X

 

Clara dos Anjos, meio debruçada na janela do seu quarto, olhava

as árvores imotas, mergulhadas na sombra da noite, e contemplava o céu

profundamente estrelado. Esperava.

Fazia uma linda noite sem luar; era silenciosa e augusta. As árvores

erguiam-se hirtas e se recortavam na sombra, como desenhadas. Nem uma

aragem corria; mas estava fresco. Não se ouvia a mínima bulha natural.

Nem o estridular de um grilo; nem o piar de uma coruja. A noite quieta e

misteriosa parecia aguardar quem a interrogasse e fosse buscar no seu sos-

sego paz para o coração.

Clara contemplava o céu negro, picado de estrelas, que palpitavam.

A treva não era total, por causa da poeira luminosa que peneirava das altu-

ras. Ela, daquela janela, que dava para os fundos de sua casa, abrangia

uma grande parte da abóbada celeste. Não conhecia o nome daquelas jóias

do céu, das quais só distinguia o Cruzeiro do Sul. Correu com o pensa-

mento errante toda a extensão da parte do céu que avistava. Voltou ao Cru-

zeiro, em cujas proximidades, pela primeira vez, reparou que havia uma

mancha negra, de um negro profundo e homogêneo de carvão vegetal. Per-

guntou de si para si:

-- Então, no céu, também se encontram manchas?

Essa descoberta, ela a combinou com o transe por que passara. Não

lhe tardaram a vir lágrimas; e, suspirando, pensou de si para si:

-- Que será de mim, meu Deus?

Se "ele" a abandonasse, ela estava completamente desmoralizada,

sem esperança de remissão, de salvação, de resgate... Moça, na flor da

idade, cheia de vida, seria como aquele céu belo, sedutoramente iluminado

pelas estrelas, que também tinha ao lado de tanta beleza, de tanta luz, de

não sabia que sublime poesia, aquela mancha negra como carvão. Cassi a

teria de fato abandonado? Ela não podia crer, embora há quase dez dias

não a viesse ver. Se ele a abandonasse -- o que seria dela? Veio-lhe então

perguntar a si mesma como se entregou. Como foi que ela se deixou per-

der definitivamente?

Clara não podia bem apanhar todas as fases dessa queda; ela se lem-

brava de poucas e sem nitidez apreciável. Tudo foi num galope para a des-

graça... Em começo, a primeira impressão simpática, os gemidos do violão,

os seus repinicados, seguidos dos requebros dos olhares do tocador, que

os exagerava e punha neles não sei que chama estranha, doce e, ao mesmo

tempo, quente. Impressionara-se muito com isso, tão preparada já estava

para os efeitos do instrumento. Depois, aquela oposição de todos, aquele

falar continuo nele, para dizer mal, tanto da parte do padrinho, como

da parte da mãe e de Dona Margarida. Essa insistência em denegri-lo fize-

ram que ela representasse, dentro de si mesma, Cassi, como um homem

excepcional, que causava inveja a todos, pelas suas qualidades de bravura,

pela sua habilidade no canto e na viola. Não acreditava no que diziam

dele... Pareceu-lhe, na primeira vez que o viu, tão modesto, tão reser-

vado de modas, tão delicado, que não podia ser o que diziam. Quando

conversou com ele, meses depois, pela primeira vez, no gradil de sua casa,

mais esse retrato se firmou; as suas conversas eram tão inocentes e hones-

tas, falando sempre em empregar-se e casar-se com ela; removendo as

objeções e dúvidas que ela punha quanto à viabilidade do casamento deles,

com segurança e franqueza; contrapondo, para mostrar a sua possibili-

dade, à cor dela, além da grande paixão que nutria, a sua pobreza, a opo-

sição dos pais, a sua falta de posição, de saber -- o que não permitia a

ele aspirar a grandes casamentos vistosos, com mulher mais bem-educada

do que ele, mais instruída...

O seu ideal era Clara, pobre, meiga, simples, modesta, boa dona-de-

casa, econômica que seria, para o pouco que ele poderia vir a ganhar...

