V

 

Quem conhecesse intimamente Engrácia, havia de ficar espantado

com a atitude decisiva que tomou em relação à visita de Cassi. O seu tem-

peramento era completamente inerte, passivo. Muito boa, muito honesta,

ativa no desempenho dos trabalhos domésticos; entretanto, era incapaz de

tomar uma iniciativa em qualquer emergência. Entregava tudo ao marido,

que, a bem dizer, era quem dirigia a casa. Rol de compras a fazer na venda

do "Seu" Nascimento, diariamente, e também o de legumes e verduras,

quem os organizava era o marido, especificando tudo por escrito e deixando

o dinheiro para o quitandeiro, todas as manhãs, quando ia para o trabalho.

De caminho, deixava a lista de gêneros no "Seu" Nascimento, onde pagava

tudo por mês.

Qualquer acontecimento inesperado que lhe surgisse no lar, punha-a

tonta e desvairada. Quando ainda tinham a velha preta Babá, que a criara

na casa dos seus protetores e antigos senhores de sua avó, talvez um deles,

pai dela, ficou Engrácia quase doida, ao ser a velha Babá acometida de

um ataque súbito. Não sabia o que fazer. Foi preciso que Dona Margarida

interviesse, mandasse chamar o médico, fizesse aviar a receita, tomasse,

enfim, as providências que o caso exigia. A velha morreu daí a pouco, de

embolia cerebral. Muito Engrácia sofreu com essa morte, pois, não tendo

conhecido sua mãe, que lhe morrera aos sete anos, fora Babá que a criara.

Os seus protetores tinham sido abastados; eram descendentes de um alferes

de milícias, que tinha terras, para as bandas de São Gonçalo, em Cubandê.

Pouco depois da Maioridade, com a morte do chefe da casa, filhos e filhas

se transportaram para a Corte, procurando aqueles empregaram-se nas

repartições do governo. Um dos irmãos já habitava a capital do Império e

era cirurgião do Exército, tendo chegado a cirurgião-mor, gozando de

grande fama. Para a cidade não trouxeram nenhum escravo. Venderam a

maioria e os de estimação libertaram. Com eles, só vieram os libertos que

eram como da família. Pelo tempo do nascimento de Engrácia, havia pou-

cos deles e delas em casa. Só a Babá, sua mãe e um preto ainda estavam

sob o teto patriarcal dos Teles de Carvalho.

Engrácia foi criada com mimo de filha, como os outros rapazes e

raparigas, filhos de antigos escravos, nascidos em casa dos Teles.

Por isso, corria, de boca em boca, serem filhos dos varões da casa.

O cochicho não era destituído de fundamento, naquela família, composta

de irmãs e irmãos, ainda abastada, que se comprazia, tanto uns como as

outras, em tratar filialmente aquela espécie de ingênuos, que viam a luz

do dia, pela primeira vez, em sua casa. As senhoras, então, eram de uma

meiguice de verdadeiras mães.

Engrácia recebeu boa instrução, para a sua condição e sexo; mas,

logo que se casou -- como em geral acontece com as nossas moças --, tra-

tou de esquecer o que tinha estudado. O seu consórcio com Joaquim, ela

o efetuara na idade de dezoito anos.

Fosse a educação mimosa que recebera, fosse uma fatalidade de sua

compleição individual, o certo é que, a não ser para os serviços domésticos,

Engrácia evitava todo o esforço de qualquer natureza.

Não saía quase. Era regra que só o fizesse duas vezes por ano: no

dia 15 de agosto, em que subia o outeiro da Glória, a fim de deixar uma

espórtula à Nossa Senhora de sua íntima devoção; e, no dia de Nossa

Senhora da Conceição, em que se confessava. Levava sempre a filha e não

a largava de a vigiar, Tinha um enorme temor que sua filha errasse, se per-

desse... A não ser com ela, Clara, muito a contragosto da mãe, saía de

casa para ir ao cinema, no Méier e Engenho de Dentro, e outras vezes --

poucas -- para fazer compras nas lojas de fazendas, de sapatos e outras

congêneres, acreditadas nos subúrbios.

