II

 

Quem seria esse Cassi? Quem era Cassi?

Cassi Jones de Azevedo era filho legítimo de Manuel Borges de Aze-

vedo e Salustiana Baeta de Azevedo. O Jones é que ninguém sabia onde

ele o fora buscar, mas usava-o, desde os vinte e um anos, talvez, conforme

explicavam alguns, por achar bonito o apelido inglês. O certo, porém, não

era isso. A mãe, nas suas crises de vaidade, dizia-se descendente de um fan-

tástico Lord Jones, que fora cônsul da Inglaterra, em Santa Catarina; e o

filho julgou de bom gosto britanizar a firma com o nome do seu problemá-

tico e fidalgo avô.

Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento,

insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como con-

sumado "modinhoso", além de o ser também por outras façanhas verda-

deiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem outro

qualquer traço de capadócio, Vestia-se seriamente, segundo as modas da

rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as

suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir

aquele aperfeiçoadíssimo "Brandão", das margens da Central, que lhe

talhava as roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apre-

sentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto

da cabeça, dividido muito exatamente ao meio -- a famosa "pastinha".

Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com

os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta

e seduz as damas com o seu irresistível violão.

Era bem misterioso esse seu violão; era bem um elixir ou talismã de

amor. Fosse ele ou fosse o violão, fossem ambos conjuntamente, o certo

é que, no seu ativo, o Senhor Cassi Jones, de tão pouca idade, relativa-

mente, contava perto de dez defloramentos e a sedução de muito maior

número de senhoras casadas.

Todas essas proezas eram quase sempre seguidas de escândalo, nos

jornais, nas delegacias, nas pretorias; mas ele, pela boca dos seus advoga-

dos, injuriando as suas vitimas, empregando os mais ignóbeis meios da

prova de sua inocência, no ato incriminado, conseguia livrar-se do casa-

mento forçado ou de alguns anos na correção.

Quando a polícia ou os responsáveis pelas vítimas, pais, irmãos, tuto-

res, punham-se em campo para processá-lo convenientemente, ele corria à

mãe, Dona Salustiana, chorando e jurando a sua inocência, asseverando

que a tal fulana -- qualquer das vítimas -- já estava perdida, por esse ou

por aquele; que fora uma cilada que lhe armaram, para encobrir um mal

feito por outrem, e por o saberem de boa família, etc., etc.

Em geral, as moças que ele desonrava eram de humilde condição e

de todas as cores. Não escolhia. A questão é que não houvesse ninguém,

na parentela delas, capaz de vencer a influência do pai, mediante solicita-

ções maternas.

A mãe recebia-lhe a confissão, mas não acreditava; entretanto, como

tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o filho casado com

uma criada preta, ou com uma pobre mulata costureira, ou com uma

moça branca lavadeira e analfabeta.

Graças a esses seus preconceitos de fidalguia e alta estirpe, não trepi-

dava em ir empenhar-se com o marido, a fim de livrar o filho da cadeia

ou do casamento pela policia.

-- Mas é a sexta moça, Salustiana!

-- Qual o quê! Calunia-se muito...

-- Qual calúnia, qual nada! Este rapaz é um perverso, é sem-vergo-

nha. Eu sei o nome das outras. Olhe: a Inês, aquela crioulinha que foi

nossa copeira e criada por nós; a Luísa, que era empregada do doutor

Camacho; a Santinha, que ajudava a mãe a costurar para fora e morava

na rua Valentim; a Bernarda, que trabalhava no "Joie de Vivre"...

-- Mas tudo isso já passou, Maneco. Você quer que o seu filho vá

para a cadeia? Porque, casar com essas biraias, ele não se casa. Eu não

quero.

-- Era preferível que ele fosse para a cadeia, ao menos não estava

desmoralizando todo o dia a casa.

-- Pois você faça o que quiser. Se você não der os passos, eu dou.

Vou procurar o meu irmão, o doutor Baeta Picanço -- rematava a mulher

com orgulho.

O pai desse Cassi era verdadeiramente um homem sério, Estreito de

idéias, familiarizado no emprego público, que, há cerca de trinta anos, exer-

cia, ele tinha profundos sentimentos morais, que lhe guiavam a conduta

no seu comércio com os filhos. Nunca fora afetuoso: evitava até todas

as exibições e exageros sentimentais; era, porém, capaz de estimá-los pro-

fundamente, amá-los, sem abdicar, entretanto, do dever paterno de julgá-

los lucidamente e puni-los consoante a natureza das suas respectivas faltas.