De dia para dia, ele ganhava mais fortemente a confiança da rapari-

ga. Ela se convencia e sonhava a toda hora com aquela "casa branca da

serra", onde iria aninhar o seu amor por Cassi. Indagava, em todas as

entrevistas, dos passos que ele dava para obter emprego, colocação; e ele,

com blandícia, com afagos, dizia-lhe com açúcar nas palavras:

-- Sossega, filhinha querida! Roma não se fez num dia... É preciso

esperar... Falei ao doutor Brotero, que me deu uma recomendação para o

Senador Carvalhais. Procurei este e ele me disse que, para o cais do Porto,

não podia arranjar... Tinha pedido muito e muito; estava "queimado",

como se diz.

Ouvindo tudo isto, Clara sentia-se desfazer, ao calor, à meiguice,

ao entono amoroso daquela voz. Era mesmo um bom, um sincero, um

namorado, mais que isto, um noivo -- esse Cassi.

-- Por que você não me "pede" a papai? -- perguntou-lhe um dia.

Cassi, sem hesitação, com o mais convincente tom de franqueza, res-

pondeu:

-- Não posso ainda, meu bem. Seus pais... É verdade que seu padri-

nho não existe mais...

A estas palavras, Clara estremeceu e olhou-o medrosa; ele, porém,

não percebeu o movimento da rapariga, como ainda não tinha notado as

suspeitas que ela tinha, de quando em quando, da intervenção dele no assas-

sinato do padrinho. No começo, Clara quase ficara certa de que ele estava

metido no crime; mas, quando, daí a dias, conversou com ele, fosse a

emoção da primeira entrevista, fosse a ternura com que a cobria e se

expandia por ele todo, ela afastou a convicção e perdeu o terror que ele

começara a lhe inspirar. A sua débil inteligência, a sua falta de experiên-

cia e conhecimento da vida, aliado tudo isto à forte inclinação que tinha

e não sopitava pelo violeiro, agiram sobre a sua consciência, de forma a

inocentar, a seus olhos, o tocador de violão, no caso da morte misteriosa

do padrinho. Entretanto, de quando em quando, lá lhe vinha uma sus-

peita, mas ele era tão bom...

Cassi, sem hesitação, respondeu-lhe à pergunta, no mais persuasivo

tom de franqueza:

-- Não posso ainda, meu bem. Seus pais... É verdade que seu padri-

nho não existe mais; mas Dona Engrácia não me suporta. Além disso, essa

Dona Margarida também não me traga... Que estranho o que se passou

com ela e Timbó...

-- Você por que anda com ele, Cassi?

-- Que hei de fazer? Ele não me faz e não me fez mal; procura-me

e não posso correr com ele. É por isso.

-- Mas é só por isso que você não me pede? Por causa da implicân-

cia que têm com você? Por isso só, não!

-- Não é só por isso. É porque estou ainda desempregado. Se eu esti-

vesse empregado, desarmava todos; e -- fique você certa -- logo que me

empregue, peço-te em casamento.

Recordando-se disso, Clara, mais uma vez, contemplou o céu profu-

samente estrelado; mas, logo, deu com a mancha de alcatrão e ficou triste.

Rememorando conversas e fatos, ela punha todo o esforço em anali-

sar o sentimento, sem compreender o ato seu que permitiu Cassi penetrar

no seu quarto, alta noite, sob o pretexto de que precisava se abrigar da

chuva torrencial prestes a cair. Ela não sabia decompô-lo, não sabia com-

preendê-lo. Lembrando-se, parecia-lhe que, no momento, lhe dera não sei

que torpor de vontade, de ânimo, como que ela deixou de ser ela mesma,

para ser uma coisa, uma boneca nas mãos dele, Cerrou-se-lhe uma neblina

nos olhos, veio-lhe um esquecimento de tudo, agruparam-se-lhe as lembran-

ças e as recordações e toda ela se sentiu sair fora de si, ficar mais leve, ali-

geirada não sabia de quê; e, insensivelmente, sem brutalidade, nem violên-

cia de espécie alguma, ele a tomou para si, tomou a sua única riqueza, per-

dendo-a para toda a vida e vexando-a, dai em diante, perante todos, sem

esperança de reabilitação.

Pôs-se a chorar silenciosamente. No seio da noite, um apito de loco-

motiva ecoou como um gemido; as árvores como que estremeceram; por

sobre um capinzal próximo, um pirilampo emitia a sua luz de prata azu-

lada; por cima da casa, morcegos silenciosos esvoaçavam; ao longe, as

montanhas tinham aspectos sinistros, de gigantes negros que montavam sen-

tinela; tudo era silêncio, e, em vão, ela apurava o ouvido e reforçava o seu

poder de visão, para ver se daquele mistério todo saía qualquer resposta

sobre o seu destino -- ou se via o caminho para a sua salvação...

