VII
O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se
alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba, tendo
para eixo a linha férrea da Central.
Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra
colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o
subúrbio continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e
morrotes. Passamos por um lugar que supomos deserto, e olhamos, por
acaso, o fundo de uma grota, donde brotam ainda árvores de capoeira, lá
damos com um casebre tosco, que, para ser alcançado, torna-se preciso
descer uma ladeirota quase a prumo; andamos mais e levantamos o olhar
para um canto do horizonte e lá vemos, em cima de uma elevação, um ou
mais barracões, para os quais não topamos logo da primeira vista com a
ladeira de acesso.
Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte
onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas.
Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos disten-
didas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de
taipa, o bambu, que não é barato.
Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros,
que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes. Nelas,
há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de
esgoto. Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante da
varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.
Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas
muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências aristocráti-
cas: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto muito
espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes, "correres" de
pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chama-
mos "avenida".
As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de
grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro.
De manhã até à noite, ficam povoadas de toda a espécie de pequenos ani-
mais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos,
sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam.
Quando chega a tardinha, de cada portão se ouve o "toque de reu-
nir": "Mimoso"! É um bode que a dona chama. "Sereia"! É uma leitoa
que uma criança faz entrar em casa; e assim por diante.
Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus -- tudo entra pela
porta principal, atravessa a casa toda e vai se recolher ao quintalejo aos
fundos.
Se acontece faltar um dos seus "bichos", a dona da casa faz um baru-
lho de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o furto à vizi-
nha tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado, que às vezes desanda
em pugilato entre os maridos.
A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer
ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres.
O estado de irritabilidade, provindo das constantes dificuldades por
que passam, a incapacidade de encontrar fora de seu habitual campo de
visão motivo para explicar o seu mal-estar, fazem-nas descarregar as suas
queixas, em forma de desaforos velados, nas vizinhas com que antipatizam
por lhes parecer mais felizes. Todas elas se têm na mais alta conta, provin-
das da mais alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma dife-
rença acidental de cor é causa para que possa se julgar superior à vizinha;
o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela é outro, Um "bel-
chior" de mesquinharias açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o despeito.
Em geral, essas brigas duram pouco. Lá vem uma moléstia num dos
pequenos desta, e logo aquela a socorre com os seus vidros de homeopatia.
Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande
parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos,
embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuá-
rias noutros pontos do Rio de Janeiro.
Nem lhes facilita a morte, isto é, o acesso aos cemitérios locais.
Para o de Inhaúma, procurado por uma vasta zona suburbana, os
caminhos são maus, e pior do que isto: dão voltas inúteis, que poderiam
ser evitadas sem grandes despesas. Os enterros da gente mais pobre são fei-
tos a pé, e é fácil imaginar como chegam, os que carregam o morto, no
campo-santo municipal. Quem passa por aqueles caminhos, quase sempre
topa com um. Os de "anjos" são carregados por moças e os destas também
pelas da sua idade. Não há, para elas, nenhuma toilette especial. Levam a
mesma que para os bailes e mafuás; e lá vão de rosa, de azul-celeste, de
branco, carregando a pobre amiga, debaixo de um sol inclemente, e respi-
rando uma poeira de sufocar; quando chove, ou choveu recentemente, car-
regam o caixão aos saltos, para evitar atoleiros e poças d'água,
Os de adultos são carregados por adultos. Nestes, porém, há sempre
uma modificação do indumento dos que acompanham. Os cavalheiros pro-
curam roupas escuras, se não pretas; mas, às vezes, surge o escândalo da
sua calça branca. Vão muito pouco tristes e, em cada venda que passam,
"quebram o corpo", isto é, bebem uma boa dose de parati. Ao chegarem
ao cemitério, aquelas cabeças não regulam bem, mas o defunto é enterrado.
Houve, porém, uma ocasião, que o corpo não chegou a seu destino.
Beberam tanto, que o esqueceram no caminho. Cada qual que saía da ven-
da, olhava o caixão e dizia: Eles que estão lá dentro, que o carreguem.
Chegaram ao cemitério e deram por falta do defunto. "Mas não era você
que o vinha carregando?" -- perguntava um. "Era você" -- respondia o
outro; e, assim, cada um empurrava a culpa para o outro. Estavam cansa-
díssimos e semi-embriagados. Resolveram alugar uma carroça e ir buscar
o camarada falecido, que já tinha duas velas piedosas a arder-lhe à cabe-
ceira. E o pobre homem, que devia receber dos amigos aquela tocante
homenagem, dos camaradas levarem-no a pé ao cemitério, só a recebeu a
meio, pois, o resto do caminho para a última morada, ele a fez graças aos
esforços de dois burros, que estavam habituados a puxar carga bem dife-
rente e muito menos respeitável.
Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono
em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã,
de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas,
sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns, morando
mais longe, em Inhaúma, em Caxambi, em Jacarepaguá, perdem amor a
alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações. Esse movi-
mento dura até às dez horas da manhã e há toda uma população de certo
ponto da cidade no número dos que nele tomam parte. São operários,
pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias
prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de
pequenas transações, do dia a dia, em que ganham penosamente alguns
mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego,
as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a
sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem
à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma coisa,
para o sustento seu e dos filhos.