Era homem de pouca altura, trazia a cabeça sempre erguida, testa

reta e alta, queixo forte e largo, olhar firme, debaixo do seu pince-nez de

aros de ouro. Conquanto alguma coisa obeso, era deveras um velho simpá-

tico e respeitável; e, apesar da sua imponência de antigo burocrata, dos

seus modos um tanto ríspidos e secos, todos o estimavam na proporção

em que seu filho era desprezado e odiado. Tinham até pena dele, confron-

tando a severidade de sua vida com a crapulice de Cassi.

Sua mulher não era lá muito querida, nem prezada. Tinha fumaças

de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo

às dos seus conhecimentos. O seu orgulho provinha de duas fontes: a pri-

meira, por ter um irmão médico do Exército, com o posto de capitão; e a

segunda, por ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade.

Quando se lhe perguntava -- seu pai, o que era? -- Dona Salustiana

respondia: era do Exército; e torcia a conversa. Não era seu pai exatamente

do Exército. Fora simplesmente escriturário do Arsenal de Guerra. Com

muito sacrifício e graças a uma pequena fortuna que lhe viera ter por acaso

às mãos, pudera educar melhorzinho os dois únicos filhos que tivera.

A vaidade de Dona Salustiana não deixava que ela confessasse isso;

e tanto era contagioso esse seu sentimento, no que tocava a seu pai, que

as suas duas filhas, Catarina e Irene, sempre se referiam ao avô, como se

fosse de verdade um general do Paraguai. Eram menos vaidosas do que

a mãe; mas muito mais ambiciosas, em matéria de casamento. Dona Salus-

iana casara-se com o Manuel, quando este ainda era praticante e revia pro-

vas, à noite, nos jornais, para acudir às despesas da casa. Catarina e Irene

sonhavam casar com doutores, bem empregados ou ricos, porque elas se

julgavam prestes a se "formar", a primeira em música e piano, pelo tram-

polineiro Instituto Nacional de Música; e a segunda, pela indigesta Escola

Normal desta Capital.

Escusado é dizer que ambas tinham um grande desprezo pelo irmão,

não só pela baixeza de sua conduta moral -- o que era merecido -- mas,

também, pela sua ignorância cavalar e absoluta falta de maneiras e modos

educados.

Em começo, o pai consentia, apesar de tudo, que Cassi, o ínclito

Cassi, tomasse parte na mesa familiar. Ninguém lhe dirigia a palavra, a

não ser a mãe, As moças conversavam com o pai ou com a mãe, ou entre

si; e, se ele se animava a dizer qualquer coisa, o velho Manuel olhava-o seve-

ramente e as filhas calavam-se.

Houve um acontecimento doloroso, provocado pela perversidade de

Cassi, que fez o pai tomar a deliberação extrema de expulsá-lo de casa e

da mesa doméstica. Não foi expulso de todo, devido à intervenção de

Dona Salustiana; mas o foi em meio.

Entre as relações de suas irmãs, havia uma moça muito pobre, que

morava na redondeza. Sua mãe era viúva de um capitão do Exército, e ela,

a Nair, era filha única. Com auxílio de alguns parentes, a viúva ia encami-

nhando a filha, nos estudos próprios de seu sexo. Ela tinha tendência para

música e procurou aproximar-se de Catarina, para explicar-lhe a matéria.

Contava dezoito anos, muito risonha, de um amorenado sombrio, cabelos

muito negros, pequenina e viva, com os seus olhinhos irrequietos e luminosos.

Cassi a viu e logo a teve como boa presa, apesar de não ser totalmente

sem apoio. Quis entabular namoro, na própria casa do pai, quando Nair

vinha receber lições da irmã dele. Esta, porém, percebendo a manobra, proi-

biu-lhe, sob ameaça de contar ao pai, que ele viesse à sala, quando estivesse

dando lição a Nair. O nome do pai apavorava Cassi, não que o estimasse e,

por isso, o respeitasse deveras; mas porque "o velho", severo como era, bem

podia pô-lo de vez na rua. Se isso viesse a acontecer, não teria para onde ir,

e o pouco que ganhava, no jogo, em brigas de galos e em comissões de

agente de empréstimos, etc., seria absorvido para a casa e comida, pouco

ou quase nada sobrando para roupas, sapatos e gravatas. Ele, sem isto tudo,

estava perdido. Adeus amor! Se o quisesse, tinha que pagar...

