IV
Veio o dia da festa; a pequena casa regurgitava; e -- coisa curiosa
-- havia mais convidados de idade meã que moças e rapazes. Isto se expli-
cava pela estreiteza de relações de Clara e dos seus pais, devido à vida que
levavam. Entre as moças, havia duas ou três colegas de Clara, a filha de
Lafões, uma sobrinha solteirona, Hermengarda, de Dona Engrácia, e pou-
cas mais. Entre os rapazes, havia dois jovens colegas de Joaquim, Sabino
e Honório; um irmão de Hermengarda e um afilhado de Lafões, que era
vigia do cais do porto. Em compensação, as senhoras, mães de família,
eram inúmeras. Destacava-se muito Dona Margarida Weber Pestana, pelo
seu ar varonil, tendo sempre ao lado o filho único, de quatorze anos, far-
dado com uma fardeta de colegial. Tinha, essa senhora, um temperamento
de heroína doméstica. Viera muito cedo para o Brasil, com o pai, que era
alemão; ela, porém, havia nascido em Riga, russa portanto, como sua mãe
o era. Antes dos dezesseis anos, ficara órfã de mãe. Seu pai emigrara para
o Brasil, contratado a trabalhar no acabamento das obras da Candelária.
Era estucador, marmorista, um pouco escultor; enfim, um operário fino,
para essas obras especiais de revestimento e decoração interna de edifícios
suntuosos.
Bem cedo, mostrou ela inclinação por um tipógrafo que comia na
"pensão" que havia montado, na rua da Alfândega, e dirigia ativamente.
Casaram-se, e ele morreu dois anos depois, após o casamento, de tubel-
culote pulmonar, deixando-lhe o filho, o Ezequiel, que não a largava. Ano
e meio depois, morreu-lhe o pai, de febre amarela. Continuou com a "en-
são"; mas bem cedo vendeu-a e comprou uma casota nos subúrbios, aquela
em que morava, quase junto de Joaquim. Costurava para fora, bordava,
criava galinhas, patos e perus, e mantinha-se serenamente honesta, O
Senhor Ataliba do Timbó deu em certa ocasião em persegui-la com dita-
n’os de amor chulo, Certo dia, ela não teve dúvidas: meteu-lhe o guarda-
chuva com vigor. À noite, no intuito de defender as suas galinhas da sanha
dos ladrões, de quando em quando, abria um postigo, que abrira na janela
da cozinha, e fazia fogo de revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela
sua bondade e pelo rigor de sua viuvez. O Ezequiel, seu filho, puxara muito
ao pai, Florêncio Pestana, que era mulato, mas tinha os olhos glaucos, trais-
lúcidos, de sua mãe meio eslava, meio alemã, olhos tão estranhos -- olhos
tão estranhos a nós e, sobretudo, ao sangue dominante no pequeno.
Afora Dona Margarida Pestana, notava-se Dona Laurentina Jáco-
me, uma velha, sempre metida com rezas e padres, pensionista do ex-Impe-
rador e empregada numa capelinha da vizinhança, de cuja limpeza era
encarregada, inclusive da lavagem das toalhas dos altares. Não podia con-
versar outra coisa que não fossem acontecimentos eclesiásticos e, quase sem-
pre, os de sua igreja:
-- A senhora não sabe, Dona Engrácia, de uma coisa?
-- O que é?
-- O padre Santos, este mês, disse mais de vinte missas e só recebeu
inco. Pobre padre Santos! É mesmo um santo!
E contraía a fisionomia enrugada e, erguendo-a um pouco, apertava
as mãos ao jeito de quem reza.
Além desta, havia uma digna de nota: era Dona Vicência. Morava
na vizinhança também e vivia de deitar cartas e cortar "coisas-feitas".
O seu procedimento era inatacável e exercia a sua profissão de cartomante
com toda a seriedade e convicção.
Havia outras sem nada de notável, como entre os cavalheiros só
havia um que se destacava. Convém não esquecer que Lafões e Marrama-
que lá estavam a postos. O cavalheiro digno de nota era um preto baixo,
um tanto corcunda, com o ombro direito levantado, uma enorme cabeça,
uma testa proeminente e abaulada, a face estreitante até acabar num queixo
formando, queixo e face, um V monstruoso, na parte anterior da cabeça;
e, na posterior, no occipital desmedido, acaba o seu perfil monstruoso.
