XX

 

Às cinco horas da manhã estava de pé, vestindo-me para ir buscar Lúcia.

 

Na véspera ao despedir-se de mim ela me dissera:

 

—Amanhã mudo-me. Venha-me buscar ao romper do dia. Desejo... careco de entrar apoiada ao seu braço na casa onde vou viver a minha nova existência.

 

Achei-a pronta e esperando-me; os vestígios da comoção violenta que haviam produzido as amargas recordações, desapareciam sob a plácida serenidade que reslumbrava de sua alma e dava à sua beleza uma suave limpidez.

 

Partimos a pé, com a fresca da manhã; fizemos um dos mais belos passeios de que se pode gozar no Rio de Janeiro. A casa ainda estava fechada: o preto que a guardava veio abrir-nos o portão; corremos o jardim colhendo flores, enquanto se arejavam as salas para receber-nos. Os cômodos eram suficientes para duas pessoas; Lúcia devia morar com sua irmã, que ia sair do colégio.

Apesar da revelação da véspera, continuava a dar a Lúcia esse doce nome, que estava tão habituado a pronunciar. Uma vez porém ela olhou-me com uma expressão de mágoa:

 

—Paulo, disse-me com brandura, chama-me Maria!

 

Desde então quando eu pronunciava esse nome, sua alma tinha enlevos, e ela acompanhava o movimento de meus lábios estremecendo de gozo, como se todo o seu corpo sentisse uma doce carícia.

 

—Quando me chamas assim, Paulo, murmurava ela, parece-me que tu me embebes e me afagas num só e imenso beijo que me envolve toda

 

Também a partir daquele momento ela sentia um prazer indizível em articular o meu nome, que seus lábios às vezes desfolhavam num sorriso, e outras debulhavam lentamente, letra por letra, como um favo de mel, que estilassem gota a gota. Nunca Lúcia (quero chamá-la assim ainda, porque foi esse o primeiro nome que amei, e que ainda amo) nunca Lúcia deixara o tratamento cerimonioso que me dava, mesmo no mais intimo das nossas relações. Nesse dia porém, de repente, sem vexame e sem o menor esforço, começou a atuar-me.

 

Almoçamos, como os pastores de Teócrito, frutas, pão e leite cru: ainda não havia preparos de cozinha, nem fogo. Por volta de onze horas do dia chegou a criada, com uma menina de doze anos, linda e mimosa como um anjinho de Rafael. Era o retrato de Lúcia, com a única diferença de ter uns longes de louro cinzento nos cabelos anelados. Ana já conhecia a irmã e a amava ignorando os laços de sangue que existiam entre ambas; mas o instinto de seu coração fizera adivinhar à pobre órfã um amor quase materno na afeição ardente e apaixonada que lhe votava Lúcia.

 

As seis horas da tarde deixei as duas irmãs já definitivamente instaladas no seu modesto retiro.

 

Continuei a visitá-las todos os dias, mas ao cair do dia. Fora Lúcia quem regulara estas visitas.

 

—Tens agora o teu escritório, e eu preciso trabalhar para viver; além disso quero ensinar a Ana o pouco que sei. Não podemos estar todo o dia juntos. Vem ver-me à tarde, à hora da ave-maria. Passaremos as noites no jardim, ou passeando. No domingo porém jantarás sempre comigo; se não vieres, sei que não terei fome.

 

Quando a noite estava bonita, íamos os três até a Caixa-d'água, ou até os Dois Irmãos, gozar da frescura das árvores e da água corrente. Lúcia reclinava-se ao meu braço, e eu dava a outra mão livre a Ana. Assim caminhávamos, quase sempre mudos e silenciosos, contemplando a beleza das cenas que se desenrolavam aos nossos olhos, ou absorvidos em nossos pensamentos íntimos. Quando Ana soltava a minha mão para correr diante de nós com a inquieta travessura de sua idade, Lúcia erguia-se na ponta dos pés, e suspirava-me ao ouvido alguma palavra terna, alguma doce confidência de sua alma.

 

—Sou feliz! dizia-me uma noite, muito feliz! Deus se compadeceu de mim dando-me essa força de vontade que me faz separar de minha vida o tempo que não vivi. Ele me aparece como um sonho, como uma nuvem sombria que se vai sumindo.

 

Outras noites nos sentávamos sobre as pedras do caminho, e eu, respondendo às perguntas de Ana, falava-lhe da natureza, das flores, das árvores, das estrelas, com o entusiasmo e a poesia que as belas criações de Deus despertam em nossa alma.

 

—Fala ainda! balbuciava Lúcia ao meu ouvido, quando me calava. Fala! É tão bom ouvir-te.

 

Era unicamente aos domingos que eu tinha um momento de estar só com Lúcia. Então ela tomava-me a cabeça que escondia no seio com um anelo de ternura; fechava-me os olhos, e eu sentia os seus lábios roçarem o meu rosto, tão de leve como as tranças de seus cabelos; por fim olhava-me, ora sorrindo, ora séria e absorvida nos seus pensamentos.