Essa reclusão e, mais do que isso, a constante vigilância com que sua

mãe seguia os seus passos, longe de fazê-la fugir aos perigos a que estava

exposta a sua honestidade de donzela, já pela sua condição, já pela sua

cor, fustigava-lhe a curiosidade em descobrir a razão do procedimento de

sua mãe.

Clara via todas as moças saírem com seus pais, com suas mães, com

suas amigas, passearem e divertirem-se, por que seria então que ela não o

podia fazer?

A pergunta ficava sempre sem resposta, porque não havia meio,

naquele isolamento em que vivia, de tudo e de todos, de encontrar a que

cabia.

Engrácia, cujos cuidados maternos eram louváveis e meritórios, era

incapaz do que é verdadeiramente educação. Ela não sabia apontar, comen-

tar exemplos e fatos que iluminassem a consciência da filha e reforçassem-lhe

o caráter, de forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos que corria.

A mulher de Joaquim dos Anjos tinha a superstição dos processos

mecânicos, daí o seu proceder monástico em relação à Clara.

Enganava-se com a eficiência dela; porque, reclusa, sem convivência,

sem relações, a filha não podia adquirir uma pequena experiência da vida

e notícia das abjeções de que está cheia, como também a sua pequenina

alma de mulher, por demais comprimida, havia de se extravasar em sonhos,

em sonhos de amor, de um amor extra-real, com estranhas reações físicas

e psíquicas.

Acresce, ainda, que era geral em sua casa o gosto de modinhas. Sua

mãe gostava, seu pai e seu padrinho também. Quase sempre havia sessões

de modinhas e violão na sua residência. Esse gosto é contagioso e encon-

trava, no estado sentimental e moral de Clara, terreno propício para propa-

gar-se, As modinhas falam muito de amor, algumas delas são lúbricas até;

e ela, aos poucos, foi organizando uma teoria do amor, com os descantes

do pai e de seus amigos. O amor tudo pode, para ele não há obstáculos

de raça, de fortuna, de condição; ele vence, com ou sem pretor, zomba

da Igreja e da Fortuna, e o estado amoroso é a maior delicia da nossa exis-

tência, que se deve procurar gozá-lo e sofrê-lo, seja como for. O martírio

até dá-lhe mais requinte...

As emolientes modinhas e as suas adequadas reações mentais ao

áspero proceder da mãe tiraram-lhe muito da firmeza de caráter e de von-

tade que podia ter, tornando-a uma alma amolecida, capaz de render-se

às lábias de um qualquer perverso, mais ou menos ousado, farsante e igno-

rante, que tivesse a animá-lo o conceito que os bordelengos fazem das rapa-

rigas de sua cor.

Cassi era dessa laia: entretanto, Clara, na sua justificável ignorância

do mecanismo da nossa vida social, julgava que seus pais eram com ele

injustos e grosseiros.

Depois do baile de seu aniversário, quinze ou vinte dias depois, num

domingo, Cassi bateu à porta da casa de seus pais. Engrácia estava justa-

mente arrumando a sala de visitas; recebeu-o com visível desgosto e gritou

ara a cozinha, onde estava Clara:

-- Chama teu pai, que está ai "Seu" Cassi.

A moça ia se aproximar para falar ao modinheiro, quando a mãe lhe

disse rapidamente:

-- Vá chamar seu pai! Ande!

Joaquim não custou a vir; e, após os cumprimentos, dirigiu-se ao

rapaz:

-- Que é que manda nesta casa, meu caro senhor?

-- Nada. Fui visitar um amigo e, passando pela sua porta, resolvi

cumprimentá-lo.

-- Muito obrigado. A partida de solo está fervendo e eu não me

posso demorar.

Cassi olhou um instante, com seu olhar mau, o velho mulato; mas

a nada se atreveu. Estiveram calados dois ou três minutos um diante do

outro, até que o famoso violeiro tomou o alvitre de despedir-se. Clara veio

saber da cena, pela narração que seu pai fez à sua mãe, e ficou aborrecida,

cheia de desgostos com eles e com a situação em que estava, imposta por

eles, para o seu sofrimento.

