudo
render e ser despois rendido.
Assi
o quis o Conselho alto, celeste,
Que
vença o sogro a ti e o genro a este!
«Tornado
o Rei sublime, finalmente,
Do
divino Juízo castigado;
Despois
que em Santarém soberbamente,
Em
vão, dos Sarracenos foi cercado,
E
despois que do mártire Vicente
O
santíssimo corpo venerado
Do
Sacro Promontório conhecido
À
cidade Ulisseia foi trazido;
«Por
que levasse avante seu desejo,
Ao
forte filho manda o lasso velho
Que
às terras se passasse d'Alentejo,
Com
gente e co belígero aparelho.
Sancho,
d'esforço e d'ânimo sobejo,
Avante
passa e faz correr vermelho
O
rio que Sevilha vai regando,
Co
sangue Mauro, bárbaro e nefando.
«E,
com esta vitória cobiçoso,
Já
não descansa o moço, até que veja
Outro
estrago como este, temeroso,
No
Bárbaro que tem cercado Beja.
Não
tarda muito o Príncipe ditoso
Sem
ver o fim daquilo que deseja.
Assi
estragado, o Mouro na vingança
De
tantas perdas põe sua esperança.
«Já
se ajuntam do monte a quem Medusa
O
corpo fez perder que teve o Céu;
Já
vêm do promontório de Ampelusa
E
do Tinge, que assento foi de Anteu.
O
morador de Abila não se escusa,
Que
também com suas armas se moveu,
Ao
som da Mauritana e ronca tuba,
Todo
o Reino que foi do nobre Juba.
«Entrava,
com toda esta companhia,
O
Miralmomini em Portugal;
Treze
Reis mouros leva de valia,
Entre
os quais tem o ceptro Imperial.
E
assi, fazendo quanto mal podia,
O
que em partes podia fazer mal,
Dom
Sancho vai cercar em Santarém;
Porém
não lhe sucede muito bem.
«Dá-lhe
combates ásperos, fazendo
Ardis
de guerra mil, o Mouro iroso;
Não
lhe aproveita já trabuco horrendo,
Mina
secreta, aríete forçoso;
Porque
o filho de Afonso, não perdendo
Nada
do esforço e acordo generoso,
Tudo
provê com ânimo e prudência,
Que
em toda a parte há esforço e resistência.
«Mas
o velho, a quem tinham já obrigado
Os
trabalhosos anos ao sossego,
Estando
na cidade cujo prado
Enverdecem
as águas do Mondego,
Sabendo
como o filho está cercado,
Em
Santarém, do Mauro povo cego,
Se
parte diligente da cidade;
Que
não perde a presteza co a idade.
«E
co a famosa gente, à guerra usada,
Vai
socorrer o filho; e assi ajuntados,
A
Portuguesa fúria costumada
Em
breve os Mouros tem desbaratados.
A
campina, que toda está coalhada
De
marlotas, capuzes variados,
De
cavalos, jaezes, presa rica,
De
seus senhores mortos cheia fica.
«Logo
todo o restante se partiu
De
Lusitânia, postos em fugida;
O
Miralmomini só não fugiu,
Porque,
antes de fugir, lhe foge a vida.
A
Quem lhe esta vitória permitiu
Dão
louvores e graças sem medida;
Que,
em casos tão estranhos, claramente
Mais
peleja o favor de Deus que a gente.
«De
tamanhas vitórias triunfava
O
velho Afonso, Príncipe subido,
Quando
quem tudo enfim vencendo andava,
Da
larga e muita idade foi vencido.
A
pálida doença lhe tocava,
Com
fria mão, o corpo enfraquecido;
E
pagaram seus anos, deste jeito,
À
triste Libitina seu direito.
«Os
altos promontórios o choraram,
E
dos rios as águas saüdosas
Os
semeados campos alagaram,
Com
lágrimas correndo piadosas;
Mas
tanto pelo mundo se alargaram,
Com
fama suas obras valerosas,
Que
sempre no seu reino chamarão
«Afonso!
Afonso!» os ecos; mas em vão.
«Sancho,
forte mancebo, que ficara
Imitando
seu pai na valentia,
E
que em sua vida já se exprimentara
Quando
o Bétis de sangue se tingia
E o
bárbaro poder desbaratara
Do
Ismaelita Rei de Andaluzia,
E
mais quando os que Beja em vão cercaram
Os
golpes de seu braço em si provaram;
«Despois
que foi por Rei alevantado,
Havendo
poucos anos que reinava,
A
cidade de Silves tem cercado,
Cujos
campos o Bárbaro lavrava.
Foi
das valentes gentes ajudado
Da
Germânica armada que passava,
De
armas fortes e gente apercebida,
A
recobrar Judeia já perdida.
«Passavam
a ajudar na santa empresa
O
roxo Federico, que moveu
O
poderoso exército, em defesa
Da
cidade onde Cristo padeceu,
Quando
Guido, co a gente em sede acesa,
Ao
grande Saladino se rendeu,
No
lugar onde aos Mouros sobejavam
As
águas que os de Guido desejavam.
«Mas
a fermosa armada, que viera
Por
contraste de vento àquela parte,
Sancho
quis ajudar na guerra fera,
Já
que em serviço vai do santo Marte.
Assi
como a seu pai acontecera
Quando
tomou Lisboa, da mesma arte
Do
Germano ajudado, Silves toma
E o
bravo morador destrui e doma.
«E
se tantos troféus do Mahometa
Alevantando
vai, também do forte
Lionês
não consente estar quieta
A
terra, usada aos casos de Mavorte,
Até
que na cerviz seu jugo meta
Da
soberba Tuí, que a mesma sorte
Viu
ter a muitas vilas suas vizinhas,
Que
por armas tu, Sancho, humildes tinhas.
«Mas,
entre tantas palmas salteado
Da
temerosa morte, fica herdeiro
Um
filho seu, de todos estimado,
Que
foi segundo Afonso e Rei terceiro.
No
tempo deste, aos Mauros foi tomado
Alcáçare
do Sal, por derradeiro;
Porque
dantes os Mouros o tomaram,
Mas
agora estruídos o pagaram.
Morto
despois Afonso, lhe sucede
Sancho
segundo, manso e descuidado;
Que
tanto em seus descuidos se desmede
Que
de outrem quem mandava era mandado.
De
governar o Reino, que outro pede,
Por
causa dos privados foi privado,
Porque,
como por eles se regia,
Em
todos os seus vícios consentia.
«Não
era Sancho, não, tão desonesto
Como
Nero, que um moço recebia
Por
mulher e, despois, horrendo incesto
Com
a mãe Agripina cometia;
Nem
tão cruel às gentes e molesto
Que
a cidade queimasse onde vivia;
Nem
tão mau como foi Heliogabalo,
Nem
como o mole Rei Sardanapalo.
«Nem
era o povo seu tiranizado,
Como
Sicília foi de seus tiranos;
Nem
tinha, como Fálaris, achado
Género
de tormentos inumanos;
Mas
o Reino, de altivo e costumado
A
senhores em tudo soberanos,
A
Rei não obedece nem consente
Que
não for mais que todos excelente.
«Por
esta causa, o Reino governou
O
Conde Bolonhês, despois alçado
Por
Rei, quando da vida se apartou
Seu
irmão Sancho, sempre ao ócio dado.
Este,
que Afonso o Bravo se chamou,
Despois
de ter o Reino segurado,
Em
dilatá-lo cuida, que em terreno
Não
cabe o altivo peito, tão pequeno.
«Da
terra dos Algarves, que lhe fora
Em
casamento dada, grande parte
Recupera
co braço, e deita fora
O
Mouro, mal querido já de Marte.
Este
de todo fez livre e senhora
Lusitânia,
com força e bélica arte,
E
acabou de oprimir a nação forte,
Na
terra que aos de Luso coube em sorte.
«Eis
despois vem Dinis, que bem parece
Do
bravo Afonso estirpe nobre e dina,
Com
quem a fama grande se escurece
Da
liberalidade Alexandrina.
Co
este o Reino próspero florece
(Alcançada
já a paz áurea divina)
Em
constituições, leis e costumes,
Na
terra já tranquila claros lumes.
«Fez
primeiro em Coimbra exercitar-se
O
valeroso ofício de Minerva;
E
de Helicona as Musas fez passar-se
A
pisar de Mondego a fértil erva.
Quanto
pode de Atenas desejar-se
Tudo
o soberbo Apolo aqui reserva.
Aqui
as capelas dá tecidas de ouro,
Do
bácaro e do sempre verde louro.
«Nobres
vilas de novo edificou,
Fortalezas,
castelos mui seguros,
E
quási o Reino todo reformou
Com
edifícios grandes e altos muros;
Mas
despois que a dura Átropos cortou
O
fio de seus dias já maduros,
Ficou-lhe
o filho pouco obediente,
Quarto
Afonso, mas forte e excelente.
«Este
sempre as soberbas Castelhanas
Co
peito desprezou firme e sereno,
Porque
não é das forças Lusitanas
Temer
poder maior, por mais pequeno;
Mas
porém, quando as gentes Mauritanas,
A
possuir o Hespérico terreno,
Entraram
pelas terras de Castela,
Foi
o soberbo Afonso a socorrê-la.
«Nunca
com Semirâmis gente tanta
Veio
os campos Idáspicos enchendo,
Nem
Átila, que Itália toda espanta,
Chamando-se
de Deus açoute horrendo,
Gótica
gente trouxe tanta, quanta
Do
Sarraceno bárbaro, estupendo,
Co
poder excessivo de Granada,
Foi
nos campos Tartés[s]ios ajuntada.
«E,
vendo o Rei sublime Castelhano
A
força inexpugnábil, grande e forte,
Temendo
mais o fim do povo Hispano,
Já
perdido üa vez, que a própria morte,
Pedindo
ajuda ao forte Lusitano
Lhe
mandava a caríssima consorte,
Mulher
de quem a manda e filha amada
Daquele
a cujo Reino foi mandada.
«Entrava
a fermosíssima Maria
Polos
paternais paços sublimados,
Lindo
o gesto, mas fora de alegria,
E
os seus olhos em lágrimas banhados;
Os
cabelos angélicos trazia
Pelos
ebúrneos ombros espalhados.
Diante
do pai ledo, que a agasalha,
Estas
palavras tais, chorando, espalha:
-
«Quantos povos a terra produziu
De
Africa toda, gente fera e estranha,
O
grão Rei de Marrocos conduziu
Pera
vir possuir a nobre Espanha:
Poder
tamanho junto não se viu
Despois
que o salso mar a terra banha
Trazem
ferocidade e furor tanto
Que
a vivos medo e a mortos faz espanto!
«Aquele
que me deste por marido,
Por
defender sua terra amedrontada,
Co
pequeno poder, oferecido
Ao
duro golpe está da Maura espada;
E,
se não for contigo socorrido,
Ver-me-ás
dele e do Reino ser privada;
Viúva
e triste e posta em vida escura,
Sem
marido, sem Reino e sem ventura.
«Portanto,
ó Rei, de quem com puro medo
O
corrente Muluca se congela,
Rompe
toda a tardança, acude cedo
À
miseranda gente de Castela.
Se
esse gesto, que mostras claro e ledo,
De
pai o verdadeiro amor assela,
Acude
e corre, pai, que, se não corres,
Pode
ser que não aches quem socorres.»
«Não
de outra sorte a tímida Maria
Falando
está que a triste Vénus, quando
A
Júpiter, seu pai, favor pedia
Pera
Eneias, seu filho, navegando;
Que
a tanta piedade o comovia
Que,
caído das mãos o raio infando,
Tudo
o clemente Padre lhe concede,
Pesando-lhe
do pouco que lhe pede.
«Mas
já cos esquadrões da gente armada
Os
Eborenses campos vão coalhados;
Lustra
co Sol o arnês, a lança, a espada;
Vão
rinchando os cavalos jaezados;
A
canora trombeta embandeirada
Os
corações, à paz acostumados,
Vai
às fulgentes armas incitando,
Polas
concavidades retumbando
«Entre
todos no meio se sublima,
Das
insígnias Reais acompanhado,
O
valeroso Afonso, que por cima
De
todos leva o colo alevantado,
E
sòmente co gesto esforça e anima
A
qualquer coração amedrontado.
Assi
entra nas terras de Castela
Com
a filha gentil, Rainha dela.
«Juntos
os dous Afonsos, finalmente
Nos
campos de Tarifa estão defronte
Da
grande multidão da cega gente,
Pera
quem são pequenas campo e monte.
Não
há peito tão alto e tão potente
Que
de desconfiança não se afronte,
Enquanto
não conheça e claro veja
Que
co braço dos seus Cristo peleja.
«Estão
de Agar os netos quási rindo
Do
poder dos Cristãos, fraco e pequeno,
As
terras como suas repartindo,
Antemão,
entre o exército Agareno,
Que,
com título falso, possuindo
Está
o famoso nome Sarraceno.
Assi
também, com falsa conta e nua,
À
nobre terra alheia chamam sua.
«Qual
o membrudo e bárbaro Gigante,
Do
Rei Saul, com causa tão temido,
Vendo
o Pastor inerme estar diante,
Só
de pedras e esforço apercebido,
Com
palavras soberbas, o arrogante,
Despreza
o fraco moço mal vestido,
Que,
rodeando a funda, o desengana
(Quanto
mais pode a Fé que a força humana!)
«Destarte
o Mouro pérfido despreza
O
poder dos Cristãos, e não entende
Que
está ajudado da alta Fortaleza
A
quem o Inferno horrífico se rende.
Co
ela o Castelhano, e com destreza,
De
Marrocos o Rei comete e ofende;
O
Português, que tudo estima em nada,
Se
faz temer ao Reino de Granada.
«Eis
as lanças e espadas retiniam
Por
cima dos arneses - bravo estrago! -;
Chamam
(segundo as Leis que ali seguiam),
Uns
Mafamede e os outros Santiago.
Os
feridos com grita o céu feriam,
Fazendo
de seu sangue bruto lago,
Onde
outros, meios mortos, se afogavam,
Quando
do ferro as vidas escapavam.
«Com
esforço tamanho estrui e mata
O
Luso ao Granadil, que em pouco espaço
Totalmente
o poder lhe desbarata,
Sem
lhe valer defesa ou peito de aço.
De
alcançar tal vitória tão barata
Índa
não bem contente o forte braço,
Vai
ajudar ao bravo Castelhano,
Que
pelejando está co Mauritano.
«Já
se ia o Sol ardente recolhendo
Pera
a casa de Tétis, e inclinado
Pera
o Ponente, o véspero trazendo,
Estava
o claro dia memorado,
Quando
o poder do Mauro, grande e horrendo,
Foi
pelos fortes Reis desbaratado,
Com
tanta mortindade que a memória
Nunca
no mundo viu tão grão vitória.
«Não
matou a quarta parte o forte Mário
Dos
que morreram neste vencimento,
Quando
as águas co sangue do adversário
Fez
beber ao exército sedento;
Nem
o Peno, asperíssimo contrário
Do
Romano poder, de nascimento,
Quando
tantos matou da ilustre Roma,
Que
alqueires três de anéis dos mortos toma.
«E
se tu tantas almas só pudeste
Mandar
ao Reino escuro de Cocito,
Quando
a santa Cidade desfizeste
Do
povo pertinaz no antigo rito,
Permissão
e vingança foi celeste,
E
não força de braço, ó nobre Tito,
Que
assi dos Vates foi profetizado
E
despois por JESU certificado.
«Passada
esta tão prospera vitória,
Tornado
Afonso à Lusitana terra,
A
se lograr da paz com tanta glória
Quanta
soube ganhar na dura guerra,
O
caso triste, e dino da memória
Que
do sepulcro os homens desenterra.
Aconteceu
da mísera e mesquinha
Que
despois de ser morta foi Rainha.
«Tu
só, tu, poro Amor, com força crua,
Que
os corações humanos tanto obriga,
Deste
causa à molesta morte sua,
Como
se fora pérfida inimiga.
Se
dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem
com lágrimas tristes se mitiga,
É
porque queres, áspero e tirano,
Tuas
aras banhar em sangue humano.
«Estavas,
linda lnês, posta em sossego,
De
teus anos colhendo doce fruto,
Naquele
engano da alma, ledo e cego,
Que
a Fortuna não deixa durar muito,
Nos
saüdosos campos do Mondego,
De
teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos
montes ensinando e às ervinhas
O
nome que no peito escrito tinhas.
«Do
teu Príncipe ali te respondiam
As
lembranças que na alma lhe moravam,
Que
sempre ante seus olhos te traziam,
Quando
dos teus fermosos se apartavam;
De
noite, em doces sonhos que mentiam,
De
dia, em pensamentos que voavam;
E
quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram
tudo memórias de alegria.
«De
outras belas senhoras e Princesas
Os
desejados tálamos enjeita,
Que
tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas
Quando
um gesto suave te sujeita.
Vendo
estas namoradas estranhezas,
O
velho pai sesudo, que respeita
O
murmurar do povo e a fantasia
Do
filho, que casar-se não queria,
«Tirar
Inês ao mundo determina,
Por
lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo
co sangue só da morte indina
Matar
do firme amor o fogo aceso.
Que
furor consentiu que a espada fina
Que
pôde sustentar o grande peso
Do
furor Mauro, fosse alevantada
Contra
üa fraca dama delicada?
«Traziam-a
os horríficos algozes
Ante
o Rei, já movido a piedade;
Mas
o povo, com falsas e ferozes
Razões,
à morte crua o persuade.
Ela,
com tristes e piedosas vozes,
Saídas
só da mágoa e saüdade
Do
seu Príncipe e filhos, que deixava,
Que
mais que a própria morte a magoava,
«Pera
o céu cristalino alevantando,
Com
lágrimas, os olhos piedosos
(Os
olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um
dos duros ministros rigorosos);
E
despois nos mininos atentando,
Que
tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja
orfindade como mãe temia,
Pera
o avô cruel assi dizia:
«Se
já nas brutas feras, cuja mente
Natura
fez cruel de nascimento,
E
nas aves agrestes, que somente
Nas
rapinas aéreas têm o intento,
Com
pequenas crianças viu a gente
Terem
tão piadoso sentimento
Como
co a mãe de Nino já mostraram,
E
cos irmãos que Roma edificaram:
«Ó
tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se
de humano é matar üa donzela,
Fraca
e sem força, só por ter subjeito
O
coração a quem soube vencê-la),
A
estas criancinhas tem respeito,
Pois
o não tens à morte escura dela;
Mova-te
a piedade sua e minha,
Pois
te não move a culpa que não tinha.
«E
se, vencendo a Maura resistência,
A
morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe
também dar vida com clemência
A
quem pera perdê-la não fez erro.
Mas,
se to assi merece esta inocência,
Põe-me
em perpétuo e mísero desterro,
Na
Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde
em lágrimas viva eternamente.
«Põe-me
onde se use toda a feridade,
Entre
liões e tigres, e verei
Se
neles achar posso a piedade
Que
entre peitos humanos não achei.
Ali,
co amor intrínseco e vontade
Naquele
por quem mouro, criarei
Estas
relíquias suas, que aqui viste,
Que
refrigério sejam da mãe triste.»
Queria
perdoar-lhe o Rei benino,
Movido
das palavras que o magoam;
Mas
o pertinaz povo e seu destino
(Que
desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam
das espadas de aço fino
Os
que por bom tal feito ali apregoam.
Contra
üa dama, ó peitos carniceiros,
Feros
vos amostrais - e cavaleiros?
«Qual
contra a linda moça Policena,
Consolação
extrema da mãe velha,
Porque
a sombra de Aquiles a condena,
Co
ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas
ela, os olhos com que o ar serena
(Bem
como paciente e mansa ovelha)
Na
mísera mãe postos, que endoudece,
Ao
duro sacrifício se oferece:
«Tais
contra Inês os brutos matadores,
No
colo de alabastro, que sustinha
As
obras com que Amor matou de amores
Aquele
que despois a fez Rainha,
As
espadas banhando, e as brancas flores,
Que
ela dos olhos seus regadas tinha,
Se
encarniçavam, férvidos e irosos
No
futuro castigo não cuidosos.
«Bem
puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus
raios apartar aquele dia,
Como
da seva mesa de Tiestes,
Quando
os filhos por mão de Atreu comia!
Vós,
ó côncavos vales, que pudestes
A
voz extrema ouvir da boca fria,
O
nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por
muito grande espaço repetistes!
«Assi
como a bonina, que cortada
Antes
do tempo foi, cândida e bela,
Sendo
das mãos lacivas maltratada
Da
minina que a trouxe na capela,
O
cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal
está, morta, a pálida donzela,
Secas
do rosto as rosas e perdida
A
branca e viva cor, co a doce vida.
«As
filhas do Mondego a morte escura
Longo
tempo chorando memoraram,
E,
por memória eterna, em fonte pura
As
lágrimas choradas transformaram.
O
nome lhe puseram, que inda dura,
Dos
amores de Inês, que ali passaram.
Vede
que fresca fonte rega as flores,
Que
lágrimas são a água e o nome Amores!
«Não
correu muito tempo que a vingança
Não
visse Pedro das mortais feridas,
Que,
em tomando do Reino a governança,
A
tomou dos fugidos homicidas;
Do
outro Pedro cruíssimo os alcança,
Que
ambos, imigos das humanas vidas,
O
concerto fizeram, duro e injusto,
Que
com Lépido e António fez Augusto.
«Este,
castigador foi rigoroso
De
latrocínios, mortes e adultérios;
Fazer
nos maus cruezas, fero e iroso,
Eram
os seus mais certos refrigérios.
As
cidades guardando, justiçoso,
De
todos os soberbos vitupérios,
Mais
ladrões, castigando, à morte deu,
Que
o vagabundo Alcides ou Teseu.
«Do
justo e duro Pedro nasce o brando
(Vede
da natureza o desconcerto!),
Remisso
e sem cuidado algum, Fernando,
Que
todo o Reino pôs em muito aperto;
Que,
vindo o Castelhano devastando
Às
terras sem defesa, esteve perto
De
destruir-se o Reino totalmente;
Que
um fraco Rei faz fraca a forte gente.
«Ou
foi castigo claro do pecado
De
tirar Lianor a seu marido
E
casar-se com ela, de enlevado
Num
falso parecer mal entendido,
Ou
foi que o coração, sujeito e dado
Ao
vício vil, de quem se viu rendido,
Mole
se fez e fraco; e bem parece
Que
um baxo amor os fortes enfraquece.
«Do
pecado tiveram sempre a pena
Muitos,
que Deus o quis e permitiu:
Os
que foram roubar a bela Helena,
E
com Ápio também Tarquino o viu.
Pois
por quem David Santo se condena?
Ou
quem o Tribo ilustre destruiu
De
Benjamim? Bem claro no-lo ensina
Por
Sarra Faraó, Siquém por Dina.
«E
pois, se os peitos fortes enfraquece
Um
inconcesso amor desatinado,
Bem
no filho de Almena se parece
Quando
em Ônfale andava transformado.
De
Marco António a fama se escurece
Com
ser tanto a Cleópatra afeiçoado.
Tu
também, Peno próspero, o sentiste
Despois
que üa moça vil na Apúlia viste.
«Mas
quem pode livrar-se, porventura,
Dos
laços que Amor arma brandamente
Entre
as rosas e a neve humana pura,
O
ouro e o alabastro transparente?
Quem,
de üa peregrina fermosura,
De
um vulto de Medusa propriamente,
Que
o coração converte, que tem preso,
Em
pedra, não, mas em desejo aceso?
«Quem
viu um olhar seguro, um gesto brando,
üa
suave e angélica excelência,
Que
em si está sempre as almas transformando,
Que
tivesse contra ela resistência?
Desculpado
por certo está Fernando,
Pera
quem tem de amor experiência;
Mas
antes, tendo livre a fantasia,
Por
muito mais culpado o julgaria.
Canto
IV
DESPOIS
de procelosa tempestade,
Nocturna
sombra e sibilante vento,
Traz
a manhã serena claridade,
Esperança
de porto e salvamento;
Aparta
o Sol a negra escuridade,
Removendo
o temor ao pensamento:
Assi
no Reino forte aconteceu
Despois
que o Rei Fernando faleceu.
«Porque,
se muito os nossos desejaram
Quem
os danos e ofensas vá vingando
Naqueles
que tão bem se aproveitaram
Do
descuido remisso de Fernando,
Despois
de pouco tempo o alcançaram,
Joane,
sempre ilustre, alevantando
Por
Rei, como de Pedro único herdeiro
(Ainda
que bastardo) verdadeiro.
«Ser
isto ordenação dos Céus divina
Por
sinais muito claros se mostrou~
Quando
em Évora a voz de üa minina,
Ante
tempo falando, o nomeou.
E,
como causa, enfim, que o Céu destina,
No
berço o corpo e a voz alevantou:
-
«Portugal, Portugal (alçando a mão,
Disse)
polo Rei novo, Dom João!»
«Alteradas
então do Reino as gentes
Co
ódio que ocupado os peitos tinha,
Absolutas
cruezas e evidentes
Faz
do povo o furor, por onde vinha;
Matando
vão amigos e parentes
Do
adúltero Conde e da Rainha,
Com
quem sua incontinência desonesta
Mais
(despois de viúva) manifesta.
«Mas
ele, enfim, com causa desonrado,
Diante
dela a ferro frio morre,
De
outros muitos na morte acompanhado,
Que
tudo o fogo erguido queima e corre:
Quem,
como Astianás, precipitado,
Sem
lhe valerem ordens, de alta torre;
A
quem ordens, nem aras, nem respeito;
Quem
nu por ruas, e em pedaços feito.
«Podem-se
pôr em longo esquecimento
As
cruezas mortais que Roma viu,
Feitas
do feroz Mário e do cruento
Cila,
quando o contrário lhe fugiu.
Por
isso Lianor, que o sentimento
Do
morto Conde ao mundo descobriu,
Faz
contra Lusitânia vir Castela,
Dizendo
ser sua filha herdeira dela.
«Beatriz
era a filha, que casada
Co
Castelhano está que o Reino pede,
Por
filha de Fernando reputada,
Se
a corrompida fama lho concede.
Com
esta voz Castela alevantada,
Dizendo
que esta filha ao pai sucede,
Suas
forças ajunta, pera as guerras,
De
várias regiões e várias terras.
«Vêm
de toda a província que de um Brigo
(Se
foi) já teve o nome derivado;
Das
terras que Fernando e que Rodrigo
Ganharam
do tirano e Mauro estado.
Não
estimam das armas o perigo
Os
que cortando vão co duro arado
Os
campos Lioneses, cuja gente
Cos
Mouros foi nas armas excelente.
«Os
Vândalos, na antiga valentia
Ainda
confiados, se ajuntavam
Da
cabeça de toda Andaluzia,
Que
do Guadalquibir as águas lavam.
A
nobre Ilha também se apercebia
Que
antigamente os Tírios habitavam,
Trazendo
por insígnias verdadeiras
As
Hercúleas colunas nas bandeiras.
«Também
vêm lá do Reino de Toledo,
Cidade
nobre e antiga, a quem cercando
O
Tejo em torno vai, suave e ledo,
Que
das serras de Conca vem manando.
A
vós outros também não tolhe o medo
Ó
sórdidos Galegos, duro bando,
Que,
pera resistirdes, vos armastes,
Àqueles
cujos golpes já provastes.
«Também
movem da guerra as negras fúrias
A
gente Bizcainha, que carece
De
polidas razões, e que as injúrias
Muito
mal dos estranhos compadece.
A
terra de Guipúscua e das Astúrias,
Que
com minas de ferro se ennobrece,
Armou
dele os soberbos moradores,
Pera
ajudar na guerra a seus senhores.
«Joane,
a quem do peito o esforço crece,
Como
a Sansão Hebreio da guedelha,
Posto
que tudo pouco lhe parece,
Cos
poucos do seu Reino se aparelha;
E,
não porque conselho lhe falece,
Cos
principais senhores se aconselha,
Mas
só por ver das gentes as sentenças,
Que
sempre houve entre muitos diferenças.
«Não
falta com razões quem desconcerte
Da
opinião de todos, na vontade;
Em
quem o esforço antigo se converte
Em
desusada e má deslealdade,
Podendo
o temor mais, gelado, inerte,
Que
a própria e natural fidelidade.
Negam
o Rei e a Pátria e, se convém,
Negarão
(como Pedro) o Deus que têm.
«Mas
nunca foi que este erro se sentisse
No
forte Dom Nuno Álveres; mas antes,
Posto
que em seus irmãos tão claro o visse,
Reprovando
as vontades inconstantes,
Àquelas
duvidosas gentes disse,
Com
palavras mais duras que elegantes,
A
mão na espada, irado e não facundo,
Ameaçando
a terra, o mar e o mundo:
-
«Como? Da gente ilustre Portuguesa
Há-de
haver quem refuse o pátrio Marte?
Como?
Desta província, que princesa
Foi
das gentes na guerra em toda parte,
Há-de
sair quem negue ter defesa?
Quem
negue a Fé, o amor, o esforço e arte
De
Português, e por nenhum respeito
O
próprio Reino queira ver sujeito?
«Como?
Não sois vós inda os descendentes
Daqueles
que, debaixo da bandeira
Do
grande Henriques, feros e valentes,
Vencestes
esta gente tão guerreira,
Quando
tantas bandeiras, tantas gentes
Puseram
em fugida, de maneira
Que
sete ilustres Condes lhe trouxeram
Presos,
afora a presa que tiveram?
«Com
quem foram contino sopeados
Estes,
de quem o estais agora vós,
Por
Dinis e seu filho sublimados,
Senão
cos vossos fortes pais e avôs?
Pois
se, com seus descuidos ou pecados,
Fernando
em tal fraqueza assim vos pôs,
Torne-vos
vossas forças o Rei novo,
Se
é certo que co Rei se muda o povo.
«Rei
tendes tal que, se o valor tiverdes
Igual
ao Rei que agora alevantastes,
Desbaratareis
tudo o que quiserdes,
Quanto
mais a quem já desbaratastes.
E
se com isto, enfim, vos não moverdes
Do
penetrante medo que tomastes,
Atai
as mãos a vosso vão receio,
Que
eu só resistirei ao jugo alheio.
«Eu
só, com meus vassalos e com esta
(E
dizendo isto arranca meia espada),
Defenderei
da força dura e infesta
A
terra nunca de outrem sojugada.
Em
virtude do Rei, da pátria mesta,
Da
lealdade já por vós negada,
Vencerei
não só estes adversários,
Mas
quantos a meu Rei forem contrários!»
«Bem
como entre os mancebos recolhidos
Em
Canúsio, relíquias sós de Canas,
Já
pera se entregar quási movidos
À
fortuna das forças Africanas,
Cornélio
moço os faz que, compelidos
Da
sua espada, jurem que as Romanas
Armas
não deixarão, enquanto a vida
Os
não deixar ou nelas for perdida:
«Destarte
a gente força e esforça Nuno,
Que,
com lhe ouvir as últimas razões,
Removem
o temor frio, importuno,
Que
gelados lhe tinha os corações.
Nos
animais cavalgam de Neptuno,
Brandindo
e volteando arremessões;
Vão
correndo e gritando, a boca aberta:
-
«Viva o famoso Rei que nos liberta!»
«Das
gentes populares, uns aprovam
A
guerra com que a pátria se sustinha;
Uns
as armas alimpam e renovam,
Que
a ferrugem da paz gastadas tinha:
Capacetes
estofam, peitos provam,
Arma-se
cada um como convinha;
Outros
fazem vestidos de mil cores,
Com
letras e tenções de seus amores.
«Com
toda esta lustrosa companhia
Joane
forte sai da fresca Abrantes,
Abrantes,
que também da fonte fria
Do
Tejo logra as águas abundantes.
Os
primeiros armígeros regia
Quem
pera reger era os mui possantes
Orientais
exércitos sem conto
Com
que passava Xerxes o Helesponto;
«Dom
Nuno Alveres digo: verdadeiro
Açoute
de soberbos Castelhanos,
Como
já o fero Huno o foi primeiro
Pera
Franceses, pera Italianos.
Outro
também, famoso cavaleiro,
Que
a ala direita tem dos Lusitanos,
Apto
pera mandá-los e regê-los,
Mem
Rodrigues se diz de Vasconcelos.
«E
da outra ala, que a esta corresponde,
Antão
Vasques de Almada é capitão,
Que
despois foi de Abranches nobre Conde;
Das
gentes vai regendo a sestra mão.
Logo
na retaguarda não se esconde
Das
Quinas e Castelos o pendão,
Com
Joane, Rei forte em toda parte,
Que
escurecendo o preço vai de Marte.
«Estavam
pelos muros, temerosas
E
de um alegre medo quási frias,
:Rezando,
as mães, irmãs, damas e esposas,
Prometendo
jejuns e romarias.
Já
chegam as esquadras belicosas
Defronte
das imigas companhias,
Que
com grita grandíssima os recebem;
E
todas grande dúvida concebem.
«Respondem
as trombetas mensageiras,
Pífaros
sibilantes e atambores;
Alférezes
volteiam as bandeiras,
Que
variadas são de muitas cores.
Era
no seco tempo que nas eiras
Ceres
o fruto deixa aos lavradores;
Entra
em Astreia o Sol, no mês de Agosto;
Baco
das uvas tira o doce mosto.
«Deu
sinal a trombeta Castelhana,
Horrendo,
fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o
o monte Artabro, e Guadiana
Atrás
tornou as ondas de medroso.
Ouviu[-o]
o Douro e a terra Transtagana;
Correu
ao mar o Tejo duvidoso;
E
as mães, que o som terríbil escuitaram,
Aos
peitos os filhinhos apertaram.
«Quantos
rostos ali se vêm sem cor,
Que
ao coração acode o sangue amigo!
Que,
nos perigos grandes, o temor
É
maior muitas vezes que o perigo.
E
se o não é, parece-o; que o furor
De
ofender ou vencer o duro imigo
Faz
não sentir que é perda grande e rara
Dos
membros corporais, da vida cara.
«Começa-se
a travar a incerta guerra:
De
ambas partes se move a primeira ala;
Uns
leva a defensão da própria terra,
Outros
as esperanças de ganhá-la.
Logo
o grande Pereira, em quem se encerra
Todo
o valor, primeiro se assinala:
Derriba
e encontra e a terra enfim semeia,
Dos
que a tanto desejam, sendo alheia.
«Já
pelo espesso ar os estridentes
Farpões,
setas e vários tiros voam;
Debaxo
dos pés duros dos ardentes
Cavalos
treme a terra, os vales soam.
Espedaçam-se
as lanças, e as frequentes
Quedas
co as duras armas tudo atroam.
Recrecem
os imigos sobre a pouca
Gente
do fero Nuno, que os apouca.
«Eis
ali seus irmãos contra ele vão
(Caso
feio e cruel!); mas não se espanta,
Que
menos é querer matar o irmão,
Quem
contra o Rei e a Pátria se alevanta.
