Canções e Elegias,
Luís de Camões
Texto-base:
CAMÕES, Luís Vaz de. Canções e Elegias. Direção Literária Dr. Álvaro
Júlio da Costa Pimpão.
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CANÇÕES
E ELEGIAS
Luís de Camões
I
Canção
Fermosa
e gentil Dama, quando vejo
a
testa de ouro e neve, o lindo aspeito,
a
boca graciosa, o riso honesto,
o
colo de cristal, o branco peito,
de
meu não quero mais que meu desejo,
nem
mais de vós que ver tão lindo gesto.
Ali
me manifesto
por
vosso a Deus e ao mundo; ali me inflamo
nas
lágrimas que choro,
e
de mim, que vos amo,
em
ver que soube amar-vos, me namoro;
e
fico por mim só perdido, de arte
que
hei ciúmes de mim por vossa parte.
Se
porventura vivo descontente
por
fraqueza d'esprito, padecendo
a
doce pena que entender não sei,
fujo
de mim e acolho-me, correndo,
à
vossa vista; e fico tão contente
que
zombo dos tormentos que passei.
De
quem me queixarei
se
vós me dais a vida deste jeito
nos
males que padeço,
senão
de meu sujeito,
que
não cabe com bem de tanto preço?
Mas
inda isso de mim cuidar não posso,
de
estar muito soberbo com ser vosso.
Se,
por algum acerto, Amor vos erra
por
parte do desejo, cometendo
algum
nefando e torpe desatino,
se
ainda mais que ver, enfim, pretendo,
fraquezas
são do corpo, que é de terra,
mas
não do pensamento, que é divino.
Se
tão alto imagino que de vista
me
perco (peco nisto),
desculpa-me
o que vejo;
que
se, enfim, resisto
contra
tão atrevido e vão desejo,
faço-me
forte em vossa vista pura,
e
armo-me de vossa fermosura.
Das
delicadas sobrancelhas pretas
os
arcos com que fere, Amor tomou,
e
fez a linda corda dos cabelos;
e
porque de vós tudo lhe quadrou,
dos
raios desses olhos fez as setas
com
que fere quem alça os seus, a vê-los.
Olhos
que são tão belos
dão
armas de vantagem ao Amor,
com
que as almas destrui;
porém,
se é grande a dor,
co
a alteza do mal a restitui;
e
as armas com que mata são de sorte
que
ainda lhe ficais devendo a morte.
Lágrimas
e suspiros, pensamentos,
quem
deles se queixar, fermosa Dama,
mimoso
está do mal que por vós sente.
Que
maior bem deseja quem vos ama
que
estar desabafando seus tormentos,
chorando,
imaginando docomente?
Quem
vive descontente,
não
há-de dar alívio a seu desgosto,
porque
se lhe agradeça;
mas
com alegre rosto
sofra
seus males, para que os mereça;
que
quem do mal se queixa, que padece,
fá-lo
porque esta glória não conhece.
De
modo que, se cai o pensamento
em
algüa fraqueza, de contente,
é
porque este segredo não conheço;
assi
que com razões, não tão somente
desculpo
ao Amor do meu tormento,
mas
ainda a culpa sua lhe agradeço.
Por
esta fé mereço
a
graça, que esses olhos acompanha,
o
bem do doce riso;
mas,
porém, não se ganha
cum
paraíso outro paraíso.
E
assi, de enleada, a esperança
se
satisfaz co bem que não alcança.
Se
com razões escuso meu remédio,
sabe,
Canção, que porque não vejo,
engano
com palavras o desejo.
II
Canção
A
instabilidade da Fortuna,
os
enganos suaves de Amor cego,
(suaves,
se duraram longamente),
direi,
por dar à vida algum sossego;
que,
pois a grave pena me importuna,
importune
meu canto a toda a gente.
E
se o passado bem co mal presente
me
endurece a voz no peito frio,
o
grande desvario
dará
de minha pena sinal certo,
que
um erro em tantos erros é concerto.
E,
pois nesta verdade me confio
(se
verdade se achar no mal que digo),
aiba
o mundo de Amor o desconcerto,
ue
já co a Razão se fez amigo,
só
por não deixar culpa sem castigo.
Já
Amor fez leis, sem ter comigo algüa;
já
se tornou, de cego, arrazoado,
só
por usar comigo sem-razões.
E,
se em algüa cousa o tenho errado,
com
siso, grande dor não vi nenhüa,
nem
ele deu sem erros afeições.
Mas,
por usar de suas isenções,
buscou
fingidas causas por matar-me;
que,
para derrubar-me
no
abismo infernal de meu tormento,
não
foi soberbo nunca o pensamento,
nem
pretende mais alto alevantar-me
daquilo
que ele quis; e se ele ordena
que
eu pague seu ousado atrevimento,
saiba
que o mesmo Amor que me condena
me
fez cair na culpa e mais na pena.
Os
olhos que eu adoro, aquele dia
que
desceram ao baixo pensamento,
n'alma
os aposentei suavemente;
e
pretendendo mais, como avarento,
o
coração lhe dei por iguaria,
que
a meu mandado tinha obediente.
Porém
como ante si lhe foi presente
que
entenderam o fim de meu desejo,
ou
por outro despejo, que a língua
descobriu
por desvario,
de
sede morto estou posto num rio,
onde
de meu serviço o fruto vejo;
mas
logo se alça se a colhê-lo venho,
e
foge-me a água, se beber porfio;
assi
que em fome e sede me mantenho:
não
tem Tântalo a pena que eu sustenho.
Despois
que aquela em quem minh'alma vive
quis
alcançar o baixo atrevimento,
debaixo
deste engano a alcancei:
a
nuvem do contino pensamento
ma
afigurou nos braços, e assi a tive,
sonhando
o que acordado desejei.
Porque
a meu desejo me gabei
de
alcançar um bem de tanto preço,
além
do que padeço,
atado
em üa roda estou penando,
que
em mil mudanças me anda rodeando
onde,
se a algum bem subo, logo deço,
e
assi ganho e perco a confiança;
e
assi me tem atado ua vingança,
como
Ixião, tão firme na mudança.
Quando
a vista suave e inumana
meu
humano desejo, de atrevido,
cometeu,
sem saber o que fazia
([que
de sua beleza foi nacido}
o
cego Moço, que, co a seta insana,
o
pecado vingou desta ousadia),
e
afora este mal que eu merecia,
me
deu outra maneira de tormento:
que
nunca o pensamento,
que
sempre voa düa a outra parte,
destas
entranhas tristes bem se farte,
imaginando
sobre o famulento,
quanto
mais come, mais está crecendo,
porque
de atormentar-me não se aparte;
assi
que para a pena estou vivendo,
sou
outro novo Ticio, e não me entendo.
De
vontades alheias, que roubava,
e
que enganosamente recolhia
em
meu fingido peito, me mantinha.
De
maneira o engano lhe fingia,
que
despois que a meu mando as sojugava,
com
amor as matava, que eu não tinha.
Porém,
logo o castigo que convinha
o
vingativo Amor me fez sentir,
fazendo-me
subir
ao
monte da aspereza que em vós vejo,
co
pesado penedo do desejo,
que
do cume do bem me vai cair;
torno
a subi-lo ao desejado assento,
torna
a cair-me; embalde, enfim, pelejo.
Não
te espantes, Sísifo, deste alento,
que
as costas o subi do sofrimento.
Dest'arte
o sumo bem se me oferece
ao
faminto desejo, porque sinta
a
perda de perdê-lo mais penosa.
Como
o avaro a quem o sonho pinta
achar
tesouro grande, onde enriquece
e
farta sua sede cobiçosa.
e
acordando com fúria pressurosa
vai
cavar o lugar onde sonhava,
mas
tudo o que buscava
lhe
converte em carvão a desventura;
ali
sua cobiça mais se apura,
por
lhe faltar aquilo que esperava:
dest'arte
Amor me faz perder o siso.
Porque
aqueles que estão na noite escura,
nunca
sentirão tanto o triste abiso,
se
ignorarem o bem do Paraíso.
Canção,
nô mais, que já não sei que digo;
mas
porque a dor me seja menos forte,
diga
o pregão a causa desta morte.
III
Canção
Já
a roxa manhã clara
do
Oriente as portas vem abrindo,
dos
montes descobrindo
a
negra escuridão da luz avara.
O
Sol, que nunca pára,
de
sua alegre vista saudoso,
trás
ela, pressuroso,
nos
cavalos cansados do trabalho, q
ue
respiram nas ervas fresco orvalho,
se
estende, claro, alegre e luminoso.
Os
pássaros, voando
de
raminho em raminho modulando,
com
ua suave e doce melodia
o
claro dia estão manifestando.
A
manhã bela e amena,
seu
rosto descobrindo, a espessura
se
cobre de verdura,
branda,
suave, angélica, serena.
Ó
deleitosa pena,
ó
efeito de Amor tão preeminente
que
permite e consente
que
onde quer que me ache, e onde esteja,
o
seráfico gesto sempre veja,
por
quem de viver triste sou contente!
Mas
tu, Aurora pura,
de
tanto bem dá graças à ventura,
pois
as foi pôr em ti tão diferentes,
que
representes tanta fermosura.
A
luz suave e leda
a
meus olhos me mostra por quem mouro,
e
os cabelos de ouro
não
igual' aos que vi, mas arremeda:
esta
é a luz que arreda
a
negra escuridão do sentimento
ao
doce pensamento;
o
orvalho das flores delicadas
são
nos meus olhos lágrimas cansadas,
que
eu choro co prazer de meu tormento;
os
pássaros que cantam
os
meus espritos são, que a voz levantam,
manifestando
o gesto peregrino
com
tão divino som que o mundo espantam.
Assi
como acontece
a
quem a cara vida está perdendo,
que,
enquanto vai morrendo,
algüa
visão santa lhe aparece;
a
mim, em quem falece
a
vida, que sois vós, minha Senhora, a
esta
alma que em vós mora
(enquanto
da prisão se está apartando)
vos
estais juntamente apresentando
em
forma da fermosa e roxa Aurora.
Ó
ditosa partida!
Ó
glória soberana, alta e subida!
Se
mo não impedir o meu desejo;
porque
o que vejo, enfim, me torna a vida.