 

—Isto não pode durar muito! É impossível! murmurava como se respondesse a uma reflexão íntima.

 

—Por que razão, Maria?

 

—Por quê? Porque não se goza da bem-aventurança na terra.

 

A exceção desses raros instantes, sua irmã não nos deixava, e em presença dela Lúcia não me permitia uma carícia, por mais inocente que fosse. O dia se passava ouvindo Ana tocar, vendo-a brincar, e brincando com ela. Éramos três crianças; e delas talvez a mais moça fosse a que mais juízo tivesse naqueles alegres folguedos.

 

Uma tarde, havia poucos instantes que eu tinha chegado, quando Lúcia tomou-me pela mão, e levou-me ao seu toucador.

 

—Não entendo de negócios, me disse abrindo uma gaveta; e não sei pedir senão a ti. Toma; é a escritura de compra desta casa, que pertence a Ana: há de ser preciso pagar décima. Tira do dinheiro destes vales; do resto comprarás apólices em nome dela.

 

Examinei os papéis que Lúcia me dera; representavam um valor de mais de cinqüenta contos de réis; dez no prédio, o resto em dinheiro.

 

—E tu com que ficas? Longe de mim censurar a tua generosidade, minha boa Maria; mas não é justo que te sujeite, a passar privações.

 

—Eu também tenho a minha fortuna! disse-me sorrindo. Mostrou-me uma carteira, que eu lhe tinha dado.

 

—Queres ver? Olha! Foste tu que ma deste, Paulo! Guardei-a para o tempo em que fosse digna dela. Quando eu te agradecia então, nem suspeitavas que te agradecia pelo futuro, por este tempo em que não me peja, ao contrário tenho orgulho, de viver por ti e para ti.

 

A carteira continha pequenos maços de notas, com o algarismo e uma data escrita no rótulo.

 

—Não sei o que quer dizer isto!

 

—Não te lembras, quando ias à gavetinha do meu toucador? Aí está o que me davas, dia por dia. Compreendes agora ?

 

—Mas isto é uma bagatela; não é uma fortuna!

 

—Chega-me; demais, eu trabalho, e quando alguma vez precisar, não terei vergonha de pedir-te. Verás.

 

—O que me parece de eqüidade é dividires esta soma com tua irmã, e guardares o resto. Ela pode casar, seguir seu marido. . . Quem sabe o que sucederá?

 

—Tudo quanto quiseres, Paulo, menos isso. Não tenho outra vontade que não seja a tua, mas estou certa que me hás de compreender e consentir. O que me custou tantas angústias, e tantas humilhações, não me pode pertencer, não. Só uma coisa justifica essa fortuna, é o motivo santo por que me vendi para adquiri-la. Ana pode gozar dela sem remorso e sem vexame, porque não saberá donde lhe vem; a mim amargaria o pão amassado com tanto fel! Não achas que eu tenho razão?

 

—Maria, meu anjo, não fales nisso mais nunca! Faze o que quiseres; eu aprovo tudo.

 

—Deixa-me acabar. Agora só vivo, e só quero viver do que me deste; porque a minha coragem, o meu trabalho, tudo é inspiração tua. O dinheiro pois que ganhar com minhas mãos, ainda me vem de ti! Não possuo hoje um objeto, a coisa mais insignificante, que tenha outra origem. É talvez uma superstição; mas quero conservá-la.

 

Ao despedir-me nessa noite Lúcia, como para dar-me uma prova da sua sinceridade, disse-me:

 

—Paulo, traze-me amanhã quando vieres uma caixinha sortida de linhas e agulhas.

 

Era uma ninharia; mas era a primeira coisa de valor pecuniário que ela me pedia.

 

Essa vida calma e tranqüila, remanso de uma existência tão agitada, durava cerca de um mês. Nada perturbava a serenidade de Lúcia. Parecia realmente que sua alma cândida, muito tempo adormecida na crisálida, acordara por fim, e continuara a mocidade interrompida por um longo e profundo letargo. Lúcia tinha então 19 anos; mas o seu coração puro e virgem tinha apenas a idade do botão de rosa na manhã do dia em que deve florescer, ou a idade do casulo quando a ninfa vai fendê-lo, desfraldando as tenras asas.

 

Como as aves de arribação, que tornando ao ninho abandonado, trazem ainda nas asas o aroma das árvores exóticas em que pousaram nas remotas regiões, Lúcia conservava do mundo a elegância e a distinção que se tinham por assim dizer impresso e gravado na sua pessoa. Fora disto, ninguém diria que essa maca vivera algum tempo numa sociedade livre. As suas idéias tinham a ingenuidade dos quinze anos; e às vezes ela me parecia mais infantil, mais inocente do que Ana com toda a sua pureza e ignorância.

 

Talvez a senhora julgue isso impossível; mas é a verdade. Se não fosse a originalidade dessa fase de uma vida que em quatro meses passara aos meus olhos por tão profunda revolução, não teria nada que lhe contar, e não valeria a pena revolver o rescaldo de minhas reminiscências.