Destes
arrenegados muitos são
No
primeiro esquadrão, que se adianta
Contra
irmãos e parentes (caso estranho),
Quais
nas guerras civis de Júlio [ e ] Magno
«O
tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina,
e vós outros dos antigos
Que
contra vossas pátrias com profano
Coração
vos fizestes inimigos:
E
se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes
gravíssimos castigos,
Dizei-lhe
que também dos Portugueses
Alguns
tredores houve algüas vezes.
«Rompem-se
aqui dos nossos os primeiros,
Tantos
dos inimigos a eles vão!
Está
ali Nuno, qual pelos outeiros
De
Ceita está o fortíssimo lião
Que
cercado se vê dos cavaleiros
Que
os campos vão correr de Tutuão:
Perseguem-no
com as lanças, e ele, iroso,
Torvado
um pouco está, mas não medroso;
«Com
torva vista os vê, mas a natura
Ferina
e a ira não lhe compadecem
Que
as costas dê, mas antes na espessura
Das
lanças se arremessa, que recrecem.
Tal
está o cavaleiro, que a verdura
Tinge
co sangue alheio; ali perecem
Alguns
dos seus, que o ânimo valente
Perde
a virtude contra tanta gente.
«Sentiu
Joane a afronta que passava
Nuno,
que, como sábio capitão,
Tudo
corria e via e a todos dava,
Com
presença e palavras, coração.
Qual
parida lioa, fera e brava,
Que
os filhos, que no ninho sós estão,
Sentiu
que, enquanto pasto lhe buscara,
O
pastor de Massília lhos furtara,
«Corre
raivoso e freme e com bramidos
Os
montes Sete Irmãos atroa e abala:
Tal
Joane, com outros escolhidos
Dos
seus, correndo acode à primeira ala:
-
«O fortes companheiros, ó subidos
Cavaleiros,
a quem nenhum se iguala,
Defendei
vossas terras, que a esperança
Da
liberdade está na nossa lança!
«Vedes-me
aqui, Rei vosso e companheiro,
Que
entre as lanças e setas e os arneses
Dos
inimigos corro e vou primeiro;
Pelejai,
verdadeiros Portugueses! »
Isto
disse o magnânimo guerreiro
E,
sopesando a lança quatro vezes,
Com
força tira; e deste único tiro
Muitos
lançaram o último suspiro.
«Porque
eis os seus, acesos novamente
Dua
nobre vergonha e honroso fogo,
Sobre
qual mais, com ânimo valente,
Perigos
vencerá do Márcio jogo,
Porfiam;
tinge o ferro o fogo ardente;
Rompem
malhas primeiro e peitos logo.
Assi
recebem junto e dão feridas,
Como
a quem já não dói perder as vidas.
«A
muitos mandam ver o Estígio lago,
Em
cujo corpo a morte e o ferro entrava.
O
Mestre morre ali de Santiago,
Que
fortìssimamente pelejava;
Morre
também, fazendo grande estrago,
Outro
Mestre cruel de Calatrava.
Os
Pereiras também, arrenegados,
Morrem,
arrenegando o Céu e os Fados.
«Muitos
também do vulgo vil, sem nome,
Vão,
e também dos nobres, ao Profundo,
Onde
o trifauce Cão perpétua fome
Tem
das almas que passam deste mundo.
E
por que mais aqui se amanse e dome
A
soberba do imigo furibundo,
A
sublime bandeira Castelhana
Foi
derribada òs pés da Lusitana.
«Aqui
a fera batalha se encruece
Com
mortes, gritos, sangue e cutiladas;
A
multidão da gente que perece
Tem
as flores da própria cor mudadas.
Já
as costas dão e as vidas; já falece
O
furor e sobejam as lançadas;
Já
de Castela o Rei desbaratado
Se
vê e de seu propósito mudado.
«O
campo vai deixando ao vencedor,
Contente
de lhe não deixar a vida.
Seguem-no
os que ficaram, e o temor
Lhe
dá, não pés, mas asas à fugida.
Encobrem
no profundo peito a dor
Da
morte, da fazenda despendida,
Da
mágoa, da desonra e triste nojo
De
ver outrem triunfar de seu despojo.
«Alguns
vão maldizendo e blasfemando
Do
primeiro que guerra fez no mundo;
Outros
a sede dura vão culpando
Do
peito cobiçoso e sitibundo,
Que,
por tomar o alheio, o miserando
Povo
aventura às penas do Profundo,
Deixando
tantas mães, tantas esposas,
Sem
filhos, sem maridos, desditosas.
«O
vencedor Joane esteve os dias
Costumados
no campo, em grande glória;
Com
ofertas, despois, e romarias,
As
graças deu a Quem lhe deu vitória.
Mas
Nuno, que não quer por outras vias
Entre
as gentes deixar de si memória
Senão
por armas sempre soberanas,
Pera
as terras se passa Transtaganas.
«Ajuda-o
seu destino de maneira
Que
fez igual o efeito ao pensamento,
Porque
a terra dos Vândalos, fronteira,
Lhe
concede o despojo e o vencimento.
Já
de Sevilha a Bética bandeira,
E
de vários senhores, num momento
Se
lhe derriba aos pés, sem ter defesa,
Obrigados
da força Portuguesa.
«Destas
e outras vitórias longamente
Eram
os Castelhanos oprimidos,
Quando
a paz, desejada já da gente,
Deram
os vencedores aos vencidos,
Despois
que quis o Padre omnipotente
Dar
os Reis inimigos por maridos
As
duas Ilustríssimas Inglesas,
Gentis,
fermosas, ínclitas princesas.
«Não
sofre o peito forte, usado à guerra,
Não
ter imigo já a quem faça dano;
E
assi, não tendo a quem vencer na terra,
Vai
cometer as ondas do Oceano
Este
é o primeiro Rei que se desterra
Da
pátria, por fazer que o Africano
Conheça,
pelas armas, quanto excede
A
lei de Cristo à lei de Mafamede.
«Eis
mil nadantes aves, pelo argento
Da
furiosa Tétis inquieta,
Abrindo
as pandas asas vão ao vento,
Pera
onde Alcides pôs a extrema meta.
O
monte Abila e o nobre fundamento
De
Ceita toma, e o torpe Mahometa
Deita
fora, e segura toda Espanha
Da
Juliana, má e desleal manha.
«Não
consentiu a morte tantos anos
Que
de Herói tão ditoso se lograsse
Portugal,
mas os coros soberanos
Do
Céu supremo quis que povoasse.
Mas,
pera defensão dos Lusitanos,
Deixou
Quem o levou, quem governasse
E
aumentasse a terra mais que dantes:
Ínclita
geração, altos Infantes.
«Não
foi do Rei Duarte tão ditoso
O
tempo que ficou na suma alteza,
Que
assi vai alternando o tempo iroso
O
bem co mal, o gosto co a tristeza.
Quem
viu sempre um estado deleitoso?
Ou
quem viu em Fortuna haver firmeza?
Pois
inda neste Reino e neste Rei
Não
usou ela tanto desta lei?
«Viu
ser cativo o santo irmão Fernando
(Que
a tão altas empresas aspirava),
Que,
por salvar o povo miserando
Cercado,
ao Sarraceno se entregava.
Só
por amor da pátria está passando
A
vida, de senhora feita escrava,
Por
não se dar por ele a forte Ceita.
Mais
o público bem que o seu respeita.
«Codro,
por que o inimigo não vencesse,
Deixou
antes vencer da morte a vida;
Régulo,
por que a pátria não perdesse,
Quis
mais a liberdade ver perdida.
Este,
por que se Espanha não temesse,
A
cativeiro eterno se convida!
Codro,
nem Cúrcio, ouvido por espanto,
Nem
os Décios leais, fizeram tanto.
«Mas
Afonso, do Reino único herdeiro,
Nome
em armas ditoso em nossa Hespéria.
Que
a soberba do Bárbaro fronteiro
Tornou
em baxa e humílima miséria,
Fora
por certo invicto cavaleiro,
Se
não quisera ir ver a terra Ibéria.
Mas
Africa dirá ser impossíbil
Poder
ninguém vencer o Rei terríbil.
«Este
pôde colher as maçãs de ouro
Que
somente o Tiríntio colher pôde.
Do
jugo que lhe pôs, o bravo Mouro
A
cerviz inda agora não sacode.
Na
fronte a palma leva e o verde louro
Das
vitórias do Bárbaro, que acode
A
defender Alcácer, forte vila,
Tângere
populoso e a dura Arzila.
«Porém
elas, enfim, por força entradas
Os
muros abaxaram de diamante
Às
Portuguesas forças, costumadas
A
derribarem quanto acham diante.
Maravilhas
em armas, estremadas
E
de escritura dinas elegante,
Fizeram
cavaleiros nesta empresa,
Mais
afinando a fama Portuguesa.
«Porém
despois, tocado de ambição
E
glória de mandar, amara e bela,
Vai
cometer Fernando de Aragão,
Sobre
o potente Reino de Castela.
Ajunta-se
a inimiga multidão
Das
soberbas e várias gentes dela,
Desde
Cáliz ao alto Perineu,
Que
tudo ao Rei Fernando obedeceu.
«Não
quis ficar nos Reinos occioso
O
mancebo Joane, e logo ordena
De
ir ajudar o pai ambicioso,
Que
então lhe foi ajuda não pequena.
Saiu-se,
enfim, do trance perigoso,
Com
fronte não torvada, mas serena.
Desbaratado
o pai sanguinolento,
Mas
ficou duvidoso o vencimento;
«Porque
o filho, sublime e soberano,
Gentil,
forte, animoso cavaleiro,
Nos
contrários fazendo imenso dano,
Todo
um dia ficou no campo inteiro.
Destarte
foi vencido Octaviano,
E
António vencedor, seu companheiro,
Quando
daqueles que César mataram
Nos
Filípicos campos se vingaram.
«Porém,
despois que a escura noite eterna
Afonso
apousentou no Céu sereno,
O
Príncipe que o Reino então governa
Foi
Joane segundo e Rei trezeno.
Este,
por haver fama sempiterna,
Mais
do que tentar pode homem terreno
Tentou,
que foi buscar da roxa Aurora
Os
términos, que eu vou buscando agora.
«Manda
seus mensageiros, que passaram
Espanha,
França, Itália celebrada,
E
lá no ilustre porto se embarcaram
Onde
já foi Parténope enterrada:
Nápoles,
onde os Fados se mostraram,
Fazendo-a
a várias gentes subjugada,
Pola
ilustrar, no fim de tantos anos,
Co
senhorio de ínclitos Hispanos.
«Polo
mar alto Sículo navegam;
Vão-se
às praias de Rodes arenosas;
E
dali às ribeiras altas chegam
Que
com morte de Magno são famosas;
Vão
a Mênfis, e às terras que se regam
Das
enchentes Nilóticas undosas;
Sobem
à Etiópia, sobre Egipto,
Que
de Cristo lá guarda o santo rito.
«Passam
também as ondas Eritreias,
Que
o povo de Israel sem nau passou;
Ficam-lhe
atrás as serras Nabateias,
Que
o filho de Ismael co nome ornou.
As
costas odoríferas Sabeias,
Que
a mãe do belo Adónis tanto honrou,
Cercam,
com toda a Arábia descoberta,
Feliz,
deixando a Pétrea e a Deserta.
«Entram
no Estreito Pérsico, onde dura
Da
confusa Babel inda a memória;
Ali
co Tigre o Eufrates se mistura,
Que
as fontes onde nascem têm por glória.
Dali
vão em demanda da água pura
(Que
causa inda será de larga história)
Do
Indo, pelas ondas do Oceano,
Onde
não se atreveu passar Trajano.
«Viram
gentes incógnitas e estranhas
Da
Índia, da Carmânia e Gedrosia,
Vendo
vários costumes, várias manhas,
Que
cada região produze e cria.
Mas
de vias tão ásperas, tamanhas,
Tornar-se
fàcilmente não podia.
Lá
morreram, enfim, e lá ficaram,
Que
à desejada pátria não tornaram.
«Parece
que guardava o claro Céu
A
Manuel e seus merecimentos
Esta
empresa tão árdua, que o moveu
A
subidos e ilustres movimentos;
Manuel,
que a Joane sucedeu
No
Reino e nos altivos pensamentos,
Logo
como tomou do Reino cargo,
Tomou
mais a conquista do mar largo.
«O
qual, como do nobre pensamento
Daquela
obrigação que lhe ficara
De
seus antepassados, cujo intento
Foi
sempre acrecentar a terra cara,
Não
deixasse de ser um só momento
Conquistado,
no tempo que a luz clara
Foge,
e as estrelas nítidas que saem
A
repouso convidam quando caem,
«Estando
já. deitado no áureo leito,
Onde
imaginações mais certas são,
Revolvendo
contino no conceito
De
seu ofício e sangue a obrigação,
Os
olhos lhe ocupou o sono aceito,
Sem
lhe desocupar o coração;
Porque,
tanto que lasso se adormece,
Morfeu
em várias formas lhe aparece.
«Aqui
se lhe apresenta que subia
Tão
alto que tocava à prima Esfera,
Donde
diante vários mundos via,
Nações
de muita gente, estranha e fera.
E
lá bem junto donde nace o dia,
Despois
que os olhos longos estendera,
Viu
de antigos, longincos e altos montes
Nacerem
duas claras e altas fontes.
«Aves
agrestes, feras e alimárias
Pelo
monte selvático habitavam;
Mil
árvores silvestres e ervas várias
O
passo e o trato às gentes atalhavam.
Estas
duras montanhas, adversárias
De
mais conversação, por si mostravam
Que,
dês que Adão pecou aos nossos anos,
Não
as romperam nunca pés humanos.
«Das
águas se lhe antolha que saíam,
Par'ele
os largos passos inclinando,
Dous
homens, que mui velhos pareciam,
De
aspeito, inda que agreste, venerando.
Das
pontas dos cabelos lhe saíam
Gotas,
que o corpo todo vão banhando;
A
cor da pele, baça e denegrida;
A
barba hirsuta, intonsa, mas comprida.
«D'ambos
de dous a fronte coroada
Ramos
não conhecidos e ervas tinha.
Um
deles a presença traz cansada,
Como
quem de mais longe ali caminha;
E
assi a água, com ímpeto alterada,
Parecia
que doutra parte vinha,
Bem
como Alfeu de Arcádia em Siracusa
Vai
buscar os abraços de Aretusa.
«Este,
que era o mais grave na pessoa,
Destarte
pera o Rei de longe brada:
-
«Ó tu, a cujos reinos e coroa
Grande
parte do mundo está guardada,
Nós
outros, cuja fama tanto voa,
Cuja
cerviz bem nunca foi domada,
Te
avisamos que é tempo que já mandes
A
receber de nós tributos grandes.
«Eu
sou o ilustre Ganges, que na terra
Celeste
tenho o berço verdadeiro;
Estoutro
é o Indo, Rei que, nesta serra
Que
vês, seu nascimento tem primeiro.
Custar-t'-emos
contudo dura guerra;
Mas,
insistindo tu, por derradeiro,
Com
não vistas vitórias, sem receio
A
quantas gentes vês porás o freio.»
«Não
disse mais o Rio ilustre e santo,
Mas
ambos desparecem num momento.
Acorda
Emanuel cum novo espanto
E
grande alteração de pensamento.
Estendeu
nisto Febo o claro manto
Pelo
escuro Hemispério somnolento;
Veio
a manhã no céu pintando as cores
De
pudibunda rosa e roxas flores.
«Chama
o Rei os senhores a conselho
E
propõe-lhe as figuras da visão;
As
palavras lhe diz do santo velho,
Que
a todos foram grande admiração.
Determinam
o náutico aparelho,
Pera
que, com sublime coração,
Vá
a gente que mandar cortando os mares
A
buscar novos climas, novos ares.
«Eu,
que bem mal cuidava que em efeito
Se
pusesse o que o peito me pedia,
Que
sempre grandes coisas deste jeito,
Pres[s]ago,
o coração me prometia,
Não
sei por que razão, por que respeito,
Ou
por que bom sinal que em mi se via,
Me
põe o ínclito Rei nas mãos a chave
Deste
cometimento grande e grave.
«E
com rogo e palavras amorosas,
Que
é um mando nos Reis que a mais obriga,
Me
disse: - «As cousas árduas e lustrosas
Se
alcançam com trabalho e com fadiga;
Faz
as pessoas altas e famosas
A
vida que se perde e que periga,
Que,
quando ao medo infame não se rende,
Então,
se menos dura, mais se estende.
«Eu
vos tenho entre todos escolhido
Pera
üa empresa, qual a vós se deve,
Trabalho
ilustre, duro e esclarecido,
O
que eu sei que por mi vos será leve.»
«Não
sofri mais, mas logo: - «Ó Rei subido,
Aventurar-me
a ferro, a fogo, a neve,
É
tão pouco por vós que mais me pena
Ser
esta vida cousa tão pequena.
«Imaginai
tamanhas aventuras
Quais
Euristeu a Alcides inventava:
O
lião Cleonéu, Harpias duras,
O
porco de Erimanto, a Hidra brava,
Decer,
enfim, às sombras vãs e escuras
Onde
os campos de Dite a Estige lava;
Porque
a maior perigo, a mor afronta,
Por
vós, ó Rei, o esprito e carne é pronta.»
«Com
mercês sumptuosas me agardece
E
com razões me louva esta vontade;
Que
a virtude louvada vive e crece
E o
louvor altos casos persuade.
A
acompanhar-me logo se oferece,
Obrigado
d'amor e d'amizade,
Não
menos cobiçoso de honra e fama,
O
caro meu irmão Paulo da Gama.
«Mais
se me ajunta Nicolau Coelho,
De
trabalhos mui grande sofredor.
Ambos
são de valia e de conselho,
D'experiência
em armas e furor.
Já
de manceba gente me aparelho,
Em
que crece o desejo do valor;
Todos
de grande esforço; e assi parece
Quem
a tamanhas cousas se oferece.
«Foram
de Emanuel remunerados,
Por
que com mais amor se apercebessem,
E
com palavras altas animados
Pera
quantos trabalhos sucedessem.
Assi
foram os Mínias ajuntados,
Pera
que o Véu dourado combatessem,
Na
fatídica nau, que ousou primeira
Tentar
o mar Euxínio, aventureira.
«E
já no porto da ínclita Ulisseia,
Cum
alvoroço nobre e cum desejo
(Onde
o licor mistura e branca areia
Co
salgado Neptuno o doce Tejo)
As
naus prestes estão; e não refreia
Temor
nenhum o juvenil despejo,
Porque
a gente marítima e a de Marte
Estão
pera seguir-me a toda a parte.
«Pelas
praias vestidos os soldados
De
várias cores vêm e várias artes,
E
não menos de esforço aparelhados
Pera
buscar do mundo novas partes.
Nas
fortes naus os ventos sossegados
Ondeiam
os aéreos estandartes;
Elas
prometem, vendo os mares largos,
De
ser no Olimpo estrelas, como a de Argos.
«Despois
de aparelhados, desta sorte,
De
quanto tal viagem pede e manda,
Aparelhámos
a alma pera a morte,
Que
sempre aos nautas ante os olhos anda.
Pera
o sumo Poder, que a etérea Corte
Sustenta
só co a vista veneranda,
Implorámos
favor que nos guiasse
E
que nossos começos aspirasse.
«Partimo-nos
assi do santo templo
Que
nas praias do mar está assentado,
Que
o nome tem da terra, pera exemplo,
Donde
Deus foi em carne ao mundo dado.
Certifico-te,
ó Rei, que, se contemplo
Como
fui destas praias apartado,
Cheio
dentro de dúvida e receio,
Que
apenas nos meus olhos ponho o freio.
«A
gente da cidade, aquele dia,
(Uns
por amigos, outros por parentes,
Outros
por ver somente) concorria,
Saüdosos
na vista e descontentes
E
nós, co a virtuosa companhia
De
mil Religiosos diligentes,
Em
procissão solene, a Deus orando,
Pera
os batéis viemos caminhando.
«Em
tão longo caminho e duvidoso
Por
perdidos as gentes nos julgavam,
As
mulheres cum choro piadoso
Os
homens com suspiros que arrancavam.
Mães,
Esposas, Irmãs, que o temeroso
Amor
mais desconfia, acrecentavam
A
desesperação e frio medo
De
já nos não tornar a ver tão cedo.
«Qual
vai dizendo: - «Ó filho, a quem eu tinha
Só
pera refrigério e doce emparo
Desta
cansada já velhice minha,
Que
em choro acabará, penoso e amaro
Porque
me deixas, mísera e mesquinha?
Porque
de mi te vás, ó filho caro,
A
fazer o funéreo enterramento
Onde
sejas de pexes mantimento?»
«Qual
em cabelo: - «Ó doce e amado esposo,
Sem
quem não quis Amor que viver possa,
Porque
is aventurar ao mar airoso
Essa
vida que é minha e não é vossa?
Como,
por um caminho duvidoso,
Vos
esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso
amor, nosso vão contentamento,
Quereis
que com as velas leve o vento?»
«Nestas
e outras palavras que diziam,
De
amor e de piadosa humanidade,
Os
velhos e os mininos os seguiam,
Em
quem menos esforço põe a idade.
Os
montes de mais perto respondiam,
Quási
movidos de alta piedade;
A
branca areia as lágrimas banhavam,
Que
em multidão com elas se igualavam.
«Nós
outros, sem a vista alevantarmos
Nem
a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por
nos não magoarmos, ou mudarmos
Do
propósito firme começado,
Determinei
de assi nos embarcarmos,
Sem
o despedimento costumado,
Que,
posto que é de amor usança boa,
A
quem se aparta, ou fica, mais magoa.
«Mas
um velho, d'aspeito venerando,
Que
ficava nas praias, entre a gente,
Postos
em nós os olhos, meneando
Três
vezes a cabeça, descontente,
A
voz pesada um pouco alevantando,
Que
nós no mar ouvimos claramente,
Cum
saber só d'experiências feito,
Tais
palavras tirou do experto peito:
-
«Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta
vaidade a quem chamamos Fama!
Ó
fraudulento gosto, que se atiça
Cüa
aura popular, que honra se chama!
Que
castigo tamanho e que justiça
Fazes
no peito vão que muito te ama!
Que
mortes, que perigos, que tormentas,
Que
crueldades neles experimentas!
«Dura
inquietação d'alma e da vida
Fonte
de desemparos e adultérios,
Sagaz
consumidora conhecida
De
fazendas, de reinas e de impérios!
hamam-te
ilustre, chamam-te subida,
Sendo
dina de infames vitupérios;
Chamam-te
Fama e Glória soberana,
Nomes
com quem se o povo néscio engana!
«A
que novos desastres determinas
De
levar estes Reinos e esta gente?
Que
perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo
dalgum nome preminente?
Que
promessas de reinos e de minas
D'ouro,
que lhe farás tão facilmente?
Que
famas lhe prometerás? Que histórias?
Que
triunfos? Que palmas? Que vitórias?
«Mas,
ó tu, geração daquele insano
Cujo
pecado e desobediência
Não
somente do Reino soberano
Te
pôs neste desterro e triste ausência,
Mas
inda doutro estado mais que humano,
Da
quieta e da simpres inocência,
Idade
d'ouro, tanto te privou,
Que
na de ferro e d'armas te deitou:
«Já
que nesta gostosa vaidade
Tanto
enlevas a leve fantasia,
Já
que à bruta crueza e feridade
Puseste
nome, esforço e valentia,
Já
que prezas em tanta quantidade :
O
desprezo da vida, que devia
De
ser sempre estimada, pois que já
Temeu
tanto perdê-la Quem a dá:
«Não
tens junto contigo o Ismaelita,
Com
quem sempre terás guerras sobejas?
Não
segue ele do Arábio a lei maldita,
Se
tu pola de Cristo só pelejas?
Não
tem cidades mil, terra infinita,
Se
terras e riqueza mais desejas?
Não
é ele por armas esforçado,
Se
queres por vitórias ser louvado?
«Deixas
criar às portas o inimigo,
Por
ires buscar outro de tão longe,
Por
quem se despovoe o Reino antigo,
Se
enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas
o incerto e incógnito perigo
Por
que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te
senhor, com larga cópia,
Da
Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.
«Oh,
maldito o primeiro que, no mundo,
Nas
ondas vela pôs em seco lenho!
Dino
da eterna pena do Profundo,
Se
é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca
juízo algum, alto e profundo,
Nem
cítara sonora ou vivo engenho
Te
dê por isso fama nem memória,
Mas
contigo se acabe o nome e glória!
«Trouxe
o filho de Jápeto do Céu
O
fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo
que o mundo em armas acendeu,
Em
mortes, em desonras (grande engano!).
Quanto
milhor nos fora, Prometeu,
E
quanto pera o mundo menos dano,
Que
a tua estátua ilustre não tivera
Fogo
de altos desejos, que a movera!
«Não
cometera o moço miserando
O
carro alto do pai, nem o ar vazio
O
grande arquitector co filho, dando
Um,
nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum
cometimento alto e nefando
Por
fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa
intentado a humana geração.
Mísera
sorte! Estranha condição!»
Canto
V
ESTAS
sentenças tais o velho honrado
Vociferando
estava, quando abrimos
As
asas ao sereno e sossegado
Vento,
e do porto amado nos partimos.
E,
como é já no mar costume usado,
A
vela desfraldando, o céu ferimos,
Dizendo:-
«Boa viagem!»; logo o vento
Nos
troncos fez o usado movimento.
«Entrava
neste tempo o eterno lume
No
animal Nemeio truculento;
E o
Mundo, que co tempo se consume,
Na
sexta idade andava, enfermo e lento.
Nela
vê, como tinha por costume,
Cursos
do Sol catorze vezes cento,
Com
mais noventa e sete, em que corria,
Quando
no mar a armada se estendia.
«Já
a vista, pouco e pouco, se desterra
Daqueles
pátrios montes, que ficavam;
Ficava
o caro Tejo e a fresca serra
De
Sintra, e nela os olhos se alongavam;
Ficava-nos
também na amada terra
O
coração, que as mágoas lá deixavam;
E,
já despois que toda se escondeu,
Não
vimos mais, enfim, que mar e céu.
«Assi
fomos abrindo aqueles mares,
Que
geração algüa não abriu,
As
novas Ilhas vendo e os novos ares
Que
o generoso Henrique descobriu;
De
Mauritânia os montes e lugares,
Terra
que Anteu num tempo possuiu,
Deixando
à mão esquerda, que à direita
Não
há certeza doutra, mas suspeita.
«Passámos
a grande Ilha da Madeira,
Que
do muito arvoredo assi se chama;
Das
que nós povoámos a primeira,
Mais
célebre por nome que por fama.
Mas,
nem por ser do mundo a derradeira,
Se
lhe aventajam quantas Vénus ama;
Antes,
sendo esta sua, se esquecera
De
Cipro, Gnido, Pafos e Citera.
«Deixámos
de Massília a estéril costa,
Onde
seu gado os Azenegues pastam,
Gente
que as frescas águas nunca gosta,
Nem
as ervas do campo bem lhe abastam;
A
terra a nenhum fruto, enfim, disposta,
Onde
as aves no ventre o ferro gastam,
Padecendo
de tudo extrema inópia,
Que
aparta a Barbaria de Etiópia.
«Passámos
o limite aonde chega
O
Sol, que pera o Norte os carros guia;
Onde
jazem os povos a quem nega
O
filho de Climene a cor do dia.
Aqui
gentes estranhas lava e rega
Do
negro Sanagá a corrente fria,
Onde
o Cabo Arsinário o nome perde,
Chamando-se
dos nossos Cabo Verde.
«Passadas
tendo já as Canárias ilhas,
Que
tiveram por nome Fortunadas,
Entrámos,
navegando, polas filhas
Do
velho Hespério, Hespéridas chamadas;
Terras
por onde novas maravilhas
Andaram
vendo já nossas armadas.
Ali
tomámos porto com bom vento,
Por
tomarmos da terra mantimento.
«Àquela
ilha aportámos que tomou
O
nome do guerreiro Santiago,
Santo
que os Espanhóis tanto ajudou
fazerem
nos Mouros bravo estrago.
Daqui,
tanto que Bóreas nos ventou,
Tornámos
a cortar o imenso lago
Do
salgado Oceano, e assi deixámos
A
terra onde o refresco doce achámos.
«Por
aqui rodeando a larga parte
De
África, que ficava ao Oriente
(A
província Jalofo, que reparte
Por
diversas nações a negra gente;
A
mui grande Mandinga, por cuja arte
Logramos
o metal rico e luzente,
Que
do curvo Gambeia as águas bebe,
As
quais o largo Atlântico recebe),
«As
Dórcadas passámos, povoadas
Das
Irmãs que outro tempo ali viviam,
Que,
de vista total sendo privadas,
Todas
três dum só olho se serviam.
Tu
só, tu, cujas tranças encrespadas
Neptuno
lá nas águas acendiam,
Tornada
já de todas a mais feia,
De
bívoras encheste a ardente areia.
«Sempre,
enfim, pera o Austro a aguda proa,
No
grandíssimo gôlfão nos metemos,
Deixando
a Serra aspérrima Lioa,
Co
Cabo a quem das Palmas nome demos.
O
grande rio, onde batendo soa
O
mar nas praias notas, que ali temos,
Ficou,
co a Ilha ilustre, que tomou
O
nome dum que o lado a Deus tocou.
«Ali
o mui grande reino está de Congo,
Por
nós já convertido à fé de Cristo,
Por
onde o Zaire passa, Claro e longo,
Rio
pelo antigos nunca visto.
Por
este largo mar, enfim, me alongo
Do
conhecido PóIo de Calisto,
Tendo
o término ardente já passado
Onde
o meio do Mundo é limitado.
«Já
descoberto tínhamos diante,
Lá
no novo Hemispério, nova estrela,
Não
vista de outra gente, que, ignorante,
Alguns
tempos esteve incerta dela.
Vimos
a parte menos rutilante
E,
por falta de estrelas, menos bela,
Do
Pólo fixo, onde inda se não sabe
Que
outra terra comece ou mar acabe.
«Assi,
passando aquelas regiões
Por
onde duas vezes passa Apolo,
Dous
Invernos fazendo e dous Verões,
Enquanto
corre dum ao outro Pólo,
Por
calmas, por tormentas e opressões,
Que
sempre faz no mar o irado Eolo,
Vimos
as Ursas, a pesar de Juno,
Banharem-se
nas águas de Neptuno.
«Contar-te
longamente as perigosas
Cousas
do mar, que os homens não entendem,
Súbitas
trovoadas temerosas,
Relâmpados
que o ar em fogo acendem,
Negros
chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos
de trovões, que o mundo fendem,
Não
menos é trabalho que grande erro,
Ainda
que tivesse a voz de ferro.
«Os
casos vi, que os rudos marinheiros,
Que
têm por mestra a longa experiência,
Contam
por certos sempre e verdadeiros,
Julgando
as cousas só pola aparência,
E
que os que têm juízos mais inteiros,
Que
só por puro engenho e por ciência
Vêm
do mundo os segredos escondidos,
Julgam
por falsos ou mal entendidos.
«Vi,
claramente visto, o lume vivo
Que
a marítima gente tem por santo,
Em
tempo de tormenta e vento esquivo,
De
tempestade escura e triste pranto.
Não
menos foi a todos excessivo
Milagre,
e cousa, certo, de alto espanto,
Ver
as nuvens, do mar com largo cano,
Sorver
as altas águas do Oceano.
«Eu
o vi certamente (e não presumo
Que
a vista me enganava): levantar-se
No
ar um vaporzinho e sutil fumo
E,
do vento trazido, rodear-se;
De
aqui levado um cano ao Pólo sumo
Se
via, tão delgado, que enxergar-se
Dos
olhos fàcilmente não podia;
Da
matéria das nuvens parecia.
«Ia-se
pouco e pouco acrecentando
E
mais que um largo masto se engrossava;
Aqui
se estreita, aqui se alarga, quando
Os
golpes grandes de água em si chupava;
Estava-se
co as ondas ondeando;
Em
cima dele ua nuvem se espessava,
Fazendo-se
maior, mais carregada,
Co
cargo grande d'água em si tomada.
«Qual
roxa sangues[s]uga se veria
Nos
beiços da alimária (que, imprudente,
Bebendo
a recolheu na fonte fria)
Fartar
co sangue alheio a sede ardente;
Chupando,
mais e mais se engrossa e cria,
Ali
se enche e se alarga grandemente:
Tal
a grande coluna, enchendo, aumenta
A
si e a nuvem negra que sustenta.
«Mas,
despois que de todo se fartou,
O
pé que tem no mar a si recolhe
E
pelo céu, chovendo, enfim voou,
Por
que co a água a jacente água molhe;
Às
ondas torna as ondas que tomou,
Mas
o sabor do sal lhe tira e tolhe.
Vejam
agora os sábios na escritura
Que
segredos são estes de Natura!
«Se
os antigos Filósofos, que andaram
Tantas
terras, por ver segredos delas,
As
maravilhas que eu passei, passaram,
A
tão diversos ventos dando as velas,
Que
grandes escrituras que deixaram!
Que
influïção de sinos e de estrelas!
Que
estranhezas, que grandes qualidades!
E
tudo, sem mentir, puras verdades.
«Mas
já o Planeta que no Céu primeiro
Habita,
cinco vezes, apressada,
Agora
meio rosto, agora inteiro,
Mostrara,
enquanto o mar cortava a armada,
Quando
da etérea gávea, um marinheiro,
Pronto
co a vista: «Terra! Terra!» brada.
Salta
no bordo alvoroçada a gente,
Cos
olhos no horizonte do Oriente.
«A
maneira de nuvens se começam
A
descobrir os montes que enxergamos;
As
âncoras pesadas se adereçam;
As
velas, já chegados, amainamos.
E,
pera que mais certas se conheçam
As
partes tão remotas onde estamos,
Pelo
novo instrumento do Astrolábio,
Invenção
de sutil juízo e sábio,
«Desembarcamos
logo na espaçosa
Parte,
por onde a gente se espalhou,
De
ver cousas estranhas desejosa,
Da
terra que outro povo não pisou.
Porém
eu, cos pilotos, na arenosa
Praia,
por vermos em que parte estou,
Me
detenho em tomar do Sol a altura
E
compassar a universal pintura.
«Achámos
ter de todo já passado
Do
Semícapro Pexe a grande meta,
Estando
entre ele e o circulo gelado
Austral,
parte do mundo mais secreta.
Eis,
de meus companheiros rodeado,
Vejo
um estranho vir, de pele preta,
Que
tomaram per força, enquanto apanha
De
mel os doces favos na montanha.
«Torvado
vem na vista, como aquele
Que
não se vira nunca em tal extremo;
Nem
ele entende a nós, nem nós a ele,
Selvagem
mais que o bruto Polifemo.
Começo-lhe
a mostrar da rica pele
De
Colcos o gentil metal supremo,
A
prata fina, a quente especiaria:
A
nada disto o bruto se movia.
«Mando
mostrar-lhe peças mais somenos:
Contas
de cristalino transparente,
Alguns
soantes cascavéis pequenos,
Um
barrete vermelho, cor contente;
Vi
logo, por sinais e por acenos,
Que
com isto se alegra grandemente.
Mando-o
soltar com tudo e assi caminha
Pera
a povoação, que perto tinha.