Porém
a Natureza,
que
nesta vista pura se mantinha,
me
falta tão asinha,
quão
asinha o sol falta à redondeza.
Se
houverdes que é fraqueza
morrer
em tão penoso e triste estado,
Amor
será culpado,
ou
vós, onde ele vive tão isento,
que
causastes tão longo apartamento,
porque
perdesse a vida co cuidado.
Que
se viver não posso
(um
homem sou só, de carne e osso),
esta
vida que perco, Amor ma deu;
que
não sou meu: se mouro, o dano é vosso.
Canção
de cisne, feita n'hora extrema:
na
dura pedra fria
da
memória te deixo, em companhia
do
letreiro de minha sepultura;
que
a sombra escura já me impede o dia.
IV
Canção
Vão as serenas
águas
do
Mondego descendo
mansamente,
que até o mar não param;
por
onde minhas mágoas
pouco
a pouco crecendo,
para
nunca acabar se começaram.
Ali
se ajuntaram neste lugar ameno,
aonde
agora mouro, testa de nove e ouro,
riso
brando, suave, olhar sereno,
um
gesto delicado,
que
sempre n'alma m'estará pintado.
Nesta
florida terra,
leda,
fresca e serena,
ledo
e contente para mim vivia,
em
paz com minha guerra,
contente
com a pena
que
de tão belos olhos procedia.
Um
dia noutro dia
o
esperar m'enganava;
longo
tempo passei,
co
a vida folguei, só
porque
em bem tamanho me empregava.
Mas
que me presta já,
que
tão fermosos olhos não os há?
Ó
quem me ali dissera
que
de amor tão profundo
o
fim pudesse ver ind'algüa hora!
Ó
quem cuidar pudera
que
houvesse aí no mundo
apartar-m'eu
de vós, minha Senhora,
para
que desde agora
perdesse
a esperança,
e
o vão pensamento,
desfeito
em um momento,
sem
me poder ficar mais que a lembrança,
que
sempre estará firme
até
o derradeiro despedir-me.
Mas
a mor alegria
que
daqui levar posso,
com
a qual defender-me triste espero,
é
que nunca sentia
no
tempo que fui vosso
quererdes-me
vós quanto vos eu quero;
porque
o tormento fero
de
vosso apartamento
não
vos dará tal pena
como
a que me condena:
que
mais sentirei vosso sentimento,
que
o que minh'alma sente.
Moura
eu, Senhora, e vós ficai contente!
Canção,
tu estarás
aqui
acompanhando
estes
campos e estas claras águas,
e
por mim ficarás chorando
e
suspirando,
e
ao mundo mostrando tantas mágoas,
que
de tão larga história
minhas
lágrimas fiquem por memória.
V
Canção
Se
este meu pensamento,
como
é doce e suave,
de
alma pudesse vir gritando fora,
mostrando
seu tormento
cruel,
e grave,
diante
de vós só, minha Senhora:
pudera
ser que agora
o
vosso peito duro
tornara
manso e brando.
E
eu que sempre ando
pássaro
solitário, humilde, escuro,
tornado
um cisne puro,
brando
e sonoro pelo ar voando,
com
canto manifesto
pintara
meu tormento e vosso gesto.
Pintara
os olhos belos
que
trazem nas mininas
o
Minino que os seus neles cegou;
e
os dourados cabelos
em
tranças d'ouro finas
a
quem o Sol seus raios abaixou;
a
testa que ordenou
atura
tão formosa;
o
bem proporcionado
nariz,
lindo, afilado,
que
a cada parte tem a fresca rosa;
a
boca graciosa,
que
querê-la louvar é escusado;
enfim,
é um tesouro:
os
dentes, perlas; as palavras, ouro.
Vira-se
claramente,
ó
Dama delicada,
que
em vós se esmerou mais a Natureza;
e
eu, de gente em gente,
trouxera
trasladada
em
meu tormento vossa gentileza.
Somente
a aspereza
de
vossa condição,
Senhora,
não dissera,
porque
se não soubera
que
em vós podia haver algum senão.
E
se alguém, com razão,
—Porque
morres? dissera, respondera:
—Mouro
porque é tão bela
que
inda não sou para morrer por ela.
E
se pola ventura,
Dama,
vos ofendesse,
escrevendo
de vós o que não sento,
e
vossa fermosura
tão
baixo não descesse
que
a alcançasse um baixo entendimento,
seria
o fundamento
daquilo
que cantasse todo de puro amor,
porque
vosso louvor
em
figura de mágoas se mostrasse.
E
onde se julgasse a causa pelo efeito,
minha
dor diria ali sem medo:
quem
me sentir, verá de quem procedo.
Então
amostraria
os
olhos saudosos,
o
suspirar que a alma traz consigo;
a
fingida alegria,
os
passos vagarosos,
o
falar, o esquecer-me do que digo;
um
pelejar comigo,
e
logo desculpar-me;
um
recear, ousando;
andar
meu bem buscando,
e
de poder achá-lo acovardar-me;
enfim,
averiguar-me
que
o fim de tudo quanto estou falando
são
lágrimas e amores;
são
vossas isenções e minhas dores.
Mas
quem terá, Senhora,
palavras
com que iguale
com
vossa fermosura minha pena;
que,
em doce voz, de fora
aquela
glória fale
que
dentro na minh'alma Amor ordena?
Não
pode tão pequena
força
de engenho humano
com
carga tão pesada,
se
não for ajudada
dum
piedoso olhar, dum doce engano;
que,
fazendo-me o dano
tão
deleitoso, e a dor tão moderada,
que,
enfim, se convertesse
nos
gostos dos louvores que escrevesse.
Canção,
não digas mais; e se teus versos
à
pena vêm pequenos,
não
queiram de ti mais, que dirás menos.
VI
Canção
Com
força desusada
aquenta
o fogo eterno
üa
ilha lá nas partes do Oriente,
de
estranhos habitada,
aonde
o duro Inverno
os
campos reverdece alegremente.
A
lusitana gente
por
armas sanguinosas,
tem
dela senhorio.
Cercada
está dum rio
de
marítimas águas saudosas;
das
ervas que aqui nascem,
os
gados juntamente e os olhos pascem.
Aqui
minha ventura
quis
que üa grã parte
da
vida, que não tinha, se passasse,
para
que a sepultura
nas
mãos do fero Marte
de
sangue e de lembranças matizasse.
Se
Amor determinasse
que,
a troco desta vida,
de
mim qualquer memória
ficasse,
como história
que
de uns fermosos olhos fosse lida,
a
vida e alegria
por
tão doce memória trocaria.
Mas
este fingimento,
por
minha dura sorte,
com
falsas esperanças me convida.
Não
cuide o pensamento
que
pode achar na morte
o
que não pôde achar tão longa vida.
Está
já tão perdida
a
minha confiança
que,
de desesperado
em
ver meu triste estado,
também
da morte perco a esperança.
Mas
oh! que se algum dia
desesperar
pudesse, viveria.
De
quanto tenho visto
já
'gora não m'espanto,
que
até desesperar se me defende.
Outrem
foi causa disto,
que
eu nunca pude tanto
que
causasse este fogo que me encende.
Se
cuidam que me ofende
temor
de esquecimento,
oxalá
meu perigo
me
fora tão amigo
que
algum temor deixara ao pensamento!
Quem
viu tamanho enleio
que
houvesse ai esperança sem receio?
Quem
tem que perder possa
se
pode recear.
Mas
triste quem não pode já perder!
Senhora,
a culpa é vossa,
que
para me matar
bastará
ü'hora só de vos não ver.
Puseste-me
em poder
de
falsas esperanças;
e,
do que mais me espanto:
que
nunca vali tanto
que
vivesse também com esquivanças.
Valia
tão pequena
não
pode merecer tão doce pena.
Houve-se
Amor comigo
tão
brando e pouco irado,
quanto
agora em meus males se conhece;
que
não há mor castigo
para
quem tem errado q
ue
negar-lhe o castigo que merece.
E
bem como acontece
que
assi como ao doente
da
cura despedido,
o
médico sabido
tudo
quanto deseja lhe consente,
assi
me consentia
esperança,
desejo e ousadia.
E
agora venho a dar
conta
do bem passado
a
esta triste vida e longa ausência.
Quem
pode imaginar
que
pode haver pecado
que
mereça tão grave penitência?
Olhai
que é consciência,
por
tão pequeno erro,
Senhora,
tanta pena!
Não
vedes que é onzena?
Mas
se tão longo e mísero desterro
vos
dá contentamento,
nunca
se acabe nele meu tormento.
Rio
fermoso e claro,
e
vós, ó arvoredos,
que
os justos vencedores coroais,
e
ao cultor avaro,
continuamente
ledos,
dum
tronco só diversos frutos dais;
assi
nunca sintais
do
tempo injúria algüa,
que
em vós achem abrigo
as
mágoas que aqui digo,
enquanto
der o Sol virtude à Lüa;
porque
de gente em gente
saibam
que já não mata a vida ausente.
Canção,
neste desterro viverás,
Voz
nua e descoberta,
até
que o tempo em Eco te converta.
VII
Canção
Manda-me
Amor que cante docemente
o
que ele já em minh'alma tem impresso
com
pressuposto de desabafar-me;
e
porque com meu mal seja contente,
diz
que ser de tão lindos olhos preso,
contá-lo
bastaria a contentar-me.
Este
excelente modo de enganar-me
tomara
eu só de Amor por interesse,
se
não se arrependesse
co
a pena o engenho escurecendo.
Porém
a mais me atrevo,
em
virtude do gesto de qu'escrevo;
e
se é mais o que canto que o qu'entendo,
invoco
o lindo aspeito,
que
pode mais que Amor em meu defeito.
Sem
conhecer Amor viver soía,
seu
arco e seus enganos desprezando,
quando
vivendo deles me mantinha.
O
Amor enganoso, que fingia
mil
vontades alheias enganando,
me
fazia zombar de quem o tinha.
No
Touro entrava Febo, e Progne vinha;
o
corno de Aquelôo Flora entornava,
quando
o Amor soltava
oS
fios d'ouro, as tranças enerespadas,
ao
doce vento esquivas,
dos
olhos rutilando chamas
vivas,
e as rosas entre a nove semeadas,
co
riso tão galante
que
um peito desfizera de diamante.