Nessas horas, as estações se enchem e os trens descem cheios. Mais
cheios, porém, descem os que vêm do limite do Distrito com o Estado do
Rio. Esses são os expressos. Há gente por toda a parte. O interior dos car-
ros está apinhado e os vãos entre eles como que trazem quase a metade
da lotação de um deles. Muitos viajam com um pé num carro e o outro
no imediato, agarrando-se com as mãos às grades das plataformas. Outros
descem para a cidade sentados na escada de acesso para o interior do vagão;
e alguns, mais ousados, dependurados no corrimão de ferro, com um único
pé no estribo do veículo.
Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e
adjacências, só é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel de casa.
Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro como no
subúrbio, propriamente. Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos
do Distrito Federal que o governo federal caridosamente supre em algumas
bicas públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda
dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela Prefeitura,
que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao Estado, tudo
falta, nem nada há embrionário.
O viajante que se detém um pouco a olhar aqueles campos de vegeta-
ção rala e amarelada, aqueles morros escalavrados, cobertos de intrincados
carrascais, onde pasta um gado magro e ossudo, fica confrangido e triste.
Não há nenhuma cultura; as árvores de porte são raras; nas casas, é raro
uma laranjeira virente, nem um mamoeiro semi-espontâneo desce-lhes à
entrada.
Os córregos são em geral vales de lama pútrida, que, quando chegam
as grandes chuvas, se transformam em torrentes, a carregar os mais nause-
abundos detritos. A tabatinga impermeável, o barro compacto e a falta d'á-
gua não permitem a existência de hortas; e um repolho é lá mais raro que
na avenida Central.
O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte anterior, um tão lindo
diadema de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo coroa a cingi-lo
todo em roda. A parte posterior, como se vê, não chega a ser um neobar-
bante que prenda dignamente o diadema que lhe cinge a testa olímpica...
Cassi Jones, em pé, na estação do Méier, via passar aqueles trens
cheios de homens de trabalho, sem considerar que, quase com trinta anos,
até ali, na verdade, não havia nunca trabalhado. O seu pensamento ia para
outra parte.
Desde que Arnaldo lhe trouxera notícias do que ouvira na venda, ele
se sentia um pouco desanimado nos seus propósitos, em relação à filha do
carteiro. Ao mesmo tempo, porém, ele percebia que todas aquelas precau-
ções contra ele eram tomadas porque a rapariga não lhe era indiferente. De
modo que -- concluía ele -- precisava saber ao certo os sentimentos de Clara,
para então agir. Era necessário ouvir-lhe a palavra; mas como? A ele, não
onvinha rondar a casa da filha do carteiro. Era conhecido, seria denunciado
ao pai, que, naturalmente, lhe tomaria satisfações. Qualquer que fosse o des-
fecho do pugilato, ele só teria a perder. A sua fama, a sua má fama, se tinha
corporificado naquele fantástico caderno que ia ter a todas as mãos. Não era
mais formada de boquejos daqui e dali, em geral anônimos; agora, vinha
documentada, com todas as indicações e referências precisas.
Havia nele com o que se pudesse condenar um santo: e, se ele agre-
disse o carteiro Joaquim, toda a simpatia iria para o pai, que defendia até
à última extremidade a honra de sua filha, e não para ele, um contumaz e
cínico sedutor. Até ali, ele contava com a benevolência secreta de juízes e
delegados, que, no íntimo, julgavam absurdo o casamento dele com as
suas vítimas, devido à diferença de educação, de nascimento, de cor, de
instrução. Quanto à segunda e terceira causa, embora nem sempre se verifi-
casse a segunda, podia-se admitir; mas, quanto às duas outras considera-
ções, eram errôneas, porque ele era tão ignorante e tão mal-educado como
eram, em geral, as humildes raparigas que ele desgraçava irremediavelmente.
De resto, ele já não contava com proteção alguma.
No começo, foi seu pai; depois, seu tio, o capitão-médico -- ambos
solicitados tenazmente por sua mãe; mas agora? Agora, ele estava certo
de que nenhum deles se abalaria e gastaria um ceitil por causa dele. Res-
tava o Capitão Barcelos. Neste, porém, ele não depositava grande confiança.
Fosse coisa pequena em que nada se gastasse, o capitão mover-se-ia; no
caso contrário, porém, fugiria com o corpo. Era preciso cautela, senão...
Cassi continuou a pesar os meios que podia encontrar para entender-
se com Clara. Com Lafões, ele já não contava. Vira, na última visita que
lhe fizera, que o velho português era matreiro. Com ele, não levaria vanta-
gem alguma. Como havia de ser?
Dos bondes continuava a descer gente aos magotes, que se encaminhava
apressadamente para a plataforma da estrada de ferro. Alguns iam tomar
um café, antes de se encaminharem, definitivamente, para os "varais" da
repartição; outros iam até às casas de "bicho" e deixavam lá o jogo; mas
todos iam afinal trabalhar, fazer alguma coisa para ganhar dinheiro. Só o
Senhor Cassi Jones de Azevedo ficava...
-- Oh! "Seu" Cassi, como vai essa força?
O menestrel suburbano da modinha lânguida e acompanhamento luxu-
rioso de olhares revirados voltou-se e reconheceu quem falava:
-- Como vai você, Praxedes?
-- Eu, "Seu" Cassi, vou bem. Mas esse negócio de foro... Ontem, apre-
sentei uma exceção de incompetência; pensei que fosse julgada logo, mas o
juiz transformou o julgamento em diligência... Borrou-me a pintura... Hoje,
vou ver se uns embargos meus são recebidos. Tenho que ir lá embaixo... Às
vezes, dá-se uma penada e lá vêm vinte, trinta e mesmo cinqüenta...