«Mas,
logo ao outro dia, seus parceiros,
Todos
nus e da cor da escura treva,
Decendo
pelos ásperos outeiros,
As
peças vêm buscar que estoutro leva.
Domésticos
já tanto e companheiros se nos
mostram,
que fazem que se atreva
Fernão
Veloso a ir ver da terra o trato
E
partir-se co eles pelo mato.
«É
Veloso no braço confiado
E,
de arrogante, crê que vai seguro;
Mas,
sendo um grande espaço já passado,
Em
que algum bom sinal saber procuro,
Estando,
a vista alçada, co cuidado
No
aventureiro, eis pelo monte duro
Aparece
e, segundo ao mar caminha,
Mais
apressado do que fora, vinha.
«O
batel de Coelho foi depressa
Polo
tomar; mas, antes que chegasse,
Um
Etíope ousado se arremessa
A
ele, por que não se lhe escapasse;
Outro
e outro lhe saem; vê-se em pressa
Veloso,
sem que alguém lhe ali ajudasse;
Acudo
eu logo, e, enquanto o remo aperto,
Se
mostra um bando negro, descoberto.
«Da
espessa nuvem setas e pedradas
Chovem
sobre nós outros, sem medida;
E
não foram ao vento em vão deitadas,
Que
esta perna trouxe eu dali ferida.
Mas
nós, como pessoas magoadas,
A
reposta lhe demos tão tecida
Que
em mais que nos barretes se suspeita
Que
a cor vermelha levam desta feita.
«E,
sendo já Veloso em salvamento,
Logo
nos recolhemos pera a armada,
Vendo
a malícia feia e rudo intento
Da
gente bestial, bruta e malvada,
De
quem nenhum milhor conhecimento
Pudemos
ter da Índia desejada
Que
estarmos inda muito longe dela.
E
assi tornei a dar ao vento a vela.
«Disse
então a Veloso um companheiro
(Começando-se
todos a sorrir):
-
«Oulá, Veloso amigo! Aquele outeiro
É
milhor de decer que de subir!»
-
«Si, é (responde o ousado aventureiro);
Mas,
quando eu pera cá vi tantos vir
Daqueles
cães, depressa um pouco vim,
Por
me lembrar que estáveis cá sem mim.»
«Contou
então que, tanto que passaram
Aquele
monte os negros de quem falo,
Avante
mais passar o não deixaram,
Querendo,
se não torna, ali matá-lo;
E
tornando-se, logo se emboscaram,
Por
que, saindo nós pera tomá-lo,
Nos
pudessem mandar ao reino escuro,
Por
nos roubarem mais a seu seguro.
«Porém
já cinco Sóis eram passados
Que
dali nos partíramos, cortando
Os
mares nunca d'outrem navegados,
Pròsperamente
os ventos assoprando,
Quando
üa noute, estando descuidados
Na
cortadora proa vigiando,
üa
nuvem que os ares escurece,
Sobre
nossas cabeças aparece.
«Tão
temerosa vinha e carregada,
Que
pôs nos corações um grande medo;
Bramindo,
o negro mar de longe brada,
Como
se desse em vão nalgum rochedo.
-
«Ó Potestade (disse) sublimada:
Que
ameaço divino ou que segredo
Este
clima e este mar nos apresenta,
Que
mor cousa parece que tormenta?»
«Não
acabava, quando üa figura
Se
nos mostra no ar, robusta e válida,
De
disforme e grandíssima estatura;
O
rosto carregado, a barba esquálida,
Os
olhos encovados, e a postura
Medonha
e má e a cor terrena e pálida;
Cheios
de terra e crespos os cabelos,
A
boca negra, os dentes amarelos.
«Tão
grande era de membros que bem posso
Certificar-te
que este era o segundo
De
Rodes estranhíssimo Colosso,
Que
um dos sete milagres foi do mundo.
Cum
tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que
pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se
as carnes e o cabelo,
A
mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!
«E
disse: - «Ó gente ousada, mais que quantas
No
mundo cometeram grandes cousas,
Tu,
que por guerras cruas, tais e tantas,
E
por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois
os vedados términos quebrantas
E
navegar meus longos mares ousas,
Que
eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca
arados d'estranho ou próprio lenho;
«Pois
vens ver os segredos escondidos
Da
natureza e do húmido elemento,
A
nenhum grande humano concedidos
De
nobre ou de imortal merecimento,
Ouve
os danos de mi que apercebidos
Estão
a teu sobejo atrevimento,
Por
todo o largo mar e pola terra
Que
inda hás-de sojugar com dura guerra.
«Sabe
que quantas naus esta viagem
Que
tu fazes, fizerem, de atrevidas,
Inimiga
terão esta paragem,
Com
ventos e tormentas desmedidas;
E
da primeira armada que passagem
Fizer
por estas ondas insofridas,
Eu
farei de improviso tal castigo
Que
seja mor o dano que o perigo!
«Aqui
espero tomar, se não me engano,
De
quem me descobriu suma vingança;
E
não se acabará só nisto o dano
De
vossa pertinace confiança:
Antes,
em vossas naus vereis, cada ano,
Se
é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios,
perdições de toda sorte,
Que
o menor mal de todos seja a morte!
«E
do primeiro Ilustre, que a ventura
Com
fama alta fizer tocar os Céus,
Serei
eterna e nova sepultura,
Por
juízos incógnitos de Deus.
Aqui
porá da Turca armada dura
Os
soberbos e prósperos troféus;
Comigo
de seus danos o ameaça
A
destruída Quíloa com Mombaça.
«Outro
também virá, de honrada fama,
Liberal,
cavaleiro, enamorado,
E
consigo trará a fermosa dama
Que
Amor por grão mercê lhe terá dado.
Triste
ventura e negro fado os chama
Neste
terreno meu, que, duro e irado,
Os
deixará dum cru naufrágio vivos,
Pera
verem trabalhos excessivos.
«Verão
morrer com fome os filhos caros,
Em
tanto amor gerados e nacidos;
Verão
os Cafres, ásperos e avaros,
Tirar
à linda dama seus vestidos;
Os
cristalinos membros e perclaros
À
calma, ao frio, ao ar, verão despidos,
Despois
de ter pisada, longamente,
Cos
delicados pés a areia ardente.
«E
verão mais os olhos que escaparem
De
tanto mal, de tanta desventura,
Os
dous amantes míseros ficarem
Na
férvida, implacábil espessura.
Ali,
despois que as pedras abrandarem
Com
lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados,
as almas soltarão
Da
fermosa e misérrima prisão.»
«Mais
ia por diante o monstro horrendo,
Dizendo
nossos Fados, quando, alçado,
Lhe
disse eu: - «Quem és tu? Que esse estupendo
Corpo,
certo me tem maravilhado!»
A
boca e os olhos negros retorcendo
E
dando um espantoso e grande brado,
Me
respondeu, com voz pesada e amara,
Como
quem da pergunta lhe pesara:
«Eu
sou aquele oculto e grande Cabo
A
quem chamais vós outros Tormentório,
Que
nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plinio
e quantos passaram fui notório.
Aqui
toda a Africana costa acabo
Neste
meu nunca visto Promontório,
Que
pera o Pólo Antártico se estende,
A
quem vossa ousadia tanto ofende.
«Fui
dos filhos aspérrimos da Terra,
Qual
Encélado, Egeu e o Centimano;
Chamei-me
Adamastor, e fui na guerra
Contra
o que vibra os raios de Vulcano;
Não
que pusesse serra sobre serra,
Mas,
conquistando as ondas do Oceano,
Fui
capitão do mar, por onde andava
A
armada de Neptuno, que eu buscava.
«Amores
da alta esposa de Peleu
Me
fizeram tomar tamanha empresa;
Todas
as Deusas desprezei do Céu,
Só
por amar das águas a Princesa.
Um
dia a vi, co as filhas de Nereu,
Sair
nua na praia e logo presa
A
vontade senti de tal maneira
Que
inda não sinto cousa que mais queira.
«Como
fosse impossíbil alcançá-la,
Pola
grandeza feia de meu gesto,
Determinei
por armas de tomá-la
E a
Dóris este caso manifesto.
De
medo a Deusa então por mi lhe fala;
Mas
ela, cum fermoso riso honesto,
Respondeu:
- «Qual será o amor bastante
De
Ninfa, que sustente o dum Gigante?
«Contudo,
por livrarmos o Oceano
De
tanta guerra, eu buscarei maneira
Com
que, com minha honra, escuse o dano.»
Tal
resposta me torna a mensageira.
Eu,
que cair não pude neste engano
(Que
é grande dos amantes a cegueira),
Encheram-me,
com grandes abondanças,
O
peito de desejos e esperanças.
«Já
néscio, já da guerra desistindo,
üa
noite, de Dóris prometida,
Me
aparece de longe o gesto lindo
Da
branca Tétis, única, despida.
Como
doudo corri de longe, abrindo
Os
braços pera aquela que era vida
Deste
corpo, e começo os olhos belos
A
lhe beijar, as faces e os cabelos.
«Oh
que não sei de nojo como o conte!
Que,
crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado
me achei cum duro monte
De
áspero mato e de espessura brava.
Estando
cum penedo fronte a fronte,
Qu'eu
polo rosto angélico apertava,
Não
fiquei homem, não; mas mudo e quedo
E,
junto dum penedo, outro penedo!
«Ó
Ninfa, a mais fermosa do Oceano,
Já
que minha presença não te agrada,
Que
te custava ter-me neste engano,
Ou
fosse monte, nuvem, sonho ou nada?
Daqui
me parto, irado e quási insano
Da
mágoa e da desonra ali passada,
A
buscar outro mundo, onde não visse
Quem
de meu pranto e de meu mal se risse.
«Eram
já neste tempo meus Irmãos
Vencidos
e em miséria extrema postos,
E,
por mais segurar-se os Deuses vãos,
Alguns
a vários montes sotopostos.
E,
como contra o Céu não valem mãos,
Eu,
que chorando andava meus desgostos,
Comecei
a sentir do Fado imigo,
Por
meus atrevimentos, o castigo:
Converte-se-me
a carne em terra dura;
Em
penedos os ossos se fizeram;
Estes
membros que vês, e esta figura,
Por
estas longas águas se estenderam.
Enfim,
minha grandíssima estatura
Neste
remoto Cabo converteram
Os
Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Me
anda Tétis cercando destas águas.»
«Assi
contava; e, cum medonho choro,
Súbito
d'ante os olhos se apartou;
Desfez-se
a nuvem negra, e cum sonoro
Bramido
muito longe o mar soou.
Eu,
levantando as mãos ao santo coro
Dos
Anjos, que tão longe nos guiou,
A
Deus pedi que removesse os duros
Casos,
que Adamastor contou futuros.
«Já
Flégon e Piróis vinham tirando,
Cos
outros dous, o carro radiante,
Quando
a terra alta se nos foi mostrando
Em
que foi convertido o grão Gigante.
Ao
longo desta costa, começando
Já
de cortar as ondas do Levante,
Por
ela abaixo um pouco navegámos,
Onde
segunda vez terra tomámos.
«A
gente que esta terra possuía,
Posto
que todos Etiopes eram,
Mais
humana no trato parecia
Que
os outros que tão mal nos receberam.
Com
bailos e com festas de alegria
Pela
praia arenosa a nós vieram,
As
mulheres consigo e o manso gado
Que
apacentavam, gordo e bem criado.
«As
mulheres, queimadas, vêm em cima
Dos
vagarosos bois, ali sentadas,
Animais
que eles têm em mais estima
Que
todo o outro gado das manadas.
Cantigas
pastoris, ou prosa ou rima,
Na
sua língua cantam, concertadas
Co
doce som das rústicas avenas,
Imitando
de Títiro as Camenas.
«Estes,
como na vista prazenteiros
Fossem,
humanamente nos trataram,
Trazendo-nos
galinhas e carneiros
A
troco doutras peças que levaram;
Mas
como nunca, enfim, meus companheiros
Palavra
sua algüa lhe alcançaram
Que
desse algum sinal do que buscamos,
As
velas dando, as âncoras levamos.
«Já
aqui tínhamos dado um grão rodeio
À
costa negra de Africa, e tornava
A
proa a demandar o ardente meio
Do
Céu, e o Pólo Antártico ficava.
Aquele
ilhéu deixámos onde veio
Outra
armada primeira, que buscava
O
Tormentório Cabo e, descoberto,
Naquele
ilhéu fez seu limite certo.
«Daqui
fomos cortando muitos dias,
Entre
tormentas tristes e bonanças,
No
largo mar fazendo novas vias,
Só
conduzidos de árduas esperanças.
Co
mar um tempo andámos em porfias,
Que,
como tudo nele são mudanças,
Corrente
nele achámos tão possante,
Que
passar não deixava por diante:
«Era
maior a força em demasia,
Segundo
pera trás nos obrigava,
Do
mar, que contra nós ali corria,
Que
por nós a do vento que assoprava.
Injuriado
Noto da porfia
Em
que co mar (parece) tanto estava,
Os
assopros esforça iradamente,
Com
que nos fez vencer a grão corrente.
«Trazia
o Sol o dia celebrado
Em
que três Reis das partes do Oriente
Foram
buscar um Rei, de pouco nado,
No
qual Rei outros três há juntamente;
Neste
dia outro porto foi tomado
Por
nós, da mesma já contada gente,
Num
largo rio, ao qual o nome demos
Do
dia em que por ele nos metemos.
«Desta
gente refresco algum tomámos
E
do rio fresca água; mas contudo
Nenhum
sinal aqui da Índia achámos
No
povo, com nós outros cási mudo.
Ora
vê, Rei, quamanha terra andámos.
Sem
sair nunca deste povo rudo,
Sem
vermos nunca nova nem sinal
Da
desejada parte Oriental.
De
algodão, as cabeças apertavam;
Com
outro, que de tinta azul se tinge,
Cada
um as vergonhosas partes cinge.
Foi
düa novidade alvoroçado.
«E
foi que, estando já da costa perto,
Onde
as praias e vales bem se viam,
Num
rio, que ali sai ao mar aberto,
Batéis
à vela entravam e saíam.
Alegria
mui grande foi, por certo,
Acharmos
já pessoas que sabiam
Navegar,
porque entre elas esperámos
De
achar novas algüas, como achámos.
«Etíopes
são todos, mas parece
Que
com gente milhor comunicavam;
Palavra
algüa Arábia se conhece
Entre
a linguagem sua que falavam;
E
com pano delgado, que se tece
«Ora
imagina agora quão coitados
Andaríamos
todos, quão perdidos
De
fomes, de tormentas quebrantados,
Por
climas e por mares não sabidos,
E
do esperar comprido tão cansados
Quanto
a desesperar já compelidos,
Por
céus não naturais, de qualidade
Inimiga
de nossa humanidade!
«Corrupto
já e danado o mantimento,
Danoso
e mau ao fraco corpo humano
E,
além disso, nenhum contentamento,
Que
sequer da esperança fosse engano.
Crês
tu que, se este nosso ajuntamento
De
soldados não fora Lusitano,
Que
durara ele tanto obediente,
Porventura,
a seu Rei e a seu regente?
«Crês
tu que já não foram levantados
Contra
seu Capitão, se os resistira,
Fazendo-se
piratas, obrigados
De
desesperação, de fome, de ira?
Grandemente,
por certo, estão provados,
Pois
que nenhum trabalho grande os tira
Daquela
Portuguesa alta excelência
De
lealdade firme e obediência.
«Deixando
o porto, enfim, do doce rio
E
tornando a cortar a água salgada,
Fizemos
desta costa algum desvio,
Deitando
pera o pego toda a armada;
Porque,
ventando Noto, manso e frio,
Não
nos apanhasse a água da enseada
Que
a costa faz ali, daquela banda
Donde
a rica Sofala o ouro manda.
«Esta
passada, logo o leve leme
Encomendado
ao sacro Nicolau,
Pera
onde o mar na costa brada e geme,
A proa
inclina düa e doutra nau;
Quando,
indo o coração que espera e teme
E
que tanto fiou dum fraco pau,
Do
que esperava já desesperado,
«Pela
Arábica língua que mal falam
E
que Fernão Martins mui bem entende,
Dizem
que, por naus que em grandeza igualam
As
nossas, o seu mar se corta e fende;
Mas
que, lá donde sai o Sol, se abalam
Pera
onde a costa ao Sul se alarga e estende,
E
do Sul pera o Sol, terra onde havia
Gente,
assi como nós, da cor do dia.
«Mui
grandemente aqui nos alegrámos
Co
a gente, e com as novas muito mais.
Pelos
sinais que neste rio achámos
O
nome lhe ficou dos Bons Sinais.
Um
padrão nesta terra alevantámos,
Que,
pera assinalar lugares tais,
Trazia
alguns; o nome tem do belo
Guiador
de Tobias a Gabelo.
«Aqui
de limos, cascas e d'ostrinhos,
Nojosa
criação das águas fundas,
Alimpámos
as naus, que dos caminhos
Longos
do mar vêm sórdidas e imundas.
Dos
hóspedes que tínhamos vizinhos,
Com
mostras aprazíveis e jocundas,
Houvemos
sempre o usado mantimento,
Limpos
de todo o falso pensamento.
«Mas
não foi, da esperança grande e imensa
Que
nesta terra houvemos, limpa e pura
A
alegria; mas logo a recompensa
A
Ramnúsia com nova desventura.
Assi
no Céu sereno se dispensa;
Co
esta condição, pesada e dura,
Nacemos:
o pesar terá firmeza,
Mas
o bem logo muda a natureza.
«E
foi que, de doença crua e feia,
A
mais que eu nunca vi, desempararam
Muitos
a vida, e em terra estranha e alheia
Os
ossos pera sempre sepultaram.
Quem
haverá que, sem o ver, o creia,
Que
tão disformemente ali lhe incharam
As
gingivas na boca, que crecia
A
carne e juntamente apodrecia?
«Apodrecia
cum fétido e bruto
Cheiro,
que o ar vizinho inficionava.
Não
tínhamos ali médico astuto,
Cirurgião
sutil menos se achava;
Mas
qualquer, neste ofício pouco instruto,
Pela
carne já podre assi cortava
Como
se fora morta, e bem convinha,
Pois
que morto ficava quem a tinha.
«Enfim
que nesta incógnita espessura
Deixámos
pera sempre os companheiros
Que
em tal caminho e em tanta desventura
Foram
sempre connosco aventureiros.
Quão
fácil é ao corpo a sepultura!
Quaisquer
ondas do mar, quaisquer outeiros
Estranhos,
assi mesmo como aos nossos,
Receberão
de todo o Ilustre os ossos.
«Assi
que deste porto nos partimos
Com
maior esperança e mor tristeza,
E
pela costa abaixo o mar abrimos,
Buscando
algum sinal de mais firmeza.
Na
dura Moçambique, enfim, surgimos,
De
cuja falsidade e má vileza
Já
serás sabedor, e dos enganos
Dos
povos de Mombaça, pouco humanos.
«Até
que aqui, no teu seguro porto,
Cuja
brandura e doce tratamento
Dará
saúde a um vivo e vida a um morto,
Nos
trouxe a piedade do alto Assento.
Aqui
repouso, aqui doce conforto,
Nova
quietação do pensamento,
Nos
deste. E vês aqui, se atento ouviste,
Te
contei tudo quanto me pediste.
«Julgas
agora, Rei, se houve no mundo
Gentes
que tais caminhos cometessem?
Crês
tu que tanto Eneias e o facundo
Ulisses
pelo mundo se estendessem?
Ousou
algum a ver do mar profundo,
Por
mais versos que dele se escrevessem,
Do
que eu vi, a poder d'esforço e de arte,
E
do que inda hei-de ver, a oitava parte?
«Esse
que bebeu tanto da água Aónia,
Sobre
quem têm contenda peregrina,
Entre
si, Rodes, Smirna e Colofónia,
Atenas,
Ios, Argo e Salamina;
Essoutro
que esclarece toda Ausónia,
A
cuja voz, altíssona e divina,
Ouvindo,
o pátrio Míncio se adormece
Mas
o Tibre co som se ensoberbece:
«Cantem,
louvem e escrevam sempre extremos
Desses
seus Semideuses e encareçam,
Fingindo
magas Circes, Polifemos,
Sirenas
que co canto os adormeçam;
Dêm-lhe
mais navegar à vela e remos
Os
Cícones e a terra onde se esqueçam
Os
companheiros, em gostando o loto;
Dêm-lhe
perder nas águas o piloto;
«Ventos
soltos lhe finjam e imaginem
Dos
odres, e Calipsos namoradas;
Harpias
que o manjar lhe contaminem;
Decer
às sombras nuas já passadas:
Que,
por muito e por muito que se afinem
Nestas
fábulas vãs, tão bem sonhadas,
A
verdade que eu conto, nua e pura,
Vence
toda grandíloca escritura!»
Da
boca do fecundo Capitão
Pendendo
estavam todos, embebidos,
Quando
deu fim à longa narração
Dos
altos feitos, grandes e subidos.
Louva
o Rei o sublime coração
Dos
Reis em tantas guerras conhecidos;
Da
gente louva a antiga fortaleza,
A
lealdade d'ânimo e nobreza.
Vai
recontando o povo, que se admira,
O
caso cada qual que mais notou;
Nenhum
deles da gente os olhos tira
Que
tão longos caminhos rodeou.
Mas
já o mancebo Délio as rédeas vira
Que
o irmão de Lampécia mal guiou,
Por
vir a descansar nos Tétios braços;
E
el-Rei se vai do mar aos nobres paços.
Quão
doce é o louvor e a justa glória
Dos
próprios feitos, quando são soados!
Qualquer
nobre trabalha que em memória
Vença
ou iguale os grandes já passados.
As
envejas da ilustre e alheia história
Fazem
mil vezes feitos sublimados.
Quem
valerosas obras exercita,
Louvor
alheio muito o esperta e incita.
Não
tinha em tanto os feitos gloriosos
De
Aquiles, Alexandro, na peleja,
Quanto
de quem o canta os numerosos
Versos:
isso só louva, isso deseja.
Os
troféus de Milcíades, famosos,
Temístocles
despertam só de enveja;
E
diz que nada tanto o deleitava.
Como
a voz que seus feitos celebrava.
Trabalha
por mostrar Vasco da Gama
Que
essas navegações que o mundo canta
Não
merecem tamanha glória e fama
Como
a sua, que o Céu e a Terra espanta.
Si;
mas aquele Herói que estima e ama
Com
dões, mercês, favores e honra tanta
A
lira Mantuana, faz que soe
Eneias,
e a Romana glória voe.
Dá
a terra Lusitana Cipiões, Césares,
Alexandros,
e dá Augustos;
Mas
não lhe dá contudo aqueles dões
Cuja
falta os faz duros e robustos.
Octávio,
entre as maiores opressões,
Compunha
versos doutos e venustos
(Não
dirá Fúlvia, certo, que é mentira,
Quando
a deixava António por Glafira).
Vai
César sojugando toda França
E
as armas não lhe impedem a ciência;
Mas,
nüa mão a pena e noutra a lança,
Igualava
de Cícero a eloquência.
O
que de Cipião se sabe e alcança
É
nas comédias grande experiência.
Lia
Alexandro a Homero de maneira
Que
sempre se lhe sabe à cabeceira.
Enfim,
não houve forte Capitão
Que
não fosse também douto e ciente,
Da
Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão
da Portuguesa tão somente.
Sem
vergonha o não digo: que a razão
De
algum não ser por versos excelente
É
não se ver prezado o verso e rima,
Porque
quem não sabe arte, não na estima.
Por
isso, e não por falta de natura,
Não
há também Virgílios nem Homeros;
Nem
haverá, se este costume dura,
Pios
Eneias nem Aquiles feros.
Mas
o pior de tudo é que a ventura
Tão
ásperos os fez e tão austeros,
Tão
rudos e de engenho tão remisso,
Que
a muitos lhe dá pouco ou nada disso.
Às
Musas agardeça o nosso Gama
O
muito amor da pátria, que as obriga
A
dar aos seus, na lira, nome e fama
De
toda a ilustre e bélica fadiga;
Que
ele, nem quem na estirpe seu se chama,
Calíope
não tem por tão amiga
Nem
as filhas do Tejo, que deixassem
As
telas d'ouro fino e que o cantassem.
Porque
o amor fraterno e puro gosto
De
dar a todo o Lusitano feito
Seu
louvor, é somente o pros[s]uposto
Das
Tágides gentis, e seu respeito.
Porém
não deixe, enfim, de ter disposto
Ninguém
a grandes obras sempre o peito:
Que,
por esta ou por outra qualquer via,
Não
perderá seu preço e sua valia.
Canto
IV
NÃO
sabia em que modo festejasse
O
Rei Pagão os fortes navegantes,
Pera
que as amizades alcançasse
Do
Rei Cristão, das gentes tão possantes.
Pesa-lhe
que tão longe o apousentasse
Das
Europeias terras abundantes
A
ventura, que não no fez vizinho
Donde
Hércules ao mar abriu o caminho.
Com
jogos, danças e outras alegrias,
A
segundo a polícia Melindana,
Com
usadas e ledas pescarias,
Com
que a Lageia António alegra e engana,
Este
famoso Rei, todos os dias
Festeja
a companhia Lusitana,
Com
banquetes, manjares desusados,
Com
frutas, aves, carnes e pescados.
Mas
vendo o Capitão que se detinha
Já
mais do que devia, e o fresco vento
O
convida que parta e tome asinha
Os
pilotos da terra e mantimento,
Não
se quer mais deter, que ainda tinha
Muito
pera cortar do salso argento.
Já
do Pagão benigno se despede,
Que
a todos amizade longa pede.
Pede-lhe
mais que aquele porto seja
Sempre
com suas frotas visitado,
Que
nenhum outro bem maior deseja
Que
dar a tais barões seu reino e estado;
E
que, enquanto seu corpo o esprito reja,
Estará
de contino aparelhado
A
pôr a vida e reino totalmente
Por
tão bom Rei, por tão sublime gente.
Outras
palavras tais lhe respondia
O
Capitão, e logo, as velas dando,
Pera
as terras da Aurora se partia,
Que
tanto tempo há já que vai buscando.
No
piloto que leva não havia
Falsidade,
mas antes vai mostrando
A
navegação certa; e assi caminha
Já
mais seguro do que dantes vinha.
As
ondas navegavam do Oriente,
Já
nos mares da Índia, e enxergavam
Os
tálamos do Sol, que nace ardente;
Já
quási seus desejos se acabavam;
Mas
o mau de Tioneu, que na alma sente
As
venturas que então se aparelhavam
À
gente Lusitana, delas dina,
Arde,
morre, blasfema e desatina.
Via
estar todo o Céu determinado
De
fazer de Lisboa nova Roma;
Não
no pode estorvar, que destinado
Está
doutro Poder que tudo doma.
Do
Olimpo dece enfim, desesperado;
Novo
remédio em terra busca e toma:
Entra
no húmido reino e vai-se à corte
Daquele
a quem o mar caiu em sorte.
No
mais interno fundo das profundas
Cavernas
altas, onde o mar se esconde,
Lá
donde as ondas saem furibundas
Quando
às iras do vento o mar responde,
Neptuno
mora e moram as jocundas
Nereidas
e outros Deuses do mar, onde
As águas
campo deixam às cidades
Que
habitam estas húmidas Deidades.
Descobre
o fundo nunca descoberto
As
areias ali de prata fina;
Torres
altas se vêem, no campo aberto,
Da
transparente massa cristalina;
Quanto
se chegam mais os olhos perto
Tanto
menos a vista determina
Se
é cristal o que vê, se diamante,
Que
assi se mostra claro e radiante.
As
portas d'ouro fino, e marchetadas
Do
rico aljôfar que nas conchas nace,
De
escultura fermosa estão lavradas,
Na
qual do irado Baco a vista pace;
E
vê primeiro, em cores variadas,
Do
velho Caos a tão confusa face;
Vêm-se
os quatro Elementos trasladados,
Em
diversos ofícios ocupados.
Ali,
sublime, o Fogo estava em cima,
Que
em nenhüa matéria se sustinha;
Daqui
as cousas vivas sempre anima,
Despois
que Prometeu furtado o tinha.
Logo
após ele, leve se sublima
O
invisíbil Ar, que mais asinha
Tomou
lugar e, nem por quente ou frio,
Algum
deixa no mundo estar vazio.
Estava
a Terra em montes, revestida
De
verdes ervas e árvores floridas,
Dando
pasto diverso e dando vida
Às
alimárias nela produzidas.
A
clara forma ali estava esculpida
Das
Águas, entre a terra desparzidas,
De
pescados criando vários modos,
Com
seu humor mantendo os corpos todos.
Noutra
parte, esculpida estava a guerra
Que
tiveram os Deuses cos Gigantes;
Está
Tifeu debaixo da alta serra
De
Etna, que as flamas lança crepitantes.
Esculpido
se vê, ferindo a Terra,
Neptuno,
quando as gentes, ignorantes,
Dele
o cavalo houveram, e a primeira
De
Minerva pacífica ouliveira.
Pouca
tardança faz Lieu irado
Na
vista destas cousas, mas entrando
Nos
paços de Neptuno, que, avisado
Da
vinda sua, o estava já aguardando,
Às
portas o recebe, acompanhado
Das
Ninfas, que se estão maravilhando
De
ver que, cometendo tal caminho,
Entre
no reino d'água o Rei do vinho
-
«Ó Neptuno (lhe disse) não te espantes
De
Baco nos teus reinos receberes,
Porque
também cos grandes e possantes
Mostra
a Fortuna injusta seus poderes.
Manda
chamar os Deuses do mar, antes
Que
fale mais, se ouvir-me o mais quiseres;
Verão
da desventura grandes modos:
Ouçam
todos o mal que toca a todos.»
Julgando
já Neptuno que seria
Estranho
caso aquele, logo manda
Tritão,
que chame os Deuses da água fria
Que
o mar habitam düa e doutra banda.
Tritão,
que de ser filho se gloria
Do
Rei e de Salácia veneranda,
Era
mancebo grande, negro e feio,
Trombeta
de seu pai e seu correio.
Os
cabelos da barba e os que decem
Da
cabeça nos ombros, todos eram
Uns
limos prenhes d'água, e bem parecem
Que
nunca brando pêntem conheceram.
Nas
pontas pendurados não falecem
Os
negros mexilhões, que ali se geram.
Na
cabeça, por gorra, tinha posta
üa
mui grande casca de lagosta.
O
corpo nu, e os membros genitais,
Por
não ter ao nadar impedimento,
Mas
porém de pequenos animais
Do
mar todos cobertos, cento e cento:
Camarões
e cangrejos e outros mais,
Que
recebem de Febe crecimento;
Ostras
e birbigões, do musco sujos,
Às
costas co a casca os caramujos.
Na
mão a grande concha retorcida
Que
trazia, com força já tocava;
A
voz grande, canora, foi ouvida
Por
todo o mar, que longe retumbava.
Já
toda a companhia, apercebida,
Dos
Deuses pera os paços caminhava
Do
Deus que fez os muros de Dardânia,
Destruídos
despois da Grega insânia.
Vinha
o padre Oceano, acompanhado
Dos
filhos e das filhas que gerara;
Vem
Nereu, que com Dóris foi casado,
Que
todo o mar de Ninfas povoara.
O
profeta Proteu, deixando o gado
Marítimo
pacer pela água amara,
Ali
veio também, mas já sabia
O
que o padre Lieu no mar queria.
Vinha
por outra parte a linda esposa
De
Neptuno, de Celo e Vesta filha,
Grave
e leda no gesto, e tão fermosa
Que
se amansava o mar, de maravilha.
Vestida
üa camisa preciosa
Trazia,
de delgada beatilha,
Que
o corpo cristalino deixa ver-se,
Que
tanto bem não é pera esconder-se.
Anfitrite,
fermosa como as flores,
Neste
caso não quis que falecesse;
O
delfim traz consigo que aos amores
Do
Rei lhe aconselhou que obedecesse.
Cos
olhos, que de tudo são senhores,
Qualquer
parecerá que o Sol vencesse
Ambas
vêm pela mão, igual partido,
Pois
ambas são esposas dum marido.
Aquela
que, das fúrias de Atamante
Fugindo,
veio a ter divino estado,
Consigo
traz o filho belo infante,
No
número dos Deuses relatado;
Pela
praia brincando vem, diante,
Com
as lindas conchinhas, que o salgado
Mar
sempre cria; e às vezes pela areia
No
colo o toma a bela Panopeia.
E o
Deus que foi num tempo corpo humano
E
por virtude da erva poderosa,
Foi
convertido em pexe, e deste dano
Lhe
resultou Deidade gloriosa,
Inda
vinha chorando o feio engano
Que
Circes tinha usado co a fermosa
Scila,
que ele ama, desta sendo amado,
Que
a mais obriga amor mal empregado.
Já
finalmente todos assentados
Na
grande sala, nobre e divinal,
As
Deusas em riquíssimos estrados,
Os
Deuses em cadeiras de cristal,
Foram
todos do Padre agasalhados,
Que
co Tebano tinha assento igual;
De
fumos enche a casa a rica massa
Que
no mar nace e Arábia em cheiro passa.
Estando
sossegado já o tumulto
Dos
Deuses e de seus recebimentos,
Começa
a descobrir do peito oculto
A
causa o Tioneu de seus tormentos;
Um
pouco carregando-se no vulto,
Dando
mostra de grandes sentimentos,
Só
por dar aos de Luso triste morte
Co
ferro alheio, fala desta sorte:
- «Príncipe,
que de juro senhoreias,
Dum
Pólo ao outro Pólo, o mar irado,
Tu,
que as gentes da Terra toda enfreias,
Que
não passem o termo limitado;
E
tu, padre Oceano, que rodeias
O
Mundo universal e o tens cercado,
E
com justo decreto assi permites
Que
dentro vivam só de seus limites;
«E
vós, Deuses do Mar, que não sofreis
Injúria
algüa em vosso reino grande,
Que
com castigo igual vos não vingueis
De
quem quer que por ele corra e ande:
Que
descuido foi este em que viveis?
Quem
pode ser que tanto vos abrande
Os
peitos, com razão endurecidos
Contra
os humanos, fracos e atrevidos?
«Vistes
que, com grandíssima ousadia,
Foram
já cometer o Céu supremo;
Vistes
aquela insana fantasia
De
tentarem o mar com vela e remo;
Vistes,
e ainda vemos cada dia,
Soberbas
e insolências tais, que temo
Que
do Mar e do Céu, em poucos anos,
Venham
Deuses a ser, e nós, humanos.
«Vedes
agora a fraca geração
Que
dum vassalo meu o nome toma,
Com
soberbo e altivo coração
A
vós e a mi e o mundo todo doma.
Vedes,
o vosso mar cortando vão,
Mais
do que fez a gente alta de Roma;
Vedes,
o vosso reino devassando,
Os
vossos estatutos vão quebrando.
«Eu
vi que contra os Mínias, que primeiro
No
vosso reino este caminho abriram
Bóreas,
injuriado, e o companheiro
Áquilo
e os outros todos resistiram.
Pois
se do ajuntamento aventureiro
Os
ventos esta injúria assi sentiram,
Vós,
a quem mais compete esta vingança,
Que
esperais? Porque a pondes em tardança?