Um
não sei quê, suave, respirando,
causava
um admirado e novo espanto,
que
as cousas insensíveis o sentiam.
E
as gárrulas aves levantando
vozes
desordenadas em seu canto,
como
em meu desejo se entendiam.
As
fontes cristalinas não corriam,
inflamadas
na linda vista pura;
florescia
a verdura que, andando,
cos
divinos pés tocava;
os
ramos se abaixavam,
tendo
enveja das ervas que pisavam
(ou
porque tudo ante ela se abaixava).
Não
houve coisa, enfim,
que
não pasmasse dela, e eu de mim.
Porque
quando vi dar entendimento
às
cousas que o não tinham, o temor
me
fez cuidar que efeito em mim faria.
Conheci-me
não ter conhecimento;
e
nisto só o tive, porque Amor
mo
deixou, porque visse o que podia.
Tanta
vingança Amor de mim queria
que
mudava a humana natureza:
os
montes e a dureza
deles,
em mim, por troca, traspassava.
O
que gentil partido!
Trocar
o ser do monte sem sentido,
pelo
que num juízo humano estava!
Olhai
que doce engano:
tirar
comum proveito de meu dano!
Assi
que, indo perdendo o sentimento
a
parte racional, me entristecia
vê-la
a um apetite sometida;
mas
dentro n'alma o fim do pensamento
por
tão sublime causa me dezia
que
era razão ser vencida.
Assi
que, quando a via ser perdida,
a
mesma perdição a restaurava;
e
em mansa paz estava
cada
um com seu contrário num sujeito.
Ó
grão concerto este!
Quem
será que não julgue por celeste
a
causa donde vem tamanho efeito
que
faz num coração
que
venha o apetite a ser razão?
Aqui
senti de Amor a mor fineza,
como
foi ver sentir o insensível,
e
o ver a mim de mim mesmo perder-me;
enfim,
senti negar-se a natureza;
por
onde cri que tudo era possível
aos
lindos olhos seus, senão querer-me.
Despois
que já senti desfalecer-me,
em
lugar do sentido que perdia,
não
sei que m'escrevia
dentro
n'alma co as letras da memória,
o
mais deste processo
co
claro gesto juntamente impresso
que
foi a causa de tão longa história.
Se
bem a declarei,
eu
não a escrevo, d'alma a trasladei.
Canção,
se quem te ler
não
crer dos olhos lindos o que dizes,
pelo
que em si se esconde,
os
sentidos humanos, lhe responde,
não
podem dos divinos ser juízes,
[sendo
um pensamento
que
a falta supra a fé do entendimento].
VIII
Canção
Tomei
a triste pena
já
de desesperado
de
vos lembrar as muitas que padeço,
com
ver que me condena
a
ficar eu culpado
o
mal que me tratais e o que mereço.
Confesso
que conheço
que,
em parte, a causa dei
[a]
o mal em que me vejo,
pois
sempre meu desejo
a
tão largas promessas entreguei;
mas
não tive suspeita
que
seguísseis tenção tão imperfeita.
Se
em vosso esquecimento
tão
envolto estou
como
os sinais demonstram, que mostrais;
vivo
neste tormento,
lembranças
mais não dou
que
as de razão tomar queirais:
olhai
que me tratais
assi
de dia em dia
com
vossas esquivanças;
e
as vossas esperanças,
de
que, vãmente, eu me enriquecia,
renovam
a memória;
pois
com tê-la de vós, só tenho glória.
E
se isto conhecêsseis
ser
verdade pura
como
ouro de Arábia reluzente,
inda
que não quisésseis,
a
condição tão dura
mudáreis
noutra muito diferente.
E
eu, como inocente
que
estou neste caso,
isto
em mãos pusera
de
quem sentença dera
que
ficasse o direito justo e raso,
se
não arreceara
que
a vós por mim, e a mim por vós matara.
Em
vós escrita vi
vossa
grande dureza,
e
n'alma escrita está que de vós vive;
não
que acabasse ali
sua
grande firmeza
o
triste desengano que então tive;
porque
antes que a dor prive
de
todos meus sentidos,
ao
grande tormento
acode
o entendimento
com
dous fortes soldados, guarnecidos
de
rica pedraria,
que
ficam sendo minha luz e guia.
Destes
acompanhado,
estou
posto sem medo
a
tudo o que o fatal destino ordene;
pode
ser que, cansado,
ou
seja tarde, ou cedo,
com
pena de penar-me, me despene.
E
quando me condene
(que
isto é o que espero)
inda
a maiores dores,
perdidos
os temores,
por
mais que venha, não direi: não quero.
Contudo
estou tão forte
que
nem me mudará a mesma morte.
Canção,
se já não queres
ver
tanta crueldade,
lá
vás onde verás minha verdade.
IX
Canção
Junto
de um seco, fero e estéril monte,
inútil
e despido, calvo, informe,
da
natureza em tudo aborrecido;
onde
nem ave voa, ou fera dorme,
nem
rio claro corre, ou ferve fonte,
nem
verde ramo faz doce ruído;
cujo
nome, do vulgo introduzido
é
felix, por antífrase, infelice;
o
qual a Natureza
situou
junto à parte
onde
um braço de mar alto reparte
Abássia,
da arábica aspereza,
onde
fundada já foi Berenice,
ficando
a parte donde
o
sol que nele ferve se lhe esconde;
nele
aparece o Cabo com que a costa
africana,
que vem do Austro correndo,
limite
faz, Arómata chamado
(Arómata
outro tempo, que, volvendo
os
céus, a ruda língua mal composta,
dos
próprios outro nome lhe tem dado).
Aqui,
no mar, que quer apressurado
entrar
pela garganta deste braço,
me
trouxe um tempo e teve
minha
fera ventura.
Aqui,
nesta remota, áspera e dura
parte
do mundo, quis que a vida breve
também
de si deixasse um breve espaço,
porque
ficasse a vida
pelo
mundo em pedaços repartida.
Aqui
me achei gastando uns tristes dias,
tristes,
forçados, maus e solitários,
trabalhosos,
de dor e d'ira cheios,
não
tendo tão somente por contrários
a
vida, o sol ardente e águas frias,
os
ares grossos, férvidos e feios,
mas
os meus pensamentos, que são meios
para
enganar a própria natureza,
também
vi contra mi
trazendo-me
à memória
algüa
já passada e breve glória,
que
eu já no mundo vi, quando vivi,
por
me dobrar dos males a aspereza,
por
me mostrar que havia
no
mundo muitas horas de alegria.
Aqui
estiv'eu co estes pensamentos
gastando
o tempo e a vida; os quais tão alto
me
subiam nas asas, que cala
(e
vede se seria leve o salto!)
de
sonhados e vãos contentamentos
em
desesperação de ver um dia.
Aqui
o imaginar se convertia
num
súbito chorar, e nuns suspiros
que
rompiam os ares.
Aqui,
a alma cativa,
chagada
toda, estava em carne viva,
de
dores rodeada e de pesares,
desamparada
e descoberta aos tiros
da
soberba Fortuna;
soberba,
inexorável e importuna.
Não
tinha parte donde se deitasse,
nem
esperança algüa onde a cabeça
um
pouco reclinasse, por descanso.
Todo
lhe he dor e causa que padeça,
mas
que pereça não, porque passasse
o
que quis o Destino nunca manso.
Oh!
que este irado mar, gritando, amanso!
Estes
ventos da voz importunados,
parece
que se enfreiam!
Somente
o Céu severo,
as
Estrelas e o Fado sempre fero,
com
meu perpétuo dano se recreiam,
mostrando-se
potentes e indignados
contra
um corpo terreno,
bicho
da terra vil e tão pequeno.
Se
de tantos trabalhos só tirasse
saber
inda por certo que algu'hora
lembrava
a uns claros olhos que já vi;
e
se esta triste voz, rompendo fora,
as
orelhas angélicas tocasse
daquela
em cujo riso já vivi;
a
qual, tornada um pouco sobre si,
revolvendo
na mente pressurosa
os
tempos já passados
de
meus doces errores,
de
meus suaves males e furores,
por
ela padecidos e buscados,
tornada
(inda que tarde) piadosa,
um
pouco lhe pesasse
e
consigo por dura se julgasse;
isto
só que soubesse, me seria
descanso
para a vida que me fica;
co
isto afagaria o sofrimento.
Ah!
Senhora, Senhora, que tão rica
estais,
que cá tão longe, de alegria,
me
sustentais cum doce fingimento!
Em
vos afigurando o pensamento,
foge
todo o trabalho e toda a pena.
Só
com vossas lembranças
me
acho seguro e forte
contra
o rosto feroz da fera Morte,
e
logo se me ajuntam esperanças
com
que a fronte, tornada mais serena,
torna
os tormentos graves
em
saudades brandas e suaves.
Aqui
co elas fico, perguntando
aos
ventos amorosos, que respiram
da
parte donde estais, por vós, Senhora;
às
aves que ali voam, se vos viram,
que
fazíeis, que estáveis praticando,
onde,
como, com quem, que dia e que hora.
Ali
a vida cansada, que melhora,
toma
novos espritos , com que vença
a
Fortuna e Trabalho,
só
por tornar a vervos ,
só
por ir a servir-vos e querer-vos.
Diz-me
o Tempo, que a tudo dará talho;
mas
o Desejo ardente, que detença
nunca
sofreu, sem tento
m'abre
as chagas de novo ao sofrimento.
Assi
vivo; e se alguém te perguntasse,
Canção,
como não mouro,
podes-lhe
responder que porque mouro.
X
Canção
Vinde
cá, meu tão certo secretário
dos
queixumes que sempre ando fazendo,
papel,
com que a pena desafogo!
As
sem-razões digamos que, vivendo,
me
faz o inexorável e contrário
Destino,
surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos
água pouca em muito fogo;
acenda-se
com gritos um tormento
que
a todas as memórias seja estranho.
Digamos
mal tamanho
a
Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
a
quem já muitas vezes o contei,
tanto
debalde como o conto agora;
mas,
já que para errores fui nascido,
vir
este a ser um deles não duvido.
Que,
pois já de acertar estou tão fora,
não
me culpem também, se nisto errei.
Sequer
este refúgio só terei:
falar
e errar sem culpa, livremente.