Avaliou em algum ressaibo de revolta o procedimento dos pais. O

que queriam fazer dela? Deixá-la ficar para "tia" ou fazê-la freira? E ela

precisava casar-se? Era evidente; sua mãe e seu pai tinham, pela força das

coisas, que morrer antes dela; e, então, ela ficaria pelo mundo desampa-

rada? Cochichavam que Cassi era isto e era aquilo, Dona Margarida e o

padrinho eram os que mais mal falavam dele; que era um devasso, um

malvado, um desencaminhador de donzelas e senhoras casadas. Como ele

poderia ser tanta coisa ruim, se freqüentava casas de doutores, de coronéis,

de políticos? Naturalmente havia nisso muita inveja dos méritos do rapaz,

em que ela não via senão delicadeza e modéstia e, também, os suspiros e

os dengues de violeiro consumado.

Uma dúvida lhe veio; ele era branco; e ela, mulata. Mas que tinha

isso? Havia tantos casos... Lembra-se de alguns... E ela estava tão conven-

cida de haver uma paixão sincera no valdevinos, que, ao fazer esse inqué-

rito, já recolhida, ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros quase

estouravam de virgindade e ansiedade de amar.

De resto, era preciso libertar-se, passear, conhecer a cidade, teatros,

cinemas... Ela não conhecia nada disso. Até ir de um pulo à venda do

"Seu" Nascimento não tinha licença. Um dia, por inadvertência, faltou

sal para preparar o jantar; pois, nem mesmo assim, teve licença de ir à

venda, e sua mãe não foi, para não deixá-la só, Tiveram de esperar uma

hora, até que o caixeiro passasse. Entretanto, o armazém do "Seu" Nasci-

mento não era mal freqüentado, e todos que lá paravam eram pessoas de

certa consideração e sem pecha alguma. Esta última observação de Clara

era inteiramente verdadeira.

Mesmo a Rosalina, mais conhecida pelo apelido pejorativo de Mme.

Bacamarte, apesar da vida má e desgraçada que levava, no armazém se

portava com todo o rigor. Era verdadeiramente infeliz, essa rapariga. Sedu-

zida em tenra idade, a polícia obrigou o sedutor a casar-se com ela. Nos

três primeiros anos, as coisas correram mais ou menos naturalmente. Ao

fim deles, devido a reveses, o marido começou a embirrar com ela, a atri-

buir-lhe toda a sua desgraça, a espancá-la, mas dando alguma coisa com

que ela se sustentasse e aos filhos. Já bebia, o marido dela; e, por esse

tempo, fazia-o sem método nem medida. Bebia a mais não poder, em casa,

nos botequins, em toda a parte. Faltava à oficina para beber. Rosalina "pe-

gou" o vicio do marido e, do pouco dinheiro que ele lhe dava ou com o

seu trabalho obtinha, comprava parati. O marido devia seis meses de casa

-- um modesto barracão de madeira, com uma sala, um quarto e um

pequeno adendo para a cozinha. O senhorio perseguia-o; ele fugia e dei-

xava com a mulher o encargo de explicar os atrasos. Um belo dia, ela vê

entrar o proprietário com dois homens. Nada dizem. Encostam sua escada

no telhado e destelham a choupana. Deixou tudo o que tinha na mão dos

desalmados. Pede a uma vizinha que fique com um filho; e uma outra,

que fique com o mais moço, e correu a atirar-se debaixo do primeiro trem

que passou. Sofreu escoriações e fraturas em um braço e uma perna; mas

os médicos da Santa Casa conseguiram salvá-la. Saiu renovada, e o seu ros-

tinho de mulatinha sapeca tinha recuperado um pouco o viço e a petulân-

cia que devia ter pela puberdade,

Os filhos, a mãe -- uma pobre lavadeira -- os tinha recolhido; e o

marido nunca mais o vira. Em começo, portou-se bem; mas bem depressa foi

correndo de mão em mão, até que as moléstias venéreas a tomaram de todo,

obrigando-a a visitas constantes à Santa Casa, para levar injeções e sofrer ope-

rações. Proibida de beber, não obedecia à prescrição médica. Quando não

tinha dinheiro, obtido de que maneira fosse, esperava pacientemente que as

suas galinhas ou as de sua mãe, com quem morava, "pusessem", e logo cor-

ria à venda a trocá-los, por duzentos ou trezentos réis de parati.