Chamava-se Praxedes Maria dos Santos; mas gostava de ser tratado por
doutor Praxedes.
A monstruosidade de sua cabeça o pusera a perder. Por tê-la assim,
julgou-se uma inteligência, um grande advogado, e pôs a freqüentar cartó-
rios, servindo de testemunha, quando era preciso, indo comprar estampi-
lhas, etc., etc.
Com o tempo, tomou algumas luzes e atirou-se a tratar de papéis
de casamento e organizou uma biblioteca particular de manuais jurídicos,
de índices de legislação, etc., etc. Vestia-se sempre de fraque, botinas de
verniz ou gaspeadas, e não dispensava a pasta indicadora de homens de
leis, Quando foi moda ser de rolo, ele a usou assim; quando veio a moda
de ser em saco, como a trazem agora os advogados, ele comprou uma
luxuosa de marroquim com fechos de prata.
Não falava senão em leis e decretos: "porque" -- dizia ele -- "a
Lei 1857, de 14 de outubro de 1879, diz que a mulher casada, no regime
do casamento, não pode dispor dos seus bens, ter dinheiro em bancos, na
Caixa Econômica; entretanto, o Decreto 4572, de 24 de julho de 1899,
determina..."
Afora o seu amor a esse embrulho legislativo, gostava de versos;
mas não de modinha.
Era este o cavalheiro mais notável que havia vindo ao baile de anos
de Clara. É que até àquele momento, com grande desgosto para as moças,
o trovador Cassi não havia ainda aparecido.
Clara não ocultava o seu desapontamento; e uma de suas colegas lhe
dizia em confidência:
-- Clara, toma cuidado. Este homem não presta.
A moça não respondia, encaminhava-se para a sala de jantar, a fim
de disfarçar a emoção, simulando ir beber água.
Clara estava bem vestidinha. Era inteiramente de crepom o seu ves-
tido, com guarnição de renda de indústria caseira, mas bonita e bem traba-
lhada; o pescoço saía-lhe nu e a gola do casaco terminava numa pala
debruada de rendas. Calçava sapatos de verniz e meias. Nas orelhas tinha
grandes africanas e penteara-se de bandós, rematando o penteado para
trás, na altura do pescoço, um coque, fixado por um grande pente de tarta-
ruga ou coisa parecida.
Quando ela foi beber água, seguiu-lhe a sua amiga Etelvina, uma
crioulinha espevitada, sua antiga colega do colégio. Vestia-se esta com um
mau gosto de aborrecer. Todo o vestido era azul-celeste, com rendas pre-
tas; os sapatos amarelos e as meias cor de abóbora. Ao redor da cabeça,
dividindo a testa ao meio, uma fita vermelha, de um vermelho muito ber-
rante. Os gregos chamavam este adorno feminino de stephané; e, ao que
parece, as portadoras não eram lá tidas como virtuosas,
Essa Etelvina era a primeira dançarina do baile, não tinha até ali per-
dido uma contradança.
A orquestra era composta de flauta, cavaquinho e violão -- um "ter-
no", como denominam os seresteiros.
O baile ia adiantado, quando a filha de Lafões veio correndo do por-
tão do mimoseado jardim que enfrentava a casa, anunciando alegre:
-- E vem ai, "Seu" Cassi.
Entrou. Houve um estremecimento que percorreu os convivas, como
um choque elétrico, Todas as moças, das mais diferentes cores, que, ali, a
pobreza e a humildade de condição esbatiam e harmonizavam, logo o admi-
raram na sua insignificância geral, tão poderosa é a fascinação da perversi-
dade nas cabeças femininas. Nem César Bórgia, entrando mascarado, num
baile à fantasia, dado por seu pai, Alexandre VI, no Vaticano, causaria tanta
emoção. Se não disseram: "É César! É César!" -- codilharam: "É ele! É ele!"
Os rapazes, porém, não ficaram contentes, pressentindo essa satisfa-
ção das damas; e, entre eles, puseram-se a contar a biografia escabrosa
do modinheiro.
Apresentado, por Lafões, aos donos da casa, e à filha, ninguém lhe
notou o olhar guloso de grosseiro sibarita sexual que deitou para os seios
empinados de Clara.