Triste
quem de tão pouco está contente!
Já
me desenganei que de queixar-me
não
se alcança remédio; mas, quem pena,
forçado
lhe é gritar, se a dor é grande.
Gritarei;
mas é débil e pequena
a
voz para poder desabafar-me,
porque
nem com gritar a dor se abrande.
Quem
me dará sequer que fora mande
lágrimas
e suspiros infinitos
iguais
ao mal que dentro n'alma mora?
Mas
quem pode algu'hora
medir
o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim,
direi aquilo que me ensinam
a
ira, a mágoa, e delas a lembrança,
que
é outra dor por si, mais dura e firme.
Chegai,
desesperados, para ouvir-me,
e
fujam os que vivem de esperança
ou
aqueles que nela se imaginam,
porque
Amor e Fortuna determinam
de
lhe darem poder para entenderem,
à
medida dos males que tiverem.
{Quando
vim da materna sepultura
de
novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas
infelices obrigado;
com
ter livre alvedrio, mo não deram,
que
eu conheci mil vezes na ventura
o
milhor, e pior segui, forçado.
E,
para que o tormento conformado
me
dessem com a idade, quando abrisse
inda
minino, os olhos, brandamente,
mandam
que, diligente,
um
Minino sem olhos me ferisse.
As
lágrimas da infância já manavam
com
üa saudade namorada;
o
som dos gritos, que no berço dava,
já
como de suspiros me soava.
Co
a idade e Fado estava concertado;
porque
quando, por caso, me embalavam,
se
versos de Amor tristes me cantavam,
logo
m'adormecia a natureza,
que
tão conforme estava co a tristeza}
Foi
minha ama ua fera, que o destino
não
quis que mulher fosse a que tivesse
tal
nome para mim; nem a haveria.
Assi
criado fui, porque bebesse
o
veneno amoroso, de minino,
que
na maior idade beberia,
e,
por costume, não me mataria.
Logo
então vi a imagem e semelhança
daquela
humana fera tão fermosa,
suave
e venenosa,
que
me criou aos peitos da esperança;
de
que eu vi despois o original,
que
de todos os grandes desatinos
faz
a culpa soberba e soberana.
Parece-me
que tinha forma humana,
mas
cintilava espíritos divinos.
Um
meneio e presença tinha tal
que
se vangloriava todo o mal
na
vista dela; a sombra, co a viveza,
excedia
o poder da Natureza.
Que
género tão novo de tormento
teve
Amor, que não fosse, não somente
provado
em mim, mas todo executado?
Implacáveis
durezas, que o fervente
desejo,
que dá força ao pensamento,
tinham
de seu propósito abalado,
e
de se ver, corrido e injuriado; a
qui,
sombras fantásticas, trazidas
de
algüas temerárias esperanças;
as
bem-aventuranças
nelas
também pintadas e fingidas;
mas
a dor do desprezo recebido,
que
a fantasia me desatinava,
estes
enganos punha em desconcerto;
aqui,
o adevinhar e o ter por certo
que
era verdade quanto adevinhava,
e
logo o desdizer-me, de corrido;
dar
às cousas que via outro sentido,
e
para tudo, enfim, buscar razões;
mas
eram muitas mais as sem-razões.
Não
sei como sabia estar roubando
cos
raios as entranhas, que fugiam
por
ela, pelos olhos sutilmente!
Pouco
a pouco invencíveis me saiam,
bem
como do véu húmido exalando
está
o sutil humor o Sol ardente.
Enfim,
o gesto puro e transparente,
para
quem fica baixo e sem valia
este
nome de belo e de fermoso;
o
doce e piadoso
mover
de olhos, que as almas suspendia
foram
as ervas mágicas, que o Céu
me
fez beber; as quais, por longos anos,
noutro
ser me tiveram transformado,
e
tão contente de me ver trocado
que
as mágoas enganava cos enganos;
e
diante dos olhos punha o véu
que
me encobrisse o mal, que assi creceu,
como
quem com afagos se criava
daquele
para quem crecido estava].
Pois
quem pode pintar a vida ausente, c
om
um descontentar-me quanto via,
e
aquele estar tão longe donde estava,
o
falar, sem saber o que dezia,
andar,
sem ver por onde, e juntamente
suspirar
sem saber que suspirava?
Pois
quando aquele mal me atormentava
e
aquela dor que das tartáreas águas
saiu
ao mundo, e mais que todas dói,
que
tantas vezes sói
duas
iras tornar em brandas mágoas;
agora,
co furor da mágoa irado,
querer
e não querer deixar de amar,
e
mudar noutra parte por vingança
o
desejo privado de esperança,
que
tão mal se podia já mudar;
agora,
a saudade do passado
tormento,
puro, doce e magoado,
fazia
converter estes furores
em
magoadas lágrimas de amores.
Que
desculpas comigo que buscava
quando
o suave Amor me não sofria
culpa
na cousa amada, e tão amada!
enfim,
eram remédios que fingia
o
medo do tormento que ensinava
a
vida a sustentar-se, de enganada.
Nisto
ua parte dela foi passada,
na
qual se tive algum contentamento
breve,
imperfeito, tímido, indecente,
não
foi senão semente
de
longo e amaríssimo tormento.
Este
curso contino de tristeza,
estes
passos tão vãmente espalhados,
me
foram apagando o ardente gosto,
que
tão de siso n'alma tinha posto,
daqueles
pensamentos namorados
em
que eu criei a tenta natureza,
que
do longo costume da aspereza,
contra
quem força humana não resiste,
se
converteu no gosto de ser triste.
Dest'arte
a vida noutra fui trocando;
eu
não, mas o destino fero, irado,
que
eu ainda assi por outra não trocara.
Fez-me
deixar o pátrio ninho amado,
passando
o longo mar, que ameaçando
tantas
vezes me esteve a vida cara.
Agora,
exprimentando a fúria rara
de
Marte, que cos olhos quis que logo
visse
e tocasse o acerbo fruto seu
(e
neste escudo meu
a
pintura verão do infesto fogo);
agora,
peregrino vago e errante,
vendo
nações, linguages e costumes,
Céus
vários, qualidades diferentes,
só
por seguir com passos diligentes
a
ti, Fortuna injusta, que consumes
as
idades, levando-lhe diante
üa
esperança em vista de diamante,
mas
quando das mãos cai se conhece
que
é frágil vidro aquilo que aparece.
A
piadade humana me faltava,
a
gente amiga já contrária via,
no
primeiro perigo; e no segundo,
terra
em que pôr os pés me falecia,
ar
para respirar se me negava,
e
faltavam-me, enfim, o tempo e o mundo.
Que
segredo tão árduo e tão profundo:
nascer
para viver, e para a vida
faltar-me
quanto o mundo tem para ela!
E
não poder perdê-la,
estando
tantas vezes já perdida!
Enfim,
não houve transe de fortuna,
nem
perigos, nem casos duvidosos,
injustiças
daqueles, que o confuso
regimento
do mundo, antigo abuso,
faz
sobre os outros homens poderosos,
que
eu não passasse, atado à grã coluna
do
sofrimento meu, que a importuna
perseguição
de males em pedaços
mil
vezes fez, à força de seus braços.
Não
conto tantos males como aquele
que,
despois da tormenta procelosa,
os
casos dela conta em porto ledo;
que
ainda agora a Fortuna flutuosa
a
tamanhas misérias me compele,
que
de dar um só passo tenho medo.
Já
de mal que me venha não me arredo,
nem
bem que me faleça já pretendo,
que
para mim não val astúcia humana;
de
força soberana,
la
Providência, enfim, divina pendo.
Isto
que cuido e vejo, às vezes tomo
para
consolação de tantos danos.
Mas
a fraqueza humana, quando lança
os
olhos no que corre, e não alcança
senão
memória dos passados anos,
as
águas que então bebo, e o pão que como,
lágrimas
tristes são, que eu nunca domo
senão
com fabricar na fantasia
fantásticas
pinturas de alegria.
Que
se possível fosse, que tornasse
o
tempo para trás, como a memória,
pelos
vestígios da primeira idade,
e
de novo tecendo a antiga história
de
meus doces errores, me levasse
pelas
flores que vi da mocidade;
e
a lembrança da longa saudade
então
fosse maior contentamento,
vendo
a conversação leda e suave,
onde
üa e outra chave esteve
de
meu novo pensamento,
os
campos, as passadas, os sinais,
a
fermosura, os olhos, a brandura,
a
graça, a mansidão, a cortesia,
a
sincera amizade, que desvia
toda
a baixa tenção, terrena, impura,
como
a qual outra algüa não vi mais...
Ah!
vês memórias, onde me levais
o
fraco coração, que ainda não posso
domar
este tão vão desejo vosso?
Nô
mais, Canção, nô mais; que irei falando,
sem
o sentir, mil anos. E se acaso
te
culparem de larga e de pesada,
não
pode ser (lhe dize) limitada
a
água do mar em tão pequeno vaso.
Nem
eu delicadezas vou cantando
co
gosto do louvor, mas explicando
puras
verdades já por mim passadas.
Oxalá
foram fábulas sonhadas!
XI
Elegia
O
Poeta Simónides, falando
co
capitão Temístocles, um dia,
em
cusas de ciência praticando,
ü
a arte singular lhe prometia,
que
então compunha, com que lhe ensinasse
a
se lembrar de tudo o que fazia;
onde
tão sutis regras lhe mostrasse
que
nunca lhe passasse da memória
em
nenhum tempo as cousas que passasse.
Bem
merecia, certo, fama e glória
quem
dava regra contra o esquecimento
que
enterra em si qualquer antiga história.
Mas
o capitão claro, cujo intento
bem
diferente estava, porque havia
as
passadas lembranças por tormento;
ilustre
Simónides! (dezia)
Pois
tanto em teu engenho te confias
que
mostras à memória nova via,
e
me desses üa arte que em meus dias
me
não lembrasse nada do passado,
oh!
quanto milhor obra me farias!
Se
este excelente dito ponderado
fosse
por quem se visse estar ausente,
em
longas esperanças degradado,
ah!
como bradaria justamente:
Simónides,
inventa novas artes;
não
meças o passado co presente!