Ela, porém, não fazia "ponto" no armazém do "Seu" Nascimento.

Educado e criado na roça, tendo negociado no interior do Estado do Rio,

onde ainda tinha fazenda, ele gostava que pessoas de certa ordem fossem

ao seu negócio ler os jornais e conversar -- hábito do interior, como todos

sabemos. A sua venda tinha até aqueles tradicionais tamboretes de abrir e

fechar das antigas vendas e ainda são conservados nos armazéns roceiros.

Demais, a sua casa de negócio ficava num lugar pitoresco, calmo, pouco

transitado, diante das velhas árvores da chácara de Mr. Quick Shays e

olhando para uns cumes caprichosos de montanhas distantes. Compravam

muitas pessoas, para as quais tinha freguesia certa.

Um deles era o Alípio, um tipo curioso de rapaz que, conquanto

pobre e ter amor à cachaça, não deixava de ser delicado e conveniente de

maneiras, gestos e palavras. Tinha um aspecto de galo de briga; entretanto,

estava longe de possuir a ferocidade repugnante desses galos malaios de

rinhadeiro, não possuindo -- convém saber-se -- nenhuma. Sem ser ins-

truído, não era ignorante; mas era inteligente e curioso de invenções e aper-

feiçoamentos mecânicos.

O velho Valentim era um outro freqüentador da venda, muito curioso

e pitoresco. Português, com muito mais de sessenta anos, não deixava de

trabalhar, chovesse ou fizesse sol. Era chacareiro e, devido talvez ao ofício,

que ele o devia exercer há bem perto de quarenta anos, tinha o corpo cur-

vado de modo interessante. Não se sabia se era para trás ou para diante;

fazia uma espécie de S, em que faltassem as extremidades.

Contava longos "casos" que não se acabavam mais, especialmente

o João de Calais -- como ele pronunciava --, pontilhando a sua longa e

enfadonha narração, com rifões portugueses de uma graça saborosa e uma

filosofia saloia. Era o que se aproveitava da sua conversa.

Aparecia, também, em certas ocasiões, o Leonardo Flores, poeta, um

verdadeiro poeta, que tivera o seu momento de celebridade no Brasil inteiro

e cuja influência havia sido grande na geração de poetas que se lhe seguiram.

Naquela época, porém, devido ao álcool e desgostos íntimos, nos quais predo-

minava a loucura irremediável de um irmão, não era mais que uma triste ruína

de homem, amnésico, semi-imbecilizado, a ponto de não poder seguir o fio

da mais simples conversa. Havia publicado cerca de dez volumes, dez suces-

sos, com os quais todos ganharam dinheiro, menos ele, tanto assim que,

muito pobremente, ele, mulher e filhos agora viviam com o produto de uma

mesquinha aposentadoria sua, do governo federal.

Raro era sair, porque a mulher punha todo o esforço em que ele o

não fizesse. Mandava buscar parati, comprava-lhe os jornais de sua estima-

ção, a fim de que ele permanecesse em casa. As mais das vezes, ele obede-

cia; mas, em algumas raras, recalcitrava, saia, com quinhentos réis em

cobre, na algibeira, bebia aqui, ali, dormia debaixo das árvores das estra-

das e ruas pouco freqüentadas, e, mesmo, quando o delírio alcoólico o tor-

nava forte, despia-se todo e gritava heroicamente numa doentia e vaidosa

manifestação de personalidade:

-- Eu sou Leonardo Flores.

O povo sabia vagamente que ele tinha celebridade. Chamava-o -- o

poeta. No começo, caçoava com ele, mas ao saber de sua reputação, deram

em cercá-lo de uma piedosa curiosidade.

-- Um homem desses acabar assim -- que castigo! -- dizia um.