Considerando tal hipótese, não relutou em obedecer à irmã; mas

começou a cercar Nair "por fora". Quando ela ia sair, precedia-a, ficava

na porta da padaria, cumprimentava. Afinal, pôde conversar e declarar-se

com a fatídica carta, que era a reprodução de um modelo que lhe dera

um companheiro de malandragem, o Ataliba do Timbó, o qual, por sua

vez, tinha obtido de um poeta "porrista" que morava na Piedade. Esse

poeta, a quem o "intruso" Ataliba qualificava tão superiormente e de tal

maneira, era o célebre Leonardo Flores, que o Brasil todo conhece e viveu

uma vida pura, inteiramente de sonhos.

Enfim, a pequena Nair, inexperiente, em plena crise de confusos sen-

timentos, sem ninguém que lhe pudesse orientar, acreditou nas lábias de

Cassi e deu o passo errado. A mãe veio a descobrir-lhe a falta, que se denun-

ciava pelo estado do seu ventre. Correu ao Senhor Manuel, que não estava.

Falou a Dona Salustiana e esta, empertigando-se toda, disse secamente:

-- Minha senhora, eu não posso fazer nada. Meu filho é maior.

-- Mas, se a senhora o aconselhasse como mãe que é, e de filhas,

talvez obtivesse alguma coisa. Tenha piedade de mim e da minha, minha

senhora.

E pôs-se a chorar e a soluçar.

Dona Salustiana respondeu amuada, sem demonstrar o mínimo enter-

necimento por aquela dor inqualificável:

-- Não posso fazer nada, no caso, minha senhora. Já lhe disse. A

senhora recorra à justiça, à polícia, se quiser. É o único remédio.

A mãe de Nair acalmou-se um pouco e observou:

-- Era o que eu queria evitar. Será uma vergonha para mim e para

a senhora e família.

-- Nós nada temos com o que Cassi faz. Se fosse nossa filha...

Não acabou a indireta injuriosa; levantou-se e estendeu a mão à deso-

lada mãe, como que a despedindo.

A viúva saiu cabisbaixa; e, dali, foi à audiência do delegado distrital

e expôs tudo. O delegado disse-lhe:

-- Apesar de estar ainda não há seis meses neste distrito, sei bem quem

é esse patife de Cassi. O meu maior desejo era embrulhá-lo num bom e sólido

processo; mas não posso, no seu caso. A senhora não é miserável, possui

as suas pensões de montepio e meio soldo; e eu só posso tomar a iniciativa

do processo quando a vítima é filha de pais miseráveis, sem recursos.

-- Mas, não há remédio, doutor?

-- Só a senhora constituindo advogado.

-- Ah! Meu Deus! Onde vou buscar dinheiro para isso? Minha filha,

desgraçada, meu Deus!

E pôs-se a chorar copiosamente. Quando serenou, o delegado man-

dou que um empregado da delegacia acompanhasse a senhora até em casa

e ficou a pensar nas baixezas, nas dores, nas misérias que as casas enco-

brem e que, todo o dia, descobria, por dever de ofício.

No dia seguinte, a mãe de Nair suicidava-se com lisol. Os jornais

esgravataram o acontecimento e contaram as causas do suicídio com todos

os pormenores. Manuel de Azevedo, o pai de Cassi, quando leu no trem

o jornal, saltou na primeira estação, voltou e entrou pela casa adentro que

nem um furacão, transtornado de fisionomia, com rictus de ódio que o

fazia outro homem muito diferente daquele reservado, bondoso e simpá-

tico burocrata que era.

-- Quedê ele?

-- Quem? -- perguntou-lhe a mulher.

-- Ele, esse Cassi -- fez ele com os punhos cerrados, a errar o olhar

desvairado, pelos quatro cantos da sala.

-- Mas que há, homem? -- fez a mulher assustada.

-- Lê isto.

Deu-lhe o jornal, apontando o local do suicídio.

-- Mas que culpa tem...

Não acabou a frase, Dona Salustiana; o marido logo a interrompeu:

-- Culpa! Esse biltre sem senso moral algum; esse assassino, esse des-

graçado que leva a corromper todas as moças e senhoras que lhe passam

debaixo dos olhos, não o quero mais aqui, não o quero mais na minha

mesa. Diga-lhe isto, Salustiana; diga-lhe isto, enquanto não o mato.