«E
não consinto, Deuses, que cuideis
Que
por amor de vós do Céu deci,
Nem
da mágoa da injúria que sofreis,
Mas
da que se me faz também a mi;
Que
aquelas grandes honras que sabeis
Que
no mundo ganhei, quando venci
As
terras Indianas do Oriente,
Todas
vejo abatidas desta gente.
«Que
o grão Senhor e Fados, que destinam,
Como
lhe bem parece, o baxo mundo,
Famas,
mores que nunca, determinam
De
dar a estes barões no mar profundo.
Aqui
vereis, ó Deuses, como ensinam
O
mal também a Deuses; que, a segundo
Se
vê, ninguém já tem menos valia
Que
quem com mais razão valer devia.
«E
por isso do Olimpo já fugi,
Buscando
algum remédio a meus pesares,
Por
ver o preço que no Céu perdi, e por
dita
acharei nos vossos mares.»
Mais
quis dizer, e não passou daqui,
Porque
as lágrimas já, correndo a pares,
Lhe
saltaram dos olhos, com que logo
Se
acendem as Deidades d'água em fogo.
A
ira com que súbito alterado
O
coração dos Deuses foi num ponto,
Não
sofreu mais conselho bem cuidado
Nem
dilação nem outro algum desconto:
Ao
grande Eolo mandam já recado,
Da
parte de Neptuno, que sem conto
Solte
as fúrias dos ventos repugnantes,
Que
não haja no mar mais navegantes!
Bem
quisera primeiro ali Proteu
Dizer,
neste negócio, o que sentia;
E,
segundo o que a todos pareceu,
Era
algüa profunda profecia.
Porém
tanto o tumulto se moveu,
Súbito,
na divina companhia,
Que
Tétis, indinada, lhe bradou:
-
«Neptuno sabe bem o que mandou!»
Já
lá o soberbo Hipótades soltava
Do
cárcere fechado os furiosos
Ventos,
que com palavras animava
Contra
os varões audaces e animosos.
Súbito,
o céu sereno se obumbrava,
Que
os ventos, mais que nunca impetuosos,
Começam
novas forças a ir tomando,
Torres,
montes e casas derribando.
Enquanto
este conselho se fazia
No
fundo aquoso, a leda, lassa frota
Com
vento sossegado prosseguia,
Pelo
tranquilo mar, a longa rota.
Era
no tempo quando a luz do dia
Do
Eóo Hemispério está remota;
Os
do quarto da prima se deitavam,
Pera
o segundo os outros despertavam.
Vencidos
vêm do sono e mal despertos;
Bocijando,
a miúdo se encostavam
Pelas
antenas, todos mal cobertos ontra os
agudos
ares que assopravam;
Os
olhos contra seu querer abertos;
Mas
estregando, os membros estiravam.
Remédios
contra o sono buscar querem,
Histórias
contam, casos mil referem.
-
«Com que milhor podemos (um dizia)
Este
tempo passar, que é tão pesado,
Senão
com algum conto de alegria,
Com
que nos deixe o sono carregado?»
Responde
Leonardo, que trazia
Pensamentos
de firme namorado:
-
«Que contos poderemos ter milhores,
Pera
passar o tempo, que de amores?»
-
«Não é (disse Veloso) cousa justa
Tratar
branduras em tanta aspereza,
Que
o trabalho do mar, que tanto custa,
Não
sofre amores nem delicadeza;
Antes
de guerra, férvida e robusta
A
nossa história seja, pois dureza
Nossa
vida há-de ser, segundo entendo,
Que
o trabalho por vir mo está dizendo.»
Consentem
nisto todos, e encomendam
A
Veloso que conte isto que aprova.
-
«Contarei (disse) sem que me aprendam
De
contar cousa fabulosa ou nova;
E
por que os que me ouvirem daqui reprendam ,
A
fazer feitos grandes de alta prova,
Dos
nacidos direi na nossa terra,
E
estes sejam os Doze de Inglaterra.
«No
tempo que do Reino a rédea leve,
João,
filho de Pedro, moderava,
Despois
que sossegado e livre o teve
Do
vizinho poder, que o molestava,
Lá
na grande Inglaterra, que da neve
Boreal
sempre abunda, semeava
A
fera Erínis dura e má cizânia,
Que
lustre fosse a nossa Lusitânia.
«Entre
as damas gentis da corte Inglesa
E
nobres cortesãos, acaso um dia
Se
levantou discórdia, em ira acesa
(Ou
foi opinião, ou foi porfia).
Os
cortesãos, a quem tão pouco pesa
Soltar
palavras graves de ousadia,
Dizem
que provarão que honras e famas
Em
tais damas não há pera ser damas;
«E
que se houver alguém, com lança e espada,
Que
queira sustentar a parte sua,
Que
eles, em campo raso ou estacada,
Lhe
darão feia infâmia ou morte crua.
A
feminil fraqueza, pouco usada,
Ou
nunca, a opróbrios tais, vendo-se nua
De
forças naturais convenientes,
Socorro
pede a amigos e parentes.
«Mas,
como fossem grandes e possantes
No
reino os inimigos, não se atrevem
Nem
parentes, nem férvidos amantes,
A
sustentar as damas, como devem.
Com
lágrimas fermosas, e bastantes
A
fazer que em socorro os Deuses levem
De
todo o Céu, por rostos de alabastro,
Se
vão todas ao Duque de Alencastro.
«Era
este Ingrês potente e militara
Cos
Portugueses já contra Castela,
Onde
as forças magnânimas provara
Dos
companheiros, e benigna estrela.
Não
menos nesta terra exprimentara
Namorados
afeitos, quando nela
A
filha viu, que tanto o peito doma
Do
forte Rei que por mulher a toma.
«Este,
que socorrer-lhe não queria
Por
não causar discórdias intestinas,
Lhe
diz: - «Quando o direito pretendia
Do
Reino lá das terras Iberinas,
Nos
Lusitanos vi tanta ousadia,
Tanto
primor e partes tão divinas,
Que
eles sós poderiam, se não erro,
Sustentar
vossa parte a fogo e ferro;
«E
se, agravadas damas, sois servidas,
Por
vós lhe mandarei embaixadores,
Que,
por cartas discretas e polidas,
De
vosso agravo os façam sabedores;
Também,
por vossa parte, encarecidas
Com
palavras d~ afagos e d, amores
Lhe
sejam vossas lágrimas, que eu creio
Que
ali tereis socorro e forte esteio. »
«Destarte
as aconselha o Duque experto
E
logo lhe nomeia doze fortes;
E
por que cada dama um tenha certo,
Lhe
manda que sobre eles lancem sortes,
Que
elas só doze são; e descoberto
Qual
a qual tem caído das consortes,
Cad'~
ua escreve ao seu, por vários modos,
E
todas a seu Rei, e o Duque a todos.
«Já
chega a Portugal o mensageiro,
Toda
a corte alvoroça a novidade;
Quisera
o Rei sublime ser primeiro,
Mas
não lho sofre a régia Majestade.
Qualquer
dos cortesãos aventureiro
Deseja
ser, com férvida vontade,
E
só fica por bem-aventurado
Quem
já vem pelo Duque nomeado.
«Lá
na leal cidade donde teve
Origem
(como é fama) o nome eterno
De
Portugal, armar madeiro leve
Manda
o que tem o leme do governo.
Apercebem-se
os doze, em tempo breve,
D'armas
e roupas de uso mais moderno,
De
elmos, cimeiras, letras e primores,
Cavalos,
e concertos de mil cores.
«Já
do seu Rei tomado têm licença,
Pera
partir do Douro celebrado,
Aqueles
que escolhidos por sentença
Foram
do Duque Inglês exprimentado.
Não
há na companhia diferença
De
cavaleiro, destro ou esforçado;
Mas
um só, que Magriço se dizia,
Destarte
fala à forte companhia:
-
«Fortíssimos consócios, eu desejo
Há
muito já de andar terras estranhas,
Por
ver mais águas que as do Douro e Tejo,
Várias
gentes e leis e várias manhas.
Agora
que aparelho certo vejo,
(Pois
que do mundo as cousas são tamanhos)
Quero,
se me deixais, ir só por terra,
Porque
eu serei convosco em Inglaterra.
«E
quando caso for que eu, impedido
Por
Quem das cousas é última linha,
Não
for convosco ao prazo instituído,
Pouca
falta vos faz a falta minha:
Todos
por mi fareis o que é devido.
Mas,
se a verdade o esprito me adivinha,
Rios,
montes, Fortuna ou sua enveja
Não
farão que eu convosco lá não seja.»
«Assi
diz e, abraçados os amigos
E
tomada licença, enfim se parte.
Passa
Lião, Castela, vendo antigos
Lugares
que ganhara o pátrio Marte;
Navarra,
cos altíssimos perigos
Do
Perineu, que Espanha e Gália parte.
Vistas,
enfim, de França as cousas grandes,
No
grande empório foi parar de Frandes.
«Ali
chegado, ou fosse caso ou manha,
Sem
passar se deteve muitos dias.
Mas
dos onze a ilustríssima companha
Cortam
do Mar do Norte as ondas frias;
Chegados
de Inglaterra à costa de estranha,
Pera
de Londres já fazem todos vias;
Do
Duque são com festas agasalhados
E
das damas servidos e amimados.
«Chega-se
o prazo e dia assinalado
De
entrar em campo já cos doze Ingleses,
Que
pelo Rei já tinham segurado;
Armam-se
d'elmos, grevas e de arneses.
Já
as damas têm por si, fulgente e armado,
O
Mavorte feroz dos Portugueses;
Vestem-se
elas de cores e de sedas,
De
ouro e de jóias mil, ricas e ledas.
«Mas
aquela a quem fora em sorte dado
Magriço,
que não vinha, com tristeza
Se
veste, por não ter quem nomeado
Seja
seu cavaleiro nesta empresa;
Bem
que os onze apregoam que acabado
Será
o negócio assi na corte Inglesa,
Que
as damas vencedoras se conheçam,
Posto
que dous e três dos seus faleçam.
«Já
num sublime e púbrico teatro
Se
assenta o Rei Inglês com toda a corte:
Estavam
três e três e quatro e quatro,
Bem
como a cada qual coubera em sorte;
Não
são vistos do Sol, do Tejo ao Batro,
De
força, esforço e d'ânimo mais forte,
Outros
doze sair, como os Ingleses,
No
campo. contra os onze Portugueses.
«Mastigam
os cavalos, escumando,
Os
áureos freios, com feroz sembrante;
Estava
o Sol nas armas rutilando,
Como
em cristal ou rígido diamante;
Mas
enxerga-se, num e noutro bando,
Partido
desigual e dissonante
Dos
onze contra os doze; quando a gente
Começa
a alvoroçar-se geralmente.
«Viram
todos o rosto aonde havia
A
causa principal do reboliço:
Eis
entra um cavaleiro, que trazia
Armas,
cavalo, ao bélico serviço;
Ao
Rei e às damas fala e logo se ia
Pera
os onze, que este era o grão Magriço;
Abraça
os companheiros, como amigos ,
A
quem não falta, certo nos perigos.
«A
dama, como ouviu que este era aquele
Que
vinha a defender seu nome e fama,
Se
alegra e veste ali do animal de Hele,
Que
a gente bruta mais que virtude ama.
Já
dão sinal, e o som da tuba impele
Os
belicosos ânimos, que inflama;
Picam
d'esporas, largam rédeas logo,
Abaxam
lanças, fere a terra fogo;
«Dos
cavalos o estrépito parece
Que
faz que o chão debaixo todo treme;
O
coração no peito que estremece
De
quem os olha, se alvoroça e teme.
Qual
do cavalo voa, que não dece;
Qual,
co cavalo em terra dando, geme;
Qual
vermelhas as armas faz de brancas;
Qual
cos penachos do elmo açouta as ancas.
«Algum
dali tomou perpétuo sono
E
fez da vida ao fim breve intervalo;
Correndo,
algum cavalo vai sem dono,
E
noutra parte o dono sem cavalo.
Cai
a soberba Inglesa de seu trono,
Que
dous ou três já fora vão do valo.
Os
que de espada vêm fazer batalha,
Mais
acham já que arnês, escudo e malha.
«Gastar
palavras em contar extremos
De
golpes feros, cruas estocadas,
É
desses gastadores, que sabemos,
Maus
do tempo, com fábulas sonhadas.
Basta,
por fim do caso, que entendemos
Que
com finezas altas e afamadas,
Cos
nossos fica a palma da vitória
E
as damas vencedoras e com glória.
«Recolhe
o Duque os doze vencedores
Nos
seus paços, com festas e alegria;
Cozinheiros
ocupa e caçadores,
Das
damas e fermosa companhia,
Que
querem dar aos seus libertadores
Banquetes
mil, cada hora e cada dia,
Enquanto
se detêm em Inglaterra,
Até
tornar à doce e cara terra.
«Mas
dizem que, contudo, o grão Magriço,
Desejoso
de ver as cousas grandes,
Lá
se deixou ficar, onde um serviço
Notável
à Condessa fez de Frandes;
E,
como quem não era já noviço
Em
todo trance onde tu, Marte, mandes,
Um
Francês mata em campo, que o destino
Lá
teve de Torcato e de Corvino.
«Outro
também dos doze em Alemanha
Se
lança e teve um fero desafio
Cum
Germano enganoso, que, com manha
Não
devida, o quis pôr no extremo fio.»
Contando
assi Veloso, já a companha
Lhe
pede que não faça tal desvio
Do
caso de Magriço e vencimento,
Nem
deixe o de Alemanha em esquecimento.
Mas
neste passo, assi prontos estando,
Eis
o mestre, que olhando os ares anda,
O
apito toca: acordam, despertando,
Os
marinheiros düa e doutra banda.
E,
porque o vento vinha refrescando,
Os
traquetes das gáveas tomar manda.
-
«Alerta (disse) estai, que o vento crece
Daquela
nuvem negra que aparece! »
Não
eram os traquetes bem tomados,
Quando
dá a grande e súbita procela.
-
«Amaina (disse o mestre a grandes brados),
Amaina
(disse), amaina a grande vela!»
Não
esperam os ventos indinados
Que
amainassem, mas, juntos dando nela,
Em
pedaços a fazem cum ruído
Que
o Mundo pareceu ser destruído!
O
céu fere com gritos nisto a gente,
Cum
súbito temor e desacordo;
Que,
no romper da vela, a nau pendente
Toma
grão suma d'água pelo bordo.
-
«Alija (disse o mestre rijamente),
Alija
tudo ao mar, não falte acordo!
Vão
outros dar à bomba, não cessando;
À
bomba, que nos imos alagando!»
Correm
logo os soldados animosos
A
dar à bomba; e, tanto que chegaram,
Os
balanços que os mares temerosos Deram à nau, num bordo os derribaram.
Três
marinheiros, duros e forçosos,
A
menear o leme não bastaram;
Talhas
lhe punham, düa e doutra parte,
Sem
aproveitar dos homens força e arte.
Os
ventos eram tais que não puderam
Mostrar
mais força d'ímpeto cruel,
Se
pera derribar então vieram fortíssima
Torre
de Babel, os altíssimos mares, que creceram,
A
pequena grandura dum batel
Mostra
a possante nau, que move espanto,
Vendo
que se sustém nas ondas tanto.
A
nau grande, em que vai Paulo da Gama,
Quebrado
leva o masto pelo meio,
Quási
toda alagada; a gente chama
Aquele
que a salvar o mundo veio.
Não
menos gritos vãos ao ar derrama
Toda
a nau de Coelho, com receio,
Conquanto
teve o mestre tanto tento
Que
primeiro amainou que desse o vento.
Agora
sobre as nuvens os subiam
As
ondas de Neptuno furibundo;
Agora
a ver parece que deciam
As
íntimas entranhas do Profundo.
Noto,
Austro, Bóreas, Áquilo, queriam
Arruinar
a máquina do Mundo;
A
noite negra e feia se alumia
Cos
raios em que o Pólo todo ardia!
As
Alciónias aves triste canto
Junto
da costa brava levantaram,
Lembrando-se
de seu passado pranto,
Que
as furiosas águas lhe causaram.
Os
delfins namorados, entretanto,
Lá
nas covas marítimas entraram,
Fugindo
à tempestade e ventos duros,
Que
nem no fundo os deixa estar seguros.
Nunca
tão vivos raios fabricou
Contra
a fera soberba dos Gigantes
O
grão ferreiro sórdido que obrou
Do
enteado as armas radiantes;
Nem
tanto o grão Tonante arremessou
Relâmpados
ao mundo, fulminantes,
No
grão dilúvio donde sós viveram
Os
dous que em gente as pedras converteram.
Quantos
montes, então, que derribaram
As
ondas que batiam denodadas!
Quantas
árvores velhas arrancaram
Do
vento bravo as fúrias indinadas!
As
forçosas raízes não cuidaram
Que
nunca pera o céu fossem viradas
Nem
as fundas areias que pudessem
Tanto
os mares que em cima as revolvessem.
Vendo
Vasco da Gama que tão perto
Do
fim de seu desejo se perdia,
Vendo
ora o mar até o Inferno aberto,
Ora
com nova fúria ao Céu subia,
Confuso
de temor, da vida incerto,
Onde
nenhum remédio lhe valia,
Chama
aquele remédio santo e forte
Que
o impossíbil pode, desta sorte:
-
«Divina Guarda, angélica, celeste,
Que
os céus, o mar e terra senhoreias:
Tu,
que a todo Israel refúgio deste
Por
metade das águas Eritreias;
Tu,
que livraste Paulo e defendeste
Das
Sirtes arenosas e ondas feias,
E,
guardaste, cos filhos, o segundo
Povoador
do alagado e vácuo mundo:
«Se
tenho novos medos perigosos
Doutra
Cila e Caríbdis já passados,
Outras
Sirtes e baxos arenosos,
Outros
Acroceráunios infamados;
No
fim de tantos casos trabalhosos,
Porque
somos de Ti desempatados,
Se
este nosso trabalho não te ofende,
Mas
antes teu serviço só pretende?
«Oh
ditosos aqueles que puderam
Entre
as agudas lanças Africanas
Morrer,
enquanto fortes sustiveram
A
santa Fé nas terras Mauritanas;
De
quem feitos ilustres se souberam,
De
quem ficam memórias soberanas,
De
quem se ganha a vida com perdê-la,
Doce
fazendo a morte as honras dela!»
Assi
dizendo, os ventos, que lutam
Como
touros indómitos, bramando,
Mais
e mais a tormenta acrecentavam,
Pela
miúda enxárcia assoviando.
Relâmpados
medonhos não cessavam,
Feros
trovões, que vêm representando
Cair
o Céu dos eixos sobre a Terra,
Consigo
os Elementos terem guerra.
Mas
já a amorosa Estrela cintilava
Diante
do Sol claro, no horizonte,
Mensageira
do dia, e visitava
A
terra e o largo mar, com leda fronte.
A
Deusa que nos Céus a governava,
De
quem foge o ensífero Orionte,
Tanto
que o mar e a cara armada vira,
Tocada
junto foi de medo e de ira.
-
«Estas obras de Baco são, por certo
(Disse),
mas não será que avante leve
Tão
danada tenção, que descoberto
Me
será sempre o mal a que se atreve.»
Isto
dizendo, dece ao mar aberto,
No
caminho gastando espaço breve,
Enquanto
manda as Ninfas amorosas
Grinaldas
nas cabeças pôr de rosas.
Grinaldas
manda pôr de várias cores
Sobre
cabelos louros a porfia.
Quem
não dirá que nacem roxas flores
Sobre
ouro natural, que Amor enfia?
Abrandar
determina, por amores,
Dos
ventos a nojosa companhia,
Mostrando-lhe
as amadas Ninfas belas,
Que
mais fermosas vinham que as estrelas.
Assi
foi; porque, tanto que chegaram
À
vista delas, logo lhe falecem
As
forças com que dantes pelejaram,
E
já como rendidos lhe obedecem;
Os
pés e mãos parece que lhe ataram
Os
cabelos que os raios escurecem.
A
Bóreas, que do peito mais queria,
Assi
disse a belíssima Oritia:
-
«Não creias, fero Bóreas, que te creio
Que
me tiveste nunca amor constante,
Que
brandura é de amor mais certo arreio
E
não convém furor a firme amante.
Se
já não pões a tanta insânia freio,
Não
esperes de mi, daqui em diante,
Que
possa mais amar-te, mas temer-te;
Que
amor, contigo, em medo se converte.»
Assi
mesmo a fermosa Galateia Dizia ao fero Noto, que bem sabe
Que
dias há que em vê-la se recreia,
E
bem crê que com ele tudo acabe.
Não
sabe o bravo tanto bem se o creia,
Que
o coração no peito lhe não cabe;
De
contente de ver que a dama o manda,
Pouco
cuida que faz, se logo abranda.
Desta
maneira as outras amansavam
Subitamente
os outros amadores;
E
logo à linda Vénus se entregavam,
Amansadas
as iras e os furores.
Ela
lhe prometeu, vendo que amavam,
Sempiterno
favor em seus amores,
Nas
belas mãos tomando-lhe homenagem
De
lhe serem leais esta viagem.
Já
a manhã clara dava nos outeiros
Por
onde o Ganges murmurando soa,
Quando
da celsa gávea os marinheiros
Enxergaram
terra alta, pela proa.
Já
fora de tormenta e dos primeiros
Mares,
o temor vão do peito voa.
Disse
alegre o piloto Melindano:
-
«Terra é de Calecu, se não me engano.
«Esta
é, por certo, a terra que buscais
Da
verdadeira Índia, que aparece;
E
se do mundo mais não desejais,
Vosso
trabalho longo aqui fenece.»
Sofrer
aqui não pôde o Gama mais,
De
ledo em ver que a terra se conhece;
Os
giolhos no chão, as mãos ao Céu,
A
mercê grande a Deus agardeceu.
As
graças a Deus dava, e razão tinha,
Que
não somente a terra lhe mostrava
Que,
com tanto temor, buscando vinha,
Por
quem tanto trabalho exprimentava,
Mas
via-se livrado, tão asinha,
Da
morte, que no mar lhe aparelhava
O
vento duro, férvido e medonho,
Como
quem despertou de horrendo sonho.
Por
meio destes hórridos perigos,
Destes
trabalhos graves e temores,
Alcançam
os que são de fama amigos
As
honras imortais e graus maiores;
Não
encostados sempre nos antigos
Troncos
nobres de seus antecessores;
Não
nos leitos dourados, entre os finos
Animais
de Moscóvia zibelinos;
Não
cos manjares novos e esquisitos,
Não
cos passeios moles e ouciosos,
Não
cos vários deleites e infinitos,
Que
afeminam os peitos generosos;
Não
cos nunca vencidos apetitos,
Que
a Fortuna tem sempre tão mimosos,
Que
não sofre a nenhum que o passo mude
Pera
algüa obra heróica de virtude;
Mas
com buscar, co seu forçoso braço,
As
honras que ele chame próprias suas;
Vigiando
e vestindo o forjado aço,
Sofrendo
tempestades e ondas cruas,
Vencendo
os torpes frios no regaço
Do
Sul, e regiões de abrigo nuas,
Engolindo
o corrupto mantimento
Temperado
com um árduo sofrimento;
E
com forçar o rosto, que se enfia,
A
parecer seguro, ledo, inteiro,
Pera
o pelouro ardente que assovia
E
leva a perna ou braço ao companheiro.
Destarte
o peito um calo honroso cria,
Desprezador
das honras e dinheiro,
Das
honras e dinheiro que a ventura
Forjou,
e não virtude justa e dura.
Destarte
se esclarece o entendimento,
Que
experiências fazem repousado,
E
fica vendo, como de alto assento,
O
baxo trato humano embaraçado.
Este,
onde tiver força o regimento
Direito
e não de afeitos ocupado,
Subirá
(como deve) a ilustre mando,
Contra
vontade sua, e não rogando.
Canto
VII
JÁ
se viam chegados junto à terra
Que
desejada já de tantos fora,
Que
entre as correntes Indicas se encerra
E o
Ganges, que no Céu terreno mora.
Ora
sus, gente forte, que na guerra
Quereis
levar a palma vencedora:
Já
sois chegados, já tendes diante
A
terra de riquezas abundante!
A
vós, ó geração de Luso, digo,
Que
tão pequena parte sois no mundo,
Não
digo inda no mundo, mas no amigo
Curral
de Quem governa o Céu rotundo;
Vós,
a quem não somente algum perigo
Estorva
conquistar o povo imundo,
Mas
nem cobiça ou pouca obediência
Da
Madre que nos Céus está em essência;
Vós,
Portugueses, poucos quanto fortes,
Que
o fraco poder vosso não pesais;
Vós,
que, à custa de vossas várias mortes,
A
lei da vida eterna dilatais:
Assi
do Céu deitadas são as sortes
Que
vós, por muito poucos que sejais,
Muito
façais na santa Cristandade.
Que
tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!
Vede'los
Alemães, soberbo gado,
Que
por tão largos campos se apacenta;
Do
sucessor de Pedro rebelado,
Novo
pastor e nova seita inventa;
Vede'lo
em feias guerras ocupado,
Que
inda co cego error se não contenta,
Não
contra o superbíssimo Otomano,
Mas
por sair do jugo soberano.
Vede'lo
duro Inglês, que se nomeia
Rei
da velha e santíssima Cidade,
Que
o torpe Ismaelita senhoreia
(Quem
viu honra tão longe da verdade?),
Entre
as Boreais neves se recreia,
Nova
maneira faz de Cristandade:
Pera
os de Cristo tem a espada nua,
Não
por tomar a terra que era sua.
Guarda-lhe,
por entanto, um falso Rei
A
cidade Hierosólima terreste,
Enquanto
ele não guarda a santa Lei
Da
cidade Hierosólima celeste.
Pois
de ti, Galo indino, que direi?
Que
o nome «Cristianíssimo» quiseste,
Não
pera defendê-lo nem guardá-lo,
Mas
pera ser contra ele e derribá-lo!
Achas
que tens direito em senhorios
De
Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto,
E
não contra o Cinífio e Nilo rios,
Inimigos
do antigo nome santo?
Ali
se hão-de provar da espada os fios
Em
quem quer reprovar da Igreja o canto.
De
Carlos, de Luís, o nome e a terra
Herdaste,
e as causas não da justa guerra?
Pois
que direi daqueles que em delícias,
Que
o vil ócio no mundo traz consigo,
Gastam
as vidas, logram as divícias,
Esquecidos
do seu valor antigo?
Nascem
da tirania inimicícias,
Que
o povo forte tem, de si inimigo.
Contigo,
Itália, falo, já sumersa
Em
vícios mil, e de ti mesma adversa.
Ó
míseros Cristãos, pola ventura
Sois
os dentes, de Cadmo desparzidos,
Que
uns aos outros se dão à morte dura,
Sendo
todos de um ventre produzidos?
Não
vedes a divina Sepultura
Possuída
de Cães, que, sempre unidos,
Vos
vêm tomar a vossa antiga terra,
Fazendo-se
famosos pela guerra?
Vedes
que têm por uso e por decreto,
Do
qual são tão inteiros observantes,
Ajuntarem
o exército inquieto
Contra
os povos que são de Cristo amantes;
Entre
vós nunca deixa a fera Aleto
De
samear cizânias repugnantes.
Olhai
se estais seguros de perigos,
Que
eles, e vós, sois vossos inimigos.
Se
cobiça de grandes senhorios
Vos
faz ir conquistar terras alheias,
Não
vedes que Pactolo e Hermo rios
Ambos
volvem auríferas areias?
Em
Lídia, Assíria, lavram de ouro os fios;
África
esconde em si luzentes veias;
Mova-vos
já, sequer, riqueza tanta,
Pois
mover-vos não pode a Casa Santa.
Aquelas
invenções, feras e novas,
De
instrumentos mortais da artelharia
Já devem
de fazer as duras provas
Nos
muros de Bizâncio e de Turquia.
Fazei
que torne lá às silvestres covas
Dos
Cáspios montes e da Cítia fria
A
Turca geração, que multiplica
Na
polícia da vossa Europa rica.
Gregos,
Traces, Arménios, Georgianos,
Bradando
vos estão que o povo bruto
Lhe
obriga os caros filhos aos profanos
Preceptos
do Alcorão (duro tributo!).
Em
castigar os feitos inumanos
Vos
gloriai de peito forte e astuto,
E
não queirais louvores arrogantes
De
serdes contra os vossos mui possantes.
Mas,
entanto que cegos e sedentos
Andais
de vosso sangue, ó gente insana,
Não
faltarão Cristãos atrevimentos
Nesta
pequena casa Lusitana:
De
Africa tem marítimos assentos;
É
na Ásia mais que todas soberana;
Na
quarta parte nova os campos ara;
E,
se mais mundo houvera, lá chegara.
E
vejamos, entanto, que acontece
Àqueles
tão famosos navegantes,
Despois
que a branda Vénus enfraquece
O
furor vão dos ventos repugnantes;
Despois
que a larga terra lhe aparece,
Fim
de suas perfias tão constantes,
Onde
vem samear de Cristo a lei
E
dar novo costume e novo Rei.
Tanto
que à nova terra se chegaram,
Leves
embarcações de pescadores
Acharam,
que o caminho lhe mostraram
De
Calecu, onde eram moradores.
Pera
lá logo as proas se inclicaram,
Porque
esta era a cidade, das milhores
Do
Malabar, milhor, onde vivia
O
Rei que a terra toda possuía.
Além
do Indo jaz e aquém do Gange
Um
terreno mui grande e assaz famoso
Que
pela parte Austral o mar abrange
E
pera o Norte o Emódio cavernoso.
Jugo
de Reis diversos o constrange
A
várias leis: alguns o vicioso
Mahoma,
alguns os Ídolos adoram,
Alguns
os animais que entre eles moram.
Lá
bem no grande monte que, cortando
Tão
larga terra, toda Ásia discorre,
Que
nomes tão diversos vai tomando Segundo as regiões por onde corre, Do mar, com
Ceilão ínsula confronta; De terra e gente, são mais abundantes; Mais de ouro e
pedras que de forte gente. Do mar a natural ferocidade. As fontes saem donde
vêm manando Os rios cuja grão corrente morre No mar Índico, e cercam todo o
peso Do terreno, fazendo-o quersoneso. Entre um e o outro rio, em grande espaço
Sai da larga terra üa longa ponta, Quási piramidal, que, no regaço E junto
donde nasce o largo braço Gangético, o rumor antigo conta Que os vizinhos, da
terra moradores, Do cheiro se mantêm das finas flores. Mas agora, de nomes e de
usança Novos e vários são os habitantes: Os Deliis, os Patanes, que em possança
Decanis, Oriás, que a esperança Têm de sua salvação nas ressonantes Águas do
Gange; e a terra de Bengala, Fértil de sorte que outra não lhe iguala; O Reino
de Cambaia belicoso (Dizem que foi de Poro, Rei potente); O Reino de Narsinga,
poderoso Aqui se enxerga, lá do mar undoso, Um monte alto, que corre
longamente, Servindo ao Malabar de forte muro, Com que do Canará vive seguro.
Da terra os naturais Ihe chamam Gate, Do pé do qual, pequena quantidade, Se
estende üa fralda estreita, que combate
Aqui
de outras cidades, sem debate,
Calecu
tem a ilustre dignidade
De
cabeça de Império, rica e bela;
Samorim
se intitula o senhor dela.
Chegada
a frota ao rico senhorio,
Um
Português, mandado, logo parte
A
fazer sabedor o Rei gentio
Da
vinda sua a tão remota parte.
Entrando
o mensageiro pelo rio
Que
ali nas ondas entra, a não vista arte,
A
cor, o gesto estranho, o trajo novo,
Fez
concorrer a vê-lo todo o povo.
Entre
a gente que a vê-lo concorria,
Se
chega um Mahometa, que nascido
Fora
na região da Berberia,
Lá
onde fora Anteu obedecido.
(Ou,
pela vezinhança, já teria
O
Reino Lusitano conhecido,
Ou
foi já assinalado de seu ferro;
Fortuna
o trouxe a tão longo desterro).
Em
vendo o mensageiro, com jocundo
Rosto,
como quem sabe a língua Hispana,
Lhe
disse: - « Quem te trouxe a estoutro mundo,
Tão
longe da tua pátria Lusitana?»
-
«Abrindo (lhe responde) o mar profundo
Por
onde nunca veio gente humana;
Vimos
buscar do Indo a grão corrente,
Por
onde a Lei divina se acrecente.»
Espantado
ficou da grão viagem
O
Mouro, que Monçaide se chamava,
Ouvindo
as opressões que na passagem
Do
mar o Lusitano lhe contava.
Mas
vendo, enfim, que a força da mensagem
Só
pera o Rei da terra relevava,
Lhe
diz que estava fora da cidade,
Mas
de caminho pouca quantidade;
E
que, entanto que a nova lhe chegasse
De
sua estranha vinda, se queria,
Na
sua pobre casa repousasse
E
do manjar da terra comeria;
E
despois que se um pouco recreasse,
Co
ele pera a armada tornaria,
Que
alegria não pode ser tamanha
Que
achar gente vizinha em terra estranha.
O
Português aceita de vontade
O
que o ledo Monçaide lhe oferece;
Como
se longa fora já a amizade,
Co
ele come e bebe e lhe obedece.
Ambos
se tornam logo da cidade
Pera
a frota, que o Mouro bem conhece.
Sobem
à capitaina, e toda a gente
Monçaide
recebeu benignamente.
O
Capitão o abraça, em cabo ledo,
Ouvindo
clara a língua de Castela;
Junto
de si o assenta e, pronto e quedo,
Pela
terra pergunta e cousas dela.
Qual
se ajuntava em Ródope o arvoredo,
Só
por ouvir o amante da donzela
Eurídice,
tocando a lira de ouro,
Tal
a gente se ajunta a ouvir o Mouro.
Ele
começa: - «Ó gente, que a Natura
Vizinha
fez de meu paterno ninho,
Que
destino tão grande ou que ventura
Vos
trouxe a cometerdes tal caminho?
Não
é sem causa, não, oculta e escura,
Vir
do longinco Tejo e ignoto Minho,
Por
mares nunca doutro lenho arados,
A
Reinos tão remotos e apartados.
«Deus,
por certo, vos traz, porque pretende
Algum
serviço seu por vós obrado;
Por
isso só vos guia e vos defende
Dos
imigos, do mar, do vento irado.
Sabei
que estais na Índia, onde se estende
Diverso
povo, rico e prosperado
De
ouro luzente e fina pedraria
Cheiro
suave, ardente especiaria.
«Esta
província, cujo porto agora
Tomado
tendes, Malabar se chama;
Do
culto antigo os Ídolos adora,
Que
cá por estas partes se derrama;
De
diversos Reis é, mas dum só fora
Noutro
tempo, segundo a antiga fama:
Saramá
Perimal foi derradeiro
Rei
que este Reino teve unido e inteiro.