Olhou ainda o céu, recamado de estrelas, que não se cansavam de

brilhar. Procurou o Cruzeiro, rogou um instante a Deus que a perdoasse

e a salvasse. Andou com o olhar no céu, um pouco além; lá estava a inde-

lével mancha de carvão...

"Ele" não vinha; os galos começavam a cantar. Fechou a janela cho-

rando e chorando foi se deitar. Custou a conciliar o sono; e a visão amea-

çadora da descoberta, por parte dos seus, da sua falta, passou-lhe pelos

olhos e aterrou-a como um duende, um fantasma.

Em casa e fora, ainda ninguém suspeitava. Os sintomas de gravidez,

por ora, não se faziam sentir. É verdade que tinha náuseas, enjôos, sem

causa nem motivo; mas ela dissimulava-os tão bem, que sua mãe nada

percebia.

Dona Engrácia mesmo era de seu natural pouco sagaz e tinha grande

confiança na vigilância que exercia sobre a filha. Joaquim, nos dias úteis,

mal via a filha, pela manhã, ao sair, e à noite, quando voltava do serviço.

A morte desgraçada do seu compadre Marramaque o fizera triste,

verdadeiramente triste e acabrunhado. A sua amizade era velha, e ele devia

favores inolvidáveis ao pobre contínuo. Fora ele quem aperfeiçoara o pouco

que ele, Joaquim, sabia, para ser carteiro. Devia-lhe esse serviço espontâ-

neo. Mais de uma vez, arranjara-lhe recomendações para promoções, de

modo que o que era, devia de alguma sorte a Marramaque. As partidas

de solo, aos domingos, não se realizavam mais. Lafões tinha sido transfe-

rido para os mananciais. O sagaz minhoto farejava que aquele negócio de

Cassi desandaria em desgraça. Ele não a podia impedir, mas não a queria

assistir, tanto mais que se sentia arrependido de ter apresentado o modi-

nheiro em casa do carteiro. Enganou-o, o malandro! Fizera-o de boa fé...

O único que aparecia ainda, era Meneses. Estava, porém, amalucado,

monomaníaco. Fugia de todas as conversas e teimava em expor o seu sis-

tema de carro motor, sem rodas, absolutamente sem rodas. Uma grande

descoberta! -- arrematava ele.

-- A roda, meu caro Joaquim, é um atraso das nossas máquinas.

No seu acionamento, devido ao atrito dos eixos nos mancais e outros meios

de transmissão da força, perde-se muito do efeito útil desta, proveniente

das resistências passivas. Se nós, para nos movermos; se um cavalo, um

elefante e todos os animais empregassem rodas para se deslocarem de um

ponto para outro, a força que despenderiam seria muitas vezes maior do

que a de que efetivamente dispõem. Suprimo as rodas da minha "Andoti-

va" (é assim que o meu aparelho se chama) e imito o meio de locomover-

se dos animais terrestres. Tenho hesitado entre os reptis e os mamíferos;

mas vou tornar por modelo estes. Com juntas, jogos combinados de cadeias

de distensão e contração, como as nossas cadeiras de molas, obterei uma

máquina que, com o mesmo custo de força e combustível que uma locomo-

tiva comum, produzirá o dobro do rendimento útil que esta produz.

Joaquim, ouvindo tudo isto, bocejava; Meneses, inteiramente

engolfado no seu sonho mecânico, não percebia que estava enfadando

o amigo. Falava, falava sobre a sua sonhada -- "Andotiva" -- e bebia

parati.

Às vezes, jantava com o carteiro e família; mas, na mesa, pouco se

dirigia à Clara. Tinha medo que, conversando, traísse o segredo que existia

entre ambos.

O velho dentista, mesmo, havia deixado de ver Cassi, e este, por sua

vez, evitava-o, temendo que Meneses percebesse os seus propósitos de fuga

e contasse a todos, levantando suspeitas em Clara.