As filhas tinham chegado e adivinharam a causa daquela explosão

de ódio e raiva, coisa rara no pai. Procuraram acalmá-lo:

-- Sossegue, papai; sossegue.

Catarina, que passara os olhos pelo jornal, muito sofreu com a

desonra de Nair. Lamentou sinceramente o trágico desfecho da mãe da sua

discípula gratuita; e assim falou ao pai:

-- Olhe, papai; eu me sinto em alguma coisa culpada, porque trouxe

Nair para aqui, a fim de estudar música comigo.

Depois de uma pausa acrescentou:

-- Que se há de fazer? É a fatalidade.

-- Não o quero mais aqui -- repetiu o chefe da família.

Os jornais não se deixaram ficar na simples noticia do suicídio. Revol-

veram a vida de Cassi; contaram-lhe as proezas; e ele, a conselho de sua

mãe, foi passar uns tempos na casa do tio, o doutor, que tinha uma fazen-

dola em Guaratiba. Pela narração dos quotidianos, pôde-se organizar toda

a rede de insídias, de cavilosas mentiras, de falsas promessas, com que ele

tinha cercado a pobre e ingênua vítima, cuja desonra determinou o suicídio

da mãe. Ele, como de hábito, não falava de seus namoros a ninguém,

muito menos a seu pai e a sua mãe; entretanto, para ganhar a confiança

da pobre menina, dizia na carta que dissera à mãe que muito a amava ou

textualmente: "confessei a mamãe que lhe amava loucamente" e avisava-

lhe: "privino-lhe que não ligues ao que lhe disserem, por isso pesso-te que

preze bem o meu sofrimento"; e, assim nessa ortografia e nessa sintaxe,

acabava: "Pense bem e veja se estás resolvida a fazer o que dissestes na

tua cartinha", etc. Confessava-se um infeliz "que tanto lhe adora" e lamen-

tava não ser correspondido.

Em outra, mostrava-se interessado pela saúde de Nair; e, depois de

dar instruções como devia deixar a janela para que ele a pulasse, contava:

"tão depressa soube que estavas de cama fui ao doutor R. S. saber o que

você tinha, ele disse-me que você tinha feito a loucura de molhar os peis

na água fria" etc., etc. Nessa altura, entrava em detalhes secretos da vida

feminina e aduzia: "foi uma grande tristeza em saber que o doutor R. S.

sabe de teus particulares moral" (sic).

No fim da missiva, ou quase, dizia: "enfim que eu devo fazer se

você não quer ser inteiramente minha como eu sou teu."

Não se demorou muito na casa do tio. O doutor, orgulho de sua

irmã Salustiana e protetor sempre por ela posto em foco para as despudora-

das aventuras do sobrinho, desconfiando que este tramava uma das suas,

nos arredores do seu sítio, sem mais detença, embarcou-o para a casa da

irmã, mãe de Cassi, dizendo-lhe que ficasse com o filho, porque sobrinho

como aquele, ele, doutor Baeta Picanço, desejava nunca tê-lo em casa.

Não foi logo diretamente para a casa paterna, que era numa das pri-

meiras estações de quem vem da Central. Ficou pelo Engenho de Dentro,

de onde mandou, por Ataliba do Timbó, um bilhete à mãe, pedindo instru-

ções. A mãe respondeu-lhe que viesse para casa; mas evitasse, por todos

os meios, encontrar-se com o pai. Tinha ela arranjado as coisas, e ele teria

sempre onde comer e dormir.

Foi-lhe reservado o porão, na parte dos fundos, e a chácara, como

recreio, onde raramente o pai ia. Jantava, almoçava e tomava café, no com-

partimento do porão onde morava. Logo na primeira manhã que despertou

no seu humilhante aposento familiar, pensou logo em ir ver as suas gaiolas

de galos de briga -- o bicho mais hediondo, mais antipático, mais repug-

nantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Estavam em ordem;

sua mãe cuidara deles, como lhe pedira.