«Porém,
como a esta terra então viessem
De
lá do seio Arábico outras gentes
Que
o culto Mahomético trouxessem,
No
qual me instituíram meus parentes,
Sucedeu
que, pregando, convertessem
O
Perimal; de sábios e eloquentes,
Fazem-lhe
a Lei tomar com fervor tanto
Que
pros[s]upôs de nela morrer santo.
«Naus
arma e nelas mete, curioso,
Mercadoria
que ofereça, rica,
Pera
ir nelas a ser religioso
Onde
o Profeta jaz que a Lei pubrica.
Antes
que parta, o Reino poderoso
Cos
seus reparte, porque não lhe fica
Herdeiro
próprio; faz os mais aceitos
Ricos,
de pobres; livres, de sujeitos.
«A
um Cochim e a outro Cananor,
A
qual Chale, a qual a Ilha da Pimenta,
A
qual Coulão, a qual dá Cranganor,
E
os mais, a quem o mais serve e contenta.
Um
só moço, a quem tinha muito amor,
Despois
que tudo deu, se lhe apresenta:
Pera
este Calecu sòmente fica,
Cidade
já por trato nobre e rica.
«Esta
lhe dá, co título excelente
De
Emperador, que sobre os outros mande.
Isto
feito, se parte diligente
Pera
onde em santa vida acabe e ande.
E
daqui fica o nome de potente
Çamori,
mais que todos dino e grande,
Ao
moço e descendentes, donde vem
Este
que agora o Império manda e tem.
«A
Lei da gente toda, rica e pobre,
De
fábulas composta se imagina.
Andam
nus e somente um pano cobre
As
partes que a cobrir Natura ensina.
Dous
modos há de gente, porque a nobre
Naires
chamados são, e a menos dina
Poleás
tem por nome, a quem obriga
A
lei não mesturar a casta antiga;
«Porque
os que usaram sempre um mesmo ofício,
De
outro não podem receber consorte;
Nem
os filhos terão outro exercício
Senão
o de seus passados, até morte.
Pera
os Naires é, certo, grande vício
Destes
serem tocados; de tal sorte
Que,
quando algum se toca porventura,
Com
cerimónias mil se alimpa e apura.
«Desta
sorte o Judaico povo antigo
Não
tocava na gente de Samária.
Mais
estranhezas inda das que digo
Nesta
terra vereis de usança vária.
Os
Naires sós são dados ao perigo
Das
armas; sós defendem da contrária
Banda
o seu Rei, trazendo sempre usada
Na
esquerda a adarga e na direita a espada.
«Brâmenes
são os seus religiosos,
Nome
antigo e de grande preminência;
Observam
os preceitos tão famosos
Dum
que primeiro pôs nome à ciência;
Não
matam cousa viva e, temerosos,
Das
carnes têm grandíssima abstinência.
Somente
no Venéreo ajuntamento
Têm
mais licença e menos regimento.
«Gerais
são as mulheres, mas somente
Pera
os da geração de seus maridos
(Ditosa
condição, ditosa gente,
Que
não são de ciúmes ofendidos!)
Estes
e outros costumes vàriamente
São
pelos Malabares admitidos.
A
terra é grossa em trato, em tudo aquilo
Que
as ondas podem dar, da China ao Nilo.»
Assi
contava o Mouro; mas vagando
Andava
a fama já pela cidade
Da
vinda desta gente estranha, quando
O
Rei saber mandava da verdade.
Já
vinham pelas ruas caminhando,
Rodeados
de todo sexo e idade,
Os
principais que o Rei buscar mandara
O
Capitão da armada que chegara.
Mas
ele, que do Rei já tem licença
Pera
desembarcar, acompanhado
Dos
nobres Portugueses, sem detença
Parte,
de ricos panos adornado
Das
cores a fermosa diferença
A
vista alegra ao povo alvoroçado;
O
remo compassado fere frio
Agora
o mar, despois o fresco rio.
Na
prata um regedor do Reino estava
Que,
na sua língua, «Catual» se chama,
Rodeado
de Naires, que esperava
Com
desusada festa o nobre Gama.
Já
na terra, nos braços o levava
E
num portátil leito üa rica cama
Lhe
oferece em que vá (costume usado),
Que
nos ombros dos homens é levado.
Destarte
o Malabar, destarte o Luso,
Caminham
lá pera onde o Rei o espera;
Os
outros Portugueses vão ao uso
Que
infantaria segue, esquadra fera.
O
povo que concorre vai confuso
De
ver a gente estranha, e bem quisera
Perguntar;
mas, no tempo já passado,
Na
Torre de Babel lhe foi vedado.
O
Gama e o Catual iam falando
Nas
cousas que lhe o tempo oferecia;
Monçaide,
entr'eles, vai interpretando
As
palavras que de ambos entendia.
Assi
pela cidade caminhando,
Onde
üa rica fábrica se erguia
De
um sumptuoso templo já chegavam,
Pelas
portas do qual juntos entravam.
Ali
estão das Deidades as figuras,
Esculpidas
em pau e em pedra fria,
Vários
de gestos, vários de pinturas,
A
segundo o Demónio lhe fingia;
Vêm-se
as abomináveis esculturas,
Qual
a Quimera em membros se varia;
Os
cristãos olhos, a ver Deus usados
Em
forma humana, estão maravilhados.
Um,
na cabeça cornos esculpidos,
Qual
Júpiter Amon em Líbia estava;
Outro,
num corpo rostos tinha unidos,
Bem
como o antigo Jano se pintava;
Outro,
com muitos braços divididos,
A
Briareu parece que imitava;
Outro,
fronte canina tem de fora,
Qual
Anúbis Menfítico se adora.
Aqui
feita do bárbaro Gentio
A
supersticiosa adoração,
Direitos
vão, sem outro algum desvio,
Pera
onde estava o Rei do povo vão.
Engrossando-se
vai da gente o fio
Cos
que vêm ver o estranho Capitão.
Estão
pelos telhados e janelas
Velhos
e moços, donas e donzelas.
Já
chegam perto, e não [com] passos lentos,
Dos
jardins odoríferos fermosos,
Que
em si escondem os régios apousentos,
Altos
de torres não, mas sumptuosos;
Edificam-se
os nobres seus assentos
Por
entre os arvoredos deleitosos:
Assi
vivem os Reis daquela gente,
No
campo e na cidade juntamente.
Pelos
portais da cerca a sutileza
Se
enxerga da Dedálea facultade,
Em
figuras mostrando, por nobreza,
Da
Índia a mais remota antiguidade.
Afiguradas
vão com tal viveza
As
histórias daquela antiga idade,
Que
quem delas tiver notícia inteira,
Pela
sombra conhece a verdadeira.
Estava
um grande exército, que pisa
A
terra Oriental que o Idaspe lava;
Rege-o
um capitão de fronte lisa,
Que
com frondentes tirsos pelejava
(Por
ele edificada estava Nisa
Nas
ribeiras do rio que manava),
Tão
próprio que, se ali estiver Semele,
Dirá,
por certo, que é seu filho aquele.
Mais
avante, bebendo, seca o rio
Mui
grande multidão da Assíria gente,
sujeita
a feminino senhorio
De
üa tão bela como incontinente.
Ali
tem, junto ao lado nunca frio,
Esculpido
o feroz ginete ardente
Com
quem teria o filho competência.
Amor
nefando, bruta incontinência!
Daqui
mais apartadas, tremulavam
As
bandeiras de Grécia gloriosas
(Terceira
Monarquia), e sojugavam
Até
as águas Gangéticas undosas.
Dum
capitão mancebo se guiavam,
De
palmas rodeado valerosas,
Que
já não de Filipo, mas, sem falta
De
progénie de Júpiter se exalta.
Os
Portugueses vendo estas memórias,
Dizia
o Catual ao Capitão:
-
«Tempo cedo virá que outras vitórias
Estas
que agora olhais abaterão;
Aqui
se escreverão novas histórias
Por
gentes estrangeiras que virão;
Que
os nossos sábios magos o alcançaram
Quando
o tempo futuro especularam.
«E
diz-lhe mais a mágica ciência
Que,
pera se evitar força tamanho,
Não
valerá dos homens resistência,
Que
contra o Céu não val da gente manha;
Mas
também diz que a bélica excelência,
Nas
armas e na paz, da gente estranha
Será
tal, que será no mundo ouvido
O
vencedor por glória do vencido».
Assi
falando, entravam já na sala
Onde
aquele potente Emperador
Nüa
camilha jaz, que não se iguala
De
outra algüa no preço e no lavor.
No
recostado gesto se assinala
Um
venerando e próspero senhor;
Um
pano de ouro cinge, e na cabeça
De
preciosas gemas se adereça.
Bem
junto dele, um velho reverente,
Cos
giolhos no chão, de quando em quando
Lhe
dava a verde folha da erva ardente,
Que
a seu costume estava ruminando.
Um
Brâmene, pessoa preminente,
Pera
o Gama vem com passo brando,
Pera
que ao grande Príncipe o apresente,
Que
diante lhe acena que se assente.
Sentado
o Gama junto ao rico leito,
Os
seus mais afastados, pronto em vista
Estava
o Samori no trajo e jeito
Da
gente, nunca de antes dele vista.
Lançando
a grave voz do sábio peito,
Que
grande autoridade logo aquista
Na
opinião do Rei e do povo todo,
O
Capitão lhe fala deste modo:
-
«Um grande Rei, de lá das partes onde
O
Céu volúbil, com perpétua roda,
Da
terra a luz solar co a Terra esconde,
Tingindo,
a que deixou, de escura noda,
Ouvindo
do rumor que lá responde
O
eco, como em ti da Índia toda
O
principado está e a majestade,
Vínculo
quer contigo de amizade.
«E
por longos rodeios a ti manda
Por
te fazer saber que tudo aquilo
Que
sobre o mar, que sobre as terras anda,
De
riquezas, de lá do Tejo ao Nilo,
E
desd'a fria plaga de Gelanda
Até
bem donde o Sol não muda o estilo
Nos
dias, sobre a gente de Etiópia,
Tudo
tem no seu Reino em grande cópia.
«E
se queres, com pactos e lianças
De
paz e de amizade, sacra e nua,
Comércio
consentir das abondanças
Das
fazendas da terra sua e tua,
Por
que creçam as rendas e abastanças
(Por
quem a gente mais trabalha e sua)
De
vossos Reinos, será certamente
De
ti proveito, e dele glória ingente.
«E
sendo assi que o nó desta amizade Entre vós firmemente permaneça, A quem o Rei
gentio respondia Estará pronto a toda adversidade
Que
por guerra a teu Reino se ofereça,
Com
gente, armas e naus, de qualidade
Que
por irmão te tenha e te conheça;
E
da vontade em ti sobr'isto posta
Me
dês a mi certíssima resposta.»
Tal
embaxada dava o Capitão,
Que,
em ver embaxadores de nação
Tão
remota, grão glória recebia;
Mas
neste caso a última tenção
Com
os de seu conselho tomaria,
Informando-se
certo de quem era
O
Rei e a gente e terra que dissera;
E
que, entanto, podia do trabalho
Passado
ir repousar; e em tempo breve O Gama e Portugueses no apousento Mancebo Délio
viu, que a luz renova, Daria a seu despacho um justo talho, Com que a seu Rei
reposta alegre leve. Já nisto punha a noite o usado atalho Ás humanas
canseiras, por que ceve De doce sono os membros trabalhados, Os olhos ocupando,
ao ócio dados. Agasalhados foram juntamente Do nobre Regedor da Indica gente,
Com festas e geral contentamento. O Catual, no cargo diligente De seu Rei,
tinha já por regimento Saber da gente estranha donde vinha, Que costumes, que
lei, que terra tinha. Tanto que os ígneos carros do fermoso
Manda
chamar Monçaide, desejoso
De
poder-se informar da gente nova.
Já
lhe pergunta, pronto e curioso,
Se
tem notícia inteira e certa prova
Dos
estranhos, quem são; que ouvido tinha
Que
é gente de sua pátria mui vizinha;
Que
particularmente ali lhe desse
Informação
mui larga, pois fazia
Nisso
serviço ao Rei, por que soubesse
O
que neste negócio se faria
Monçaide
torna: - «posto que eu quisesse
Dizer-te
disto mais, não saberia;
Sòmente
sei que é gente lá de Espanha,
Onde
o meu ninho e o Sol no mar se banha.
«Tem
a lei dum Profeta que gerado
Foi
sem fazer na carne detrimento
Da
mãe, tal que por bafo está aprovado
Do
Deus que tem do Mundo o regimento.
O
que entre meus antigos é vulgado
Deles,
é que o valor sanguinolento
Das
armas no seu braço resplandece,
O
que em nossos passados se parece.
«Porque
eles, com virtude sobre-humana,
Os
deitaram dos campos abundosos
Do
rico Tejo e fresca Guadiana,
Com
feitos memoráveis e famosos;
E
não contentes inda, e na Africana
Parte,
cortando os mares procelosos,
Nos
não querem deixar viver seguros,
Tomando-nos
cidades e altos muros.
«Não
menos têm mostrado esforço e manha
Em
quaisquer outras guerras que aconteçam,
Ou
das gentes belígeras de Espanha,
Ou
lá dalguns que do Pirene deçam.
Assi
que nunca, enfim, com lança estranha
Se
tem que por vencidos se conheçam;
Nem
se sabe inda, não, te afirmo e asselo
Pera
estes Anibais nenhum Marcelo.
«E
s'esta informação não for inteira
Tanto
quanto convém, deles pretende
Informar-te,
que é gente verdadeira,
A
quem mais falsidade enoja e ofende;
Vai
ver-lhe a frota, as armas e a maneira
Do
fundido metal que tudo rende
E
folgarás de veres a polícia
Portuguesa,
na paz e na milícia.»
Já
com desejos o Idolátra ardia
De
ver isto que o Mouro lhe contava;
Manda
esquipar batéis, que ir ver queria
Os
lenhos em que o Gama navegava.
Ambos
partem da praia, a quem seguia
A
Naira geração, que o mar coalhava;
À
capitaina sobem, forte e bela,
Onde
Paulo os recebe a bordo dela.
Purpúreos
são os toldos, e as bandeiras
Do
rico fio são que o bicho gera;
Nelas
estão pintadas as guerreiras
Obras
que o forte braço já fizera;
Batalhas
têm campais aventureiras,
Desafios
cruéis, pintura fera,
Que,
tanto que ao Gentio se apresenta,
A
tento nela os olhos apacenta.
Pelo
que vê pergunta; mas o Gama
Lhe
pedia primeiro que se assente
E
que aquele deleite que tanto ama
A
seita Epicureia experimente.
Dos
espumantes vasos se derrama
O
licor que Noé mostrara à gente;
Mas
comer o Gentio não pretende,
Que
a seita que seguia lho defende.
A
trombeta, que, em paz, no pensamento
Imagem
faz de guerra, rompe os ares;
Co
fogo o diabólico instrumento
se
faz ouvir no fundo lá dos mares.
Tudo
o Gentio nota; mas o intento
Mostrava
sempre ter nos singulares
Feitos
dos homens que, em retrato breve
A
muda poesia ali descreve.
Alça-se
em pé, co ele o Gama junto,
Coelho
de outra parte e o Mauritano; Os olhos põe no bélico trasunto
De
um velho branco, aspeito venerando,
Cujo
nome não pode ser defunto
Enquanto
houver no mundo trato humano:
No
trajo a Grega usança está perfeita;
Um
ramo, por insígnia, na direita.
Um
ramo na mão tinha... Mas, ó cego,
Eu,
que cometo, insano e temerário,
Sem
vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por
caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso
favor invoco, que navego
Por
alto mar, com vento tão contrário
Que,
se não me ajudais, hei grande medo
Que
o meu fraco batel se alague cedo.
Olhai
que há tanto tempo que, cantando
O
vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A
Fortuna me traz peregrinando, Novos trabalhos vendo e novos danos: De novo mais
que nunca derribado; Tal prémio de meus versos me tornassem: A quem os faz,
cantando, gloriosos! Onde feitos diversos engrandeça: Agora o mar, agora
experimentando Os perigos Mavórcios inumanos, Qual Cánace, que à morte se
condena, Nüa mão sempre a espada e noutra a pena; Agora, com pobreza
avorrecida, Por hospícios alheios degradado; Agora, da esperança já adquirida,
Agora às costas escapando a vida, Que dum fio pendia tão delgado Que não menos
milagre foi salvar-se Que pera o Rei Judaico acrecentar-se. E ainda, Ninfas
minhas, não bastava Que tamanhas misérias me cercassem, Senão que aqueles que
eu cantando andava A troco dos descansos que esperava, Das capelas de louro que
me honrassem, Trabalhos nunca usados me inventaram, Com que em tão duro estado
me deitaram. Vede, Ninfas, que engenhos de senhores O vosso Tejo cria
valerosos, Que assi sabem prezar, com tais favores, Que exemplos a futuros
escritores, Pera espertar engenhos curiosos, Pera porem as cousas em memória
Que merecerem ter eterna glória! Pois logo, em tantos males, é forçado Que só
vosso favor me não faleça, Principalmente aqui, que sou chegado
Dai-mo
vós sós, que eu tenho já jurado
Que
não no empregue em quem o não mereça,
Nem
por lisonja louve algum subido,
Sob
pena de não ser agradecido.
Nem
creiais, Ninfas, não, que fama desse
A
quem ao bem comum e do seu Rei
Antepuser
seu próprio interesse,
Imigo
da divina e humana Lei.
Nenhum
ambicioso que quisesse
Subir
a grandes cargos, cantarei,
Só
por poder com torpes exercícios
Usar
mais largamente de seus vícios;
Nenhum
que use de seu poder bastante
Pera
servir a seu desejo feio,
E
que, por comprazer ao vulgo errante,
Se
muda em mais figuras que Proteio.
Nem,
Camenas, também cuideis que cante
Quem,
com hábito honesto e grave, veio,
Por
contentar o Rei, no ofício novo,
A
despir e roubar o pobre povo!
Nem
quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se
a lei do Rei severamente,
E
não acha que é justo e bom respeito
Que
se pague o suor da servil gente;
Nem
quem sempre, com pouco experto peito,
Razões
aprende, e cuida que é prudente,
Pera
taxar, com mão rapace e escassa,
Os
trabalhos alheios que não passa.
Aqueles
sós direi que aventuraram
Por
seu Deus, por seu Rei, a amada vida,
Onde,
perdendo-a, em fama a dilataram,
Tão
bem de suas obras merecida.
Apolo
e as Musas, que me acompanharam,
Me
dobrarão a fúria concedida,
Enquanto
eu tomo alento, descansado,
Por
tornar ao trabalho, mais folgado.
Canto
VIII
Na
primeira figura se detinha
O
Catual que vira estar pintada,
Que
por divisa um ramo na mão tinha,
A
barba branca, longa e penteada.
Quem
era e por que causa lhe convinha
A
divisa que tem na mão tomada?
Paulo
responde, cuja voz discreta
O
Mauritano sábio lhe interpreta:
-
«Estas figuras todas que aparecem,
Bravos
em vista e feros nos aspeitos,
Mais
bravos e mais feros se conhecem,
Pela
fama, nas obras e nos feitos.
Antigos
são, mas inda resplandecem
Co
nome, entre os engenhos mais perfeitos.
Este
que vês, é Luso, donde a Fama
O
nosso Reino «Lusitânia» chama.
«Foi
filho e companheiro do Tebano
Que
tão diversas partes conquistou;
Parece
vindo ter ao ninho Hispano
Seguindo
as armas, que contino usou.
Do
Douro, Guadiana o campo ufano,
Já
dito EIísio, tanto o contentou
Que
ali quis dar aos já cansados ossos
Eterna
sepultura, e nome aos nossos.
«O
ramo que lhe vês, pera divisa,
O
verde tirso foi, de Baco usado;
O
qual à nossa idade amostra e avisa
Que
foi seu companheiro e filho amado.
Vês
outro, que do Tejo a terra pisa,
Despois
de ter tão longo mar arado,
Onde
muros perpétuos edifica,
E
templo a Palas, que em memória fica?
«Ulisses
é, o que faz a santa casa
À
Deusa que lhe dá língua facunda;
Que
se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,
Cá
na Europa Lisboa ingente funda.»
-
«Quem será estoutro cá, que o campo arrasa
De
mortos, com presença furibunda?
Grandes
batalhas tem desbaratadas,
Que
as Águias nas bandeiras tem pintadas!»
Assi
o Gentio diz. Responde o Gama:
-
«Este que vês, pastor já foi de gado;
Viriato
sabemos que se chama,
Destro
na lança mais que no cajado;
Injuriada
tem de Roma a fama,
Vencedor
invencíbil, afamado.
Não
tem com ele, não, nem ter puderam,
O
primor que com Pirro já tiveram.
«Com
força, não; com manha vergonhosa
A
vida lhe tiraram, que os espanta;
Que
o grande aperto, em gente inda que honrosa,
As
vezes leis magnânimas quebranta.
Outro
está aqui que, contra a pátria irosa,
Degradado,
connosco se alevanta;
Escolheu
bem com quem se alevantasse
Pera
que eternamente se ilustrasse.
Vês,
connosco também vence as bandeiras
Dessas
aves de Júpiter validas;
Que
já naquele tempo as mais guerreiras
Gentes
de nós souberam ser vencidas.
Olha
tão sutis artes e maneiras
Pera
adquirir os povos, tão fingidas:
A
fatídica cerva que o avisa.
Ele
é Sertório, e ela a sua divisa.
«OIha
estoutra bandeira, e vê pintado
O
grão progenitor dos Reis primeiros:
Nós
Húngaro o fazemos, porém nado
Crêm
ser em Lotaríngia os estrangeiros.
Despois
de ter, cos Mouros, superado
Galegos
e Lioneses cavaleiros,
À
Casa Santa passa o santo Henrique,
Por
que o tronco dos Reis se santifique.»
-
«Quem é, me dize, estoutro que me espanta
(Pergunta
o Malabar maravilhado),
Que
tantos esquadrões, que gente tanta,
Com
tão pouca, tem roto e destroçado?
Tantos
muros aspérrimos quebranta,
Tantas
batalhas dá, nunca cansado,
Tantas
coroas tem, por tantas partes,
A
seus pés derribadas, e estandartes?»
-
«Este é o primeiro Afonso (disse o Gama),
Que
todo Portugal aos Mouros toma;
Por
quem no Estígio lago jura a Fama
De
mais não celebrar nenhum de Roma.
Este
é aquele zeloso a quem Deus ama,
Com
cujo braço o Mouro imigo doma,
Pera
quem de seu Reino abaxa os muros,
Nada
deixando já pera os futuros.
«Se
César, se Alexandre Rei, tiveram
Tão
pequeno poder, tão pouca gente,
Contra
tantos imigos quantos eram
Os
que desbaratava este excelente,
Não
creias que seus nomes se estenderam
Com
glórias imortais tão largamente;
Mas
deixa os feitos seus inexplicáveis,
Vê
que os de seus vassalos são notáveis.
«Este
que vês olhar, com gesto irado,
Pera
o rompido aluno mal sofrido,
Dizendo-lhe
que o exército espalhado
Recolha,
e torne ao campo defendido;
Torna
o Moço, do velho acompanhado,
Que
vencedor o torna de vencido:
Egas
Moniz se chama o forte velho,
Pera
leais vassalos claro espelho.
«Vê-lo
cá vai cos filhos a entregar-se,
A
corda ao colo, nu de seda e pano,
Porque
não quis o Moço sujeitar-se,
Como
ele prometera, ao Castelhano.
Fez
com siso e promessas levantar-se
O
cerco, que já estava soberano.
Os
filhos e mulher obriga à pena:
Pera
que o senhor salve, a si condena.
«Não
fez o Cônsul tanto que cercado
Foi
nas Forcas Caudinas, de ignorante,
Quando
a passar por baxo foi forçado
Do
Samnítico jugo triunfante.
Este,
pelo seu povo injuriado,
A
si se entrega só, firme e constante;
Estoutro
a si e os filhos naturais
E a
consorte sem culpa, que dói mais.
«Vês
este que, saindo da cilada,
Dá
sobre o Rei que cerca a vila forte?
Já
o Rei tem preso e a vila descercada;
Ilustre
feito, dino de Mavorte!
Vê-lo
cá vai pintado nesta armada,
No
mar também aos Mouros dando a morte,
Tomando-lhe
as galés, levando a glória
Da
primeira marítima vitória:
É
Dom Fuas Roupinho, que na terra
E
no mar resplandece juntamente,
Co
fogo que acendeu junto da serra
De
Ábila, nas galés da Maura gente.
Olha
como, em tão justa e santa guerra,
De
acabar pelejando está contente.
Das
mãos dos Mouros entra a felice alma,
Triunfando,
nos Céus, com justa palma.
«Não
vês um ajuntamento, de estrangeiro
Trajo,
sair da grande armada nova,
Que
ajuda a combater o Rei primeiro
Lisboa,
de si dando santa prova?
Olha
Heurique, famoso cavaleiro,
A
palma que lhe nasce junto à cova.
Por
eles mostra Deus milagre visto;
Germanos
são os Mártires de Cristo.
«Um
Sacerdote vê, brandindo a espada
Contra
Arronches, que toma, por vingança.
De
Leiria, que de antes foi tomada
Por
quem por Mafamede enresta a lança:
É
Teotónio Prior. Mas vê cercada
Santarém,
e verás a segurança
Da
figura nos muros que, primeira
Subindo,
ergueu das Quinas a bandeira.
Vê-lo
cá, donde Sancho desbarata
Os
Mouros de Vandália em fera guerra;
Os
imigos rompendo, o alferes mata
E
Hispálico pendão derriba em terra:
Mem
Moniz é, que em si o valor retrata
Que
o sepulcro do pai cos ossos corra.
Dino
destas bandeiras, pois sem falta
A
contrária derriba e a sua exalta.
«Olha
aquele que dece pela lança,
Com
as duas cabeças dos vigias,
Ande
a cilada esconde, com que alcança
A
cidade, por manhas e ousadias.
Ela
por armas toma a semelhança
Do
cavaleiro que as cabeças frias
Na
mão levava (feito nunca feito!):
Giraldo
Sem Pavor é o forte peito.
«Não
vês um Castelhano, que, agravado
De
Afonso nono, Rei, pelo ódio antigo
Dos
de Lara, cos Mouros é deitado,
De
Portugal fazendo-se inimigo?
Abrantes
vila toma, acompanhado
Dos
duros Infiéis que traz consigo;
Mas
vê que um Português com pouca gente
O
desbarata e o prende ousadamente.
.
«Martim Lopes se chama o cavaleiro
que
destes levar pode a palma e o louro.
Mas
olha um Eclesiástico guerreiro,
Que
em lança de aço torna o bago de ouro.
Vê-lo,
entre os duvidosos, tão inteiro
Em
não negar batalha ao bravo Mouro;
Olha
o sinal no Céu, que lhe aparece,
Com
que nos poucos seus o esforço crece
.
«Vês, vão os Reis de Córdova e Sevilha
Rotos,
cos outros dous, e não de espaço;
Rotos?
Mas antes mortos: maravilha
Feita
de Deus, que não de humano braço.
Vês?
Já a vila de Alcácere se humilha,
Sem
lhe valer defesa ou muro de aço,
A
Dom Mateus, o Bispo de Lisboa,
Que
a coroa de palma ali coroa.
«Olha
um Mestre que dece de Castela,
Português
de nação, como conquista
A
terra dos Algarves, e já nela
Não
acha que por armas lhe resista.
Com
manha, esforço e com benigna estrela,
Vilas,
castelos, toma à escala vista.
Vês
Tavila tomada aos moradores,
Em
vingança dos sete caçadores?
«Vês,
com bélica astúcia ao Mouro ganha
Silves,
que ele ganhou com força ingente:
É
Dom Paio Correia, cuja manha
E
grande esforço faz enveja à gente.
Mas
não passes os três que em França e Espanha
Se
fazem conhecer perpètuamente
Em
desafios, justas e tornéus,
Nelas
deixando públicos troféus.
«Vê-los
co nome vêm de aventureiros
A
Castela, onde o preço sós levaram
Dos
jogos de Belona verdadeiros,
Que
com dano de alguns se exercitaram.
Vê
mortos os soberbos cavaleiros
Que
o principal dos três desafiaram,
Que
Gonçalo Ribeiro se nomeia,
Que
pode não temer a lei Leteia.
«Atenta
num que a fama tanto estende
Que
de nenhum passado se contenta;
Que
a Pátria, que de um fraco fio pende,
Sobre
seus duros ombros a sustenta.
Não
no vês tinto de ira, que reprende
A
vil desconfiança, inerte e lenta,
Do
povo, e faz que tome o doce freio
De
Rei seu natural, e não de alheio?
«Olha:
por seu conselho e ousadia,
De
Deus guiada só e de santa estrela,
Só,
pode o que impossíbil parecia:
Vencer
o povo ingente de Castela.
Vês,
por indústria, esforço e valentia,
Outro
estrago e vitória, clara e bela,
Na
gente, assi feroz como infinita,
Que
entre o Tarteso e Guadiana habita?
«Mas
não vês quási já desbaratado
O
poder Lusitano, pela ausência
Do
Capitão devoto, que, apartado,
Orando
invoca a suma e trina Essência?
Vê-lo
com pressa já dos seus achado,
Que
lhe dizem que falta resistência
Contra
poder tamanho, e que viesse
Por
que consigo esforço aos fracos desse.
«Mas
olha com que santa confiança,
Que
«inda não era tempo» respondia,
Como
quem tinha em Deus a segurança
Da
vitória que logo lhe daria.
Assi
Pompílio, ouvindo que a possança
Dos
imigos a terra lhe corria,
A
quem lhe a dura nova estava dando,
«Pois
eu (responde) estou sacrificando.»
«Se
quem com tanto esforço em Deus se atreve
Ouvir
quiseres como se nomeia,
«Português
Cipião» chamar-se deve;
Mas
mais de «Dom Nuno Álvares» se arreia.
Ditosa
pátria que tal filho teve!
Mas
antes, pai! que, enquanto o Sol rodeia
Este
globo de Ceres e Neptuno,
Sempre
suspirará por tal aluno.
«Na
mesma guerra vê que presas ganha
Estoutro
Capitão de pouca gente;
Comendadores
vence e o gado apanha
Que
levavam roubado ousadamente;
Outra
vez vê que a lança em sangue banha
Destes,
só por livrar, co amor ardente,
O
preso amigo, preso por leal:
Pero
Rodrigues é do Landroal.
«Olha
este desleal e como paga
O
perjúrio que fez e vil engano;
Gil
Fernandes é de Elvas quem o estraga
E
faz vir a passar o último dano:
De
Xerez rouba o campo e quási alaga
Co
sangue de seus donos Castelhano.
Mas
olha Rui Pereira, que co rosto
Faz
escudo às galés, diante posto.
«Olha
que dezessete Lusitanos,
Neste
outeiro subidos, se defendem
Fortes,
de quatrocentos Castelhanos,
Que
em derredor, pelos tomar, se estendem;
Porém
logo sentiram, com seus danos,
Que
não só se defendem, mas ofendem.
Dino
feito de ser, no mundo, eterno,
Grande
no tempo antigo e no moderno!
«Sabe-se
antigamente que trezentos
Já
contra mil Romanos pelejaram,
No
tempo que os viris atrevimentos
De
Viriato tanto se ilustraram,
E
deles alcançando vencimentos
Memoráveis,
de herança nos deixaram
Que
os muitos, por ser poucos, não temamos;
Que
despois mil vezes amostramos.
«Olha
cá dons Infantes, Pedro e Henrique,
Progénie
generosa de Joane;
Aquele
faz que fama ilustre fique
Dele
em Germânia, com que a morte engane;
Este,
que ela nos mares o pubrique
Por
seu descobridor, e desengane
De
Ceita a Maura túmida vaidade,
Primeiro
entrando as portas da cidade.
«Vês
o Conde Dom Pedro, que sustenta
Dous
cercos contra toda a Barbaria.
Vês,
outro Conde está, que representa
Em
terra Marte, em forças e ousadia;
De
poder defender se não contenta
Alcácere,
da ingente companhia;
Mas
do seu Rei defende a cara vida,
Pondo
por muro a sua, ali perdida.
«Outros
muitos verias, que os pintores
Aqui
também por certo pintariam;
Mas
falta-lhe pincel, faltam-lhe cores:
Honra,
prémio, favor, que as artes criam.
Culpa
dos viciosos sucessores,
Que
degeneram, certo, e se desviam
Do
lustre e do valor dos seus passados,
Em
gostos e vaidades atolados.
«Aqueles
pais ilustres que já deram
Princípio
à geração que deles pende,
Pela
virtude muito antão fizeram
E
por deixar a casa que descende.
Cegos,
que, dos trabalhos que tiveram,
Se
alta fama e rumor deles se estende,
Escuros
deixam sempre seus menores,
Com
lhe deixar descansos corrutores!
«Outros
também há grandes e abastados,
Sem
nenhum tronco ilustre donde venham:
Culpa
de Reis, que às vezes a privados
Dão
mais que a mil que esforço e saber tenham.
Estes
os seus não querem ver pintados,
Crendo
que cores vãs lhe não convenham,
E,
como a seu contrairo natural,
A
pintura que fala querem mal.
«Não
nego que há, contudo, descendentes
Do
generoso tronco e casa rica,
Que,
com costumes altos e excelentes,
Sustentam
a nobreza que lhe fica;
E
se a luz dos antigos seus parentes
Neles
mais o valor não clarifica,
Não
falta, ao menos, nem se faz escura;
Mas
destes acha poucos a pintura.»
Assi
está declarando os grandes feitos
O
Gama, que ali mostra a vária tinta
Que
a douta mão tão claros, tão perfeitos.
Do
singular artífice ali pinta.
Os
olhos tinha prontos e direitos
O
Catual na história bem distinta;
Mil
vezes perguntava e mil ouvia
As
gostosas batalhas que ali via.
Mas
já a luz se mostrava duvidosa,
Porque
a alâmpada grande se escondia
Debaxo
do Horizonte e, luminosa,
Levava
aos Antípodas o dia,
Quando
o Gentio e a gente generosa
Dos
Naires da nau forte se partia,
A
buscar o repouso que descansa
Os
lassos animais, na noite mansa.
Entretanto,
os arúspices famosos
Na
falsa opinião, que em sacrifícios
Antevêm
sempre os casos duvidosos
Por
sinais diabólicos e indícios,
Mandados
do Rei próprio, estudiosos,
Exercitavam
a arte e seus ofícios,
Sobre
esta vinda desta gente estranha,
Que
às suas terras vem da ignota Espanha.
Sinal
lhe mostra o Demo, verdadeiro,
De
como a nova gente lhe seria
Jugo
perpétuo, eterno cativeiro,
Destruição
de gente e de valia.
Vai-se
espantado o atónito agoureiro
Dizer
ao Rei (segundo o que entendia)
Os
sinais temerosos que alcançara
Nas
entranhas das vítimas que oulhara.
A
isto mais se ajunta que um devoto
Sacerdote
da lei de Mafamede,
Dos
ódios concebidos não remoto
Contra
a divina Fé, que tudo excede,
Em
forma do Profeta falso e noto
Que
do filho da escrava Agar procede,
Baco
odioso em sonhos lhe aparece,
Que
de seus ódios inda se não dece.