Vendo que a conversa não interessava Cassi, mudou-a de sentido e
perguntou:
-- Tem ido à casa do carteiro, lá na rua Teresina?
-- Há muito tempo que não; e você?
-- Eu só fui lá a convite de um dos músicos. Não tenho relações par-
ticulares com a família. Por falar nisso: sabe quem saiu agora mesmo daqui?
-- Não.
-- O doutor Meneses, aquele velho barbado, que sabe muito -- não
conhece?
Correu alguma coisa na cabeça de Cassi, que o fez perguntar com
pressa, antes de responder:
-- Para onde ele foi?
-- Foi para a casa do carteiro. Está tratando dos dentes da filha e
almoça quase sempre lá. Ele precisava, coitado do doutor Meneses! -- um
homem ilustrado, velho, doente -- quase não comia; era só beber. Isso lhe
fazia mal, estava requeimando "ele" por dentro... Pode-se beber; mas
é preciso comer -- não acha?
Praxedes não deixava, durante toda a conversa, de mover com os
braços, sem medida nem compasso, e esticar a medonha cabeça, que tei-
mava cada vez mais em se enterrar pelos ombros adentro.
-- É um achado para ele -- fez Cassi, reprimindo a alegria. -- Tenho
também um trabalho para o Meneses... Se você o encontrar, diga-lhe que
eu quero falar com ele.
-- Não me esquecerei; mas, caso o senhor tenha pressa, pode pro-
curá-lo à noite, ali, no botequim do Fagundes, perto do posto de bombei-
ros. Até logo, que tenho que chegar cedo à cidade!
Cassi despediu-se também e encaminhou toda a sua esperança de
entender-se diretamente com Clara, por intermédio de Meneses, Ele sabia-o
velho, alquebrado, necessitado, viciado na bebida, sem dinheiro -- seria
fácil vencer as suas repugnâncias. Pela primeira vez, pensou o modinheiro,
tinha que gastar algum...
Em parte ele se enganava, porquanto, embora Meneses estivesse nas
últimas extremidades, até agora não fizera ato menos liso na sua vida.
Podia-se classificá-lo de puro, Meneses, José Castanho de Meneses, nas-
cera de pais portugueses, numa cidade do litoral -- sul do Estado do Rio
de Janeiro. Naqueles tempos, essas cidades eram prósperas; mas, atual-
mente, têm, para demonstrar a sua irremediável decadência, o fato de não
se ter notícia de haver sido construída em qualquer delas, de quarenta
anos a esta parte, uma única casa,
O pai tinha uma loja, um bazar, que ia próspero; mas, com a deca-
dência da localidade, de que foi um dos fatores a construção da Central,
o estabelecimento comercial foi decaindo. O pai viu-se obrigado a suprimir
despesas, uma das quais era a da educação e instrução dos filhos. O José,
que já tinha dezessete anos, veio para a loja, os outros foram colocados
aqui e ali, nas pescarias de "currais", que o pai tinha, e na salga de peixe,
levada a efeito muito rudimentarmente, também do velho Meneses.
Aos vinte e dois anos, José, que se aborrecia com aquela vida, pôs o
pé no mundo e correu, durante uns trinta, o interior das antigas províncias
do Rio, Minas e São Paulo. Tudo ele foi; tudo sofreu, mas sempre inquebran-
tavelmente honesto. Aqui, foi guarda-livros de um armazém; numa fazenda,
administrador; num vilarejo, professor das primeiras letras; em certa idade,
encontrou um boticário simpático, que se fez seu amigo, ensinou-lhe a mani-
pular drogas, também a obturar e limpar dentes, e a passar pequenas receitas.
Foi onde se demorou mais; mas isto se veio a dar já no fim da sua carreira
vagabunda, quando já não podia mudar de rumo. Na vizinhança da cidade,
construía-se um depósito e modestas oficinas de pequenos reparos, para as
máquinas de um ramal férreo que lá ia ter. José, que seguia as obras e via
as máquinas, ficou assombrado com aquelas maravilhas de caldeiras, forna-
lhas, bielas, manivelas, alavancas, que se coordenavam para mover e parar
aqueles hediondos monstros de ferro -- as locomotivas. Quis entrar no segredo
de tudo aquilo e fazia perguntas sobre perguntas. No começo, os operários
explicavam; mas as perguntas eram tais e tantas, que eles acabaram por se
aborrecer com elas e com o velho perguntador. Meneses não se aborreceu,
pois se sentia com a vocação de engenharia e de engenheiro. Ali, porém, não
tinha onde estudar. Convinha descer para o Rio de Janeiro, freqüentar aulas
teóricas e aperfeiçoar-se em oficinas adequadas. O dinheiro que tinha era
pouco, mas o boticão sempre dava alguma coisa, e a renda tinha aumentado,
graças à afluência de operários para acabamento da estradinha local. Demais,
também receitava. Fazia alguma coisa: a questão era economizar. Assim fez
e, durante um ano, poupou o dinheiro necessário para ir estabelecer-se no Rio
e esperar uma colocação qualquer.
O seu amigo farmacêutico não o quis dissuadir, mas disse-lhe:
-- Se você fosse mais moço, aconselharia até, porque se projetam
grandes obras, no Rio; mas, já tendo passado dos cinqüenta, é fazer o que
parecer melhor a você. Em todo o caso, vou pedir ao Coronel Carvalho
uma recomendação.