Galos de briga eram a força de suas indústrias e do seu comércio

equívocos. Às vezes, ganhava bom dinheiro nas apostas de rinhadeiro, o

que vinha ressarcir os prejuízos que, porventura, anteriormente houvesse

tido nos dados; e, assim, conseguia meios para saldar o alfaiate ou com-

prar sapatos catitas e gravatas vistosas. Com os galos, fazia todas as opera-

ções possíveis, a fim de ganhar dinheiro; barganhava-os, com "volta", ven-

dia-os, chocava as galinhas, para venda dos frangos a criar e educar, pre-

senteava pessoas importantes, das quais supusesse, algum dia, precisar do

auxilio e préstimos delas, contra a polícia e a justiça.

Incapaz de um trabalho continuado, causava pasmo vê-lo cuidar

todas as manhãs daqueles horripilantes galináceos, das ninhadas, às quais

dava milho moído, triguilho, examinando os pintainhos, um por um, a ver

se tinham bouba ou gosma.

Fosse se deitar a que hora fosse, pela manhã lá estava ele atrapalhado

com os galos malaios e a sua descendência de frangos e pintos.

Nunca suportara um emprego, e a deficiência de sua instrução impe-

dia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa que

herdara da mãe; além disso, devido à sua educação solta, era incapaz para

o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava pela moléstia.

A mórbida ternura da mãe por ele, a que não eram estranhas as suas vaida-

des pessoais, junto à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram

de Cassi o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imagi-

nar. É um tipo bem brasileiro.

Se já era egoísta, triplicou de egoísmo. Na vida, ele só via o seu pra-

zer, se esse prazer era o mais imediato possível. Nenhuma consideração

de amizade, de respeito pela dor dos outros, pela desgraça dos semelhantes,

de ditame moral o detinha, quando procurava uma satisfação qualquer.

Só se detinha diante da força, da decisão de um revólver empunhado com

decisão. Então, sim...

Algumas boas lhe aconteceram. Tinha ele notado que uma moçoila

com livros e attirail de normalista, na viagem de trem, o olhava muito.

Marcou-lhe a fisionomia e, ao dia seguinte, à mesma hora, pôs-se,

na estação, à espera dela; não veio. Esperou outro trem, não veio. Assim,

esperou diversos. No outro dia, após esse, foi mais feliz; ela veio. Procu-

rou lugar conveniente e pôs-se a fazer trejeitos. A moça não lhe deu impor-

tância, Durante dias, insistiu. Um belo dia, ele vai muito calmo, à cata da

ingrata, quando ela apareceu acompanhada de um rapaz, que, pela intimi-

dade com que a tratava e pela idade que revelava à primeira vista, parecia

ser irmão ou marido da moça. Habituado a lidar com parentes dessa natu-

reza, mas fracos, não se intimidou. Os dois no banco, ao lado dele, seguem

viagem, palestrando calmamente. Cassi os olha insistentemente. Chegam

à Central, e o rapaz despede-se da moça, que segue para a sua escola. Volta-

se o cavalheiro e procura com o olhar o Senhor Cassi.

-- É o senhor?

Cassi Jones responde:

-- Sou eu.

-- Desejava muito falar-lhe. Vamos à confeitaria; é coisa particular,

e nós lá estaremos à vontade tomando um vermouth.

Cassi fica com a pulga atrás da orelha e acompanha o desconhecido,

que, com ar risonho e caminhando, vai dizendo:

-- O senhor talvez não me conheça. Porém eu, meu caro senhor, o

conheço muito bem. Nos subúrbios, todos conhecem as suas habilidades,

Senhor Cassi Jones; e, embora esteja lá morando há pouco, já tive notí-

cias do seu valimento.

Cassi assustava-se com a calma do rapaz e pôs-se a medir-lhe os mús-

culos. Não trouxera a navalha, porque tinha medo de ser preso, por causa

do negócio da Nair e do suicídio da mãe dela; e armado... Mediu a muscu-

latura do desconhecido. Era antes fraco do que forte, mas parecia disposto.

Chegaram à confeitaria e sentaram-se. O caixeiro serviu vermouth; e,

quando iam em meio, o outro disse ex-abrupto para Cassi:

-- O senhor sabe quem é aquela moça que vinha a meu lado?

Colhido de surpresa, não pôde tergiversar e disse prontamente:

-- Não sei absolutamente.

-- É minha irmã -- afirmou o desconhecido.

-- Também não sabia -- respondeu docilmente o terrível Cassi,

-- Não podia saber naturalmente -- justificou o rapaz. -- Saio cedo

de casa para o escritório e volto tarde, pois janto e almoço na cidade.