Outras vezes, o velho dentista ia procurar Leonardo Flores, para con-

versar e mesmo jantar com ele. Flores não passava verdadeiramente neces-

sidade. Com a sua aposentadoria e o auxilio que os filhos lhe prestavam,

sempre tinha o que comer sem se queixar da fome.

A sua casa, graças à dedicação da mulher, vivia em ordem. Ele não

se intrometia em nada da economia do lar. Os seus próprios vencimentos

de aposentado, ele ia recebê-los, ou ela, e os entregava intactos. Roupa,

jornais, fumo, parati -- tudo ela comprava e lhe dava. Em começo, a boa

da Dona Castorina quis ver se suprimia a cachaça; mas viu que era pior.

Ele caía num abatimento, numa apatia de coisa morta. Resolveu fazer

mais este sacrifício ao seu triste casamento: dar cachaça ao marido, Quando

ele queria sair, ela lhe dava níqueis para a sua predileta bebida.

As visitas de Meneses eram particularmente agradáveis à mulher

de Flores, porque não só distraía o marido, como lhe tirava a vontade

de sair.

Flores tinha épocas em que não se movia de casa, senão a muito

custo, para ir ao Tesouro receber a sua pensão; mas tinha outra em que

se lhe tomava inteiramente o delírio ambulatório. Dona Castorina, embora

compreendendo que o marido não podia ficar sempre retido em casa, pro-

curava evitar que ele saísse, devido aos desatinos que praticava. Lá vinha,

porém, um dia que...

Quando Meneses ia, aos domingos, procurá-lo, Flores recebia-o com

um grandiloqüente palavreado heráldico e fidalgo; mas ele dizia com grande

melancolia, com uma mágoa que bem sabia não ter remédio:

-- Só tu me procuras, Meneses! Os outros me abandonaram... Ah!

A Poesia! Ela me tem dado bons momentos, mas me fez ir longe demais

no meu grande serviço...

Punham-se a bebericar e, quando já estavam um tanto "esquenta-

dos", cada um dava para a sua mania. Meneses explicava a mecânica sutil

da sua "Andotiva"; e Leonardo Flores recitava o seu último soneto, que,

embora desconexo, ainda tinha música, uma imponderável nostalgia de coi-

sas entrevistas em sonho, uma obsessão de perfume, que constituíam os

característicos de sua poética.

De repente, Meneses punha-se a roncar no sofá, e Leonardo, saindo

do seu mundo sonoro de versos e rimas, punha-se de pé e, contemplando

o camarada, com os braços cruzados, limitava-se a dizer:

-- Imbecil! Dorme imbecil! Filisteu! Burguês!

E voltava a fazer versos, a que era como que forçado até à hora do

jantar. Por essa ocasião, despertava Meneses aos berros e debaixo de des-

composturas e injúrias poéticas.

O jantar, conforme o hábito das nossas pequenas famílias, nos

domingos, era posto à mesa, mais cedo, constituindo o que se chama o

"ajantarado". Assim se usava na casa de Flores; mas, em geral, era ser-

vido tarde, quase à hora do jantar habitual. A refeição não corria alegre.

Meneses tinha a sua mania; Flores a dele; e ambos, durante ela, entrega-

vam-se às suas extravagâncias, falando de coisas que os outros não enten-

diam. Meneses era calmo; mas o seu amigo comia fazendo esgares, sol-

tando rugidos, cofiando a barba, ainda negra, que terminava num cavaig-

nac pontiagudo.

Dona Castorina, a mulher de Flores, de vez em vez, repreendia-o

como a um filho menor:

-- Come com modos, Flores! Você parece uma criança.

Raramente acontecia estar presente um dos filhos. Andavam pelo

football e a mãe lhes reservava o jantar. Se acontecia o contrário, o rebento

do poeta olhava o pai sem nenhuma expressão, sem ânimo de aconselhá-

lo e sem insensibilidade para rir. A loucura de Flores era curiosa. Não só

ela se manifestava com intermitências de grandes intervalos, como também

as havia num curto espaço de um dia. O álcool tinha contribuído para ela;

mas, sem ele, a sua alienação mental ter-se-ia manifestado, cedo ou tarde.