Durante esse longo lapso de tempo que vivera fora da família, rece-
bera vagas notícias de seus pais e irmãos. Sabia que os pais tinham mor-
rido e quase todos os irmãos; e que o único que lhe restava era remador
da Capitania do Porto e mantinha a irmã solteira, a única que tivera. Mora-
vam lá para a Saúde.
Meneses embarcou contente; ia afinal realizar a sua vocação. Até
agora, não a tinha encontrado; mas, desde que vira aquelas máquinas e
maquinismos, sentira outra coisa dentro de si. Não deixou, entretanto, de
levar a mala dos ferros de dentista e a carta de recomendação.
No dia seguinte, depois de uma noite insípida no hotel, foi, indagando
daqui, informando-se dali, até à Capitania do Porto.
Perguntou pelo remador seu irmão e, sem dificuldades, lhe informa-
ram que, em breve, ele viria. Não esperou muito. Um homenzarrão forte,
tostado, com um vestuário de marinheiro, chegou-se ao porteiro e perguntou:
-- Quem é que me procura?
O porteiro apontou Meneses, sentado a um banco, e disse:
-- É aquele senhor ali.
O irmão não deu muitos passos em sua direção; Meneses ergueu-se
logo, correu-lhe ao encontro, perguntando:
-- Você não me conhece mais?
-- Não, senhor.
-- Sou o seu irmão Juca.
Abraçaram-se muito, e o irmão Leopoldo foi dizer ao porteiro quem
era e o que havia.
-- Há trinta anos! -- exclamou o porteiro. -- Você devia ser muito
criança -- hein, Leopoldo?
O marinheiro respondeu:
-- Devia ter cinco anos.
-- É verdade -- informou Meneses.
Leopoldo foi arranjar licença para acompanhar o irmão que não via
há trinta anos; e Meneses ficou a conversar com o porteiro sobre coisas
da roça.
-- Ah! Então o Senhor é engenheiro?
-- Sim, mas mecânico. Trabalho, porém, com o nível e com o trânsito.
-- Agora, deve haver muito trabalho para engenheiro; vão-se fazer
grandes obras... Aproveite, doutor!
-- Trago aqui uma carta para o Deputado Sepúlveda. Tem influência?
-- Muita! É o pensamento da política mineira... Não lhe deixe a aba
do fraque, doutor!
A conversa foi interrompida pela chegada de Leopoldo, que obtivera
a licença. Pelo caminho, porém, contou a Meneses como todos morreram;
como ele se empregara na Capitania e casara a irmã com um colega, o
Pedro Rocha, rapaz bom, bem comportado, do qual tinha um sobrinho,
Edmundo, com seis anos, e com o qual morava, na rua do Livramento.
Chegando à casa do cunhado e do irmão, a sua irmã Etelvina, que
ele deixara com sete ou oito anos, não o reconheceu; e, em breve, tendo-
lhe chegado o marido, foi uma festa de que só não participou o sobrinho
de seis anos, sempre de nariz sujo e vestes rotas, arredio e agarrado às saias
da mãe, mas sem querer tornar a bênção ao tio.
A irmã logo convidou o irmão mais velho a ficar com eles. Havia
um barracão no quintal, que, bem reparado, podia servir para Leopoldo,
e o quarto deste ficaria para o Juca. Enquanto não estivesse em estado, ele
teria a paciência de dormir com Leopoldo. Meneses aceitou o alvitre, dizendo:
-- Se eu tenho que gastar em outra parte...
Logo foi interrompido por todos:
-- Oh! Não, não Juca!
-- Não é esse motivo! -- fez o cunhado.
-- Não seja essa a dúvida, mano Juca.
Meneses ficou muito agradecido e acrescentou:
-- Mesmo porque quero que um de vocês consiga meios e modos
de falar ao doutor Sarmento Sepúlveda, na Câmara. Tenho uma carta
para ele.
O cunhado logo exclamou:
-- O quê! É um bicho.
Combinado tudo isto, Meneses instalou-se na casa dos parentes, com
a sua mala e os seus ferros de dentista. Levou a carta do Coronel Carvalho
ao deputado, que o atendeu muito bem, perguntou-lhe pelas pessoas gra-
das do lugar onde estivera e deu-lhe outra para o chefe da construção da
avenida. No dia seguinte, estava admitido. Ganhou dinheiro, não o guar-
dou, mas, se assim foi, motivo não houve em desperdício de sua parte. O
irmão em breve adoecia e morria; o cunhado seguia-se-lhe logo. Custeou
o tratamento de ambos; e, quando foi dispensado da comissão da avenida,
pouco após a morte de ambos, pouco ou nada tinha. A irmã ficara com
uma pequena pensão mensal da Caixa dos Remadores, cerca de trinta mil-
réis, e um filho; e ele, com seus ferros de dentista. É verdade que fizera
uma pequena biblioteca de engenharia mecânica: As Grandes Invenções,
de Luís Figuier; As Maravilhas da Ciência, de Tirrandier; manuais de toda
a sorte de ofícios e recortes de jornais que tratavam de coisas científicas
ou parecidas, colados em cadernos encadernados. Dessa biblioteca, nunca
se separou; e, conquanto já bebesse, com o tempo, os desgostos e a misé-
ria atraíram-no mais para o álcool, e o furor de beber o tomou inteira-
mente. A toda hora, naquele casebre dos subúrbios, onde morava com a
irmã e o palerma do sobrinho, ele esperava, adivinhava, construía uma
catástrofe que lhe devia cair sobre os ombros; e essa visão de uma próxima
catástrofe na sua vida entibiava-lhe o ânimo, descoroçoava-o e pedia-lhe
para afastar -- a bebida. Na rua, se só, era a mesma coisa. Só a tinha
longe dos olhos, quando de súcia com outros.