-- É "cosa" feita! Foi inveja da "inteligença" dele! -- dizia uma

preta velha. -- Gentes da nossa "cô" não pode "tê inteligença"! Chega

logo os "marvado" e lá vai reza e "fetiço", "pá perdê" o homem -- rema-

tava a preta velha.

Aparecia um circunstante mais prático na sua piedade, vestia nova-

mente o poeta e levava-o para a casa.

Era justamente a ele, Leonardo Flores, que o doutor Meneses procu-

rava, quando, naquela manhã de dia santo e não feriado, entrou na venda

de "Seu" Nascimento, mancando, devido à inchação das pernas, e com

as suas barbas brancas, abundantes, mas não cerradas, aparadas e tratadas

à imitação do nosso último Imperador.

O doutor Meneses galgou a soleira da porta com esforço; parou um

instante, logo que se viu no interior da venda, pôs as mãos nas cadeiras e

respirou com força.

Após os cumprimentos, perguntou:

-- O Flores não tem aparecido?

-- Há muito tempo que não vem aqui -- fez o "Seu" Nascimento

do interior do balcão.

-- Fui à casa dele, e disse-me a mulher que havia saído... Preciso

tanto dele...

Ao dizer isto, sentava-se no tamborete que o caixeiro lhe abrira e o

pusera onde ele estava, o dentista.

Descansou mais um pouco, sorveu mais uma forte dose de ar e, diri-

gindo-se ao Alípio, perguntou:

-- Como vai você, Alípio?

Só estavam na venda Alípio e o velho Valentim, este em pé, encos-

tado ao umbral de uma porta lateral; e aquele, sentado, lendo um jornal.

Alípio respondeu:

-- Vou bem; não tão bem como o senhor, que anda agora em com-

panhia de "almofadinhas" artistas.

-- Como? -- fez espantado o dentista particular.

-- É o que dizem. Corre aqui que o senhor está toda a noite com o

mestre-violeiro Cassi e vários companheiros, num botequim do Engenho

Novo.

-- É verdade. São todos rapazes decentes, que...

-- Então, o Cassi, este é de colete?

-- Dizem -- interveio "Seu" Nascimento -- que esse rapaz...

-- É um bandido -- acudiu Alípio. -- Ele merecia mais do que

cadeia; merecia ser queimado vivo. Tem desgraçado mais de dez moças e

não sei quantas senhoras casadas.

-- Isto é calúnia! -- protestou Meneses. -- Fala-se muito por aí...

-- Que o quê! Os processos têm corrido, os jornais têm publicado,

e ele arranja meios e modos, para livrar-se das penalidades e lançar na des-

graça moças e senhoras -- confirmou Alípio.

-- Como ele consegue isso? -- indagou "Seu" Nascimento.

-- No começo, com a proteção do pai. Ao fim do segundo ou ter-

ceiro caso que veio a público, o pai não lhe falou mais e nunca mais se inte-

ressou pela sua liberdade. Sucederam-se outros, e, graças à intervenção da

mãe junto a um irmão, médico do Exército, ele pôde arranjar rábulas sem

escrúpulos, que, pelos meios mais nojentos, conseguiram retirá-lo das gra-

des da detenção. Caluniava as vítimas com justificações em que eram teste-

munhas Timbó, Arnaldo e outros tais. Contou-me a Vicência -- o senhor

não a conhece, "Seu" Nascimento? -- perguntou Alípio.

-- Quem é? -- perguntou por sua vez o taberneiro.

-- É aquela crioula velha que vem aqui, às vezes, fazer compras, para

a casa do Maior Carvalho. Ela foi empregada na casa do pai de Cassi muito

tempo. Um dia -- ela não sabe bem por quê -- o pai expulsou-o de casa. A

mãe mandou-o para a casa do irmão em Guaratiba. Lá, ele fez ou pretendeu

fazer uma das suas, mas o tio não esteve pelos autos; despachou-o para a

irmã. A muito custo, a mãe conseguiu que ficasse num porão dos fundos,

que mal tem a altura dele, Nesse "socavão" é que ele mora e come. Nunca

sobe nas dependências superiores da casa, com medo do pai. Se, por acaso,

este tiver notícia dessa sua ousadia, põe-no definitivamente na rua.