E
diz-lhe assi: - «Guardai-vos, gente minha,
Do
mal que se aparelha pelo imigo
Que
pelas águas húmidas caminha,
Antes
que esteis mais perto do perigo!»
Isto
dizendo, acorda o Mouro asinha,
Espantado
do sonho; mas consigo
Cuida
que não é mais que sonho usado;
Torna
a dormir, quieto e sossegado.
Torna
Baco dizendo: - «Não conheces
O
grão legislador que a teus passados
Tem
mostrado o preceito a que obedeces,
Sem
o qual fôreis muitos baptizados?
Eu
por ti, rudo, velo, e tu adormeces?
Pois
saberás que aqueles que chegados
De
novo são, serão mui grande dano
Da
Lei que eu dei ao néscio povo humano.
«Enquanto
é fraca a força desta gente,
ordena
como em tudo se resista;
Porque,
quando o Sol sai, fàcilmente
Se
pode nele pôr a aguda vista;
Porém,
despois que sobe claro e ardente.
Se
agudeza dos olhos o conquista,
Tão
cega fica, quanto ficareis
Se
raízes criar lhe não tolheis.»
Isto
dito, ele e o sono se despede
Tremendo
fica o atónito Agareno;
Salta
da cama, lume aos servos pede,
Lavrando
nele o férvido veneno.
Tanto
que a nova luz que ao Sol precede
Mostrara
rosto angélico e sereno,
Convoca
os principais da torpe seita,
Aos
quais do que sonhou dá conta estreita.
Diversos
pareceres e contrários
Ali
se dão, segundo o que entendiam;
Astutas
traições, enganos vários,
Perfídias,
inventavam e teciam;
Mas,
deixando conselhos temerários,
Destruição
da gente pretendiam,
Por
manhas mais sutis e ardis milhores,
Com
peitas adquirindo os regedores.
Com
peitas, ouro e dádivas secretas
Conciliam
da terra os principais;
E
com razões notáveis e discretas
Mostram
ser perdição dos naturais,
Dizendo
que são gentes inquietas,
Que,
os mares discorrendo Ocidentais,
Vivem
só de piráticas rapinas,
Sem
Rei, sem leis humanas ou divinas.
Oh,
quanto deve o Rei que bem governa
De
olhar que os conselheiros ou privados
De
consciência e de virtude interna
E
de sincero amor sejam dotados!
Porque,
como estê posto na superna
Cadeira,
pode mal dos apartados
Negócios
ter notícia mais inteira
Do
que lhe der a língua conselheira.
Nem
tão-pouco direi que tome tanto
Em
grosso a consciência limpa e certa,
Que
se enleve num pobre e humilde manto,
Onde
ambição acaso ande encoberta.
E,
quando um bom em tudo é justo e santo,
E
em negócios do mundo pouco acerta;
Que
mal co eles poderá ter conta
A
quieta inocência, em só Deus pronta.
Mas
aqueles avaros Catuais
Que
o Gentílico povo governavam,
Induzidos
das gentes infernais,
O
Português despacho dilatavam.
Mas
o Gama, que não pretende mais,
De
tudo quanto os Mouros ordenavam,
Que
levar a seu Rei um sinal certo
Do
mundo que deixava descoberto,
Nisto
trabalha só; que bem sabia
Que
despois, que levasse esta certeza,
Armas
e naus e gentes mandaria
Manuel,
que exercita a suma alteza,
Com
que a seu jugo e Lei someteria
Das
terras e do mar a redondeza;
Que
ele não era mais que um diligente
Descobridor
das terras do Oriente.
Falar
ao Rei gentio determina,
Por
que com seu despacho se tornasse,
Que
já sentia em tudo da malina
Gente
impedir-se quanto desejasse.
O
Rei, que da notícia falsa e indina
São
era de espantar se s'espantasse,
Que
tão crédulo era em seus agouros,
E
mais sendo afirmados pelos Mouros,
Este
temor lhe esfria o baixo peito.
Por
outra parte, a força da cobiça,
A
quem por natureza está sujeito,
Um
desejo imortal lhe acende e atiça:
Que
bem vê que grandíssimo proveito
Fará,
se, com verdade e com justiça,
O
contrato fizer, por longos anos,
Que
lhe comete o Rei dos Lusitanos.
Sobre
isto, nos conselhos que tomava,
Achava
mui contrários pareceres;
Que
naqueles com quem se aconselhava
Executa
o dinheiro seus poderes.
O
grande Capitão chamar mandava,
A
quem chegado disse:- «Se quiseres
Confessar-me
a verdade limpa e nua,
Perdão
alcançarás da culpa tua.
Ó
poderoso Rei, da torpe seita,
Não
conceberas tu tão má suspeita.
«Mas,
porque nenhum grande bem se alcança
Sem
grandes opressões, e em todo o feito
Segue
o temor os passos da esperança,
Que
em suor vive sempre de seu peito,
Me
mostras tu tão pouca confiança
Desta
minha verdade, sem respeito
Das
razões em contrário que acharias
Se
não cresses a quem não crer devias.
«Porque,
se eu de rapinas só vivesse,
Undívago
ou da pátria desterrado,
Como
crês que tão longe me viesse
Buscar
assento incógnito e apartado?
Por
que esperanças, ou por que interesse
Viria
exprimentando o mar irado,
Os
Antárticos frios e os ardores
Que
sofrem do Carneiro os moradores?
Não
causaram que o vaso da nequícia,
Açoute
tão cruel da Cristandade,
Viera
pôr perpétua inimicícia
Na
geração de Adão, co a falsidade,
«Eu
sou bem informado que a embaxada
Que
de teu Rei me deste, que é fingida;
Porque
nem tu tens Rei, nem pátria amada,
Mas
vagabundo vás passando a vida.
Que
quem da Hespéria última alongada,
Rei
ou senhor de insânia desmedida,
Há-de
vir cometer, com naus e frotas,
Tão
incertas viagens e remotas?
«E
se de grandes Reinos poderosos
O
teu Rei tem a Régia majestade,
Que
presentes me trazes valerosos,
Sinais
de tua incógnita verdade?
Com
peças e dões altos, sumptuosos,
Se
lia dos Reis altos a amizade;
Que
sinal nem penhor não é bastante
As
palavras dum vago navegante.
«Se
porventura vindes desterrados,
Como
já foram homens d'alta sorte,
Em
meu Reino sereis agasalhados,
Que
toda a terra é pátria pera o forte;
Ou
se piratas sois, ao mar usados,
Dizei-mo
sem temor de infâmia ou morte,
Que,
por se sustentar, em toda idade
Tudo
faz a vital necessidade.»
Isto
assi dito, o Gama, que já tinha
Suspeitas
das insídias que ordenava
O
Mahomético ódio, donde vinha
Aquilo
que tão mal o Rei cuidava,
Cüa
alta confiança, que convinha,
Com
que seguro crédito alcançava,
Que
Vénus Acidália lhe influía,
Pais
palavras do sábio peito abria:
-
«Se os antigos delitos que a malícia
Humana
cometeu na prisca idade
«Se
com grandes presentes d'alta estima
O
crédito me pedes do que digo,
Eu
não vim mais que a achar o estranho clima
Onde
a Natura pôs teu Reino antigo;
Mas,
se a Fortuna tanto me sublima, Que eu torne à minha pátria e Reino amigo,
Então
verás o dom soberbo e rico
Com
que minha tornada certifico.
«Se
te parece inopinado feito
Que
Rei da última Hespéria a ti me mande,
O
coração sublime, o régio peito,
Nenhum
caso possíbil tem por grande.
Bem
parece que o nobre e grão conceito
Do
Lusitano espírito demande
Maior
crédito e fé de mais alteza,
Que
creia dele tanta fortaleza
«Sabe
que há muitos anos que os antigos
Reis
nossos firmemente propuseram
De
vencer os trabalhos e perigos
Que
sempre às grandes cousas se opuseram;
E,
descobrindo os mares inimigos
Do
quieto descanso, pretenderam
De
saber que fim tinham e onde estavam
As
derradeiras praias que lavavam.
«Conceito
dino foi do ramo claro
Do
venturoso Rei que arou primeiro
O
mar, por ir deitar do ninho caro
O
morador de Abila derradeiro;
Este,
por sua indústria e engenho raro,
Num
madeiro ajuntando outro madeiro,
Descobrir
pôde a parte que faz clara
De
Argos, da Hidra a luz, da Lebre e da Ara.
«Crescendo
cos sucessos bons primeiros
No
peito as ousadias, descobriram,
Pouco
e pouco, caminhos estrangeiros,
Que,
uns sucedendo aos outros, prosseguiram.
De
África os moradores derradeiros
Austrais,
que nunca as Sete Flamas viram,
Foram
vistos de nós, atrás deixando
Quantos
estão os Trópicos queimando.
«Assi,
com firme peito e com tamanho
Propósito
vencemos a Fortuna,
Até
que nós no teu terreno estranho
Viemos
pôr a última coluna.
Rompendo
a força do líquido estanho,
Da
tempestade horrífica e importuna,
A
ti chegámos, de quem só queremos
Sinal
que ao nosso Rei de ti levemos.
«Esta
é a verdade, Rei; que não faria
Por
tão incerto bem, tão fraco prémio,
Qual,
não sendo isto assi, esperar podia,
Tão
longo, tão fingido e vão proémio;
Mas
antes descansar me deixaria
No
nunca descansado e fero grémio
Da
madre Tétis, qual pirata inico,
Dos
trabalhos alheios feito rico.
«Assi
que, ó Rei, se minha grão verdade
Tens
por qual é, sincera e não dobrada,
Ajunta-me
ao despacho brevidade,
Não
me impidas o gosto da tornada;
E,
se inda te parece falsidade,
Cuida
bem na razão que está provada,
Que
com claro juízo pode ver-se,
Que
fácil é a verdade d'entender-se.»
A
tento estava o Rei na segurança
Com
que provava o Gama o que dizia;
Concebe
dele certa confiança,
Crédito
firme, em quanto proferia;
Pondera
das palavras a abastança,
Julga
na autoridade grão valia,
Começa
de julgar por enganados
Os
Catuais corrutos, mal julgados.
Juntamente,
a cobiça do proveito
Que
espera do contrato Lusitano
O
faz obedecer e ter respeito.
Co
Capitão, e não co Mauro engano.
Enfim
ao Gama manda que direito
As
naus se vá e, seguro dalgum dano,
Possa
a terra mandar qualquer fazenda
Que
pela especiaria troque e venda.
Que
mande da fazenda, enfim, lhe manda
Que
nos Reinos Gangéticos faleça,
S'algüa
traz idónea lá da banda
Donde
a terra se acaba e o mar começa.
Já
da real presença veneranda
Se
parte o Capitão, pera onde peça
Ao
Catual que dele tinha cargo,
Embarcação,
que a sua está de largo.
Embarcação
que o leve às naus lhe pede,
Mas
o mau Regedor, que novos laços
Lhe
maquinava, nada lhe concede,
Interpondo
tardanças e embaraços.
Co
ele parte ao cais, por que o arrede
Longe
quanto puder dos régios paços,
Onde,
sem que seu Rei tenha notícia
Faça
o que lhe ensinar sua malícia.
Lá
bem longe lhe diz que lhe daria
Embarcação
bastante em que partisse,
Ou
que pera a luz crástina do dia
Futuro,
sua partida diferisse.
Já
com tantas tardanças entendia
O
Gama que o Gentio consentisse
Na
má tenção dos Mouros, torpe e fera,
O
que dele até'li não entendera.
Era
este Catual um dos que estavam
Corrutos
pela Maumetana gente,
O
principal por quem se governavam
As
cidades do Samorim potente.
Dele
sòmente os Mouros esperavam
Efeito
a seus enganos torpemente;
Ele,
que no concerto vil conspira,
De
suas esperanças não delira.
O
Gama com instância lhe requer
Que
o mande pôr nas naus, e não lhe val;
E
que assi lho mandara, lhe refere,
O
nobre sucessor de Perimal.
Por
que razão lhe impede e lhe difere
A
fazenda trazer de Portugal?
Pois
aquilo que os Reis já têm mandado
Não
pode ser por outrem derrogado.
Pouco
obedece o Catual corruto
A
tais palavras; antes, revolvendo
Na
fantasia algum sutil e astuto
Engano
diabólico e estupendo,
Ou
como banhar possa o ferro bruto
No
sangue avorrecido, estava vendo,
Ou
como as naus em fogo lhe abrasasse,
Por
que nenhüa à pátria mais tornasse.
Que
nenhum torne à pátria só pretende
O
conselho infernal dos Maumetanos,
Por
que não saiba nunca onde se estende
A
terra Eoa o Rei dos Lusitanos.
Não
parte o Gama, enfim, que lho defende
O
Regedor dos Bárbaros profanos;
Nem
sem licença sua ir-se podia,
Que
as almadias todas lhe tolhia.
Aos
brados e razões do Capitão
Responde
o Idolátra, que mandasse
Chegar
à terra as naus, que longe estão,
Por
que milhor dali fosse e tornasse.
-
«Sinal é de inimigo e de ladrão
Que
lá tão longe a frota se alargasse,
(Lhe
diz), porque do certo e fido amigo
É
não temer do seu nenhum perigo.»
Nestas
palavras o discreto Gama
Enxerga
bem que as naus deseja perto
O
Catual, por que com ferro e flama
Lhas
assalte, por ódio descoberto.
Em
vários pensamentos se derrama;
Fantasiando
está remédio certo
Que
desse a quanto mal se lhe ordenava;
Tudo
temia, tudo, enfim, cuidava.
Qual
o reflexo lume do polido
Espelho
de aço ou de cristal fermoso,
Que,
do raio solar sendo ferido,
Vai
ferir noutra parte, luminoso,
E,
sendo da ouciosa mão movido,
Pela
casa, do moço curioso,
Anda
pelas paredes e telhado
Trémulo,
aqui e ali, e dessossegado:
Tal
o vago juizo fluctuava
Do
Gama preso, quando lhe lembrara
Coelho,
se por acaso o esperava
Na
praia cos batéis, como ordenara.
Logo
secretamente lhe mandava
Que
se tornasse à frota, que deixara,
Não
fosse salteado dos enganos
Que
esperava dos feros Maumetanos.
Tal
há-de ser quem quer, co dom de Marte,
Imitar
os Ilustres e igualá-los:
Voar
co pensamento a toda parte,
Adivinhar
perigos e evitá-los,
Com
militar engenho e sutil arte,
Entender
os imigos e enganá-los,
Crer
tudo, enfim; que nunca louvarei
O
capitão que diga: «Não cuidei.»
Insiste
o Malabar em tê-lo preso
Se
neo manda chegar a terra a armada;
Ele,
constante e de ira nobre aceso,
Os
ameaços seus não teme nada;
Que
antes quer sobre si tomar o peso
De
quanto mal a vil malícia ousada
Lhe
andar armando, que pôr em ventura
A
frota de seu Rei, que tem segura.
Aquela
noite esteve ali detido
E
parte do outro dia, quando ordena
De
se tornar ao Rei; mas impedido
Foi
da guarda que tinha, não pequena.
Comete-lhe
o Gentio outro partido,
Temendo
de seu Rei castigo ou pena
Se
sabe esta malícia, a qual asinha
Saberá,
se mais tempo ali o detinha.
Diz-lhe
que mande vir toda a fazenda
Vendíbil
que trazia, pera a terra,
Pera
que, devagar, se troque e venda;
Que,
quem não quer comércio, busca guerra.
Posto
que os maus propósitos entenda
O
Gama, que o danado peito encerra,
Consente,
porque sabe por verdade
Que
compra co a fazenda a liberdade.
Concertam-se
que o Negro mande dar
Embarcações
idóneas com que venha;
Que
os seus batéis não quer aventurar
Onde
lhos tome o imigo, ou lhos detenha.
Partem
as almadias a buscar
Mercadoria
Hispana que convenha;
Escreve
a seu irmão que lhe mandasse
A
fazenda com que se resgatasse.
Vem
a fazenda a terra, aonde logo
A
agasalhou o infame Catual;
Co
ela ficam Álvaro e Diogo,
Que
a pudessem vender pelo que val.
Se
mais que obrigação, que mando e rogo,
No
peito vil o prémio pode e val,
Bem
o mostra o Gentio a quem o entenda,
Pois
o Gama soltou pela fazenda.
Por
ela o solta, crendo que ali tinha
Penhor
bastante, donde recebesse
Interesse
maior do que lhe vinha
Se
o Capitão mais tempo detivesse.
Ele,
vendo que já lhe não convinha
Tornar
a terra, por que não pudesse
Ser
mais retido, sendo às naus chegado
Nelas
estar se deixa descansado.
Nas
naus estar se deixa, vagaroso,
Até
ver o que o tempo lhe descobre;
Que
não se fia já do cobiçoso
Regedor,
corrompido e pouco nobre.
Veja
agora o juízo curioso
Quanto
no rico, assi como no pobre,
Pode
o vil interesse e sede imiga
Do
dinheiro, que a tudo nos obriga.
A
Polidoro mata o Rei Treício,
Só
por ficar senhor do grão tesouro;
Entra,
pelo fortíssimo edifício,
Com
a filha de Acriso a chuva d'ouro;
Pode
tanto em Tarpeia avaro vício
Que,
a troco do metal luzente e louro,
Entrega
aos inimigos a alta torre,
Do
qual quási afogada em pago morre.
Este
rende munidas fortalezas;
Faz
trédoros e falsos os amigos;
Este
a mais nobres faz fazer vilezas,
E
entrega Capitães aos inimigos;
Este
corrompe virginais purezas,
Sem
temer de honra ou fama alguns perigos;
Este
deprava às vezes as ciências,
Os
juízos cegando e as consciências.
Este
interpreta mais que sutilmente
Os
textos; este faz e desfaz leis;
Este
causa os perjúrios entre a gente
E
mil vezes tiranos torna os Reis.
Até
os que só a Deus omnipotente
Se
dedicam, mil vezes ouvireis
Que
corrompe este encantador, e ilude;
Mas
não sem cor, contudo, de virtude!
Canto
IX
Tiveram
longamente na cidade,
Sem
vender-se, a fazenda os dous feitores,
Que
os Infiéis, por manha e falsidade,
Fazem
que não lha comprem mercadores;
Que
todo seu propósito e vontade
Era
deter ali os descobridores
Da
Índia tanto tempo que viessem
De
Meca as naus, que as suas desfizessem.
Lá
no seio Eritreu, onde fundada
Arsínoe
foi do Egípcio Ptolomeu
(Do
nome da irmã sua assi chamada,
Que
despois em Suez se converteu),
Não
longe o porto jaz da nomeada
Cidade
Meca, que se engrandeceu
Com
a superstição falsa e profana
Da
religiosa água Maumetana.
Gidá
se chama o porto aonde o trato
De
todo o Roxo Mar mais florecia,
De
que tinha proveito grande e grato
O
Soldão que esse Reino possuía.
Daqui
aos Malabares, por contrato
Dos
Infiéis, fermosa companhia
De
grandes naus, pelo Índico Oceano,
Especiaria
vem buscar cada ano.
Por
estas naus os Mouros esperavam,
Que,
como fossem grandes e possantes,
Aquelas
que o comércio lhe tomavam,
Com
flamas abrasassem crepitantes.
Neste
socorro tanto confiavam
Que
já não querem mais dos navegantes
Senão
que tanto tempo ali tardassem
Que
da famosa Meca as naus chegassem.
Mas
o Governador dos Céus e gentes,
Que,
pera quanto tem determinado,
De
longe os meios dá convenientes
Por
onde vem a efeito o fim fadado,
Influiu
piadosos acidentes
De
afeição em Monçaide, que guardado
Estava
pera dar ao Gama aviso
E
merecer por isso o Paraíso.
Este,
de quem se os Mouros não guardavam
Por
ser Mouro como eles (antes era
Participante
em quanto maquinavam),
A
tenção lhe descobre torpe e fera.
Muitas
vezes as naus que longe estavam
Visita,
e com piedade considera
O
dano sem razão que se lhe ordena
Pela
maligna gente Sarracena.
Informa
o cauto Gama das armadas
Que
de Arábica Meca vem cad'ano,
Que
agora são dos seus tão desejadas,
Pera
ser instrumento deste dano;
Diz-lhe
que vêm de gente carregadas
E
dos trovões horrendos de Vulcano,
E
que pode ser delas oprimido,
Segundo
estava mal apercebido.
O
Gama, que também considerava
O
tempo que pera a partida o chama,
E
que despacho já não esperava
Milhor
do Rei, que os Maumetanos ama,
Aos
feitores que em terra estão, mandava
Que
se tornem às naus; e, por que a fama
Desta
súbita vinda os não impida,
Lhe
manda que a fizessem escondida.
Porém
não tardou muito que, voando,
Um
rumor não soasse, com verdade:
Que
foram presos os feitores, quando
Foram
sentidos vir-se da cidade.
Esta
fama as orelhas penetrando
Do
sábio Capitão, com brevidade
Faz
represária nuns que às naus vieram
A
vender pedraria que trouxeram.
Eram
estes antigos mercadores
Ricos
em Calecu e conhecidos;
Da
falta deles, logo entre os milhores
Sentido
foi que estão no mar retidos.
Mas
já nas naus os bons trabalhadores
Volvem
o cabrestante e, repartidos
Pelo
trabalho, uns puxam pela amarra,
Outros
quebram co peito duro a barra,
Outros
pendem da verga e já desatam
A
vela, que com grita se soltava,
Quando,
com maior grita, ao Rei relatam
A
pressa com que a armada se levava.
As
mulheres e filhos, que se matam,
Daqueles
que vão presos, onde estava
O
Samorim se aqueixam que perdidos
Uns
têm os pais, as outras os maridos.
Manda
logo os feitores Lusitanos
Com
toda sua fazenda, livremente,
Apesar
dos imigos Maumetanos,
Por
que lhe torne a sua presa gente.
Desculpas
manda o Rei de seus enganos;
Recebe
o Capitão de melhormente
Os
presos que as desculpas e, tornando
Alguns
negros, se parte, as velas dando.
Parte-se
costa abaxo, porque entende
Que
em vão co Rei gentio trabalhava
Em
querer dele paz, a qual pretende
Por
firmar o comércio que tratava;
Mas
como aquela terra, que se estende
Pela
Aurora, sabida já deixava,
Com
estas novas torna à pátria cara,
Certos
sinais levando do que achara.
Leva
alguns Malabares, que tomou
Per
força, dos que o Samorim mandara
Quando
os presos feitores lhe tornou;
Leva
pimenta ardente, que comprara;
A
seca flor de Banda não ficou;
A
noz e o negro cravo, que faz clara
A
nova ilha Maluco, co a canela
Com
que Ceilão é rica, ilustre e bela.
Isto
tudo lhe houvera a diligência
De
Monçaide fiel, que também leva,
Que,
inspirado de Angélica influência,
Quer
no livro de Cristo que se escreva.
Oh,
ditoso Africano, que a clemência
Divina
assi tirou de escura treva,
E
tão longe da pátria achou maneira
Pera
subir à pátria verdadeira!
Apartadas
assi da ardente costa
As
venturosas naus, levando a proa
Pera
onde a Natureza tinha posta
A
meta Austrina da Esperança Boa,
Levando
alegres novas e reposta
Da
parte Oriental pera Lisboa,
Outra
vez cometendo os duros medos
Do
mar incerto, tímidos e ledos.
O
prazer de chegar à pátria cara,
A
seus penates caros e parentes,
Pera
contar a peregrina e rara
Navegação,
os vários céus e gentes;
Vir
a lograr o prémio que ganhara,
Por
tão longos trabalhos e acidentes:
Cada
um tem por gosto tão perfeito,
Que
o coração para ele é vaso estreito.
Porém
a Deusa Cípria, que ordenada
Era,
pera favor dos Lusitanos,
Do
Padre Eterno, e por bom génio dada,
Que
sempre os guia já de longos anos,
A
glória por trabalhos alcançada,
Satisfação
de bem sofridos danos,
Lhe
andava já ordenando, e pretendia
Dar-lhe
nos mares tristes, alegria.
Despois
de ter um pouco revolvido
Na
mente o largo mar que navegaram,
Os
trabalhos que pelo Deus nascido
Nas
Anfiónias Tebas se causaram,
Já
trazia de longe no sentido,
Pera
prémio de quanto mal passaram,
Buscar-lhe
algum deleite, algum descanso,
No
Reino de cristal, líquido e manso;
Algum
repouso, enfim, com que pudesse
Refocilar
a lassa humanidade
Dos
navegantes seus, como interesse
Do
trabalho que encurta a breve idade.
Parece-lhe
razão que conta desse
A
seu filho, por cuja potestade
Os
Deuses faz decer ao vil terreno
E
os humanos subir ao Céu sereno.
Isto
bem revolvido, determina
De
ter-lhe aparelhada, lá no meio
Das
águas, algüa ínsula divina,
Ornada
d'esmaltado e verde arreio;
Que
muitas tem no reino que confina
Da
primeira co terreno seio,
Afora
as que possui soberanas
Pera
dentro das portas Herculanas.
Ali
quer que as aquáticas donzelas
Esperem
os fortíssimos barões
(Todas
as que têm título de belas,
Glória
dos olhos, dor dos corações)
Com
danças e coreias, porque nelas
Influirá
secretas afeições,
Pera
com mais vontade trabalharem
De
contentar a quem se afeiçoarem.
Tal
manha buscou já pera que aquele
Que
de Anquises pariu, bem recebido
Fosse
no campo que a bovina pele
Tomou
de espaço, por sutil partido.
Seu
filho vai buscar, porque só nele
Tem
todo seu poder, fero Cupido,
Que,
assi como naquela empresa antiga
A
ajudou já, nestoutra a ajude e siga.
No
carro ajunta as aves que na vida
Vão
da morte as exéquias celebrando,
E
aquelas em que já foi convertida
Perístera,
as boninas apanhando;
Em
derredor da Deusa, já partida,
No
ar lascivos beijos se vão dando;
Ela,
por onde passa, o ar e o vento
Sereno
faz. com brando movimento
Já
sobre os Idálios montes pende,
Onde
o filho frecheiro estava então,
Ajuntando
outros muitos, que pretende
Fazer
üa famosa expedição
Contra
o mundo revelde, por que emende
Erros
grandes que há dias nele estão,
Amando
cousas que nos foram dadas,
Não
pera ser amadas, mas usadas.
Via
Actéon na caça tão austero,
De
cego na alegria bruta, insana,
Que,
por seguir um feio animal fero,
Foge
da gente e bela forma humana;
E
por castigo quer, doce e severo,
Mostrar-lhe
a fermosura de Diana.
(E
guarde-se não seja inda comido
Desses
cães que agora ama, e consumido).
E
vê do mundo todo os principais
Que
nenhum no bem púbrico imagina;
Vê
neles que não têm amor a mais
Que
a si somente, e a quem Filáucia ensina;
Vê
que esses que frequentam os reais
Paços,
por verdadeira e sã doutrina
Vendem
adulação, que mal consente
Mondar-se
o novo trigo florecente.
Vê
que aqueles que devem à pobreza
Amor
divino, e ao povo caridade,
Amam
somente mandos e riqueza,
Simulando
justiça e integridade;
Da
feia tirania e de aspereza
Fazem
direito e vã severidade;
Leis
em favor do Rei se estabelecem,
As
em favor do povo só perecem.
Vê,
enfim, que ninguém ama o que deve,
Senão
o que somente mal deseja.
Não
quer que tanto tempo se releve
O
castigo que duro e justo seja.
Seus
ministros ajunta, por que leve
Exércitos
conformes à peleja
Que
espera ter co a mal regida gente
Que
lhe não for agora obediente.
Muitos
destes mininos voadores
Estão
em várias obras trabalhando:
Uns
amolando ferros passadores,
Outros
hásteas de setas delgaçando.
Trabalhando,
cantando estão de amores,
Vários
casos em verso modulando;
Melodia
sonora e concertada,
Suave
a letra, angélica a soada.
Nas
fráguas imortais onde forjavam
Pera
as setas as pontas penetrantes,
Por
lenha corações ardendo estavam,
Vivas
entranhas inda palpitantes;
As
águas onde os ferros temperavam,
Lágrimas
são de míseros amantes;
A
viva flama, o nunca morto lume,
Desejo
é só que queima e não consume.
Alguns
exercitando a mão andavam
Nos
duros corações da plebe ruda;
Crebros
suspiros pelo ar soavam
Dos
que feridos vão da seta aguda.
Fermosas
Ninfas são as que curavam
As
chagas recebidas, cuja ajuda
Não
somente dá vida aos mal feridos,
Mas
põe em vida os inda não nascidos.
Fermosas
são algüas e outras feias,
Segundo
a qualidade for das chagas,
Que
o veneno espalhado pelas veias
Curam-no
às vezes ásperas triagas.
Alguns
ficam ligados em cadeias
Por
palavras sutis de sábias magas;
Isto
acontece às vezes, quando as setas
Acertam
de levar ervas secretas.
Destes
tiros assi desordenados,
Que
estes moços mal destros vão tirando,
Nascem
amores mil desconcertados
Entre
o povo ferido miserando;
E
também nos heróis de altos estados
Exemplos
mil se vêm de amor nefando.
Qual
o das moças Bíbli e Cinireia,
Um
mancebo de Assíria, um de Judeia.
E
vós, ó poderosos, por pastoras
Muitas
vezes ferido o peito vedes;
E
por baixos e rudos, vós, senhoras,
Também
vos tomam nas Vulcâneas redes.
Uns
esperando andais nocturnas horas,
Outros
subis telhados e paredes;
Mas
eu creio que deste amor indino
É
mais culpa a da mãe que a do minino.
Mas
já no verde prado o carro leve
Punham
os brancos cisnes mansamente;
E
Dione, que as rosas entre a neve
No
rosto traz, decia diligente.
O
frecheiro que contra o Céu se atreve
A
recebê-la vem, ledo e contente;
Vêm
todos os Cupidos servidores
Beijar
a mão à Deusa dos amores.
Ela,
por que não gaste o tempo em vão
Nos
braços tendo o filho, confiada
Lhe
diz: - «Amado filho, em cuja mão
Toda
minha potência está fundada;
Filho,
em quem minhas forças sempre estão,
Tu,
que as armas Tifeias tens em nada,
A
socorrer-me a tua potestade
Me
traz especial necessidade.
«Bem
vês as Lusitânicas fadigas,
Que
eu já de muito longe favoreço,
Porque
das Parcas sei, minhas amigas,
Que
me hão-de venerar e ter em preço.
E
porque tanto imitam as antigas
Obras
de meus Romanos, me ofereço
A
lhe dar tanta ajuda, em quanto posso,
A
quanto se estender o poder nosso.
«E
porque das insídias do odioso
Baco
foram na India molestados,
E
das injúrias sós do mar undoso
Puderam
mais ser mortos que cansados,
No
mesmo mar, que sempre temeroso
Lhe
foi, quero que sejam repousados,
Tomando
aquele prémio e doce glória
Do
trabalho que faz clara a memória.
«E
pera isso queria que, feridas
As
filhas de Nereu no ponto fundo,
D'amor
dos Lusitanos incendidas
Que
vêm de descobrir o novo mundo,
Todas
nüa ilha juntas e subidas,
(Ilha
que nas entranhas do profundo
Oceano
terei aparelhada,
De
dões de Flora e Zéfiro adornada);
«Ali,
com mil refrescos e manjares,
Com
vinhos odoríferos e rosas,
Em
cristalinos paços singulares,
Fermosos
leitos, e elas mais fermosas;
Enfim,
com mil deleites não vulgares,
Os
esperem as Ninfas amorosas,
D'amor
feridas, pera lhe entregarem
Quanto
delas os olhos cobiçarem.
«Quero
que haja no reino Neptunino,
Onde
eu nasci, progénie forte e bela;
E
tome exemplo o mundo vil, malino,
Que
contra tua potência se rebela,
Por
que entendam que muro Adamantino
Nem
triste hipocrisia val contra ela;
Mal
haverá na terra quem se guarde
Se
teu fogo imortal nas águas arde.»
Assi
Vénus propôs; e o filho inico,
Pera
lhe obedecer, já se apercebe:
Manda
trazer o arco ebúrneo rico,
Onde
as setas de ponta de ouro embebe.
Com
gesto ledo a Cípria, e impudico,
Dentro
no carro o filho seu recebe;
A
rédea larga às aves cujo canto
A
Faetonteia morte chorou tanto.
Mas
diz Cupido que era necessária
üa
famosa e célebre terceira,
Que,
posto que mil vezes lhe é contrária,
Outras
muitas a tem por companheira:
A
Deusa Giganteia, temerária,
Jactante,
mentirosa e verdadeira,
Que
com cem olhos vê, e, por onde voa,
O
que vê, com mil bocas apregoa.
Vão-a
buscar e mandam-a diante,
Que
celebrando vá com tuba clara
Os
louvores da gente navegante,
Mais
do que nunca os d'outrem celebrara.
Já,
murmurando, a Fama penetrante
Pelas
fundas cavernas se espalhara;
Fala
verdade, havida por verdade,
Que
junto a Deusa traz Credulidade.
O
louvor grande, o rumor excelente,
No
coração dos Deuses que indinados
Foram
por Baco contra a ilustre gente,
Mudando,
os fez um pouco afeiçoados.
O
peito feminil, que levemente
Muda
quaisquer propósitos tomados,
Já
julga por mau zelo e por crueza
Desejar
mal a tanta fortaleza.
Despede
nisto o fero moço as setas,
üa
após outra: geme o mar cos tiros;
Direitas
pelas ondas inquietas
Algüas
vão, e algüas fazem giros;
Caem
as Ninfas, lançam das secretas
Entranhas
ardentíssimos suspiros;
Cai
qualquer, sem ver o vulto que ama,
Que
tanto como a vista pode a fama.
Os
cornos ajuntou da ebúrnea Lüa,
Com
força, o moço indómito, excessiva,
Que
Tétis quer ferir mais que nenhüa,
Porque
mais que nenhüa lhe era esquiva.
Já
não fica na aljava seta algüa,
Nem
nos equóreos campos Ninfa viva;
E
se, feridas, inda estão vivendo,
Será
pera sentir que vão morrendo.
Dai
lugar, altas e cerúleas ondas,
Que,
vedes, Vénus traz a medicina,
Mostrando
as brancas velas e redondas,
Que
vêm por cima da água Neptunina.
Pera
que tu recíproco respondas,
Ardente
Amor, à flama feminina,
É
forçado que a pudicícia honesta
Faça
quanto lhe Vénus amoesta.
Já
todo o belo coro se aparelha
Das
Nereidas, e junto caminhava
Em
coreias gentis, usança velha,
Pera
a ilha a que Vénus as guiava.
Ali
a fermosa Deusa lhe aconselha
O
que ela fez mil vezes, quando amava;
Elas,
que vão do doce amor vencidas,
Estão
a seu conselho oferecidas.