Agora, eu chamei o senhor para lhe dizer uma coisa: se o senhor continua

a perseguir minha irmã, meto-lhe cinco tiros na cabeça.

Ao dizer isto, foi tirando dos bolsos de dentro do paletó um magnífico

Smith & Wesson, muito reluzente e com um luxuoso cabo de madrepérola.

Cassi redobrou o esforço para não denunciar o susto e, simulando

calma, disse:

-- Mas, meu caro senhor, creio que nunca faltei com o respeito

devido à senhora sua irmã.

-- É verdade; mas é preciso deixar de persegui-la -- confirmou o

outro e logo acrescentou, como que dando por acabada a entrevista:

-- Quer tomar alguma coisa mais?

-- Não; muito obrigado.

Despediram-se, sem se apertarem as mãos; e Cassi foi para a sua

roda de Ataliba do Timbó, Zezé Mateus, Franco Sousa e Arnaldo.

Um deles perguntou-lhe:

-- O que queria aquele sujeito contigo?

-- Nada. É meu vizinho e, sabendo que sou morador antigo, pediu-

me que lhe arranjasse um cavalo para vender, que ele me dava uma comissão.

Cassi era assim e assim mantinha a sua fama de valente. Não julguem

que tinha estima e amizade por esses rapazes que andavam sempre com

ele. Ele não os amava, como não amava ninguém e com ninguém simpati-

zava. Era uma coorte digna dele, que o iludia do vácuo feito em torno

dele, por todos os rapazes daquelas bandas.

Ataliba do Timbó era um mulato claro, faceiro, bem apessoado,

mas antipático pela sua falsa arrogância e fatuidade. Havia sido operário

em uma oficina do Estado. Meteu-se com Cassi e, aos poucos, abandonou

o emprego, abandonou a mãe, de quem era único arrimo, e quis imitar o

mestre até o fim. Foi infeliz. Arranjou uma complicação policial e matri-

monial de donzelas, nas quais Cassi era useiro e vezeiro, e saiu-se mal.

Obrigaram-no a casar; mas teve a hombridade de ficar com a mulher,

embora, resignadamente, ela sofresse toda a espécie de privações, no horrí-

vel subúrbio de Dona Clara, enquanto ele andava sempre muito suburbana-

mente e tivesse vários uniformes de football.

Tirava proventos do jogo de dados ou campista, e também do foot-

ball, em que era considerado bom jogador -- "plêiel", como dizem lá.

De vários clubes, havia sido expulso ou se havia demitido voluntaria-

mente, porque os companheiros suspeitavam-no ser peitado pelos adver-

sários, para facilitar estes fazer pontos. Ultimamente, era agente de jogo

de bicho, e sua mulher viera gozar de mais algum conforto.

Pobre Ernestina! Era tão alegre, tão tagarela, era moça, e bonitinha,

na sua fisionomia miúda e na sua tez pardo-clara, um tanto baça, é ver-

dade, mas não a ponto de enfeá-la, quando conheceu Ataliba; e hoje?

Estava escanzelada, cheia de filhos, a trair sofrimentos de toda a espécie,

sempre mal calçada, quando, nos tempos de solteira, o seu luxo eram os

sapatos! Quem te viu e quem te vê!

Zezé Mateus era um verdadeiro imbecil. Não ligava duas idéias; não

guardava coisa alguma dos acontecimentos que assistia. A sua única mania

era beber e dizer-se valente. Topava todos os ofícios; capinava, vendia peixe

e verdura, com cesto à cabeça; era servente de pedreiro, apanhava e vendia

passarinhos, como criança; e tinha outras habilidades desse jaez.

Era branco, com uma fisionomia empastada, cheia de rugas precoces,

sem dentes, todo ele mole, bambo. A sua testa era deprimida, e era longo

e estreito o seu crânio, do feitio daqueles a que o povo chama "cabeça de

mamão-macho".

Totalmente inofensivo, quase inválido pela sua imbecilidade nativa

e pela bebida, uma família a quem ele prestava pequenos serviços -- ir às

compras, ao açougue, lavar a casa -- dava-lhe um barracão na chácara,

onde dormia, e comida, se estivesse presente às refeições. Encontrava-se

nessa ruína humana o melhor da turma e o único que não tinha maldade

no coração. Era um ex-homem e mais nada.