Contudo, apesar das duras necessidades que curtia, com a irmã e o filho
desta, jamais ato algum de sua vida incidira na censura de sua consciência.
O pouco dinheiro que os ferros lhe davam ou os amigos, era empregado no
sustento deles, pois a casa era paga com a pensão de Etelvina, a irmã.
Cassi, para vencê-lo, para ladeá-lo, tinha imaginado o plano de, aos
poucos, pô-lo a seu dispor, prendê-lo de pés e mãos, como se diz, sem ele
perceber.
Sabendo onde encontrá-lo à noite, nessa mesma do dia em que soube,
procurou-o, Meneses estava triste a um canto, lendo um jornal, com um
cálice vazio ao lado.
O homem das modinhas chegou-se e, sem dizer palavra, foi se aban-
cando:
-- Boa noite, doutor!
-- Boa noite, "Seu" Cassi -- fez Meneses, erguendo a cabeça do
periódico.
-- Que há de novo, por aí? Trabalha-se muito?
-- Alguma coisa. Agora, as coisas me correm melhor. O Joaquim
dos Anjos deu-me os dentes da filha a tratar, e ele, embora pouco, sempre
me paga pontualmente. É um alívio!
-- O doutor é um sonhador. Tem sido explorado...
-- Nem tanto. Quando fiz aquele trabalho para uma de suas irmãs,
fui muito bem pago. A minha dificuldade é não ser formado; demais, não
tenho roupas... Às vezes, "Seu" Cassi, para arranjar esses sapatos de dura-
que que uso, por não poder usar outros, suo sangue e faço das tripas coração...
-- Paciência, doutor. Tome alguma coisa -- fez Cassi amável.
Meneses aceitou e disse amargamente:
-- Estou com setenta anos e não sei o que fiz na vida.
Cassi regozijava-se, intimamente pensando: o homem está cheio de
dificuldades.
-- Não desanime. O Capitão Sebastião, aquele da Prefeitura, há
dias me disse que ia precisar de um dentista modesto para consertar os den-
tes de um filho, que, na "muda", deixou acavalar. É pouca coisa, mas,
talvez, daí...
-- Aceito tudo...
-- Outra coisa, doutor Meneses.
-- Que há?
-- O senhor se dá muito com o Leonardo Flores, o poeta?
-- Muito. Por quê?
-- É que eu queria uns versos...
Meneses não escondeu o espanto, que Cassi percebeu, e, sem dissimu-
lar, procurou explicar-se melhor:
-- É coisa séria. Não há compromisso nenhum para os senhores...
Eu daria alguma coisa até!...
-- É que o senhor não sabe como o Flores é orgulhoso. Dentro
daquela sujeira toda, esfarrapado, alagado de cachaça, ele é um Deus; e
não lhe toque em coisas de poesia, porque senão...
-- Sei bem; mas sei também que o senhor tem grande influência
sobre ele. Veja se me arranja? Olhe, doutor, não é para afrontar; tem
aqui dez mil-réis para as primeiras despesas. Cinco são para o senhor e
cinco para ele.
-- Não é preciso -- disse Meneses, já um tanto convertido.
A sua miséria lhe falava. Não havia quebra de honestidade, tanto
mais que não se tratava de injúrias e insultos a ninguém.
-- Não, doutor; leve, leve! Tudo deve ser pago. Não é preciso grande
coisa; bastam uns versos amorosos, mas delicados e finos, morais -- está
ouvindo, doutor?
Cassi foi-se, depois que Meneses prometeu arranjar a versalhada.
Já passavam das sete horas, e, logo que o violeiro desapareceu, o dentista
levantou, foi a um ângulo do balcão e disse para o caixeiro, dando-lhe a
nota de dez mil-réis que havia recebido das mãos de Cassi:
-- Paga aqueles seiscentos réis que estou devendo e me dá mais outra
"lambada".
Tomou-a e voltou a sentar-se na mesa. Comprou num jornaleiro os
jornais da noite e foi se deixando ficar, levantando-se, de quando em
quando, para sorver às escondidas um "calisto". Aí, pelas proximidades
das dez horas, sobraçando um maço de jornais, encaminhou-se para casa,
no firme intuito de dar cumprimento à promessa que fizera a Cassi. A casa
era um tanto longe, pelos bons caminhos; mas, cortando-se caminhos deser-
tos, subindo e descendo morros, chegava-se a ela com mais presteza.
Não hesitou e tomou os atalhos, que conhecia bem; e, quase por ins-
tinto, os seguia até à sua residência. Ficava esta numa campina nua; e só
era cercada na frente, toscamente, e, do lado direito, graças ao vizinho.
Tinha um cajueiro mofino, que disfarçava a casinha e dava uma escassa
sombra à torneira d'água, onde a irmã lavava roupa, de casa e de fora.
De onde em onde, Meneses cismava em plantar algumas árvores de rápido
crescimento, para sombra; mas lá vinham os cabritos da vizinhança e mata-
vam-lhe os brotos. A muito custo, conseguiu fazer um caramanchão tosco
com que ensombrasse a sala de jantar, onde dormia, e que se prestasse a
cozinha, nos dias normais. A casa só tinha dois aposentos iguais, que se
comunicavam por uma porta. Não fora a rua, não teria frente nem fundos,
tão semelhantes eram essas extremidades dela. A irmã habitava o aposento
da frente, dividido por uma cortina, que corria do portal da porta interior
até ao da que dava para a rua. Era de telha-vã e de chão.