Cortando
vão as naus a larga via
Do
mar ingente pera a pátria amada,
Desejando
prover-se de água fria
Pera
a grande viagem prolongada,
Quando,
juntas, com súbita alegria,
Houveram
vista da Ilha namorada,
Rompendo
pelo céu a mãe fermosa
De
Menónio, suave e deleitosa.
De
longe a Ilha viram, fresca e bela,
Que
Vénus pelas ondas lha levava
(Bem
como o vento leva branca vela)
Pera
onde a forte armada se enxergava;
Que,
por que não passassem, sem que nela
Tomassem
porto, como desejava,
Pera
onde as naus navegam a movia
A
Acidália, que tudo, enfim, podia.
Mas
firme a fez e imóbil, como viu
Que
era dos Nautas vista e demandada,
Qual
ficou Delos, tanto que pariu
Latona
Febo e a Deusa à caça usada.
Pera
lá logo a proa o mar abriu,
Onde
a costa fazia üa enseada
Curva
e quieta, cuja branca areia
Pintou
de ruivas conchas Citereia.
Três
fermosos outeiros se mostravam,
Erguidos
com soberba graciosa,
Que
de gramíneo esmalte se adornavam,
Na
fermosa Ilha, alegre e deleitosa.
Claras
fontes e límpidas manavam
Do
cume, que a verdura tem viçosa;
Por
entre pedras alvas se deriva
A
sonorosa linfa fugitiva.
Num
vale ameno, que os outeiros fende.
Vinham
as claras águas ajuntar-se,
Onde
üa mesa fazem, que se estende
Tão
bela quanto pode imaginar-se.
Arvoredo
gentil sobre ela pende,
Como
que pronto está pera afeitar-se,
Vendo-se
no cristal resplandecente,
Que
em si o está pintando pròpriamente.
Mil
árvores estão ao céu subindo,
Com
pomos odoríferos e belos;
A
laranjeira tem no fruito lindo
A
cor que tinha Dafne nos cabelos.
Encosta-se
no chão, que está caindo,
A
cidreira cos pesos amarelos;
Os
fermosos limões ali cheirando,
Estão
virgíneas tetas imitando.
As
árvores agrestes, que os outeiros
Têm
com frondente coma ennobrecidos,
Álemos
são de Alcides, e os loureiros
Do
louro Deus amados e queridos;
Mirtos
de Citereia, cos pinheiros
De
Cibele, por outro amor vencidos;
Está
apontando o agudo cipariso
Pera
onde é posto o etéreo Paraíso.
Os
dões que dá Pomona ali Natura
Produze,
diferentes nos sabores,
Sem
ter necessidade de cultura,
Que
sem ela se dão muito milhores:
As
cereijas, purpúreas na pintura,
As
amoras, que o nome têm de amores,
O
pomo que da pátria Pérsia veio,
Milhor
tornado no terreno alheio;
Abre
a romã, mostrando a rubicunda
Cor,
com que tu, rubi, teu preço perdes,
Entre
os braços do ulmeiro está a jocunda
Vide,
cuns cachos roxos e outros verdes;
E
vós, se na vossa árvore fecunda,
Peras
piramidais, viver quiserdes,
Entregai-vos
ao dano que cos bicos
Em
vós fazem os pássaros inicos.
Pois
a tapeçaria bela e fina
Com
que se cobre o rústico terreno,
Faz
ser a de Aqueménia menos dina,
Mas
o sombrio vale mais ameno.
Ali
a cabeça a flor Cifísia inclina
Sôbolo
tanque lúcido e sereno;
Florece
o filho e neto de Ciniras,
Por
quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.
Pera
julgar, difícil cousa fora,
No
céu vendo e na terra as mesmas cores,
Se
dava às flores cor a bela Aurora,
Ou
se lha dão a ela as belas flores.
Pintando
estava ali Zéfiro e Flora
As
violas da cor dos amadores,
O
lírio roxo, a fresca rosa bela,
Qual
reluze nas faces da donzela;
A
cândida cecém, das matutinas
Lágrimas
rociada, e a manjerona; Vêm-se as letras nas flores Hiacintinas,
Tão
queridas do filho de Latona.
Bem
se enxerga nos pomos e boninas
Que
competia Clóris com Pomona.
Pois,
se as aves no ar cantando voam,
Alegres
animais o chão povoam.
Ao
longo da água o níveo cisne canta;
Responde-lhe
do ramo filomela;
Da
sombra de seus cornos não se espanta
Acteon
n'água cristalina e bela.
Aqui
a fugace lebre se levanta
Da
espessa mata, ou tímida gazela;
Ali
no bico traz ao caro ninho
O
mantimento o leve passarinho.
Nesta
frescura tal desembarcavam
Já
das naus os segundos Argonautas,
Onde
pela floresta se deixavam
Andar
as belas Deusas, como incautas.
Algüas,
doces cítaras tocavam;
Algüas,
harpas e sonoras frautas;
Outras,
cos arcos de ouro, se fingiam
Seguir
os animais, que não seguiam.
Assi
lho aconselhara a mestra experta:
Que
andassem pelos campos espalhadas;
Que,
vista dos barões a presa incerta,
Se
fizessem primeiro desejadas.
Algüas,
que na forma descoberta
Do
belo corpo estavam confiadas,
Posta
a artificiosa fermosura,
Nuas
lavar se deixam na água pura.
Mas
os fortes mancebos, que na praia
Punham
os pés, de terra cobiçosos
(Que
não há nenhum deles que não saia),
De
acharem caça agreste desejosos,
Não
cuidam que, sem laço ou redes, caia
Caça
naqueles montes deleitosos,
Tão
suave, doméstica e benina,
Qual
ferida lha tinha já Ericina.
Alguns,
que em espingardas e nas bestas
Pera
ferir os cervos, se fiavam,
Pelos
sombrios matos e florestas
Determinadamente
se lançavam;
Outros,
nas sombras, que de as altas sestas
Defendem
a verdura, passeavam
Ao
longo da água, que, suave e queda,
Por
alvas pedras corre à praia leda.
Começam
de enxergar sùbitamente,
Por
entre verdes ramos, várias cores,
Cores
de quem a vista julga e sente
Que
não eram das rosas ou das flores,
Mas
da lã fina e seda diferente,
Que
mais incita a força dos amores,
De
que se vestem as humanas rosas,
Fazendo-se
por arte mais fermosas.
Dá
Veloso, espantado, um grande grito:
-
«Senhores, caça estranha (disse) é esta!
Se
inda dura o Gentio antigo rito,
A
Deu sas é sagrada esta floresta.
Mais
descobrimos do que humano esprito
Desejou
nunca, e bem se manifesta
Que
são grandes as cousas e excelentes
Que
o mundo encobre aos homens imprudentes.
«Sigamos
estas Deusas e vejamos
Se
fantásticas são, se verdadeiras.»
Isto
dito, veloces mais que gamos,
Se
lançam a correr pelas ribeiras.
Fugindo
as Ninfas vão por entre os ramos,
Mas,
mais industriosas que ligeiras,
Pouco
e pouco, sorrindo e gritos dando,
Se
deixam ir dos galgos alcançando
De
üa os cabelos de ouro o vento leva,
Correndo,
e da outra as fraldas delicadas;
Acende-se
o desejo, que se ceva
Nas
alves carnes, súbito mostradas.
üa
de indústria cai, e já releva,
Com
mostras mais macias que indinadas,
Que
sobre ela, empecendo, também caia
Quem
a seguiu pela arenosa praia.
Outros,
por outra parte, vão topar
Com
as Deusas despidas, que se lavam;
Elas
começam súbito a gritar,
Como
que assalto tal não esperavam;
üas,
fingindo menos estimar
A
vergonha que a força, se lançavam
Nuas
por entre o mato, aos olhos dando
O
que às mãos cobiçosas vão negando;
Outra,
como acudindo mais depressa
À
vergonha da Deusa caçadora,
Esconde
o corpo n'água; outra se apressa
Por
tomar os vestidos que tem fora.
Tal
dos mancebos há que se arremessa,
Vestido
assi e calçado (que, co a mora
De
se despir, há medo que inda tarde)
A
matar na água o fogo que nele arde.
Qual
cão de caçador, sagaz e ardido,
Usado
a tomar na água a ave ferida,
Vendo
[ò] rosto o férreo cano erguido
Pera
a garcenha ou pata conhecida,
Antes
que soe o estouro, mal sofrido Salta
n'água
e da presa não duvida,
Nadando
vai e latindo: assi o mancebo
Remete
à que não era irmã de Febo.
Leonardo,
soldado bem disposto,
Manhoso,
cavaleiro e namorado,
A
quem Amor não dera um só desgosto
Mas
sempre fora dele mal tratado,
E
tinha já por firme pros[s]uposto
Ser
com amores mal afortunado,
Porém
não que perdesse a esperança
De
inda poder seu fado ter mudança,
Quis
aqui sua ventura que corria
Após
Efire, exemplo de beleza,
Que
mais caro que as outras dar queria
O
que deu, pera dar-se, a natureza.
Já
cansado, correndo, lhe dizia:
-
«Ó fermosura indina de aspereza,
Pois
desta vida te concedo a palma,
Espera
um corpo de quem levas a alma!
«Todas
de correr cansam, Ninfa pura.
Rendendo-se
à vontade do inimigo;
Tu
só de mi só foges na espessura?
Quem
te disse que eu era o que te sigo?
Se
to tem dito já aquela ventura
Que
em toda a parte sempre anda comigo,
Oh,
não na creias, porque eu, quando a cria,
Mil
vezes cada hora me mentia.
«Não
canses, que me cansas! E se queres
Fugir-me,
por que não possa tocar-te,
Minha
ventura é tal que, inda que esperes,
Ela
fará que não possa alcançar-te.
Espera;
quero ver, se tu quiseres,
Que
sutil modo busca de escapar-te;
E
notarás, no fim deste sucesso,
'Tra la spica e la man qual muro he messo.'
«Oh!
Não me fujas! Assi nunca o breve
Tempo
fuja de tua fermosura;
Que,
só com refrear o passo leve,
Vencerás
da fortuna a força dura.
Que
Emperador, que exército se atreve
A
quebrantar a fúria da ventura
Que,
em quanto desejei, me vai seguindo,
O
que tu só farás não me fugindo?
«Pões-te
da parte da desdita minha?
Fraqueza
é dar ajuda ao mais potente.
Levas-me
um coração que livre tinha?
Solta-mo
e correrás mais levemente.
Não
te carrega essa alma tão mesquinha
Que
nesses fios de ouro reluzente
Atada
levas? Ou, despois de presa,
Lhe
mudaste a ventura e menos pesa?
«Nesta
esperança só te vou seguindo:
Que
ou tu não sofrerás o peso dela,
Ou
na virtude de teu gesto lindo
Lhe
mudarás a triste e dura estrela.
E
se se lhe mudar, não vás fugindo,
Que
Amor te ferirá, gentil donzela,
E
tu me esperarás, se Amor te fere;
E
se me esperas, não há mais que espere.»
Já
não fugia a bela Ninfa tanto,
Por
se dar cara ao triste que a seguia,
Como
por ir ouvindo o doce canto,
As
namoradas mágoas que dizia.
Volvendo
o rosto, já sereno e santo,
Toda
banhada em riso e alegria,
Cair
se deixa aos pés do vencedor,
Que
todo se desfaz em puro amor.
Oh,
que famintos beijos na floresta,
E
que mimoso choro que soava!
Que
afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que
em risinhos alegres se tornava!
O
que mais passam na manhã e na sesta,
Que
Vénus com prazeres inflamava,
Milhor
é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas
julgue-o quem não pode exprimentá-lo.
Destarte,
enfim, conformes já as fermosas
Ninfas
cos seus amados navegantes,
Os
ornam de capelas deleitosas
De
louro e de ouro e flores abundantes.
As
mãos alvas lhe davam como esposas;
Com
palavras formais e estipulantes
Se
prometem eterna companhia,
Em
vida e morte, de honra e alegria.
üa
delas, maior, a quem se humilha
Todo
o coro das Ninfas e obedece,
Que
dizem ser de Celo e Vesta Filha,
O
que no gesto belo se parece,
Enchendo
a terra e o mar de maravilha,
O
capitão ilustre, que o merece,
Recebe
ali com pompa honesta e régia,
Mostrando-se
senhora grande e egrégia.
Que,
despois de lhe ter dito quem era,
Cum
alto exórdio, de alta graça ornado,
Dando-lhe
a entender que ali viera
Por
alta influïção do imóbil fado,
Pera
lhe descobrir da unida esfera
Da
terra imensa e mar não navegado
Os
segredos, por alta profecia,
O
que esta sua nação só merecia,
Tomando-o
pela mão, o leva e guia
Pera
o cume dum monte alto e divino,
No
qual üa rica fábrica se erguia,
De
cristal toda e de ouro puro e fino.
A
maior parte aqui passam do dia,
Em
doces jogos e em prazer contino.
Ela
nos paços logra seus amores,
As
outras pelas sombras, entre as flores.
Assi
a fermosa e a forte companhia
O
dia quási todo estão passando
Nüa
alma, doce, incógnita alegria,
Os
trabalhos tão longos compensando.
Porque
dos feitos grandes, da ousadia
Forte
e famosa, o mundo está guardando
O
prémio lá no fim, bem merecido,
Com
fama grande e nome alto e subido.
Que
as Ninfas do Oceano, tão fermosas,
Tétis
e a Ilha angélica pintada,
Outra
cousa não é que as deleitosas
Honras
que a vida fazem sublimada.
Aquelas
preminências gloriosas,
Os
triunfos, a fronte coroada
De
palma e louro, a glória e maravilha,
Estes
são os deleites desta Ilha.
Que
as imortalidades que fingia
A
antiguidade, que os Ilustres ama,
Lá
no estelante Olimpo, a quem subia
Sobre
as asas ínclitas da Fama,
Por
obras valorosas que fazia,
Pelo
trabalho imenso que se chama
Caminho
da virtude, alto e fragoso,
Mas,
no fim, doce, alegre e deleitoso,
Não
eram senão prémios que reparte,
Por
feitos imortais e soberanos,
O
mundo cos varões que esforço e arte
Divinos
os fizeram, sendo humanos.
Que
Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,
Eneas
e Quirino e os dous Tebanos,
Ceres,
Palas e Juno com Diana,
Todos
foram de fraca carne humana.
Mas
a Fama, trombeta de obras tais,
Lhe
deu no Mundo nomes tão estranhos
De
Deuses, Semideuses, Imortais,
Indígetes,
Heróicos e de Magnos.
Por
isso, ó vós que as famas estimais,
Se
quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai
já do sono do ócio ignavo,
Que
o ânimo, de livre, faz escravo.
E
ponde na cobiça um freio duro,
E
na ambição também, que indignamente
Tomais
mil vezes, e no torpe e escuro
Vício
da tirania infame e urgente;
Porque
essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro
valor não dão à gente:
Milhor
é merecê-los sem os ter,
Que
possuí-los sem os merecer.
Ou
dai na paz as leis iguais, constantes,
Que
aos grandes não dêem o dos pequenos,
Ou
vos vesti nas armas rutilantes,
Contra
a lei dos imigos Sarracenos:
Fareis
os Reinos grandes e possantes,
E
todos tereis mais e nenhum menos:
Possuireis
riquezas merecidas,
Com
as honras que ilustram tanto as vidas.
E
fareis claro o Rei que tanto amais,
Agora
cos conselhos bem cuidados,
Agora
co as espadas, que imortais
Vos
farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades
não façais,
Que
quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis
entre os Heróis esclarecidos
E
nesta «Ilha de Vénus» recebidos.
Canto
X
Mas
já o claro amador da Larisseia
Adúltera
inclinava os animais
Lá
pera o grande lago que rodeia
Temistitão,
nos fins Ocidentais;
O
grande ardor do Sol Favónio enfreia
Co
sopro que nos tanques naturais
Encrespa
a água serena e despertava
Os
lírios e jasmins, que a calma agrava,
Quando
as fermosas Ninfas, cos amantes
Pela
mão, já conformes e contentes,
Subiam
pera os paços radiantes
E
de metais ornados reluzentes,
Mandados
da Rainha, que abundantes
Mesas
d’altos manjares excelentes
Lhe
tinha aparelhados, que a fraqueza
Restaurem
da cansada natureza.
Ali,
em cadeiras ricas, cristalinas,
Se
assentam dous e dous, amante e dama;
Noutras,
à cabeceira, d’ouro finas,
Está
co a bela Deusa o claro Gama.
De
iguarias suaves e divinas,
A
quem não chega a Egípcia antiga fama ,
Se
acumulam os pratos de fulvo ouro,
Trazidos
lá do Atlântico tesouro.
Os
vinhos odoríferos, que acima
Estão
não só do Itálico Falerno
Mas
da Ambrósia, que Jove tanto estima
Com
todo o ajuntamento sempiterno,
Nos
vasos, onde em vão trabalha a lima,
Crespas
escumas erguem, que no interno
Coração
movem súbita alegria,
Saltando
co a mistura d’água fria.
Mil
práticas alegres se tocavam;
Risos
doces, sutis e argutos ditos,
Que
entre um e outro manjar se ale vantavam,
Despertando
os alegres apetitos;
Músicos
instrumentos não faltavam
(Quais,
no profundo Reino, os nus espritos
Fizeram
descansar da eterna pena)
Cüa
voz düa angélica Sirena.
Cantava
a bela Ninfa, e cos acentos,
Que
pelos altos paços vão soando,
Em
consonância igual, os instumentos
Suaves
vêm a um tempo conformando.
Um
súbito silêncio enfreia os ventos
E
faz ir docemente murmurando
As
águas, e nas casas naturais
Adormecer
os brutos animais.
Com
doce voz está subindo ao Céu
Altos
varões que estão por vir ao mundo,
Cujas
claras Ideias viu Proteu
Num
globo vão, diáfano, rotundo,
Que
Júpiter em dom lho concedeu
Em
sonhos, e despois no Reino fundo,
Vaticinando,
o disse, e na memória
Recolheu
logo a Ninfa a clara história.
Matéria
é de coturno, e não de soco,
A
que a Ninfa aprendeu no imenso lago;
Qual
Iopas não soube, ou Demodoco,
Entre
os Feaces um, outro em Cartago.
Aqui,
minha Calíope, te invoco
Neste
trabalho extremo, por que em pago
Me
tornes do que escrevo, e em vão pretendo,
O
gosto de escrever, que vou perdendo.
Vão
os anos decendo, e já do Estio
Há
pouco que passar até o Outono;
A
Fortuna me faz o engenho frio,
Do
qual já não me jacto nem me abono;
Os
desgostos me vão levando ao rio
Do
negro esquecimento e eterno sono.
Mas
tu me dá que cumpra, ó grão rainha
Das
Musas, co que quero à nação minha!
Cantava
a bela Deusa que viriam
Do
Tejo, pelo mar que o Gama abrira,
Armadas
que as ribeiras venceriam
Por
onde o Oceano Índico suspira;
E
que os Gentios Reis que não dariam
A
cerviz sua ao jugo, o ferro e ira
Provariam
do braço duro e forte,
Até
render-se a ele ou logo à morte.
Cantava
dum que tem nos Malabares
Do
sumo sacerdócio a dignidade,
Que,
só por não quebrar cos singulares
Barões
os nós que dera d’amizade,
Sofrerá
suas cidades e lugares,
Com
ferro, incêndios, ira e crueldade,
Ver
destruir do Samorim potente,
Que
tais ódios terá co a nova gente.
E canta
como lá se embarcaria Mas, já chegado aos fins Orientais Chamará o Samorim mais
gente nova; E todos outra vez desbaratando, Em Belém o remédio deste dano, Sem
saber o que em si ao mar traria, O grão Pacheco, Aquiles Lusitano. O peso
sentirão, quando entraria, O curvo lenho e o férvido Oceano,
Quando
mais n’água os troncos que gemerem
Contra
sua natureza se meterem.
E
deixado em ajuda do gentio Rei de
Cochim,
com poucos naturais,
Nos
braços do salgado e curvo rio
Desbaratará
os Naires infernais
No
passo Cambalão, tornando frio
D’espanto
o ardor imenso do Oriente,
Que
verá tanto obrar tão pouca gente.
Virão
Reis [de] Bipur e de Tanor,
Das
serras de Narsinga, que alta prova
Estarão
prometendo a seu senhor;
Fará
que todo o Naire, enfim, se mova
Que
entre Calecu jaz e Cananor,
D’ambas
as Leis imigas pera a guerra:
Mouros
por mar, Gentios pola terra.
Por
terra e mar, o grão Pacheco ousado,
A
grande multidão que irá matando
A
todo o Malabar terá admirado.
Cometerá
outra vez, não dilatando,
O
Gentio os combates, apressado,
Injuriando
os seus, fazendo votos
Em
vão aos Deuses vãos, surdos e imotos.
Já
não defenderá somente os passos,
Mas
queimar-lhe-á lugares, templos, casas;
Aceso
de ira, o Cão, não vendo lassos
Aqueles
que as cidades fazem rasas,
Fará
que os seus, de vida pouco escassos,
Cometam
o Pacheco, que tem asas,
Por
dous passos num tempo; mas voando
Dum
noutro, tudo irá desbaratando.
Virá
ali o Samorim, por que em pessoa
Veja
a batalha e os seus esforce e anime;
Mas
um tiro, que com zunido voa,
De
sangue o tingirá no andor sublime.
Já
não verá remédio ou manha boa
Nem
força que o Pacheco muito estime;
Inventará
traições e vãos venenos,
Mas
sempre (o Céu querendo) fará menos.
Que
tornará a vez sétima (cantava)
Pelejar
co invicto e forte Luso,
A
quem nenhum trabalho pesa e agrava;
Mas,
contudo, este só o fará confuso.
Trará
pera a batalha, horrenda e brava,
Máquinas
de madeiros fora de uso,
Pera
lhe abalroar as caravelas,
Que
até’li vão lhe fora cometê-las.
Pela
água levará serras de fogo
Pera
abrasar-lhe quanta armada tenha;
Mas
a militar arte e engenho logo
Fará
ser vã a braveza com que venha.
-
«Nenhum claro barão no Márcio jogo,
Que
nas asas da Fama se sustenha,
Chega
a este, que a palma a todos toma.
E
perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma.
«Porque
tantas batalhas, sustentadas
Com
muito pouco mais de cem soldados,
Com
tantas manhas e artes inventadas,
Tantos
Cães não imbeles profligados,
Ou
parecerão fábulas sonhadas,
Ou
que os celestes Coros, invocados,
Decerão
a ajudá-lo e lhe darão
Esforço,
força, ardil e coração.
«Aquele
que nos campos Maratónios
O
grão poder de Dário estrui e rende,
Ou
quem, com quatro mil Lacedemónios,
O
passo de Termópilas defende,
Nem
o mancebo Cocles dos Ausónios,
Que
com todo o poder Tusco contende
Em
defensa da ponte, ou Quinto Fábio,
Foi
como este na guerra forte e sábio.»
Mas
neste passo a Ninfa, o som canoro
Abaxando,
fez ronco e entristecido,
Cantando
em baxa voz, envolta em choro,
O
grande esforço mal agardecido.
-
«Ó Belisário (disse) que no coro
Das
Musas serás sempre engrandecido,
Se
em ti viste abatido o bravo Marte,
Aqui
tens com quem podes consolar-te!
«Aqui
tens companheiro, assi nos feitos
Como
no galardão injusto e duro;
Em
ti e nele veremos altos peitos
A
baxo estado vir, humilde e escuro.
Morrer
nos hospitais, em pobres leitos,
Os
que ao Rei e à Lei servem de muro!
Isto
fazem os Reis cuja vontade
Manda
mais que a justiça e que a verdade.
«Isto
fazem os Reis quando embebidos
Nüa
aparência branda que os contenta
Dão
os prémios, de Aiace merecidos,
À
língua vã de Ulisses, fraudulenta.
Mas
vingo-me: que os bens mal repartidos
Por
quem só doces sombras apresenta,
Se
não os dão a sábios cavaleiros,
Dão-os
logo a avarentos lisonjeiros.
«Mas
tu, de quem ficou tão mal pagado
Um
tal vassalo, ó Rei, só nisto inico,
Se
não és pera dar-lhe honroso estado,
É
ele pera dar-te um Reino rico.
Enquanto
for o mundo rodeado
Dos
Apolíneos raios, eu te fico
Que
ele seja entre a gente ilustre e claro,
E
tu nisto culpado por avaro.
«Mas
eis outro (cantava) intitulado
Vem
com nome real e traz consigo
O
filho, que no mar será ilustrado,
Tanto
como qualquer Romano antigo.
Ambos
darão com braço forte, armado,
A
Quíloa fértil, áspero castigo,
Fazendo
nela Rei leal e humano,
Deitado
fora o pérfido tirano.
«Também
farão Mombaça, que se arreia
De
casas sumptuosas e edifícios,
Co
ferro e fogo seu queimada e feia,
Em
pago dos passados malefícios.
Despois,
na costa da Índia, andando cheia
De
lenhos inimigos e artifícios
Contra
os Lusos, com velas e com remos
O
mancebo Lourenço fará extremos.
«Das
grandes naus do Samorim potente,
Que
encherão todo o mar, co a férrea pela,
Que
sai com trovão do cobre ardente,
Fará
pedaços leme, masto, vela.
Despois,
lançando arpéus ousadamente
Na
capitaina imiga, dentro nela
Saltando
o fará só com lança e espada
De
quatrocentos Mouros despejada.
«Mas
de Deus a escondida providência
(Que
ela só sabe o bem de que se serve)
O
porá onde esforço nem prudência
Poderá
haver que a vida lhe reserve.
Em
Chaúl, onde em sangue e resistência
O
mar todo com fogo e ferro ferve,
Lhe
farão que com vida se não saia
As
armadas de Egipto e de Cambaia.
«Ali
o poder de muitos inimigos
(Que
o grande esforço só com força rende),
Os
ventos que faltaram, e os perigos
Do
mar, que sobejaram, tudo o ofende.
Aqui
ressurjam todos os Antigos,
A
ver o nobre ardor que aqui se aprende:
Outro
Ceva verão, que, espedaçado,
Não
sabe ser rendido nem domado.
«Com
toda üa coxa fora, que em pedaços
Lhe
leva um cego tiro que passara,
Se
serve inda dos animosos braços
E
do grão coração que lhe ficara.
Até
que outro pelouro quebra os laços
Com
que co alma o corpo se liara:
Ela,
solta, voou da prisão fora
Onde
súbito se acha vencedora.
«Vai-te,
alma, em paz, da guerra turbulenta,
Na
qual tu mereceste paz serena!
Que
o corpo, que em pedaços se apresenta,
Quem
o gerou, vingança já lhe ordena:
Que
eu ouço retumbar a grão tormenta,
Que
vem já dar a dura e eterna pena,
De
esperas, basiliscos e trabucos,
A
Cambaicos cruéis e Mamelucos.
«Eis
vem o pai, com ânimo estupendo,
Trazendo
fúria e mágoa por antolhos,
Com
que o paterno amor lhe está movendo
Fogo
no coração, água nos olhos.
A
nobre ira lhe vinha prometendo
Que
o sangue fará dar pelos giolhos
Nas
inimigas naus; senti-lo-á o Nilo,
Podê-lo-á
o Indo ver e o Gange ouvi-lo.
«Qual
o touro cioso, que se ensaia
Pera
a crua peleja, os cornos tenta
No
tronco dum carvalho ou alta faia
E,
o ar ferindo, as forças experimenta:
Tal,
antes que no seio de Cambaia
Entre
Francisco irado, na opulenta
Cidade
de Dabul a espada afia,
Abaxando-lhe
a túmida ousadia.
«E
logo, entrando fero na enseada
De
Dio, ilustre em cercos e batalhas,
Fará
espalhar a fraca e grande armada
De
Calecu, que remos tem por malhas.
A
de Melique Iaz, acautelada,
Cos
pelouros que tu, Vulcano, espalhas,
Fará
ir ver o frio e fundo assento,
Secreto
leito do húmido elemento.
«Mas
a de Mir Hocém, que, abalroando,
A
fúria esperará dos vingadores,
Verá
braços e pernas ir nadando
Sem
corpos, pelo mar, de seus senhores.
Raios
de fogo irão representando,
No
cego ardor, os bravos domadores.
Quanto
ali sentirão olhos e ouvidos
É
fumo, ferro, flamas e alaridos.
«Mas
ah, que desta próspera vitória,
Com
que despois virá ao pátrio Tejo,
Quási
lhe roubará a famosa glória
Um
sucesso, que triste e negro vejo!
O
Cabo Tormentório, que a memória
Cos
ossos guardará, não terá pejo
De
tirar deste mundo aquele esprito,
Que
não tiraram toda a Índia e Egipto.
«Ali,
Cafres selvagens poderão
O
que destros imigos não puderam;
E
rudos paus tostados sós farão
O
que arcos e pelouros não fizeram.
Ocultos
os juízos de Deus são;
As
gentes vãs, que não nos entenderam,
Chamam-lhe
fado mau, fortuna escura,
Sendo
só providência de Deus pura.
«Mas
oh, que luz tamanha que abrir sinto
(Dizia
a Ninfa, e a voz alevantava)
Lá
no mar de Melinde, em sangue tinto
Das
cidades de Lamo, de Oja e Brava,
Pelo
Cunha também, que nunca extinto
Será
seu nome em todo o mar que lava
As
ilhas do Austro, e praias que se chamam
De
São Lourenço, e em todo o Sul se afamam!
«Esta
luz é do fogo e das luzentes
Armas
com que Albuquerque irá amansando
De
Ormuz os Párseos, por seu mal valentes,
Que
refusam o jugo honroso e brando.
Ali
verão as setas estridentes
Reciprocar-se,
a ponta no ar virando
Contra
quem as tirou; que Deus peleja
Por
quem estende a fé da Madre Igreja.
«Ali
do sal os montes não defendem
De
corrupção os corpos no combate,
Que
mortos pela praia e mar se estendem
De
Gerum, de Mazcate e Calaiate;
Até
que à força só de braço aprendem
A
abaxar a cerviz, onde se lhe ate
Obrigação
de dar o reino inico
Das
perlas de Barém tributo rico.
«Que
gloriosas palmas tecer vejo
Com
que Vitória a fronte lhe coroa,
Quando,
sem sombra vã de medo ou pejo,
Toma
a ilha ilustríssima de Goa!
Despois,
obedecendo ao duro ensejo,
A
deixa, e ocasião espera boa
Com
que a torne a tomar, que esforço e arte
Vencerão
a Fortuna e o próprio Marte.
«Eis
já sobr’ela torna e vai rompendo
Por
muros, fogo, lanças e pelouros,
Abrindo
com a espada o espesso e horrendo
Esquadrão
de Gentios e de Mouros.
Irão
soldados ínclitos fazendo
Mais
que liões famélicos e touros,
Na
luz que sempre celebrada e dina
Será
da Egípcia Santa Caterina.
«Nem
tu menos fugir poderás deste,
Posto
que rica e posto que assentada
Lá
no grémio da Aurora, onde naceste,
Opulenta
Malaca nomeada.
As
setas venenosas que fizeste,
Os
crises com que já te vejo armada,
Malaios
namorados, Jaus valentes,
Todos
farás ao Luso obedientes.»
Mais
estanças cantara esta Sirena
Em
louvor do ilustríssimo Albuquerque,
Mas
alembrou-lhe üa ira que o condena,
Posto
que a fama sua o mundo cerque.
O
grande Capitão, que o fado ordena
Que
com trabalhos glória eterna merque,
Mais
há-de ser um brando companheiro
Pera
os seus, que juiz cruel e inteiro.
Mas
em tempo que fomes e asperezas,
Doenças,
frechas e trovões ardentes,
A
sazão e o lugar, fazem cruezas
Nos
soldados a tudo obedientes,
Parece
de selváticas brutezas,
De
peitos inumanos e insolentes,
Dar
extremo suplício pela culpa
Que
a fraca humanidade e Amor desculpa.
Não
será a culpa abominoso incesto
Nem
violento estupro em virgem pura,
Nem
menos adultério desonesto,
Mas
cüa escrava vil, lasciva e escura.
Se
o peito, ou de cioso, ou de modesto,
Ou
de usado a crueza fera e dura,
Cos
seus üa ira insana não refreia,
Põe
na fama alva noda negra e feia.
Viu
Alexandre Apeles namorado
Da sua
Campaspe, e deu-lha alegremente,
Não
sendo seu soldado exprimentado,
Nem
vendo-se num cerco duro e urgente.
Sentiu
Ciro que andava já abrasado
Araspas,
de Panteia, em fogo ardente,
Que
ele tomara em guarda, e prometia
Que
nenhum mau desejo o venceria;
Mas,
vendo o ilustre Persa que vencido
Fora
de Amor, que, enfim, não tem defensa,
Levemente
o perdoa, e foi servido
Dele
num caso grande, em recompensa.
Per
força, de Judita foi marido
O
férreo Balduíno; mas dispensa
Carlos,
pai dela, posto em causas grandes,
Que
viva e povoador seja de Frandes.
Mas,
prosseguindo a Ninfa o longo canto,
De
Soares cantava, que as bandeiras
Faria
tremular e pôr espanto
Pelas
roxas Arábicas ribeiras:
-
«Medina abominábil teme tanto,
Quanto
Meca e Gidá, co as derradeiras
Praias
de Abássia; Barborá se teme
Do
mal de que o empório Zeila geme.
«A
nobre ilha também de Taprobana,
Já
pelo nome antigo tão famosa
Quanto
agora soberba e soberana
Pela
cortiça cálida, cheirosa,
Dela
dará tributo à Lusitana
Bandeira,
quando, excelsa e gloriosa,
Vencendo
se erguerá na torre erguida,
Em
Columbo, dos próprios tão temida.
«Também
Sequeira, as ondas Eritreias
Dividindo,
abrirá novo caminho
Pera
ti, grande Império, que te arreias
De
seres de Candace e Sabá ninho.
Maçuá,
com cisternas de água cheias
Verá,
e o porto Arquico, ali vizinho;
E
fará descobir remotas Ilhas,
Que
dão ao mundo novas maravilhas.
«Virá
despois Meneses, cujo ferro
Mais
na Africa, que cá, terá provado;
Castigará
de Ormuz soberba o erro,
Com
lhe fazer tributo dar dobrado.
Também
tu, Gama, em pago do desterro
Em
que estás e serás inda tornado,
Cos
títulos de Conde e d’honras nobres
Virás
mandar a terra que descobres.
«Mas
aquela fatal necessidade
De
quem ninguém se exime dos humanos,
Ilustrado
co a Régia dignidade,
Te
tirará do mundo e seus enganos.
Outro
Meneses logo, cuja idade
É
maior na prudência que nos anos,
Governará;
e fará o ditoso Henrique
Que
perpétua memória dele fique.
«Não
vencerá somente os Malabares,
Destruindo
Panane com Coulete,
Cometendo
as bombardas, que, nos ares,
Se
vingam só do peito que as comete;
Mas
com virtudes, certo, singulares,
Vence
os imigos d’alma todos sete;
De
cobiça triunfa e incontinência,
Que
em tal idade é suma de excelência.