O baile continuou animado; Cassi, porém, não dançava e foi refor-
çar o terno de cavaquinho, flauta e violão, com o seu instrumento.
Dona Margarida, com o seu porte severo, olhava as damas, sentada
ao sofá austríaco, tendo ao lado o filho. A polca era a dança preferida, e
todos quase a dançavam com requebros próprios de samba. Os convidados
que não dançavam se haviam espalhado por várias partes da casa. Joaquim,
Lafões e Marramaque ouviam o doutor Praxedes explicar o que era um
habeas corpus preventivo.
-- Exemplifico -- dizia o doutor Praxedes, erguendo a mão direita
catedraticamente, com o indicador apontado para o teto. -- É uma medida
perfeitamente jurídica de profilática, porque...
Nisto acode o "doutor" Meneses, um velho hidrópico, com a mania
de saber todas as ciências, vivendo na maior miséria, apesar de exercer clan-
destinamente a profissão de dentista.
-- Doutor Praxedes -- acudia o doutor Meneses --, não julgo a com-
paração própria. Cada ciência tem seu campo próprio...
A discussão tomava vulto e Joaquim se levantou. Sempre que ele fazia
isto, Meneses seguia com os olhos o carteiro, a ver se ele ia até a cozinha
mandar pôr a ceia. O sábio dentista viera à última hora, na esperança que a
houvesse. Não lograra dinheiro para tomar um caldo. Joaquim, porém, abor-
recido com a discussão, fora simplesmente até a sala de visitas convidar:
-- Quem quiser tomar alguma coisa, comer biscoitos, é só vir cá den-
tro. Não façam cerimônia.
Toda vez que o anfitrião dizia isso, Meneses comia duas empadas e
quatro sandwiches e bebia uma boa "talagada" de parati.
O dono da casa convidava Cassi especialmente; mas este não bebia,
não gostava. Não era esse o seu prazer...
De uma feita, indo à sala, Joaquim convidou-o:
-- Por que não canta, "Seu" Cassi?
Até ali, não se falara nisso, e, repinicando as cordas do violão, não
deixava o famoso mestre violeiro de devorar sorrateiramente com o olhar las-
civo os bamboleios de quadris de Clara, quando dançava.
Ninguém se atrevia a convidá-lo; todos esperavam que o dono da casa
o fizesse. Feito o convite, ele respondeu cheio de uma cerimônia afetada:
-- Estou sem voz: esfalfei-me muito ontem, no baile do doutor
Raposo e...
Vendo que seu pai o havia convidado, Clara animou-se:
-- Por que não canta "Seu" Cassi? Dizem que o senhor canta tão
bem...
Esse -- "tão bem" -- foi alongado maciamente. Cassi concertou,
com apurada pelintragem e com ambas as mãos, a pastinha oleosa; limpou,
em seguida, os dedos no lenço e respondeu dengoso:
-- Qual, minha senhora! São bondades dos camaradas...
Clara insistiu:
-- Cante, "Seu" Cassi! Vá!
Ele, então, torcendo a cabeça para o lado esquerdo, cuja mão espal-
mada abria para o alto, e fingindo constrangimento, respondeu:
-- Já que a senhora manda, vou cantar.
Marramaque, que tinha ouvido tudo, ficou espantado com o desem-
baraço da afilhada. Diabo! fez ele de si para si.
O violeiro, com todo o dengue, agarrou o violão, fez estalar as cor-
das e avisou:
-- Vou cantar uma modinha velha, mas muito gentil e literária
-- "Na Roça".
Muitos circunstantes ficaram desapontados, porque já a conheciam;
mas outros gostavam muito da modinha e aprovaram a escolha.
Cassi começou:
Mostraram-me um dia
Na roça dançando
Mestiça formosa
De olhar azougado...
Isto tudo era dito quase aos poucos, sem modulação alguma, enquanto
o violão repinicava as mesmas notas, numa indigência musical, numa mono-
tonia de sons, que dava sono. Quando chegava ao estribilho:
Sorria a mulata
Por quem o feitor
Diziam que andava
Perdido de amor
Por aí ele empregava o seu tic invencível de tocador de violão e can-
tor de modinha. Cantando, revirava os olhos e como que os deixava mor-
rer. O cardeal de Retz diz, nas suas famosas Memórias, que Mme. de Mon-
tayon, ou uma outra qualquer duquesa, ficava mais bela quando os seus
olhos morriam. Cassi talvez ficasse mais, se ele tivesse alguma beleza; entre-
tanto, esse seu tic impressionava as damas.