Chegou em casa e comeu o feijão e arroz com pirão de fubá de milho,
que a irmã lhe guardava sempre. Fez isto à luz de um "vagabundo", espé-
cie de lanterna, de querosene, reduzida aos seus últimos elementos. Bebeu
dois ou três cálices de parati, pois sempre o tinha em casa; e estirou-se num
velho canapé, com um fundo de tábuas de caixões, acolchoado com jor-
nais. A roupa, ele a tinha tirado com todo o cuidado e com todo o cui-
dado depositado na guarda de uma cadeira de pau, a única existente na
casa. A mesa de pinho, uma carcomida velha mesa de cozinha, tomava o
resto do aposento; e, nela, roncava o palerma do sobrinho. Cobriu-se com
uma manta, feita de metades de duas outras, e dormiu serenamente.
Logo pela manhã, no dia seguinte, a irmã despertou-o assustada:
-- Juca! Juca!
-- Que é mulher? Não se pode dormir mais nesta casa...
Depois, mudando de tom:
-- Que há, Etelvina?
-- Precisamos de açúcar, café, e já devemos ao padeiro seiscentos réis.
-- Você vai até o bolso do colete e tira de lá todas as pratas e níqueis
que encontrares. Deixa só quatrocentos réis. Julgo que deve haver uns três
mil e tantos a quatro mil-réis. Fica com tudo. Dá-me um cálice, ai!
A irmã não parecia mais moça do que ele quinze anos. Era velha,
encarquilhada, magra, quase desdentada, cabelos completamente brancos,
toda ela respirando cansaço e desânimo.
Ela chamou o filho -- Edmundo! -- que logo apareceu. Mole,
bambo, a muito custo aprendera a ler e a rabiscar, a esforços do tio; mas
não ficava em lugar nenhum. Tal era a sua inércia e moleza, que logo era
despedido. O seu ofício era caçar preás, rãs, para vender aos estrangeiros
da "fábrica", apanhar passarinhos e, de onde em onde, ajudar a fazer pes-
carias, no porto de Inhaúma.
A mãe, com o produto de suas pobres lavagens para fora, era afinal
quem o vestia, porque ele bebia tudo o que ganhava, mas raramente tocava
na garrafa que o tio tinha em casa e não trazia bebida para casa, absolutamente.
Tendo Etelvina servido o irmão de parati, este verificou que a gar-
rafa continha pouco e, à nota das compras a fazer, mandou que juntasse
mais meia garrafa de aguardente. A que restava, passou-a para um vidro
de farmácia.
A irmã não se conteve, que não exclamasse:
-- Ah! Santo Deus! Esse parati é uma desgraça...
-- Não há dúvida, mana; mas, agora, não posso mais parar, senão
morro... Olha o jornal! -- gritou ele para Edmundo,
-- Sim, titio -- respondeu-lhe o sobrinho, do meio da rua.
Como também tivesse pressa em tomar café, Edmundo fez presta-
mente as compras. A fogo de gravetos, em breve o café estava pronto.
Meneses, a irmã e o sobrinho tomaram-no em redor da mesa; ela, sentada
na cadeira, e eles, no velho canapé.
Bebericando e lendo o jornal, o velho dentista deixou-se ficar deita-
do. Era dia santo, quase feriado, dia de ponto facultativo -- que iria fazer?
Lembrou-se de procurar Leonardo Flores. Era a sua obrigação. Almoçaria
e iria até à casa dele. Assim fez. Encaminhou-se imediatamente para a casa
de Leonardo Flores, que não ficava muito longe, pela Estrada Real, em
cujas margens residiam ele e sua irmã Etelvina com o filho.
Em lá chegando, foi recebido pela mulher, Dona Castorina, que o
fez entrar. Estava avelhantada, gasta, já não pela idade, que não podia ser
ainda de cinqüenta anos, mas pelos trabalhos por que tinha passado com
o marido, mais do que com os próprios filhos. Nunca se lhe ouvia um quei-
xume, nunca articulou uma acusação contra Flores. Sofria todos os des-
mandos do marido com resignação e longanimidade. Esse seu gênio, esse
seu temperamento de doçura e perdão em face da exaltação, da exacerba-
ção, até quase delírio, do marido, fizera que este produzisse o que produ-
ziu. Não fora ela, aquela pequena mulata, magra, de olhos negros e tristes,
rindo-se sempre com uma profunda expressão de melancolia; não fora
aquela humilde mulatinha, que estava ali defronte de Meneses, talvez Flo-
res não fizesse nada. Este sabia disso e a amava, apesar de tudo o que
pudesse depor contra eles, e ela tinha, no fundo d'alma, apesar dos desre-
gramentos do seu marido, um grande orgulho de sua Glória.
Dona Castorina informou-o que Leonardo havia saído, para visitar
um amigo, em companhia de um filho; e talvez passasse o dia em casa dele.
Meneses ainda conversou um pouco, tomou dois cálices de parati de Man-
garatiba, que um filho seu, auxiliar de trem, trouxera para o pai.
Na hipótese -- e muito plausível, consoante o gênio de Leonardo
-- de que ele houvesse parado na venda do "Seu" Nascimento, foi até lá.
Não o encontrou e saiu com a consciência dolorida pelo que ouvira da
boca de Marramaque, de Alípio e demais.