«Mas,
despois que as Estrelas o chamarem, Sucederás, ó forte Mascarenhas; Terá a
Malaca muito tempo feitos, Que claramente põem aberto o rosto Será, no esforço,
ilustre e assinalado, Que Chaúl temerá, de grande e ousada, E, se injustos o mando
te tomarem, Prometo-te que fama eterna tenhas. Pera teus inimigos confessarem
Teu valor alto, o fado quer que venhas A mandar, mais de palmas coroado, Que de
fortuna justa acompanhado. «No reino de Bintão, que tantos danos Num só dia as
injúrias de mil anos Vingarás, co valor de ilustres peitos. Trabalhos e perigos
inumanos, Abrolhos férreos mil, passos estreitos, Tranqueiras, baluartes,
lanças, setas: Tudo fico que rompas e sometas. «Mas na Índia, cobiça e ambição,
Contra Deus e Justiça, te farão Vitupério nenhum, mas só desgosto. Quem faz
injúria vil e sem razão, Com forças e poder em que está posto, Não vence; que a
vitória verdadeira É saber ter justiça nua e inteira. «Mas, contudo, não nego
que Sampaio Mostrando-se no mar um fero raio, Que de inimigos mil verá
coalhado. Em Bacanor fará cruel ensaio No Malabar, pera que, amedrontado,
Despois a ser vencido dele venha Cutiale, com quanta armada tenha. «E não menos
de Dio a fera frota,
Fará,
co a vista só, perdida e rota,
Por
Heitor da Silveira e destroçada;
Por
Heitor Português, de quem se nota
Que
na costa Cambaica, sempre armada,
Será
aos Guzarates tanto dano,
Quanto
já foi aos Gregos o Troiano.
«A
Sampaio feroz sucederá
Cunha,
que longo tempo tem o leme:
De
Chale as torres altas erguerá,
Enquanto
Dio ilustre dele treme;
O
forte Baçaim se lhe dará,
Não
sem sangue, porém, que nele geme
Melique,
porque à força só de espada
A
tranqueira soberba vê tomada.
«Trás
este vem Noronha, cujo auspício
De
Dio os Rumes feros afugenta;
Dio,
que o peito e bélico exercício
De
António da Silveira bem sustenta.
Fará
em Noronha a morte o usado ofício,
Quando
um teu ramo, ó Gama, se exprimenta
No
governo do Império, cujo zelo
Com
medo o Roxo Mar fará amarelo.
«Das
mãos do teu Estêvão vem tomar
As
rédeas um, que já será ilustrado
No
Brasil, com vencer e castigar
O
pirata Francês, ao mar usado.
Despois,
Capitão-mor do Índico mar,
O
muro de Damão, soberbo e armado,
Escala
e primeiro entra a porta aberta,
Que
fogo e frechas mil terão coberta.
«A este
o Rei Cambaico soberbíssimo
Fortaleza
dará na rica Dio,
Por
que contra o Mogor poderosíssimo
Lhe
ajude a defender o senhorio.
Despois
irá com peito esforçadíssimo
A
tolher que não passe o Rei gentio
De
Calecu, que assi com quantos veio
O
fará retirar, de sangue cheio.
«Destruirá
a cidade Repelim,
Pondo
o seu Rei, com muitos, em fugida;
E
despois, junto ao Cabo Comorim,
üa
façanha faz esclarecida:
A
frota principal do Samorim,
Que
destruir o mundo não duvida,
Vencerá
co furor do ferro e fogo;
Em
si verá Beadala o Márcio jogo.
«Tendo
assi limpa a Índia dos imigos,
Virá
despois com ceptro a governá-Ia
Sem
que ache resistência nem perigos,
Que
todos tremem dele e nenhum fala.
Só
quis provar os ásperos castigos
Baticalá,
que vira já Beadala.
De
sangue e corpos mortos ficou cheia
E
de fogo e trovões desfeita e feia.
«Este
será Martinho, que de Marte
O
nome tem co as obras derivado;
Tanto
em armas ilustre em toda parte,
Quanto,
em conselho, sábio e bem cuidado.
Suceder-lhe-á
ali Castro, que o estandarte
Português
terá sempre levantado,
Conforme
sucessor ao sucedido,
Que
um ergue Dio, outro o defende erguido.
«Persas
feroces, Abassis e Rumes,
Que
trazido de Roma o nome têm,
Vários
de gestos, vários de costumes
(Que
mil nações ao cerco feras vêm),
Farão
dos Céus ao mundo vãos queixumes
Porque
uns poucos a terra lhe detêm.
Em
sangue Português, juram, descridos,
De
banhar os bigodes retorcidos.
«Basiliscos
medonhos e liões,
Trabucos
feros, minas encobertas,
Sustenta
Mascarenhas cos barões
Que
tão ledos as mortes têm por certas;
Até
que, nas maiores opressões,
Castro
libertador, fazendo ofertas
Das
vidas de seus filhos, quer que fiquem
Com
fama eterna e a Deus se sacrifiquem.
«Fernando,
um deles, ramo da alta pranta,
Onde
o violento fogo, com ruido,
Em
pedaços os muros no ar levanta,
Será
ali arrebatado e ao Céu subido.
Álvaro,
quando o Inverno o mundo espanta E tem o caminho húmido impedido, Que
castigando vai Dabul na costa; E acharão estas Ninfas e estas mesas,
Abrindo-o,
vence as ondas e os perigos,
Os
ventos e despois os inimigos.
«Eis
vem despois o pai, que as ondas corta
Co
restante da gente Lusitana,
E
com força e saber, que mais importa,
Batalha
dá felice e soberana.
Uns,
paredes subindo, escusam porta;
Outros
a abrem na fera esquadra insana.
Feitos
farão tão dinos de memória
Que
não caibam em verso ou larga história.
«Este,
despois, em campo se apresenta,
Vencedor
forte e intrépido, ao possante
Rei
de Cambaia e a vista lhe amedrenta
Da
fera multidão quadrupedante.
Não
menos suas terras mal sustenta
O
Hidalcão, do braço triunfante
Nem
lhe escapou Pondá, no sertão posta.
«Estes
e outros Barões, por várias partes,
Dinos
todos de fama e maravilha,
Fazendo-se
na terra bravos Martes,
Virão
lograr os gostos desta Ilha,
Varrendo
triunfantes estandartes
Pelas
ondas que corta a aguda quilha;
Que
glórias e honras são de árduas empresas.»
Assi
cantava a Ninfa; e as outras todas,
Com
sonoroso aplauso, vozes davam,
Com
que festejam as alegres vodas
Que
com tanto prazer se celebravam.
-
«Por mais que da Fortuna andem as rodas
(Nüa
cônsona voz todas soavam), Não vos hão-de faltar, gente famosa, As festas deste
alegre e claro dia, Assi lhe diz e o guia por um mato Honra, valor e fama
gloriosa.» Despois que a corporal necessidade Se satisfez do mantimento nobre,
E na harmonia e doce suavidade Viram os altos feitos que descobre, Tétis, de
graça ornada e gravidade, Pera que com mais alta glória dobre Pera o felice
Gama assi dizia: - «Faz-te mercê, barão, a Sapiência Suprema de, cos olhos
corporais, Veres o que não pode a vã ciência Dos errados e míseros mortais.
Sigue-me
firme e forte, com prudência,
Por
este monte espesso, tu cos mais.»
Árduo,
difícil, duro a humano trato.
Não
andam muito que no erguido cume
Se
acharam, onde um campo se esmaltava
De
esmeraldas, rubis, tais que presume
A
vista que divino chão pisava.
Aqui
um globo vêm no ar, que o lume
Claríssimo
por ele penetrava,
De
modo que o seu centro está evidente,
Como
a sua superfícia, claramente.
Qual
a matéria seja não se enxerga,
Mas
enxerga-se bem que está composto
De
vários orbes, que a Divina verga
Compôs,
e um centro a todos só tem posto.
Volvendo,
ora se abaxe, agora se erga,
Nunca
s’ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto
Por
toda a parte tem; e em toda a parte
Começa
e acaba, enfim, por divina arte,
Uniforme,
perfeito, em si sustido,
Qual,
enfim, o Arquetipo que o criou.
Vendo
o Gama este globo, comovido
De
espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe
a Deusa: - «O transunto, reduzido
Em
pequeno volume, aqui te dou
Do
Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por
onde vás e irás e o que desejas.
«Vês
aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea
e elemental, que fabricada
Assi
foi do Saber, alto e profundo,
Que
é sem princípio e meta limitada.
Quem
cerca em derredor este rotundo
Globo
e sua superfícia tão limada,
É
Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que
a tanto o engenho humano não se estende.
«Este
orbe que, primeiro, vai cercando
Os
outros mais pequenos que em si tem,
Que
está com luz tão clara radiando
Que
a vista cega e a mente vil também,
Empíreo
se nomeia, onde logrando
Puras
almas estão daquele Bem
Tamanho,
que ele só se entende e alcança,
De
quem não há no mundo semelhança.
«Aqui,
só verdadeiros, gloriosos
Divos
estão, porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter,
Juno, fomos fabulosos,
Fingidos
de mortal e cego engano.
Só
pera fazer versos deleitosos
Servimos;
e, se mais o trato humano
Nos
pode dar, é só que o nome nosso
Nestas
estrelas pôs o engenho vosso.
«E
também, porque a santa Providência,
Que
em Júpiter aqui se representa,
Por
espíritos mil que têm prudência
Governa
o Mundo todo que sustenta
(Ensina-lo
a profética ciência,
Em
muitos dos exemplos que apresenta);
Os
que são bons, guiando, favorecem,
Os
maus, em quanto podem, nos empecem;
«Quer
logo aqui a pintura que varia
Agora
deleitando, ora ensinando,
Dar-lhe
nomes que a antiga Poesia
A
seus Deuses já dera, fabulando;
Que
os Anjos de celeste companhia
Deuses
o sacro verso está chamando,
Nem
nega que esse nome preminente
Também
aos maus se dá, mas falsamente.
«Enfim
que o Sumo Deus, que por segundas
Causas
obra no Mundo, tudo manda.
E
tornando a contar-te das profundas
Obras
da Mão Divina veneranda,
Debaxo
deste círculo onde as mundas
Almas
divinas gozam, que não anda,
Outro
corre, tão leve e tão ligeiro
Que
não se enxerga: é o Móbile primeiro.
«Com
este rapto e grande movimento
Vão
todos os que dentro tem no seio;
Por
obra deste, o Sol, andando a tento,
O
dia e noite faz, com curso alheio.
Debaxo
deste leve, anda outro lento,
Tão
lento e sojugado a duro freio,
Que
enquanto Febo, de luz nunca escasso,
Duzentos
cursos faz, dá ele um passo.
«Olha
estoutro debaxo, que esmaltado
De
corpos lisos anda e radiantes,
Que
também nele tem curso ordenado
E
nos seus axes correm cintilantes.
Bem
vês como se veste e faz ornado
Co
largo Cinto d, ouro, que estelantes
Animais
doze traz afigurados,
Apousentos
de Febo limitados.
«Olha
por outras partes a pintura
Que
as Estrelas fulgentes vão fazendo:
Olha
a Carreta, atenta a Cinosura,
Andrómeda
e seu pai, e o Drago horrendo;
Vê
de Cassiopeia a fermosura
E
do Orionte o gesto turbulento;
Olha
o Cisne morrendo que suspira,
A
Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.
«Debaxo
deste grande Firmamento,
Vês
o céu de Saturno, Deus antigo;
Júpiter
logo faz o movimento,
E
Marte abaxo, bélico inimigo;
O
claro Olho do céu, no quarto assento,
E
Vénus, que os amores traz consigo;
Mercúrio,
de eloquência soberana;
Com
três rostos, debaxo vai Diana.
«Em
todos estes orbes, diferente
Curso
verás, nuns grave e noutros leve;
Ora
fogem do Centro longamente,
Ora
da Terra estão caminho breve,
Bem
como quis o Padre omnipotente,
Que
o fogo fez e o ar, o vento e neve,
Os
quais verás que jazem mais a dentro
E
tem co Mar a Terra por seu centro.
«Neste
centro, pousada dos humanos,
Que
não somente, ousados, se contentam
De
sofrerem da terra firme os danos,
Mas
inda o mar instábil exprimentam,
Verás
as várias partes, que os insanos
Mares
dividem, onde se apousentam
Várias
nações que mandam vários Reis,
Vários
costumes seus e várias leis.
«Vês
Europa Cristã, mais alta e clara
Que
as outras em polícia e fortaleza.
Vês
África, dos bens do mundo avara,
Inculta
e toda cheia de bruteza;
Co
Cabo que até’aqui se vos negara,
Que
assentou pera o Austro a Natureza.
Olha
essa terra toda, que se habita
Dessa
gente sem Lei, quási infinita.
«Vê
do Benomotapa o grande império,
De
selvática gente, negra e nua,
Onde
Gonçalo morte e vitupério
Padecerá,
pola Fé santa sua.
Nace
por este incógnito Hemispério
O metal
por que mais a gente sua.
Vê
que do lago donde se derrama
O
Nilo, também vindo está Cuama.
«Olha
as casas dos negros, como estão
Sem
portas, confiados, em seus ninhos,
Na
justiça real e defensão
E
na fidelidade dos vizinhos;
Olha
deles a bruta multidão,
Qual
bando espesso e negro de estorninhos,
Combaterá
em Sofala a fortaleza, Que
defenderá
Nhaia com destreza.
«Olha
lá as alagoas donde o Nilo
Nace,
que não souberam os antigos;
Vê-lo
rega, gerando o crocodilo,
Os
povos Abassis, de Crista amigos;
Olha
como sem muros (novo estilo)
Se
defendem milhor dos inimigos;
Vê
Méroe, que ilha foi de antiga fama,
Que
ora dos naturais Nobá se chama.
«Nesta
remota terra um filho teu
Nas
armas contra os Turcos será claro;
Há-de
ser Dom Cristóvão o nome seu;
Mas
contra o fim fatal não há reparo.
Vê
cá a costa do mar, onde te deu
Melinde
hospício gasalhoso e caro;
O
Rapto rio nota, que o romance
Da
terra chama Obi; entra em Quilmance.
«O
Cabo vê já Arómata chamado,
E agora
Guardafú, dos moradores,
Onde
começa a boca do afamado
Mar
Roxo, que do fundo toma as cores;
Este
como limite está lançado
Que
divide Asia de Africa; e as milhores
Povoações
que a parte Africa tem
Maçuá
são, Arquico e Suaquém.
«Vês
o extremo Suez, que antigamente
Dizem
que foi dos Héroas a cidade
(Outros
dizem que Arsínoe), e ao presente
Tem
das frotas do Egipto a potestade.
Olha
as águas nas quais abriu patente
Estrada
o grão Mousés na antiga idade.
Ásia
começa aqui, que se apresenta
Em
terras grande, em reinos opulenta.
«Olha
o monte Sinai, que se ennobrece
Co
sepulcro de Santa Caterina;
Olha
Toro e Gidá, que lhe falece
Água
das fontes, doce e cristalina;
Olha
as portas do Estreito, que fenece
No
reino da seca Ádem, que confina
Com
a serra d’Arzira, pedra viva,
Onde
chuva dos céus se não deriva.
«Olha
as Arábias três, que tanta terra
Tomam,
todas da gente vaga e baça,
Donde
vêm os cavalos pera a guerra,
Ligeiros
e feroces, de alta raça;
Olha
a costa que corrre, até que cera
Outro
Estreito de Pérsia, e faz a traça
O
Cabo que co nome se apelida
Da
cidade Fartaque, ali sabida.
«Olha
Dófar, insigne porque manda
O
mais cheiroso incenso pera as aras;
Mas
atenta: já cá destoutra banda
De
Roçalgate, e praias sempre avaras,
Começa
o reino Ormuz, que todo se anda
Pelas
ribeiras que inda serão claras
Quando
as galés do Turco e fera armada
Virem
de Castelbranco nua a espada.
«Olha
o Cabo Asaboro, que chamado
Agora
é Moçandão, dos navegantes;
Por
aqui entra o lago que é fechado
De
Arábia e Pérsias terras abundantes.
Atenta
a ilha Barém, que o fundo ornado
Tem
das suas perlas ricas, e imitantes
A
cor da Aurora; e vê na água salgada
Ter
o Tígris e Eufrates üa entrada.
«Olha
da grande Pérsia o império nobre,
Sempre
posto no campo e nos cavalos,
Que
se injuria de usar fundido cobre
E
de não ter das armas sempre os calos.
Mas
vê a ilha Gerum, como descobre
O
que fazem do tempo os intervalos,
Que
da cidade Armuza, que ali esteve,
Ela
o nome despois e a glória teve.
«Aqui
de Dom Filipe de Meneses
Se
mostrará a virtude, em armas clara,
Quando,
com muito poucos Portugueses,
Os
muitos Párseos vencerá de Lara.
Virão
provar os golpes e reveses
De
Dom Pedro de Sousa, que provara
Já
seu braço em Ampaza, que deixada
Terá
por terra, à força só de espada.
«Mas
deixemos o Estreito e o conhecido
Cabo
de Jasque, dito já Carpela,
Com
todo o seu terreno mal querido
Da
Natura e dos dões usados dela;
Carmânia
teve já por apelido.
Mas
vês o fermoso Indo, que daquela
Altura
nace, junto à qual, também
Doutra
altura correndo o Gange vem?
«OIha
a terra de Ulcinde, fertilíssima,
E
de Jáquete a íntima enseada;
Do
mar a enchente súbita, grandíssima,
E a
vazante, que foge apressurada.
A
terra de Cambaia vê, riquíssima,
Onde
do mar o seio faz entrada;
Cidades
outras mil, que vou passando,
A
vós outros aqui se estão guardando.
«Vês
corre a costa célebre Indiana
Pera
o Sul, até o Cabo Comori,
Já
chamado Cori, que Taprobana
(Que
ora é Ceilão) defronte tem de si.
Por
este mar a gente Lusitana,
Que
com armas virá despois de ti,
Terá
vitórias, terras e cidades,
Nas
quais hão-de viver muitas idades.
«As
províncias que entre um e o outro rio
Vês,
com várias nações, são infinitas:
Um
reino Mahometa, outro Gentio,
A
quem tem o Demónio leis escritas.
Olha
que de Narsinga o senhorio
Tem
as relíquias santas e benditas
Do
corpo de Tomé, barão sagrado,
Que
a Jesu Cristo teve a mão no lado.
«Aqui
a cidade foi que se chamava
Meliapor,
fermosa, grande e rica;
Os
Ídolos antigos adorava
Como
inda agora faz a gente inica.
Longe
do mar naquele tempo estava,
Quando
a Fé, que no mundo se pubrica,
Tomé
vinha prègando, e já passara
Províncias
mil do mundo, que ensinara.
«Chegado
aqui, pregando e junto dando
A
doentes saúde, a mortos vida,
Acaso
traz um dia o mar, vagando,
Um
lenho de grandeza desmedida.
Deseja
o Rei, que andava edificando,
Fazer
dele madeira; e não duvida
Poder
tirá-lo a terra, com possantes
Forças
d’ homens, de engenhos, de alifantes.
«Era
tão grande o peso do madeiro
Que,
só pera abalar-se, nada abasta;
Mas
o núncio de Cristo verdadeiro
Menos
trabalho em tal negócio gasta:
Ata
o cordão que traz, por derradeiro,
No
tronco, e fàcilmente o leva e arrasta
Pera
onde faça um sumptuoso templo
Que
ficasse aos futuros por exemplo.
«Sabia
bem que se com fé formada
Mandar
a um monte surdo que se mova,
Que
obedecerá logo à voz sagrada,
Que
assi lho ensinou Cristo, e ele o prova.
A
gente ficou disto alvoraçada;
Os
Brâmenes o têm por cousa nova;
Vendo
os milagres, vendo a santidade,
Hão
medo de perder autoridade.
«São
estes sacerdotes dos Gentios
Em
quem mais penetrado tinha enveja;
Buscam
maneiras mil, buscam desvios,
Com
que Tomé não se ouça, ou morto seja.
O
principal, que ao peito traz os fios,
Um
caso horrendo faz, que o mundo veja
Que
inimiga não há, tão dura e fera,
Como
a virtude falsa, da sincera.
«Um
filho próprio mata, e logo acusa
De
homicídio Tomé, que era inocente;
Dá
falsas testemunhas, como se usa;
Condenaram-no
a morte brevemente.
O
Santo, que não vê milhor escusa
Que
apelar pera o Padre omnipotente,
Quer,
diante do Rei e dos senhores,
Que
se faça um milagre dos maiores.
«O
corpo morto manda ser trazido,
Que
res[s]ucite e seja perguntado
Quem
foi seu matador, e será crido
Por
testemunho, o seu, mais aprovado.
Viram
todos o moço vivo, erguido,
Em
nome de Jesu crucificado:
Dá
graças a Tomé, que lhe deu vida,
E
descobre seu pai ser homicida.
«Este
milagre fez tamanho espanto
Que
o Rei se banha logo na água santa,
E
muitos após ele; um beija o manto,
Outro
louvor do Deus de Tomé canta.
Os
Brâmenes se encheram de ódio tanto,
Com
seu veneno os morde enveja tanta,
Que,
persuadindo a isso o povo rudo,
Determinam
matá-lo, em fim de tudo.
«Um
dia que pregando ao povo estava,
Fingiram
entre a gente um arruído.
(Já
Cristo neste tempo lhe ordenava
Que,
padecendo, fosse ao Céu subido);
A
multidão das pedras que voava
No
Santo dá, já a tudo oferecido;
Um
dos maus, por fartar-se mais depressa,
Com
crua lança o peito lhe atravessa.
«Choraram-te,
Tomé, o Gange e o Indo;
Chorou-te
toda a terra que pisaste;
Mais
te choram as almas que vestindo
Se
iam da santa Fé que lhe ensinaste.
Mas
os Anjos do Céu, cantando e rindo,
Te
recebem na glória que ganhaste.
Pedimos-te
que a Deus ajuda peças
Com
que os teus Lusitanos favoreças.
«E
vós outros que os nomes usurpais
De
mandados de Deus, como Tomé,
Dizei:
se sois mandados, como estais
Sem
irdes a pregar a santa Fé?
Olhai
que, se sois Sal e vos danais
Na
pátria, onde profeta ninguém é,
Com
que se salgarão em nossos dias
(Infiéis
deixo) tantas heresias?
«Mas
passo esta matéria perigosa
E
tornemos à costa debuxada.
Já
com esta cidade tão famosa
Se
faz curva a Gangética enseada;
Corre
Narsinga, rica e poderosa;
Corre
Orixa, de roupas abastada;
No
fundo da enseada, o ilustre rio
Ganges
vem ao salgado senhorio;
«Ganges,
no qual os seus habitadores
Morrem
banhados, tendo por certeza
Que,
inda que sejam grandes pecadores,
Esta
água santa os lava e dá pureza.
Vê
Catigão, cidade das milhores
De
Bengala província, que se preza
De
abundante. Mas olha que está posta
Pera
o Austro, daqui virada, a costa.
«Olha
o reino Arracão; olha o assento
De
Pegu, que já monstros povoaram,
Monstros
filhos do feio ajuntamento
Düa
mulher e um cão, que sós se acharam.
Aqui
soante arame no instrumento
Da
geração costumam, o que usaram
Por
manha da Rainha que, inventando
Tal
uso, deitou fora o error nefando.
«Olha
Tavai cidade, onde começa
De
Sião largo o império tão comprido;
Tenassari,
Quedá, que é só cabeça
Das
que pimenta ali têm produzido.
Mais
avante fareis que se conheça
Malaca
por empório ennobrecido,
Onde
toda a província do mar grande
Suas
mercadorias ricas mande.
«Dizem
que desta terra co as possantes
Ondas
o mar, entrando, dividiu
A
nobre ilha Samatra, que já d’antes
Juntas
ambas a gente antiga viu.
Quersoneso
foi dita; e das prestantes
Veias
d’ouro que a terra produziu,
'Aurea',
por epitéto lhe ajuntaram;
Alguns
que fosse Ofir imaginaram.
«Mas,
na ponta da terra, Cingapura
Verás,
onde o caminho às naus se estreita;
Daqui
tornando a costa à Cinosura,
Se
encurva e pera a Aurora se endireita.
Vês
Pam, Patane, reinos, e a longura
De
Sião, que estes e outros mais sujeita;
Olha
o rio Menão, que se derrama
Do
grande lago que Chiamai se chama.
Vês
neste grão terreno os diferentes
Nomes
de mil nações, nunca sabidas:
Os
Laos, em terra e número potentes;
Avás,
Bramás, por serras tão compridas;
Vê
nos remotos montes outras gentes,
Que
Gueos se chamam, de selvages vidas;
Humana
carne comem, mas a sua
Pintam
com ferro ardente, usança crua.
«Vês,
passa por Camboja Mecom rio,
Que
capitão das águas se interpreta;
Tantas
recebe d’ outro só no Estio,
Que
alaga os campos largos e inquieta;
Tem
as enchentes quais o Nilo frio;
A
gente dele crê, como indiscreta,
Que
pena e glória têm, despois de morte,
Os
brutos animais de toda sorte.
«Este
receberá, plácido e brando,
No
seu regaço os Cantos que molhados
Vêm
do naufrágio triste e miserando,
Dos
procelosos baxos escapados,
Das
fomes, dos perigos grandes, quando
Será
o injusto mando executado
Naquele
cuja Lira sonorosa
Será
mais afamada que ditosa.
«Vês,
corre a costa que Champá se chama,
Cuja
mata é do pau cheiroso ornada;
Vês
Cauchichina está, de escura fama,
E
de Ainão vê a incógnita enseada;
Aqui
o soberbo Império, que se afama
Com
terras e riqueza não cuidada,
Da
China corre, e ocupa o senhorio
Desde
o Trópico ardente ao Cinto frio.
«Olha
o muro e edifício nunca crido,
Que
entre um império e o outro se edifica,
Certíssimo
sinal, e conhecido,
Da
potência real, soberba e rica.
Estes,
o Rei que têm, não foi nacido
Príncipe,
nem dos pais aos filhos fica,
Mas
elegem aquele que é famoso
Por
cavaleiro, sábio e virtuoso.
«Inda
outra muita terra se te esconde
Até
que venha o tempo de mostrar-se;
Mas
não deixes no mar as Ilhas onde
A
Natureza quis mais afamar-se:
Esta,
meia escondida, que responde
De
longe à China, donde vem buscar-se,
É
Japão, onde nace a prata fina,
Que
ilustrada será co a Lei divina.
«Olha
cá pelos mares do Oriente
Ás
infinitas Ilhas espalhadas:
Vê
Tidore e Ternate, co fervente
Cume,
que lança as flamas ondeadas.
As
árvores verás do cravo ardente,
Co
sangue Português inda compradas.
Aqui
há as áureas aves, que não decem
Nunca
à terra e só mortas aparecem.
«Olha
de Banda as Ilhas, que se esmaltam
Da
vária cor que pinta o roxo fruto;
Às
aves variadas, que ali saltam,
Da
verde noz tomando seu tributo.
Olha
também Bornéu, onde não faltam
Lágrimas
no licor coalhado e enxuto
Das
árvores, que cânfora é chamado,
Com
que da Ilha o nome é celebrado.
«Ali
também Timor, que o lenho manda
Sândalo,
salutífero e cheiroso;
Olha
a Sunda, tão larga que üa banda
Esconde
pera o Sul dificultoso;
A
gente do Sertão, que as terras anda,
Um
rio diz que tem miraculoso,
Que,
por onde ele só, sem outro, vai,
Converte
em pedra o pau que nele cai.
«Vê
naquela que o tempo tornou Ilha,
Que
também flamas trémulas vapora,
A
fonte que óleo mana, e a maravilha
Do
cheiroso licor que o tronco chora,
-
Cheiroso, mais que quanto estila a filha
De
Ciniras na Arábia, onde ela mora;
E
vê que, tendo quanto as outras têm,
Branda
seda e fino ouro dá também.
«Olha,
em Ceilão, que o monte se alevanta
Tanto
que as nuvens passa ou a vista engana;
Os
naturais o têm por cousa santa,
Pola
pedra onde está a pegada humana.
Nas
ilhas de Maldiva nace a pranta
No
profundo das águas, soberana,
Cujo
pomo contra o veneno urgente
É
tido por antídoto excelente.
«Verás
defronte estar do Roxo Estreito
Socotorá,
co amaro aloé famosa;
Outras
ilhas, no mar também sujeito
A
vós, na costa de África arenosa,
Onde
sai do cheiro mais perfeito
A
massa, ao mundo oculta e preciosa.
De
São Lourenço vê a Ilha afamada,
Que
Madagáscar é dalguns chamada.
«Eis
aqui as novas partes do Oriente
Que
vós outros agora ao mundo dais,
Abrindo
a porta ao vasto mar patente,
Que
com tão forte peito navegais.
Mas
é também razão que, no Ponente,
Dum
Lusitano um feito inda vejais,
Que,
de seu Rei mostrando-se agravado,
Caminho
há-de fazer nunca cuidado.
«Vedes
a grande terra que contina
Vai
de Calisto ao seu contrário Pólo,
Que
soberba a fará a luzente mina
Do
metal que a cor tem do louro Apolo.
Castela,
vossa amiga, será dina
De
lançar-lhe o colar ao rudo colo.
Varias
províncias tem de várias gentes,
Em
ritos e costumes, diferentes.
«Mas
cá onde mais se alarga, ali tereis
Parte
também, co pau vermelho nota;
De
Santa Cruz o nome lhe poreis;
Descobri-la-á
a primeira vossa frota.
Ao
longo desta costa, que tereis,
Irá
buscando a parte mais remota
O
Magalhães, no feito, com verdade,
Português,
porém não na lealdade.
«Dês
que passar a via mais que meia
Que
ao Antártico Pólo vai da Linha,
Düa
estatura quási giganteia
Homens
verá, da terra ali vizinha;
E
mais avante o Estreito que se arreia
Co
nome dele agora, o qual caminha
Pera
outro mar e terra que fica onde
Com
suas frias asas o Austro a esconde.
«Até’aqui
Portugueses concedido
Vos
é saberdes os futuros feitos
Que,
pelo mar que já deixais sabido,
Virão
fazer barões de fortes peitos.
Agora,
pois que tendes aprendido
Trabalhos
que vos façam ser aceitos
As
eternas esposas e fermosas,
Que
coroas vos tecem gloriosas,
«Podeis-vos
embarcar, que tendes vento
E
mar tranquilo, pera a pátria amada.»
Assi
lhe disse; e logo movimento
Fazem
da Ilha alegre e namorada.
Levam
refresco e nobre mantimento;
Levam
a companhia desejada
Das
Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por
mais tempo que o Sol o mundo aquente.
Assi
foram cortando o mar sereno,
Com
vento sempre manso e nunca irado,
Até
que houveram vista do terreno
Em
que naceram, sempre desejado.
Entraram
pela foz do Tejo ameno,
E à
sua pátria e Rei temido e amado
O
prémio e glória dão por que mandou,
E
com títulos novos se ilustrou.
Nô
mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho
Destemperada
e a voz enrouquecida,
E
não do canto, mas de ver que venho
Cantar
a gente surda e endurecida.
O
favor com que mais se acende o engenho
Não
no dá a pátria, não, que está metida
No
gosto da cobiça e na rudeza
Düa
austera, apagada e vil tristeza.
E
não sei por que influxo de Destino
Não
tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que
os ânimos levanta de contino
A
ter pera trabalhos ledo o rosto.
Por
isso vós, ó Rei, que por divino
Conselho
estais no régio sólio posto,
Olhai
que sois (e vede as outras gentes)
Senhor
só de vassalos excelentes.
Olhai
que ledos vão, por várias vias,
Quais
rompentes liões e bravos touros,
Dando
os corpos a fomes e vigias,
A
ferro, a fogo, a setas e pelouros,
A
quentes regiões, a plagas frias,
A
golpes de Idolátras e de Mouros,
A
perigos incógnitos do mundo,
A
naufrágios, a pexes, ao profundo.
Por
vos servir, a tudo aparelhados;
De
vós tão longe, sempre obedientes;
A
quaisquer vossos ásperos mandados,
Sem
dar reposta, prontos e contentes.
Só
com saber que são de vós olhados,
Demónios
infernais, negros e ardentes,
Cometerão
convosco, e não duvido
Que
vencedor vos façam, não vencido.
Favorecei-os
logo, e alegrai-os
Com
a presença e leda humanidade;
De
rigorosas leis desalivai-os,
Que
assi se abre o caminho à santidade.
Os
mais exprimentados levantai-os,
Se,
com a experiência, têm bondade
Pera
vosso conselho, pois que sabem O como, o quando, e onde as cousas cabem.
Todos
favorecei em seus ofícios,
Segundo
têm das vidas o talento;
Tenham
Religiosos exercícios
De
rogarem, por vosso regimento,
Com
jejuns, disciplina, pelos vícios
Comuns;
toda ambição terão por vento,
Que
o bom Religioso verdadeiro
Glória
vã não pretende nem dinheiro.
Os
Cavaleiros tende em muita estima,
Pois
com seu sangue intrépido e fervente
Estendem
não sòmente a Lei de cima,
Mas
inda vosso Império preminente.
Pois
aqueles que a tão remoto clima
Vos
vão servir, com passo diligente,
Dous
inimigos vencem: uns, os vivos,
E
(o que é mais) os trabalhos excessivos.
Fazei,
Senhor, que nunca os admirados
Alemães,
Galos, Ítalos e Ingleses,
Possam
dizer que são pera mandados,
Mais
que pera mandar, os Portugueses.
Tomai
conselho só d’exprimentados
Que
viram largos anos, largos meses,
Que,
posto que em cientes muito cabe.
Mais
em particular o experto sabe.
De
Formião, filósofo elegante,
Vereis
como Anibal escarnecia,
Quando
das artes bélicas, diante
Dele,
com larga voz tratava e lia.
A
disciplina militar prestante
Não
se aprende, Senhor, na fantasia,
Sonhando,
imaginando ou estudando,
Senão
vendo, tratando e pelejando.
Mas
eu que falo, humilde, baxo e rudo,
De
vós não conhecido nem sonhado?
Da
boca dos pequenos sei, contudo,
Que
o louvor sai às vezes acabado.
Tem
me falta na vida honesto estudo,
Com
longa experiência misturado,
Nem
engenho, que aqui vereis presente,
Cousas
que juntas se acham raramente.
Pera
servir-vos, braço às armas feito,
Pera
cantar-vos, mente às Musas dada;
Só
me falece ser a vós aceito,
De
quem virtude deve ser prezada.
Se
me isto o Céu concede, e o vosso peito
Dina
empresa tomar de ser cantada,
Como
a pres[s]aga mente vaticina
Olhando
a vossa inclinação divina,
Ou
fazendo que, mais que a de Medusa,
A
vista vossa tema o monte Atlante,
Ou
rompendo nos campos de Ampelusa
Os
muros de Marrocos e Trudante,
A
minha já estimada e leda Musa
Fico
que em todo o mundo de vós cante,
De
sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem
à dita de Aquiles ter enveja.
FIM
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