Clara, que sempre a modinha transfigurava, levando-a a regiões de
perpétua felicidade, de amor, de satisfação, de alegria, a ponto de quase
ela suspender, quando as ouvia, a vida de relação, ficar num êxtase mís-
tico, absorvida totalmente nas palavras sonoras da trova, impressionou-se
profundamente com aquele jogo de olhar, com que Cassi comentava os
versos da modinha. Ele sofria, por força, senão não punha tanta expressão
de mágoa, quando cantava -- pensava ela.
Tão embevecida estava, tão longe pairava o seu pensamento que,
quando Cassi acabou, esqueceu-se de aplaudir o troveiro que, para o seu
rudimentar gosto, lhe tinha proporcionado tão forte prazer artístico.
Comentava-se ainda a execução do maestro Cassi; e ele ao lado per-
cebia os gabos e criticas. Por esse tempo, como uma aparição em alçapão
de mágica, surgiu repentinamente, no centro da sala, o "doutor" Praxedes,
célebre advogado nos auditórios suburbanos, Iniciou:
-- Minhas senhoras e meus senhores. Peço-lhes a devida vênia, para
recitar uma mimosa poesia de um nosso patrício. É uma obra-prima de
chiquismo e de moralidade. O seu autor é o Major Urbano Duarte, que
morreu, se não me falha a memória, general-de-brigada, Vou recitá-la, se
me permitem. Chama-se "A Lágrima".
Dizendo isto, o seu todo grotesco ainda mais grotesco ficava, com a
gesticulação desordenada dos braços, que rodavam, duros e hirtos, em torno
dos ombros, de cima para baixo. Pareciam asas de um antigo moinho de
vento. Começou gritando a primeira estrofe e já se babando pelos cantos
dos seus lábios violáceos:
Cismava à beira-mar, a linda Marieta,
Seguindo tristemente o sulco do vapor,
O qual, fugindo além, sumiu-se no horizonte,
Levando a longe terra o seu primeiro amor.
O seu gritar, o seu babujar, o seu gesticular foram crescendo. Quando
chegou ao primeiro terceto do soneto, quase não tinha mais voz. Da assis-
tência, apossara-se uma louca vontade de rir; muitos se contiveram; outros,
porém, se retiraram para gargalhar longe. O doutor Praxedes nada via e
continuava impertérrito, afinal acabou:
Depois, quando o luar banhando a natureza
Em pálidos clarões de luz misteriosa,
Eu vi no arrebentar do mar embravecido
A lágrima a boiar na pétala de rosa.
Ao terminar, recebeu palmas, e, sentando-se, cansado de tão estúr-
dio esforço muscular, ainda disse:
-- Essa lágrima é a da Marieta de que "o verso" fala no começo.
É preciso que os senhores e as senhoras não se esqueçam desse pormenor.
Marramaque, que até ali, sem ser notado, seguira a insistência com
que o trovador Cassi olhava Clara, resolveu pregar-lhe uma peça. Apoiado
na sua bengala amiga, com a perna esquerda encolhida, devido aos ata-
ques, e o respectivo braço fixado em ângulo reto, conseqüência também
dos ataques -- encaminhou-se para o centro da sala, capengando, a fim
de recitar, por sua vez. A parte esquerda da boca era defeituosa também,
e isso provocava-lhe muito esforço para pronunciar bem as palavras.
Não atendeu a nenhuma consideração e pôs-se em pé para recitar.
Assim é que ia fazer; deu o título da poesia -- "Persistência" -- e
começou naturalmente, como quem já soubera recitar com relativa perfei-
ção, quando estava são. Recitando, olhava sempre para Cassi, que, calado,
numa reserva de moço bem-comportado, ficara de pé, encostado ao vão
da janela de frente.
Marramaque atacou os versos, saltitando na sala:
Se às vezes contigo esbarro
e grito, esperneio e berro,
que me traz de há muito zarro
a paixão que aqui encerro,
Tu foges. E a ti me agarro,
cismando: (e nisto não erro)
Se eu tenho uma alma de barro,
tu mostras que a tens de ferro.