-- Que diz a isso, doutor Meneses? -- chasqueou Nascimento.

-- Não sei, porque pouco me preocupo com a vida dos outros -- ter-

giversou Meneses.

-- Não é da vida dos outros -- fez impetuosamente Alípio -- ; é com

a vida de um pirata como Cassi, que não respeita família, nem amizades,

nem a miséria, nem a pobreza, para fazer das suas porcarias. É por isso

que eu...

"Seu" Nascimento interveio suasoriamente e pediu calma. Era um

homem alto, claro, um tanto obeso, tipo do antigo agricultor patriarcal,

das nossas velhas fazendas. Ele assim disse:

-- Não é necessário indignar-se, Alípio, fique calmo. O monstro não

tem mais protetores, como você já disse.

-- Tem, "Seu" Nascimento -- afirmou Alípio. -- Ele é esperto, "é

manata escovado".

-- Quem é, Alípio? -- perguntou Nascimento, indo servir de açúcar

a um pequeno.

Os fregueses continuavam a chegar; em geral, eram crianças e mulhe-

res. As suas compras eram pobres: dois tostões disso, quatrocentos réis

daquilo -- compras de gente pobre, em que raramente se via nelas incluído

meio quilo de carne-seca ou um de feijão. Tudo não excedia a tostões.

Mesmo atendendo aos fregueses, sozinho, pois os caixeiros tinham ido cor-

rer a clientela fixa do armazém, "Seu" Nascimento não perdia o fio da

conversa, e ela continuava naturalmente.

Alípio, habituado a isso, não suspendeu a narração e deu a resposta

pedida.

-- O protetor dele, agora, é um tal Capitão Barcelos, chefe político

na estação de***. Tem influência e foi por saber disso que Cassi aderiu a

ele. Já nessa última eleição para uma vaga de intendente, ele funcionou

com o seu rancho ao lado de Barcelos. Não houve desordens, porque não

apareceu outro candidato; mas ele queria fazer uma para ganhar prestígio.

Assim e aos poucos, vai ganhando a confiança de Barcelos, a ponto do

Freitas, que é o subcabo deste, sentir-se magoado e preterido.

-- Quem é esse Barcelos? -- fez Nascimento.

-- É um português, já com seus cinqüenta anos, bom, bom mesmo;

mas, tendo ido para a detenção, pronunciado que estava devido a uns tiros

que dera em um sujeito, por lhe ter insultado a mulher, produzindo no meliante

ferimentos graves, isto há vinte anos, ganhou lá o gosto pela política e lá apren-

deu as primeiras noções dessa difícil ciência. Foi na detenção que...

-- Ué! -- exclamou Nascimento.

-- Também você, Alípio... -- fez duvidoso Meneses.

Alípio continuou:

-- Lá, ele encontrou um político daqui da Capital, que estava na chá-

cara, a responder processo, como mandante de um assassínio. O homem apro-

ximou-se de Barcelos, e puseram-se a conversar. Não estavam no cubículo;

estavam na enfermaria, ou na sala livre, ou em outro compartimento espe-

cial. Barcelos narrou sua vida, que, apesar daquele transtorno, não corria

-- Mas, "Seu" Alípio, o senhor acredita que haja gente tão malvada,

como esse Cassi?

-- Há, e não pouca. Sei de tudo que contei de fonte limpa. É a pura

verdade.

O doutor Meneses tinha ficado aborrecido com o tom da conversa.

Tinha ido à venda, procurar Leonardo Flores, para um negócio particular;

e encontrara o Alípio a par das suas relações com Cassi e inteirado da vida

deste. Diabo! Estaria se comprometendo? Havia já tomado quatro copitos

de parati; mas, quando se despediu, tomou um grande. Caminhando pôs-

se a pensar;

-- Que devia fazer?

Pegou diversas hipóteses e concluiu:

-- Ir até o fim.

A coisa não oferecia nenhum perigo para ele...

Isso não o contentou de todo. Procurou distrair-se.

Próximo capítulo