Todos os que o conheceram moço, sabiam-no de sobra possuidor de diá-

tese da loucura. Os seus tics, os seus caprichos, a sua exaltação e outros

sintomas confusamente percebidos levavam os seus íntimos a temerem sem-

pre pela sua integridade mental. A tudo isso, ele juntava, ainda por cima,

álcoois fortes, que sempre tomou; whisky, genebra, gim, rum, parati

-- para se compreender a natureza da insânia de Flores.

Certa vez, após o jantar, tomando café no jardinzinho de sua casa,

que ele mesmo cuidava com rara dedicação, de surpreender no seu estado

-- Leonardo olhou o céu e gritou para Meneses, descansando a xícara

sobre uma cadeira ao lado:

-- Meneses! Vê só tu como esta tarde está linda! Não é só o ouro e

a púrpura do crepúsculo que vêm; não é só o azul-ferrete dos morros que,

com o aproximar-se a noite, se vai enegrecendo aos poucos... Há mais,

caro Meneses; há verde no céu, um verde imaterial que não é o do mar,

que não é o das árvores, que não é o da esmeralda, que não é o dos olhos

de Minerva -- é um verde celestial, diferente de todos aqueles que nós

habitualmente vemos... Vamos sair, vamos gozar a natureza!

-- Deixa-te disso, Flores. Daqui mesmo, nós vemos...

-- Idiota! Não és um artista... Se não me acompanhas, saio só!...

Dona Castorina interveio naturalmente:

-- Para que vais sair, Leonardo? Estás tão bem aqui com o "Seu"

Meneses... Precisas de repouso, descanso...

-- Mulher! Sabes quem eu sou? -- fez Flores, com o seu modo habi-

tual de cruzar os braços e enterrar o queixo no peito, quando falava com

solenidade.

-- Sei muito bem. És Leonardo Flores, meu marido -- respondeu-

lhe a mulher, sorrindo.

-- Não sou só isso. Sou mais! -- insistiu Flores, carrancudo.

-- O que és, então? -- perguntou-lhe Dona Castorina.

-- Sou um poeta!

Dizendo isto, entrou pela sala adentro e encaminhou-se para o quarto

e dormir.

-- Onde vais? -- indagou-lhe a mulher.

-- Vou me vestir; quero ver este crepúsculo de pedraria, de metais

caros, de sonhos e de quimeras. Sou um poeta, mulher!

Dona Castorina já sabia que, quando lhe dava essa fúria de sair, era

pior contrariá-lo. Nada disse ao marido e foi pedir a Meneses que o acom-

panhasse. O velho dentista não se sentia bem; o seu desejo era descansar;

mas, à vista do pedido de Dona Castorina, não teve outro remédio senão

acompanhar o camarada. Andaram a pé por toda a parte, bebendo sempre

onde encontravam lugar propício; Meneses, arrastando o passo; e Flores,

dilatando as narinas, fazendo horríveis contrações com o rosto, alisando

o cavaignac e dizendo:

-- Que beleza! Que beleza! Quero respirar, cheirar, absorver todo o

perfume desse divino crepúsculo... Não fora a natureza, os céus, os pássa-

ros, as águas múrmuras, como poderíamos viver?

Depois de uma pausa, acrescentou desolado:

-- A vida é tão banal, tão chata... Nós somos também natureza;

mas do que nos vale isto? Há os burgueses e os regulamentos que nos

abafam...

Já tinha anoitecido de todo. Leonardo Flores não dava mostras de

querer voltar para casa; Meneses arrastava o passo a muito custo. Iam atra-

vessando um trecho deserto de rua, quando o velho dentista disse para o

amigo:

-- Leonardo, estou com as pernas que não posso. Vamos descansar

um pouco.

-- Onde?

-- Sentados na relva, um pouco longe da estrada, ali, atrás daquela

moita... Estou que não posso, meu caro.

Os dois abandonaram o caminho público e procuraram a tal moita.

Meneses, com muita dificuldade, sentou-se; mas Leonardo foi logo se dei-

tando. Tinham bebido muito, e a embriaguez lhes chegava. Leonardo ainda

pôde dizer, olhando as estrelas que começavam a brilhar:

-- Como é belo o céu! Lá não haverá por certo ministros, nem con-

gresso, nem presidentes... Que bom será!

O dentista não se demorou muito tempo sentado; deitou-se logo; e

Leonardo, mal dissera aquelas palavras, ferrou no sono. Dormiram afinal,

na relva, com os olhos voltados para o céu estrelado...

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