Que,
se é forçado andar por várias partes
buscando
à vida algum descanso honesto,
que
tu, Fortuna injusta, mal repartes;
se
o duro trabalho é manifesto
que
por grave que seja, há-de passar-se
com
animoso esprito e ledo gesto;
de
que serve às pessoas alembrar-se
do
que se passou já, pois tudo passa,
senão
de entristecer-se e magoar-se?
Se
noutro corpo üa alma se traspassa,
não,
como quis Pitágoras, na morte
mas
como manda Amor na vida escassa;
e
se este Amor no mundo está de sorte
que
na virtude só dum lindo objecto
tem
um corpo sem alma, vivo e forte;
onde
este objecto falta, que é defecto
tamanho
para a vida, que já nela
me
está chamando à pena a dura Alecto;
porque
me não criara minha estrela
selvático
no mundo, e habitante
na
dura Cítia, ou na aspereza dela,
ou
no Cáucaso horrendo? Fraco infante,
criado
ao peito d'algüa tigre hircana,
homem
fora formado de diamante,
porque
a cerviz ferina e inumana
não
sometera ao jugo e dura lei
daquele
que dá vida quando engana.
Ou,
em pago das águas qu'estilei,
as
que do mar passei foram de Lete, p
ara
que me esquecera o que passei.
Que
o bem que a esperança vã promete,
ou
a morte o estorva, ou a mudança,
que
é mal que ua alma em lágrimas derrete.
Já,
Senhor, cairá como a lembrança,
no
mal, do bem passado é triste e dura,
pois
nasce aonde morre a esperança.
E
se quiser saber como se apura
nua
alma saudosa, não se enfade
de
ler tão longa e mísera escritura.
Soltava
Eolo a rédea e liberdade
ao
manso Favónio brandamente,
e
eu já tinha solta a saudade.
Neptuno
tinha posto o seu tridente;
a
proa a branca escuma dividia,
co
a gente marítima contente.
O
coro das Nereidas nos seguia,
os
ventos, namorada Galateia
consigo,
sossegados, os movia.
Das
argênteas conchinhas, Panopeia
andava
pelo mar fazendo molhos,
Melanto,
Dinamene, com Ligeia.
Eu,
trazendo lembranças por antolhos,
trazia
os olhos na água sossegada,
e
a água sem sossego nos meus olhos.
A
bem-aventurança já passada
diante
mim tinha tão presente
como
se não mudasse o tempo nada.
E
com o gesto imoto e descontente,
cum
suspiro profundo, e mal ouvido,
por
não mostrar meu mal a toda a gente,
dezia:
Ó claras Ninfas! Se o sentido
em
puro amor tivestes, e inda agora
da
memória o não tendes esquecido;
se,
porventura, fordes algüa hora
aonde
entra o grão Tejo a dar tributo
a
Tétis, que vós tendes por Senhora;
ou
por verdes o prado verde enxuto,
ou
por colherdes ouro rutilante,
das
tágicas areias rico fruto;
nelas
em verso heróico e elegante,
escrevei
cüa concha o que em mim vistes:
pode
ser que algum peito se quebrante.
E
contando de mim memórias tristes,
os
pastores do Tejo, que me ouviam,
ouçam
de vós as mágoas que me ouvistes.
Elas,
que já no gesto me entendiam,
nos
meneios das ondas me mostravam
que
em quanto lhe pedia consentiam.
Estas
lembranças, que me acompanhavam
pola
tranquilidade da bonança,
nem
na tormenta grave me deixavam.
Porque,
chegado ao Cabo da Esperança,
começo
da saudade que renova,
lembrando
a longa e áspera mudança;
debaixo
estando já da Estrela nova,
que
no novo Hemisfério resplandece,
dando
do segundo axe certa prova;
eis
a noite com nuvens escurece,
do
ar supitamente foge o dia,
e
o largo oceano se embravece.
A
máquina do Mundo parecia
que
em tormenta se vinha desfazendo,
em
serras todo o mar se convertia.
Lutando
Bóreas fero e Noto horrendo,
sonoras
tempestades levantavam,
das
naus as velas côncavas rompendo.
As
cordas, ao ruído, associavam,
os
marinheiros, já desesperados,
com
gritos para o Céu o ar coalhavam.
Os
raios por Vulcano fabricados
vibrava
o fero e áspero Tonante,
tremendo
os Pólos ambos, de assombrados!
Ali
Amor mostrando-se possante
e
que por nenhum modo não fugia,
mas
quanto mais trabalho, mais constante;
vendo
a morte diante, em mim dezia:
Se
algüa hora, Senhora, vos lembrasse,
nada
do que passei me lembraria.
Enfim,
nunca houve cousa que mudasse
o
firme Amor do intrínseco daquele
em
cujo peito üa vez de siso entrasse.
üa
cousa, Senhor, por certo assele;
que
nunca Amor se afina, nem se apura,
enquanto
está presente a causa dele.
Dest'arte
me chegou minha ventura
a
esta desejada e longa terra,
de
todo o pobre honrado sepultura.
Vi
quanta vaïdade em nós se encerra,
e
dos próprios quão pouca; contra quem
foi
logo necessário termos guerra.
Que
üa ilha que o rei de Porcá tem,
que
o rei da Pimenta lhe tomara,
fomos
tomar-lha, e sucedeu-nos bem.
Com
üa armada grossa, que ajuntara
o
vizo-rei de Goa, nos partimos
com
toda a gente d'armas que se achara,
e
com pouco trabalho destruímos
a
gente no curvo arco exercitada;
com
mortes, com incêndios, os punimos.
Era
a ilha com águas alagada,
de
modo que se andava em almadias;
enfim,
outra Veneza trasladada.
Nela
nos detivemos sós dous dias,
que
foram para alguns os derradeiros,
que
passaram de Estige as águas frias.
Que
estes são os remédios verdadeiros
que
para a vida estão aparelhados
aos
que a querem ter por cavaleiros.
Oh,
lavradores bem-aventurados!
Se
conhecessem seu contentamento,
como
vivem no campo sossegados!
Dá-lhes
a justa terra o mantimento,
dá-lhes
a fonte clara a água pura,
mungem
suas ovelhas cento a cento.
Não
vêm o mar irado, a noite escura,
por
ir buscar a pedra do Oriente;
não
temem o furor da guerra dura.
Vive
um com suas árvores contente,
sem
lhe quebrar o sono sossegado
o
cuidado do ouro reluzente.
Se
lhe falta o vestido perfumado,
e
da fermosa cor assíria tinto,
e
dos torçais atálicos lavrado;
se
não tem as delicias de Corinto,
e
se de Pário os mármores lhe faltam,
o
piropo, a esmeralda, e o jacinto;
se
suas casas d'ouro não se esmaltam,
esmalta-se-lhe
o campo de mil flores,
onde
os cabritos seus, comendo, saltam.
Ali
amostra o campo várias cores,
vêm-se
os ramos pender co fruto ameno,
ali
se afina o canto dos pastores:
ali
cantara Títiro e Sileno.
Enfim,
por estas partes caminhou
a
sã justiça para o Céu sereno.
Ditoso
seja aquele que alcançou
poder
viver na doce companhia
das
mansas ovelhinhas que criou!
Este,
bem facilmente alcançaria
as
causas naturais de toda a cousa:
como
se gera a chuva e neve fria;
os
trabalhos do Sol, que não repousa;
e
porque nos dá a Lua a luz alheia,
se
tolher-nos de Febo os raios ousa;
e
como tão depressa o Céu rodeia;
e
como um só, os outros traz consigo;
e
se é benina ou dura Citereia.
Bem
mal pode entender isto que digo
quem
há-de andar seguindo o fero Marte,
que
traz os olhos sempre em seu perigo.
Porém
seja, Senhor, de qualquer arte,
que,
posto que a Fortuna possa tanto,
que
tão longe de todo o bem me aparte,
não
poderá apartar meu duro canto
desta
obrigação sua, enquanto a morte
me
não entrega ao duro Radamanto,
—se
para tristes há tão leda sorte.
XII
Elegia
D. António de
Noronha,
estando o Autor
na India
Aquela que
de amor descomedido
pelo
fermoso moço se perdeu
que
só por si de amores foi perdido,
despois
que a deusa em pedra a converteu
de
seu humano gesto verdadeiro,
a
última vez só lhe concedeu.
assi
meu mal do próprio ser primeiro
outra
cousa nenhüa me consente
que
este canto que escrevo derradeiro.
E
se algüa pouca vida, estando ausente,
me
deixa Amor, é porque o pensamento
sinta
a perda do bem de estar presente.
Senhor,
se vos espanta o sentimento
que
tenho em tanto mal, para escrevê-lo
furto
este breve tempo a meu tormento.
Porque
quem tem poder para sofrê-lo,
sem
se acabar a vida co cuidado,
também
terá poder para dize-lo.
Nem
eu escrevo mal tão costumado,
mas
n'alma minha, triste e saudosa,
a
saudade escreve, e eu traslado.
Ando
gastando a vida trabalhosa,
espalhando
a continua saudade
ao
longo de ua praia saudoso.
Vejo
do mar a instabilidade,
como
com seu ruído impetuoso
retumba
na maior concavidade.
E
com sua branca escuma, furioso,
na
terra, a seu pesar, lhe está tomando
lugar
onde se estenda, cavernoso.
Ela,
como mais fraca, lhe está dando
as
côncavas entranhas, onde esteja
suas
salgadas ondas espalhando.
A
todas estas cousas tenho enveja
tamanha,
que não sei determinar-me,
por
mais determinado que me veja.
Se
quero em tanto mal desesperar-me,
não
posso, porque Amor e Saudade,
nem
licença me dão para matar-me.
As
vezes cuido em mim se a novidade
e
estranheza das cousas, co a mudança
se
poderão mudar üa vontade.
E
com isto afiguro na lembrança
a
nova terra, o novo trato humano,
a
estrangeira gente e estranha usança.
Subo-me
ao monte que Hércules tebano
do
altíssimo Calpe dividiu,
dando
caminho ao mar Mediterrano.
Dali
estou tenteando aonde viu
o
pomar das Hespéridas, matando
a
serpe que a seu passo resistiu.
Em
outra parte estou afigurando
o
poderoso Anteu que, derrubado,
mais
força se lhe estava acrescentando;
mas
do hercúleo braço sojugado, n
o
ar deixou a vida, não podendo
da
madre terra já ser ajudado.