E se nada mais espirro
é porque, então, se não corro,
a coisa já cheira a esturro.
Que queres? Eu próprio embirro
com este amor por que morro,
mas é que sou muito burro.
O final causou uma franca hilaridade na assistência, e até Clara riu-
se a perder; mas ninguém perguntou quem era o autor; e, se lhe perguntas-
sem, Marramaque não lhe sabia o nome. Era a poesia sem assinatura, num
jornal antigo, gostara dela e a decorara.
O povo é avesso a guardar os nomes dos autores, mesmo os dos
romances, folhetins que custam dias e dias de leitura. A obra é tudo, para
o pequeno povo; o autor, nada.
Cassi, que, logo, antipatizara com Marramaque, percebeu que a coisa
era com ele. Perceberia outro mais burro do que o gabado artista da modi-
nha, tanto era a teimosia com que o velho aleijado o olhava. Cassi pensou,
de si para si: "Este pobre-diabo me paga".
O que espantava, na ação de Marramaque, era a sua coragem. Ele,
semi-aleijado, velho, pobre, lançava um solene desafio àquele valdevinos
forte, são, habituado a rolos e rixas.
Cassi não se demorou mais por muito tempo, Pediu o chapéu, despe-
diu-se dos donos da casa e da filha destes, fez um cumprimento em roda
e, quando deu com o rosto de Marramaque, com os olhos estranhamente
fixos nele, a boca semi-aberta, o braço esquerdo fixado em ângulo reto,
pela moléstia, arrastou-se, Parecia uma aparição... Deixara de ser o contí-
nuo aleijado que ele antes tinha visto; era outra coisa, mais do que o sim-
ples Marramaque, que o espantava e o fazia tremer.
Com a atitude desassombrada daquele velho aleijado em face dele e
que havia adivinhado, não sabia ele como, os seus maus propósitos em rela-
ção à Clara, Cassi sentiu, apesar do seu quase congênito embotamento
moral, que havia na vida, ou, por outra, nas relações entre os homens,
um guia silencioso e secreto, que pesava os nossos atos e pedia, para dar-
lhes apoio e encaminhar-nos para uma paz interior e um contentamento
conosco mesmos, o emprego, em todas as nossas ações, do Justo, do Leal,
do Verdadeiro e do Generoso; e esse guia -- ele via agora com o caso de
Marramaque -- dava forças aos fracos, coragem aos tímidos e uma será-
fica e íntima satisfação, quando cumpríamos o nosso dever com honra e
dignidade. Esse guia era a Consciência.
Confusamente, ele pensou isso; mas, ao passar o terror, o pavor,
que lhe causara o olhar fixo, vitrificado, sobrenatural do velho Marrama-
que; olhar que o fizera um instante voltar-se para dentro de si mesmo e
examinar-se -- tornou com pressa ao que era e, fazendo um desdenhoso
-- ora! --, repetiu de si para si a ameaça que já fizera: "Aquele boneco
de engonço me paga".
Depois da saída de Cassi, ainda se bailou até os primeiros albores
da aurora. Meneses, que tinha cochilado bastante, pôde, afinal, pela madru-
gada, comer um pouco de galinha assada e porco, que havia sobrado do
jantar; mas não encetou discussão mais alguma com o doutor Praxedes;
mesmo porque este já se havia despedido, por ter de comparecer muito
cedo à audiência de um pretor, a fim de inquirir testemunhas num feito
importante em que funcionava como advogado.
Quando todos se foram e Clara recolheu-se a seu quarto, que dava
para a sala de jantar, Joaquim e a mulher ficaram nela, comendo ainda
alguma coisa que sobrara, Foi então que Engrácia disse para o marido:
-- Tudo foi muito bem. Todos se portaram decentemente, com res-
peito; mas uma coisa não quero mais.
-- O que é?
-- É que esse Cassi venha mais aqui. Dona Margarida me disse que
ele é, é um devasso. Você não vê como ele canta indecentemente, revirando
os olhos... Não o quero mais aqui; se ele vier...
-- Não é preciso você se zangar, Engrácia; não gostei também dele
e não porá mais os pés na minha casa.
Clara, que, deitada, no quarto, havia ouvido toda a conversa, pôs-
se, em silêncio, a chorar.