 

Quis pintar-lhe o que vi: a incubação de uma alma violentamente comprimida por uma terrível catástrofe; a vegetação de um corpo vivendo apenas pela força da matéria e do instinto; a revelação súbita da sensibilidade embotada pelos choques violentos que partiram o estame de uma infância feliz; a floração tardia do coração confrangido pelo escárnio e pelo desprezo; finalmente a energia e o vigor do espírito que surgia, soldando por misteriosa coesão os elos partidos da vida moral e continuando no futuro a adolescência truncada.

 

Quantas vezes absorto na admiração que me causava esse fenômeno, não acompanhava com um olhar pasmo e surpreso os movimentos de Lúcia brincando com a irmã, e criança como ela na expansão da beleza que eu vira radiar no mundo com todas as graças e encantos da mulher! Quantas vezes desesperado pela naturalidade do seu gesto e pela ingênua simplicidade de suas palavras, que excluíam a mais leve suspeita de afetação, não pensava comigo: «Esta mulher ou é um demônio de malícia, ou um anjo que passou pelo mundo sem roçar as suas asas brancas!»

 

Se ela surpreendia o meu olhar perscrutador, sorria, e caminhando para mim, movia lentamente a cabeça:

 

—Não compreendes, Paulo? Também eu não compreendo. Quem me fez menina assim ?. . . Devo-te parecer ridícula. Eu, que desejo ter para Ana a gravidade de mãe, torno" -me mais travessa do que ela, Mas que queres? É preciso que eu brinque... como as cigarras hão de cantar daqui a um ano quando acordarem!

 

O jardim da casa de Lúcia era dividido, por um gradil de madeira, da chácara vizinha. Isso a desgostara desde o primeiro dia; e era sua intenção fazer passar um muro que ocultasse às vistas estranhas o seu modesto retiro; um sentimento de delicadeza retardara só a realização desse projeto. As moças daquela chácara tinham pouco depois de sua mudança procurado entreter relações de vizinhança; e quase todas as tardes vinham conversar com Ana.

 

Lúcia quis logo impedir essa amizade, mas não teve animo de privar sua irmã de tão inocente distração; contentou-se de sua parte em se esquivar aos avanços das vizinhas, retribuindo com polidez as suas saudações. As instâncias porém foram tão repetidas e tão amáveis, que, apesar de sua modesta reserva, Lúcia não pôde deixar algumas vezes de responder às palavras que lhe dirigiam. Demais, elas tinham achado o caminho de seu coração; com uma liberdade censurável começaram a pedir-lhe pequenos favores: hoje era a muda de uma flor, amanhã o molde de um vestido, depois o desenho de um bordado. Lúcia, que não aceitava coisa alguma do mundo, não sabia recusar um serviço.

 

Uma tarde ela estava conversando comigo, quando Ana veio pedir-lhe em nome da mais moça das vizinhas, sua predileta, que lhe fosse ensinar um ponto de crochê.

 

—Tu não sabes, Ana?

 

—Mas não sei como tu, maninha.

 

Lúcia aproximou-se do gradil; tomou das mãos da moça o fio e a agulha e teceu com agilidade e destreza uma carreira de malhas, acompanhando o movimento rápido de seus dedos afilados com as explicações precisas. Como isto não bastasse tirou do braço uma pulseira de contas tecida por ela e deu-a para servir de modelo.

 

Nessa ocasião adiantavam-se por entre as árvores as outras mocas acompanhadas de um homem, cujo rosto não pude ver logo por entre a folhagem. Lúcia, atenta aos esforços que fazia sua discípula para acertar, não reparou nessa circunstância.

 

O grupo parou a alguma distancia; eu reconheci o Couto no momento em que se adiantava com um movimento de espanto. Corri para fazer Lúcia retirar-se antes de vê-lo; mas estava distante, e quando cheguei, já a mais velha das moças se tinha aproximado, e arrancando a pulseira das mãos de sua irmã, atirou-a por cima da grade:

 

—Não toques em coisa que pertença a esta mulher! É uma perdida!

 

Lúcia tinha erguido a cabeça no primeiro instante de surpresa; nada porém perturbava a serenidade e quietude de seu rosto iluminado por uma doce altivez; circulou com um olhar límpido os atores desta cena, como se lhes pedisse a explicação do desagradável incidente; e tomando Ana pela mão e passando o braço pelo meu, afastou-se com uma dignidade meiga e nobre.

 

Contudo pensei que esse sossego era aparente, e que sua alma devia ter sido traspassada por aquele ultraje. Ela respondeu à interrogação muda do meu olhar murmurando-me ao ouvido para que sua irmã não a ouvisse:

 

—Elas não sabem, como tu, que eu tenho outra virgindade, a virgindade do coração! Perdoa-lhes, Paulo.

 

E o sorriso, que banhou estas palavras como de uma luz divina, parecia abrir o céu aos arroubos de sua alma.

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