Nem
com isto, enfim, que estou dizendo,
nem
com as armas tão continuadas,
de
lembranças passadas me defendo.
Todas
as cousas vejo remudadas,
porque
o tempo ligeiro não consente
que
estejam de firmeza acompanhadas.
Vi
já que a Primavera, de contente,
de
mil cores alegres revestia
o
monte, o rio, o campo alegremente.
Vi
já das altas aves a harmonia,
que
até aos montes duros convidava
a
um modo suave de alegria.
Vi
já que tudo, enfim, me contentava,
e
que, de muito cheio de firmeza,
um
mal por mil prazeres não trocava.
Tal
me tem a mudança e estranheza
que,
se vou pelos campos, a verdura,
parece
que se seca, de tristeza.
Mas
isto é já costume da ventura;
que
os olhos que vivem descontentes,
descontente
o prazer se lhe afigura.
Ó
graves e insofríveis acidentes
de
Fortuna e de Amor que a penitência
tão
grave dais aos peitos inocentes!
Não
basta exprimentar-me a paciência,
com
temores e falsas esperanças,
sem
que também me atente o mel de ausência?
Trazeis
um brando animo em mudanças,
para
que nunca possa ser mudado
de
lágrimas, suspiros e lembranças.
E
se estiver ao mal acostumado,
também
no mal não consentis firmeza,
para
que nunca viva descansado.
Vivia
eu sossegado na tristeza,
e
ali não me faltava um brando engano,
que
tirasse os desejos da fraqueza.
E
vendo-me enganado estar ufano,
deu
à roda Fortuna, e deu comigo
onde
de novo choro o novo dano.
Já
deve de bastar o que aqui digo
para
dar a entender o mais que calo,
a
quem já viu tão áspero perigo.
E
se nos bravos peitos faz abalo
um
peito magoado e descontente,
que
obriga a quem o ouve a consolá-lo;
não
quero mais senso que largamente,
Senhor,
me mandeis novas dessa terra:
ao
menos poderei viver contente.
Porque
se o duro Fado me desterra,
tanto
tempo do bem que o fraco esprito
desampare
a prisão onde se encerra,
ao
som das negras águas de Cocito,
ao
pé dos carregados arvoredos
cantarei
o que na alma tenho escrito.
E,
por entre esses hórridos penedos,
a
quem negou Natura o claro dia,
entre
tormentos ásperos e medos,
com
a trémula voz, cansada e fria,
celebrarei
o gesto claro e puro
que
nunca perderei da fantasia.
E
o músico de Trácia, já seguro
de
perder sua Eurídice, tangendo
me
ajudará, ferindo o ar escuro.
As
namoradas sombras, revolvendo
memórias
do passado, me ouvirão;
e
com seu choro, o rio irá crescendo.
Em
Salmoneu as penas faltarão,
e
das filhas de Belo, juntamente,
de
lágrimas os vasos se encherão.
Que
se o amor não se perde em vida ausente,
menos
se perderá por morte escura;
porque,
enfim, a alma vive eternamente,
e
amor é afeito d'alma, e sempre dura.
XIII
Elegia
O
sulmonense Ovídio, desterrado
na
aspereza do Ponto, imaginando
ver-se
de seus parentes apartado;
sua
cara mulher desamparando,
seus
doces filhos, seu contentamento,
de
sua pátria os olhos apartando;
não
podendo encobrir o sentimento,
aos
montes e às águas se queixava
de
seu escuro e triste nacimento.
O
curso das estrelas contemplava,
e
como por sua ordem discorria
o
céu, o ar e a terra adonde estava.
Os
peixes pelo mar nadando via,
as
feras pelo monte, procedendo
como
seu natural lhes permitia.
De
suas fontes via estar nascendo
os
saudosos rios de cristal,
a
sua natureza obedecendo.
Assi
só, de seu próprio natural
apartado,
se via em terra estranha,
a
cuja triste dor não acha igual.
Só
sua doce Musa o acompanha,
nos
versas saudosos que escrevia,
e
lágrimas com que ali o campo banha.
Dest'arte
me afigura a fantasia a vida
com
que vivo, desterrado do bem
que
noutro tempo possuia.
Ali
contemplo o gosto já passado,
que
nunca passará pola memória
de
quem o tem na mente debuxado.
Ali
vejo a caduca e débil glória
desenganar
meu erro, co a mudança
que
faz a frágil vida transitória.
Ali
me representa esta lembrança
quão
pouca culpa tenho; e me entristece
ver
sem razão a pena que me alcança.
Que
a pena que com causa se padece,
a
causa tira o sentimento dela;
mas
muito dói a que se não merece.
Quando
a roxa manhã, formosa
e
bela, abre as portas ao sol, e cai o orvalho,
e
torna a seus queixumes filomela;
este
cuidado que co sono atalho
em
sonhos me parece; que o que a gente
para
descanso tem, me dá trabalho.
E
despois de acordado, cegamente
(ou,
por milhor dizer, desacordado,
que
pouco acordo tem um descontente)
dali
me vou com passo carregado,
a
um outeiro erguido, e ali me assento,
soltando
a rédea toda a meu cuidado.
Despois
de farto já de meu tormento,
dali
estendo os olhos saudosos
à
parte aonde tenho o pensamento.
Não
vejo senão montes pedregosos;
e
os campos sem graça e secos vejo
que
já floridos vira e graciosos.
Vejo
o puro, suave e brando Tejo,
com
as côncovas barcas, que, nadando,
vão
pondo em doce efeito seu desejo.
as
co brando vento navegando, o
utras
cos leves remos, brandamente
as
cristalinas águas apartando.
Dali
falo co a água, que não sente
com
cujo sentimento a alma sai
em
lágrimas desfeita claramente.
Ó
fugitivas ondas, esperai!
que,
pois me não levais em companhia
ao
menos estas lágrimas levai,
até
que venha aquele alegre dia
que
eu vá onde vós is, contente e ledo.
Mas
tanto tempo quem o passaria?
Não
pode tanto bem chegar tão cedo,
porque
primeiro a vida acabará
que
se acabe tão áspero degredo.
Mas
esta triste morte que virá,
se
em tão contrário estado me acabasse,
a
alma impaciente adonde irá?
Que,
se às portas tartáreas chegasse,
temo
que tanto mal pola memória
nem
ao passar de Lete lhe passasse.
Que,
se a Tântalo e Tício for notória
a
pena com que vai que a atormenta,
a
pena que lá tem terão por glória.
Esta
imaginação me acrescenta
mil
mágoas no sentido, porque a vida
de
imaginações tristes se sustenta.
Que,
pois de todo vive consumido,
porque
o mal que possui se resuma,
imagina
na glória possuida,
até
que a noite eterna me consuma,
ou
veja aquele dia desejado,
em
que Fortuna faça o que costuma;
—se
nela há i mudar um triste estado.
XIV
Elegia
(CAPÍTULO)
Aquele
mover d'olhos excelente,
aquele
vivo espírito inflamado
do
cristalino rosto transparente;
aquele
gesto imoto e repousado,
que
estando n'alma propriamente escrito,
não
pode ser em verso trasladado;
aquele
parecer que é infinito
para
se compreender de engenho humano,
o
qual ofendo em quanto tenho dito,
me
inflama o coração dum doce engano,
m'enleva
e engrandece a fantasia,
que
não vi maior glória que meu dano.
Oh
bem-aventurado seja o dia
em
que tomei tão doce pensamento,
que
de todos os outros me desvia!
E
bem-aventurado o sofrimento
que
soube ser capaz de tanta pena,
vendo
que o foi da causa o entendimento!
Faça-me,
quem me mata, o mel que ordena;
trate-me
com enganos, desamores;
que
então me salva, quando me condena.
E
se de tão suaves disfavores
penando
vive üa alma consumida,
oh!
que doce penar! que doces dores!
E
se üa condição endurecida
também
me nega a morte por meu dano,
oh!
que doce morrer! que doce vida!
E
se me mostra um gesto brando e humano,
como
que de meu mal culpada se acha,
oh!
que doce mentir! que doce engano!
E
se em querer-lhe tanto ponho tacha,
mostrando
refrear o pensamento,
oh!
que doce fingir! que doce cacha!
Assi
que ponho já no sofrimento
a
parte principal de minha glória,
tomando
por milhor todo o tormento.
Se
sinto tanto bem só na memória
de
vos ver, linda Dama, vencedora,
que
quero eu mais que ser vossa a vitória?
Se
tanto vossa vista mais namora
quanto
eu sou menos para merecer-vos,
que
quero eu mais que ter-vos por Senhora ?
Se
procede este bem de conhecer-vos
e
consiste o vencerem ser vencido,
que
quero eu mais, Senhora, que querer-vos?
Se
em meu proveito faz qualquer partido,
só;
na vista duns olhos tão serenos,
que
quero eu mais ganhar que ser perdido?
Se
meus baixos espritos de pequenos,
ainda
não merecem seu tormento,
que
quero eu mais, que o mais não seja menos?
A
causa, enfi, m'esforça o sofrimento,
porque,
apesar do mal, que me resiste,
de
todos os trabalhos me contento;
que
a razão faz a pena alegre ou triste.
XV
Elegia
Se
quando contemplamos as secretas
Causas,
por que o mundo se sustenta,
o
revolver dos céus e dos planetas;
e
se quando à memória se apresent a
este
curso do Sol, que é tão medido
que
um ponto só não mingua nem se aumenta;
aquele
efeito, tarde conhecido,
da
Lua, em ser mudável tão constant e
que
minguar e crecer é seu partido;
aquela
natureza tão possant e
dos
Céus, que tão conforme se contrários
caminham,
sem parar um breve instante ;
aqueles
movimentos ordinários,
a
que responde o tempo, que não mente,
cos
efei os da Terra necessáros;
se
quando, enfim, revolve sutilmen te
tantas
cousas a leve fantasia,
sagaz,
escrutadora e diligente;
vê
bem, se da razão se não desvia,
o
altíssimo Ser, puro e divino,
que
tudo pode, manda, move e cria ;
sem
fim e sem começo: um ser contino;
um
Padre grande, a quem tudo é possível,
por
mais árduo que seja ao homem indino;
um
saber infinito, incompreensível;
üa
verdade que nas cousas anda,
que
mora no visível e no invisível.