O Franco Sousa, este, era um malandro mais apurado, que, uma vez

ou outra, aderia ao grupo de Cassi. Intitulava-se advogado e vivia de embru-

lhar os crédulos clientes que lhe caíam nas mãos. Todos sabiam que ele

não tratava de coisa alguma, pois não podia absolutamente tratar, já por

não saber coisa alguma das tricas forenses, já por não ser, de verdade, advo-

gado. Assim mesmo, sempre apareciam ingênuos roceiros, simplórias viú-

vas, que, no pressuposto de que os seus serviços, na justiça, sobre a demar-

cação de terras litigiosas ou despejos de inquilinos relapsos, fossem mais

baratos, procuravam-no. Ele recebia os adiantamentos e, em seguida, mais

algum dinheiro, conforme a ingenuidade e a falta de experiência do cliente,

e não fazia nada. Entretanto, vivia muito decentemente com a mulher,

filhos e filhas. Cassi não lhe pisava em casa, e, aos poucos, foi se afastando

do violeiro, a conselho da mulher, que zelava extremamente pela reputação

das filhas, que se faziam moças.

O último dos asseclas do modinheiro era um tal Arnaldo, Arnaldo

tout court. Nele, talvez, houvesse tipo mais nojento do que mesmo em

Cassi. A sua profissão consistia em furtar, no trem, chapéus-de-sol, benga-

las, embrulhos dos passageiros que estivessem a dormitar ou distraídos.

De tarde, ele fazia a especialidade dos embrulhos; e, à noite, às vezes, a

altas horas, postava-se na beira da plataforma de estação pouco freqüen-

tada e, quando o trem tornava movimento e impulso, arrebatava rapida-

mente os chapéus dos passageiros, através da portinhola, principalmente

se de palha e novos. Vendia-os, no dia seguinte, como vendia os chapéus-

de-sol, as bengalas e o conteúdo dos embrulhos, se fosse de coisa vendável;

roupas de lã ou branca, livros, louça, talheres, etc.

Se fossem, porém, doces, frutas, queijos, biscoitos, grãos, ele levava

para a casa e contava à mulher que só arranjara dinheiro para comprar aque-

las guloseimas para as crianças. Usava dos mais imprevistos estratagemas,

para não pagar a casa de sua moradia. Numa, tendo ficado a dever oito

meses, apresentando-se-lhe o cobrador com os recibos, pediu-os para exa-

miná-los e ficou com eles, alegando que ia consultar pessoa competente em

matéria de selo, porquanto as estampilhas não lhe pareciam legais. Nunca

mais os devolveu; e, apesar de todas as ameaças, ainda ficou morando na

casa quatro meses. Os seus vizinhos contavam que ele tinha também o hábito

de arrebatar as notas do Tesouro das mãos das crianças, quando as encon-

trava sós também a caminho das vendas, onde iam fazer compras para as

casas paternas, levando-as à mostra, na imprevidência natural de crianças.

Inútil é repetir que Cassi não tinha nenhuma espécie de amizade por

esses rapazes, não pela baixeza de caráter e de moral deles, no que ele sobre-

levava a todos; mas pela razão muito simples de que a sua natureza moral

e sentimental era sáfara e estéril. A seus pais e às suas irmãs, não o pren-

dia nenhuma dose de afeição, por mais pequena que fosse. Mesmo com

sua mãe, que o tinha retirado muitas vezes dos xadrezes policiais, em véspe-

ras de seguir para a detenção, ele só tinha manifestações de ternura, quando

estava às voltas com a polícia ou com os juízes. O seu fundo e os seus prin-

cípios explicavam de algum modo essa sua aridez moral e sentimental.

A sua educação e instrução foram deveras descuradas. Primeiro nas-

cido do casal, quando as exigências da manutenção da família obrigavam

seu pai a trabalhar dia e noite, não pôde este, pois poucas horas passava

em casa, vigiá-las convenientemente. Rebelde, desde tenra idade, a doçura

para com ele, por parte de sua mãe, e os prejuízos dela impediram-na que

o corrigisse convenientemente, assiduamente, no tempo próprio. Não ia

ao colégio; fazia "gazeta", correndo pelas matas das cercanias da resi-

dência dos pais, então em Itapiru, com outros garotos. O que faziam,

pode-se bem adivinhar; mas a mãe fingia não perceber, passava a mão pela

cabeça do filho querido, nada dizia ao pai, que quase mourejava durante

as vinte e quatro horas do dia. Cresceu assim, sem nenhuma força moral

que o comprimisse; e o pai seria a única.