Teve remorso e vergonha do que estava fazendo? Para que iria ele,
arranjando aqueles versos, contribuir? Dirigiu-se para o Engenho de Den-
tro, a ver se encontrava alguém com quem conversar e disfarçar aquele
começo de acusação, que, à sua fraqueza, se debuxava na sua consciência.
Encontrou um grupo de rapazes da estrada de ferro, que eram sempre gene-
rosos com ele. Estavam ruidosos e contentes. Meneses sentou-se na roda,
mas não houve meio de despregar a língua.
-- Que é isto, Meneses? Bebe! -- fez um.
Ele bebia, mas o espinho não saía. Conversava afinal um pouco.
Num dado momento, vendo que era demais na conversa com a sua tristeza
e o seu arrependimento reprimido, despediu-se. Um lhe perguntou:
-- Vais para casa? Tens dinheiro?
Ele respondeu:
-- Vou já para casa; mas dinheiro não tenho.
Os rapazes fizeram-lhe um rateio, que perfez dois mil-réis; e, quando
saía, um outro, levantando os braços, de um dos quais pendia uma anti-
quada bengala de cerejeira, gritou para o caixeiro:
-- Antunes, dá uma garrafa de "cachaça" -- "cachaça", estás
ouvindo? -- "cachaça"! -- dá uma garrafa de "cachaça" para o nosso
querido Meneses espantar as suas mágoas.
Quando Meneses apareceu em casa, a irmã foi-lhe logo dizendo:
-- Juca, foi bom você aparecer. Estou sem dinheiro para carvão,
farinha e querosene. O que você deu não chegou... Fui comprar carne-seca
-- lá se foi todo o dinheiro.
O velho Meneses, semi-embriagado, já sem decidir perfeitamente,
tirou os cinco mil-réis que estavam escondidos na algibeira e destinados a
Flores, juntou mais dez tostões e disse para a irmã:
-- Tens aí seis mil-réis até segunda-feira, Mana, você até lá não tem
direito de me pedir mais dinheiro. Hoje é sexta-feira, temos sábado e
domingo garantidos.
Bebeu um cálice do parati que trouxera, deitou-se e tentou ler os jor-
nais que os rapazes lhe deram; mas não pôde. O sono o tomou até à hora
do jantar. Quando abriu os olhos e se lembrou de ter dado os cinco mil-
réis, destinados a Flores, em troca de versos, aborreceu-se um pouco; mas
pensou e fez de si para si: eu me arranjo. Comeu bem e, enquanto houve
luz do sol, leu e releu os jornais que tinha; quando veio a noite, continuou
a lê-los, sempre bebericando aguardente.
No dia seguinte, logo que amanheceu, ainda não se havia feito o dia
totalmente, foi até à bica, lavou-se quase inteiramente, aproveitando a escu-
ridão, preparou o café, tomou uma xícara, seguida de alguns cálices de
parati, e pôs-se na rua antes das sete horas. Era ainda cedo para ir à casa
de Leonardo Flores. Foi à estação, comprou um jornal, leu-o e seguiu para
a residência do amigo. Flores já se encontrava de pé e quase todos de casa.
Recebeu-o vestido com uma calça velha e de camisa de meia. Estava escre-
vendo. Ao se lhe deparar o amigo, olhou-o muito demoradamente; e, em
seguida, fazendo com os braços um gesto perfeitamente teatral, inclinando
para trás a cabeça e estufando o peito, conforme o consagrado na ribalta
para encontros sensacionais, falou com voz cava e solene:
-- Tu, Meneses! És tu, Pítias da minha alma! Notícias há muitos
sóis que não hei recebido de ti. Entra neste solar amigo e repousa a fadiga
da jornada naquela credência de Córdova que o Abd-El-Málek, caído do
Atlas, me mandou de Marrocos e foi o último rei de Granada, Boabdil,
que chorou...
-- Flores, estás discursivo demais... -- disse Meneses, sentado na tal
credência de Córdova, que não era nada mais do que uma vulgar cadeira
austríaca de palhinha.
-- Bebe tu agora o licor de boa amizade. É produto genuíno das
minhas terras solarengas e avoengas de Mangaratiba.
Tomaram o "licor de boa amizade"; e, após, o poeta, falando em
tom natural, perguntou ao amigo:
-- Como vais, Meneses?
-- Assim; e tu?
-- Às vezes, bem; às vezes, mal -- conforme a lua. Já tomaste café?
Embora dissesse que sim, Flores teimou em servir-lhe outra xícara,
que foi buscar à cozinha. A sala de visitas era a mesma de há vinte anos.
Tinha resistido a todas as mudanças e todas as despesas. Um sofá austríaco,
velho, esburacado; duas cadeiras de braço da mesma marca, um trio de
cadeiras de todos os feitios. Pela parede, além de outros, um magnífico
retrato a óleo de pintor, feito por uma celebridade, quando nos seus come-
ços. Uma velha estante de ferro com brochuras espandongadas e uma mesa
furada com toalha de aniagem, bordada a lã de várias cores. Tinteiro, cane-
tas e o mais para escrever,
Flores voltou com as xícaras cheias, pão e manteiga. Depositou tudo
na mesa e sentou-se. Meneses notava com admiração que o amigo não
dava nenhum sinal de desequilíbrio, nem de embriaguez, Isso fez-lhe pra-
zer e, pondo-se a tomar café, perguntou-lhe:
-- Flores, tu ainda fazes versos?