Esta
Potência, enfim, que tudo manda,
esta
Causa das causas, revestida
foi
desta nossa carne miseranda.
Do
amor e da justiça compelida,
polos
erros da gente, em mãos da gente
(como
se Deus não fosse!) perde a vida.
Ó
cristão descuidado e negligente
pondera
isto, que digo, repousado,
não
passes por aqui tão levemente.
Não,
que aquele Deus alto incriado,
Senhor
das cousas todas, que fundou
o
Céu, a Terra, o fogo e o mar irado,
não
do confuso Caos, como cuidou
a
falsa teologia e povo escuro,
que
nesta só verdade tanto errou;
não
dos átomos falsos de Epicuro;
não
do largo Oceano, como Tales,
mas
só do pensamento casto e puro.
Olha,
animal humano, quanto vales,
que
por ti este grande Deus padece,
novo
modo de morte, novos males.
Olha
que o Sol no Olimpo se escurece,
não
por oposição doutro planeta,
mas
só porque virtude lhe falece.
Não
vês que a grande máquina inquieta
do
mundo se desfaz toda em tristeza,
e
não por natural causa secreta?
Não
vês como se perde a natureza?
O
ar se turba? o mar, batendo, geme,
desfazendo
das pedras a dureza?
Não
vês que os montes caem? a terra treme?
E
que até na remota e grande Atenas,
o
sábio Dionísio sente e teme?
O
sumo Deus! tu mesmo te condenas
pelo
mal em que eu só sou tão culpado,
a
Amanhas afrontas, tantas penas.
Por
mim, Senhor, no mundo reputado
por
falso e por quebrantados da lei
a
fama de ti se põe do meu pecado.
Eu,
Senhor, sou ladrão; tu, justo Rei;
eu,
só furtei; tu, com ladrões padeces;
a
pena a-ti se dá do que eu pequei.
Eu,
servo sem valor; tu, sumo preço,
em
preço vil te pões, por me tirares
do
cativeiro eterno, que mereço.
Eu,
por perder-te; e tu, por me ganhares,
te
dás aos homens baixos, que te vendem,
só
para os homens presos resgatares.
A
ti, que as almas soltas, a ti prendem;
a
ti, sumo Juiz, ante juízes te acusam,
polo
error dos que te ofendem.
Chamem-te
malfeitor, não contradizes;
sendo
tu dos Profetas a certeza,
dizem
que quem te fere profetizes.
Rim-se
de ti; tu choras a crueza
que
sobre eles virá. A gente dura,
por
quem tu vens ao mundo, te despreza.
O
teu rosto, de cuja fermosura
se
veste o Céu e o Sol resplandecente,
diante
de que muda está a Natura,
com
cruas bofetadas da vil gente,
de
precioso sangue está banhado,
cuspido,
arrepelado cruelmente.
Aquele
corpo tenro e delicado,
sobre
todos os Santos sacrossanto,
de
açoutes rigorosos flagelado;
despois,
coberto mal de um pobre manto,
que
se pegava às carnes magoadas,
para
dobrar-lhe as dores outro tanto.
Magoavam-no
as chagas não curadas,
um
tormento causando-lhe, excessivo,
ao
despir pelas mãos cruéis e iradas.
As
santíssimas barbas de Deus vivo,
de
resplandor ornadas lhe arrancavam,
para
desempenhar Adão cativo.
Com
cordas pelas ruas o levavam,
levando
sobre os ombros o trofeu
das
vitórias que as almas alcançavam.
O
tu que passas, homem Cireneu,
ajuda
um pouco este Homem verdadeiro,
que
agora como humano enfraqueceu!
Olha
que o corpo, aflito do marteiro
e
dos longos jejuns debilitado,
não
pode já co peso do madeiro.
Oh
não enfraqueçais, Deus encarnado!
Essas
quedas, que tanto vos magoam,
suportai,
Cavaleiro sublimado!
Que
aquelas altas vozes que lá soam,
Padres
são que estão no Limbo escuro,
que
já de louro e palma vos coroam.
Todos
vos bradam, que subais ao muro
da
cidade infernal, e que arvoreis
em
cima essa bandeira, mui seguro.
Oh
Santos Padres, não vos apresseis,
que
muito mais a Deus que a vós custaram
essas
duras prisões em que jazeis!
quelas
mãos, que o mundo edificaram,
aqueles
pés, que pisam as estrelas,
com
duríssimos pregos se encravaram.
Mas
qual será a pessoa que as querelas
da
angustiada Virgem contemplasse
que
não se mova à dor e à mágoa delas?
E
que dos olhos seus não estilasse
tanta
cópia de lágrimas ardentes
que
carreiras no rosto assinalasse?
Oh
quem lhe vira os olhos refulgentes
desfazendo-se
em lágrimas, regando
aquelas
belas faces excelentes!
Quem
a vira cos gritos ir tocando
as
estrelas, a quem responde o Céu,
cos
acentos dos Anjos retumbando!
Quem
vira quando o claro rosto ergueu
a
ver o Filho, que na Cruz pendia,
donde
a nossa saúde descendeu!
Que
mágoas tão chorosas que diria!
Que
palavras tão míseras e tristes
para
o Céu, para a gente espalharia!
Pois
que seria, Virgem, quando vistes
com
fel nojoso e com vinagre amaro
matar
a sede ao Filho que paristes?
Não
era este o licor suave e claro
que,
para o confortar, então daríeis
a
quem vos era, mais que a vida, caro.
Como,
Virgem Senhora, não corríeis
a
dar as tetas puras ao Cordeiro
que
padecer na Cruz com sede víeis?
Não
só era esse, Senhora, o verdadeiro
poto,
que vosso Filho desejava
morrendo
polo mundo num madeiro;
mas
[era] a salvação, que ali ganhava
para
o mísero Adão, que ali bebia
na
fonte, que do peito lhe manava.
Pois,
ó pura e Santíssima Maria,
que,
enfim, sentistes esta magoa, quanto
a
gravidade dela o requeria;
dessa
Fonte sagrada e peito santo
me
alcançai üa gata, com que lave
a
culpa, que me agrava e pesa tanto.
Do
licor salutífero e suave
me
abrangei, com que mate a sede dura
deste
mundo tão cego, torpe e grave.
Assi,
Senhora, toda a criatura
que
vive e viverá, que não conhece
a
Lei do vosso Filho, santa e pura;
o
falsíssimo herege, que carece
da
graça, e com danado e falso esprito
perturba
a Santa Igreja, que florece;
O
povo pertinaz, no antigo rito,
que
só o desterro seu, que tanto dura,
lhe
diz que é pena igual ao seu delito;
o
torpe Ismaelita, que mistura
as
leis, e com preceitos viciosos
na
terra estende a seita falsa, impura;
os
idólatras maus, supersticiosos,
vários
de opiniões e de costume,
levados
de conceitos fabulosos;
as
mais remotas gentes, onde o lume
da
nossa fé não chega, nem que tenham
religião
algüa se presume;
assi
todos, enfim, Senhora, venham
confessar
um só Deus crucificado,
e
por nenhum respeito se detenham.
Mas
de todos o vicio já passado,
o
Seu nome co vosso, neste dia
seja
por todo mundo celebrado
E
respondam os Céus: JESUS, MARIA.
XVI
Elegia
À morte de D.
Miguel de Meneses,
filho de D. Henrique
de Meneses,
governador da
casa do Cível, que
morreu na Índia
Que
novas tristes são, que novo dano,
que
mal inopinado incerto dano,
tingindo
de temor o vulto humano?
Que
vejo as praias húmidas de Goa
ferver
de gente atónita e torvada
do
rumor que de boca em boca soa.
É
morto D. Miguel (ah! crua espada!)
e
parte da lustrosa companhia
que
se embarcou na alegre e triste armada;
de
espingarda ardente e lança fria
passado
pelo torpe e inico braço
que
nossas altas famas injuria.
Não
lhe valeu rodela ou peito de aço,
nem
animo de Avós altos herdado,
com
que se defendeu tamanho espaço;
não
ter-se em derredor todo cercado
de
corpos de inimigos, que exalavam
a
negra alma do corpo traspassado;
não
com palavras fortes, que voavam
a
animar os incertos companheiros,
que
fortes caem e tímidos viravam.
Mas
já postos nos termos derradeiros,
passados
por mil partes e cortados
os
membros, só do nobre esforço inteiros,
os
olhos, de furor acompanhados,
que
inda na morte as vidas amedrontam
dos
fracos inimigos espantados,
postos
no Céu, parece que apresentam
a
pura alma à suprema Eternidade,
por
quem os Céus e Terra se sustentam.
E,
pedindo dos erros que na idade
verde
e quase inocente já fazia,
perdão
à pia e justa Majestade,
as
rosas apartou da nove fria;
e,
como flama fraca, a quem falece
seu
húmido licor, de que vivia,
nas
mãos do Coro Angélico, que dece,
se
entrega; e vai gozar da vida eterna
que
com tão justa morte se merece.
Vai-te,
alma, em paz à glória sempiterna!
Vai,
que quem pela Lei santa e divina
morre,
a dá a Deus, que os Céus governa.
Quando
pela razão devida e dina
do
Rei, da Pátria, e honra dos passados
sacrificar
a vida nos ensina,
nos
assentos de estrelas esmaltados
lhe
dá lugar a altíssima Clemência
entre
os heróis à glória destinados.
Mas,
ah! quem sofrerá perpétua ausência
e
tão caro Senhor, tão fido amigo!
Quem
porá contra mágoas resistência?
Aquele
animo grande, que do antigo
de
seus maiores era alto retrato,
desprezador
de todo o vil perigo;
misturado
com doce e brando trato
cos
iguais Juntamente' e cos menores
a
todos amoroso, a todos grato;
aquele
esprito nobre, onde maiores
esperanças
cresciam, se o tão duro
caso,
as não cortara em novas flores;
em
verde idade, siso já maduro,
alegre
riso, ledo e aberto peito, e
m
repousado espírito seguro;
não
soberbo e por arte contrafeito,
mas
todo puro e, enfim, da natureza
mais
para o Céu que para a terra feito;
também
do corpo a humana gentileza
o
bem talhado gesto, que mostrava
forças
iguais e manhas com destreza;
a
cor, que o fresco rosto matizava,
as
rosas, flores novas de alegria,
com
que o Verão as faces adornava;
tudo
os fios da Morte, que desvia
dos
propósitos nossos e salteia,
cortaram
cruamente, quando abria.