Ao melhorarem as suas condições financeiras, com uma promoção

a propósito e a compra daquela casa, na estação do Rocha, com o produto

de uma herança que tocara à mulher, Manuel de Azevedo veio encontrar,

aos treze anos, o filho completamente viciado, fumando às escâncaras,

mal lendo, aos gaguejos, e escrevendo ainda muito pior. Pô-lo nos "Sale-

sianos"" de Niterói, As informações semanais eram péssimas; e, ao fim

de três ou quatro meses de colégio, não sabemos que torpeza cometeu no

colégio que, uma bela tarde, acompanhado de um padre magro, com uma

cortante figura angulosa de asceta, veio a ser entregue Cassi ao pai, em

casa. Falou-lhe o reverendo em particular, e Manuel de Azevedo, quase

chorando, despediu-se do reverendo, que insistia nas desculpas, e respon-

dendo deste único feitio ao eclesiástico:

-- Os senhores têm razão, muita razão. Eu é que me sinto infeliz

por ter um filho bastante mau e vicioso com tão pouca idade. Que castigo,

meu Deus!

A mulher quis saber o motivo da expulsão, mas a dignidade e a ver-

gonha de pai fizeram que nem mesmo à sua mulher ele o dissesse.

Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o rapazola a aprender

um ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana revoltou-se e esbravejou:

-- Meu filho aprender um ofício, ser operário! Qual! Ele é sobrinho

de um doutor e neto de um homem que prestou muitos serviços ao país.

Sempre lembrado dos seus duros começos em que ela muito o aju-

dara e o animara, Manuel tinha, pela mulher, uma grande e sincera afei-

ção, evitando o quanto possível contrariá-la, e, por isso, não teimou dessa

feita. Meses depois, porém, logo que chegou em casa, a mulher e as filhas,

chorando, pedem que vá soltar Cassi, que estava preso em uma delegacia.

O menino já roçava pelos dezesseis anos e mostrava-se assim precoce na

carreira de falcatruas. Havia sido preso, pelo respectivo vigia, no interior

de uma casa vazia, quando procurava arrancar encanamento de chumbo

para vender.

O pai, então, voltou à idéia de pô-lo em uma oficina, a ver se o tra-

balho manual, já pelo cansaço, já pela convivência com pessoas honestas

e de trabalho, desviava-o do mau caminho que ele estava iniciando. A mãe

acedeu com grande repugnância, e ele foi ser aprendiz de tipógrafo.

No fim de um mês, porém, era despedido, porque, tendo ido receber

uma conta de cartões de visitas, uns cinco mil-réis ou pouco mais do que isso,

voltara sem dinheiro, dizendo que o tinha perdido. Revistado conveniente-

mente, foi-lhe o dinheiro encontrado quase intacto entre a botina e a meia.

A fascinação pelo dinheiro e sua absorção nele eram o seu fraco.

Queria-o; mas sem trabalho e para ele só. As menores dívidas que fazia,

não pagava; não oferecia nada a ninguém. Houve quem o conhecendo e

sabendo dessa sua sovinice doentia explicasse os seus desvirginamentos

seguidos e as suas constantes seduções a raparigas casadas, como sendo a

resultante da aridez de dinheiro, que o encaminhava a amores gratuitos; e

de uma atividade sexual levada ao extremo, que a sua estupidez explicava.

Seja devido a esta ou aquela causa, a este ou aquele motivo, o certo

e que nele não havia nevrose ou qualquer psicopatia que fosse. Não cedia

a impulsos de doença; fazia tudo muito calculadamente e com todo o vagar.

Muito estúpido para tudo o mais, entretanto, ele traçava os planos de sedu-

ção e desonra com a habilidade consumada dos scrocs de outras nature-

as. Tudo ele delineava lucidamente e previamente removia os obstáculos

que antevia.

Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia detestavelmente car-

tas langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o arsenal do amor

antigo, que impressiona tanto a fraqueza de coração das pobres moças

daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência e a redu-

zida instrução concentram a esperança de felicidade num Amor, num

grande e eterno Amor, na Paixão correspondida.

Sem ser psicólogo nem coisa parecida, inconscientemente, Cassi Jones

sabia aproveitar o terreno propício desse mórbido estado d'alma de suas

vítimas, para consumar os seus horripilantes e covardes crimes; e, quase

sempre, o violão e a modinha eram seus cúmplices...

 

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