-- Bárbaro que tu és! Pois então tu podes imaginar que eu, Leonardo
Flores, deixe de fazer versos? Eu vivo de versos e no verso. Minha cabeça
é um poema, interminável, que minh'alma ritma soberbamente. Não sei
outra língua, senão a divina das Musas... Contraria-me falar como estou
falando...
Calou-se um pouco e ambos sorveram o café a grandes goles, masti-
gando grandes pedaços de pão com manteiga. Flores cessou de mastigar e
perguntou:
-- Por que tu me perguntaste se eu ainda fazia versos?
Ingenuamente, Meneses respondeu:
-- Tinha encomenda deles a fazer-te.
-- O quê? -- fez indignado Flores, erguendo-se, num só e rápido
movimento, da cadeira, e deixando a xícara sobre a mesa. -- Pois tu não
sabes quem sou eu, quem é Leonardo Flores? Pois tu não sabes que a poe-
sia para mim é a minha dor e é a minha alegria, é a minha própria vida?
Pois tu não sabes que tenho sofrido tudo, dores, humilhações, vexames,
para atingir o meu ideal? Pois tu não sabes que abandonei todas as honra-
rias da vida, não dei o conforto que minha mulher merecia, não eduquei
convenientemente meus filhos, unicamente para não desviar dos meus pro-
pósitos artísticos? Nasci pobre, nasci mulato, tive uma instrução rudimen-
tar, sozinho completei-a conforme pude; dia e noite lia e relia versos e auto-
res; dia e noite procurava na rudeza aparente das coisas achar a ordem
oculta que as ligava, o pensamento que as unia; o perfume à cor, o som
aos anseios de mudez de minha alma; a luz à alegoria dos pássaros pela
manhã; o crepúsculo ao cicio melancólico das cigarras -- tudo isto eu fiz
com sacrifícios de coisas mais proveitosas, não pensando em fortuna, em
posição, em respeitabilidade. Humilharam-me, ridicularizaram-me, e eu,
que sou homem de combate, tudo sofri resignadamente. Meu nome afinal
soou, correu todo este Brasil ingrato e mesquinho; e eu fiquei cada vez
mais pobre, a viver de uma aposentadoria miserável, com a cabeça cheia
de imagens de ouro e a alma iluminada pela luz imaterial dos espaços celes-
tes. O fulgor do meu ideal me cegou; a vida, quando não me fosse tradu-
zida em poesia, aborrecia-me. Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou
aos olhos dos homens, por não compreender certos atos desarticulados da
minha existência; entretanto, elevou-me aos meus próprios, perante a minha
consciência, porque cumpri o meu dever, executei a minha missão: fui
poeta! Para isto, fiz todo o sacrifício. A Arte só ama a quem a ama inteira-
mente, só e unicamente; e eu precisava amá-la, porque ela representava,
não só a minha Redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor.
Louco?! Haverá cabeça cujo maquinismo impunemente possa resistir a tão
inesperados embates, a tão fortes conflitos, a colisões com o meio tão brus-
cas e imprevistas? Haverá?
Flores havia falado até agora de pé, no meio da sala, sublinhando
tudo com grandes e largos gestos e modulando a voz conforme a paixão
lhe tocava. Fatigou-se, calou-se um pouco, cruzou os braços adiante do
corpo, enterrou o queixo pontiagudo e barbado no peito e, assim, sempre
calado, ficou instantes a sacudir levemente a cabeça, um tanto virada para
a esquerda, olhando o amigo desoladamente. Era ele pardo-claro e cabelos
negros e lisos, com abundantes fios brancos; tinha malares salientes e a
boca bem-feita. Altura média. Diante da explosão do amigo, Meneses não
encontrou nada que dizer. Calou-se prudentemente e evitou o olhar de Flo-
res, onde este lhe censurava e, ao mesmo tempo, se apiedava pela incom-
preensão que não podia existir num velho amigo, tal como Meneses, pela
verdadeira natureza e poder do seu estro e pelo seu ardor artístico.
Leonardo, com menos paixão e entusiasmo, continuou:
-- Sim, meu velho Meneses, fui poeta, só poeta! Por isso, nada tenho
e nada me deram. Se tivesse feito alambicados jeitosos, colchas de retalhos
de sedas da China ou do Japão, talvez fosse embaixador ou ministro; mas
fiz o que a dor me imaginou e a mágoa me ditou. A saudade escreveu e
eu translado, disse Camões; e eu transladei, nos meus versos, a dor, a
mágoa, o sonho que as muitas gerações que resumo escreveram com san-
gue e lágrimas, no sangue que me corre nas veias. Quem sente isto, meu
caro Meneses, pode vender versos? Dize, Meneses!
-- Não. Deve sempre assiná-los.
-- Pois eu não vendo, passe por que passar. Sofram, sonhem e bebam
cachaça, se o quiserem fazer. Isto não será bastante -- disse ele com melan-
colia -- é preciso ter nascido como eu, ter perdido todos os seus irmãos
na pobreza e ter um, há vinte anos, atacado da mais estúpida forma de lou-
cura, para os poder fazer. Isto, porém, ninguém pode obter por sua pró-
pria vontade. Bendito seja Deus!
Sentou-se com os olhos úmidos, tomou uma "talagada" do "Manga-
ratiba" e dispôs-se a escrever, recomendando ao amigo:
-- Deita-te no sofá e lê os jornais, enquanto escrevo alguma coisa,
até o "ajantarado".
Meneses assim fez. Veio a dormir e, quando despertou, ficou admi-
rado da amplitude da sala e ter as pernas livres. Sonhara que estava preso
e acorrentado...