Deixa
pois tu, fermosa Citereia,
do
gentil filho e neto de Ciniras
o
pranto pela morte horrenda e feia.
E
tu, dourado Apolo, que suspiras
pelo
crespo Hiacinto, moço caro,
por
quem a clara luz ao mundo tiras;
vinde
e chorai um moço ao mundo raro,
não
de ferino dente vulnerado,
nem
de animal algum que haja reparo,
mas
só do fero imigo traspassado;
que,
sem dúvida incerta ou pio medo,
a
vida pôs nas mãos de Marte irado.
Está
tu também, moço Idálio, quedo,
deixa
de dar o venenoso mel a beber
pelos
olhos triste e ledo,
que
já os fermosos olhos de Miguel
cobertos
são do negro e escuro manto
da
lei geral, a todos mais cruel.
E
vós, filhas de Téspis, que do canto
podeis
bem mitigar a lei imensa
dos
irmãos generosos e alto pranto,
não
consintais que façam larga ofensa
à
grande integridade, que, se devem,
não
são águas do dano recompensa.
Que
já, diante, os olhos me descrevem,
quando
as bocas da fama voadora
ao
pátrio e claro Tejo as novas levem,
a
profunda tristeza, que em üa hora
tal
posse tomará dos altos peitos,
que
a razão quase quase deite fora.
Ali,
de dor, os corações sujeitos
pesadas
lhe serão consolações
e
pesados exemplos e respeitos.
Pequena
é certo a dor, que com razões
se
pôde refrear, nem com memória
de
outros antigos e integros varões.
Mas
porém se igualais a vida à glória,
meu
grande Dom Filipe, e pretendeis d
eixar
de vossas obras larga história,
eu
não vos admoesto, que estreiteis
o
coração na estóica disciplina,
onde
livre de efeitos vos mostreis,
que
mal natura nossa determina
medo,
esperanças, dores e alegria,
como
o Cínico velho nos ensina.
lmanidade
estúpida (diria
o
sulmonense canto) e vil rudeza
é
não sentir afeitos, que a alma cria.
Porém,
se não sentir nada é bruteza,
e
se paixão de vida se consente,
também
o sentir muito é já fraqueza.
Se
dói a opinião do mal presente,
e
medo e opinião do mal futuro,
são,
enfim, tudo opiniões da gente.
O
verdadeiro sábio está seguro
de
leves alegrias e de espanto de dor,
que
turba da alma o licor puro.
Inda
antes que aconteça o riso e o pranto
os
tem já no sentido meditados,
livre
está de alvoroço e de quebranto.
E
como de alta torre vê cuidados
humanos
vãos, e aquela indiferença
de
ambições e cobiças e Recados;
todo
caso acha nele só presença,
que,
como as febres são da carne humana,
assi
os afeitos d'alma são doença.
Se
esta doutrina credes, que é profana,
ponde
os olhos na nossa, que é divina,
e
sobre todas santa e soberana.
Vereis
Arão, que não se contamina
sobre
os montes seus, que defendida
a
dor lhe foi da santa disciplina.
Não
chega a ver parentes, que da vida
partidos
são, que n'alma a Deus agrada
que
nenhüa aflição do mundo impida.
Nós
somos geração a Deus dicada
sacerdotal,
que em tempo nenhum deve
do
gentílico culto ser tocada.
Se
dos antigos Padres já se escreve,
que,
chorando, aos mortos enterraram
com
dor e pranto público, e não leve,
era
porque ainda as portas não quebraram
do
Céu sereno aquelas mãos cravadas
que
os antigos contágios alimparam.
E
também por ornar as sempre usadas
pompas
do funeral enterramento
com
públicas exéquias costumadas.
Esta
alta fortaleza e sofrimento
como
a forte Varão vos é devido,
e
como lei do santo documento.
Bem
conheço que o corpo assi perdido,
que
do sepulcro nobre aqui carece
será
de aves ou feras consumido.
Mortos
os Espartanos valerosos,
da
fera multidão fazendo estremos
tais
epitáfios tinham gloriosos:
Dirás,
hóspede, tu, que aqui jazemos
passado
do inimigo fero, enqnanto
às
santas leis da Pátria obedecemos.
Fugindo
os Persas vão com frio espanto,
mas
acham as mulheres no caminho
amostrando-lhe
o ventre sem ter manto:
—Pois
fugis do perigo, que é vizinho,
fracos!
vinde esconder-vos (lhe diziam)
outra
vez no materno, escuro ninho.
Vedes
quais com mais glória ficariam
se
aqueles que enfim morreram pelo Estado,
se
os outros, que as mulheres injuriam.
Mas
tu, claro Miguel! que já acordado
deste
sonho tão breve, estás naquela
torre
do Céu, seguro e repousado,
onde,
com Deus unida a forte e bela
alma,
com teus maiores reluzindo,
por
cada chaga tens üa clara estrela;
os
pés o cristalino Céu medindo,
pisando
essas lucíferas Esferas,
já
da terrena os olhos encobrindo;
agora
um curso e outro consideras,
agora
a vaidade dos mortais,
que
tu tam bem passaras, se viveras.
Mais
a pena cantara, a poder mais.
XVII
Elegia
Dom Leonis Pereira
sobre o livro
e Peão de Magalhães
lhe of ereceu do
descobrimento
da terra de Santa Cruz
Despois
que Magalhães teve tecida
a
breve história sua, que ilustrasse
a
terra Santa Cruz, pouco sabida,
imaginando
a quem a dedicasse,
ou
com cujo favor defenderia seu livro,
de
algum zoilo que ladrasse;
tendo
nisto ocupada a fantasia,
lhe
sobreveio um sono repousado,
antes
que o Sol abrisse o claro dia.
Em
sonhos lhe aparece, todo armado,
Marte,
brandindo a lança furiosa,
com
que fez, quem o viu, todo enfiado,
dizendo,
em vez pesada e temerosa:
Não
é justo que a outrem se ofereça
nenhüa
obra que possa ser famosa,
senão
a quem por armas resplandeça
no
mundo todo com tal nome e fama
que
louvor imortal sempre mereça.
Isto
assi dito, Apolo, que da flama
celeste
guia os carros, de outra parte
se
lhe apresenta, e por seu nome o chama,
dizendo:—Magalhães,
posto que Marte
com
seu terror te espante, todavia
comigo
deves só aconselhar-te.
Um
Varão, sapiente, em quem Talia
pôs
seus tesouros e eu minha ciência,
defender
tuas obras poderia.
E
justo que a escritura na prudência
ache
só defensão, porque a dureza
das
armas é contrária da eloquência.
Assi
disse; e, tocando com destreza
a
cítara dourada, começou
de
mitigar de Marte a fortaleza.
Mas
Mercúrio, que sempre costumou
a
despartir porfias duvidosas,
co
caduceu na mão, que sempre usou,
determina
compor as perigosas
Opiniões
aos deuses inimigos,
com
razões boas, justas e amorosas;
e
disse:—Bem sabemos dos antigos
heróis
e dos modernos, que provaram
de
Belona os gravíssimos perigos,
que
também muitas vezes ajuntaram
às
armas eloquência, porque as Musas
mil
capitães na guerra acompanharam.
Nunca
Alexandre ou César, nas confusas
guerras
deixaram o estudo em breve espaço,
nem
armas da ciência são escusas.
Nüa
mão livros, noutra ferro e aço,
a
üa rege e ensina, a outra fere;
mais
co saber se vence que co braço.
Pois,
logo, Varão grande, se requere,
que
com teus dões, Apolo, ilustre seja,
e
de ti, Marte, palma e glória espere.
Este
vos darei eu, em quem se veja
saber
e esforço no sereno peito,
que
é Dom Leonis, que faz ao mundo enveja.
Deste
as Irmãs em vendo o bom sujeito,
todas
nove nos braços o tomaram,
criando-o
co seu leite no seu leito.
As
artes e ciência lhe ensinaram,
inclinação
divina lhe influiram,
as
virtudes morais, que o logo ornaram.
Daqui
os exercícios o seguiram,
das
armas no Oriente, onde primeiro
um
soldado gentil instituiram.
Ali
tais provas fez de cavaleiro,
que
de cristão magnânimo e seguro,
a
si mesmo venceu por derradeiro.
Despois,
já capitão forte e maduro,
governando
toda Áurea Quersoneso,
lhe
defendeu co braço o débil muro;
porque
vindo a cercá-la todo o peso
do
poder dos Achéns, que se sustenta
do
sangue alheio, em fúria todo aceso;
este
só, que a ti, Marte, representa,
o
castigou de sorte, que o vencido
de
ter quem fique vivo se contenta.
Pois
tanto que o grão Reino defendido
deixou
segunda vez com maior glória,
para
o ir governar foi elegido.
E
não perdendo ainda da memória,
os
amigos, 0 seu governo brando,
os
imigos, o dano da vitória;
uns,
com amor intrínseco, esperando
estão
por ele, e os outros, congelados,
o
vão, com temor frio, receando.
Pois
vede se serão desbaratados
de
todo por seu braço, se tornasse,
e
dos mares da Índia degradados;
porque
é justo que nunca lhe negasse
o
conselho de Olimpo alto e subido
favor
e ajuda, com que pelejasse.
Pois
aqui certo está bem dirigido
de
Magalhães o livro, este só deve
de
ser de vós, ó deuses, escolhido.
isto
Mercúrio disse, e logo em breve
se
conformaram nisto Apolo e Marte,
e
voou juntamente o sono leve.
Acorda
Magalhães, e já se parte
a
vos oferecer, Senhor famoso,
tudo
o que nele pôs ciência e arte.
Tem
claro estilo, engenho curioso
para
poder de vós ser recebido,
com
mão benina de animo amoroso.
Porque
só de não ser favorecido
um
claro esprito, fica baixo e escuro:
pois
seja ele convosco defendido
como
o foi de Malaca o fraco muro.
FIM
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