X

 

Recolhendo-me no dia seguinte, encontrei Sá que subia as escadas do hotel.

 

—Que fim levaste anteontem, que ninguém te viu mais? —Voltei para casa.

 

—Com Lúcia, já se sabe! Ainda estás muito atrasado, Paulo. Tens o amor no meio de uma claridade esplêndida, em volta de uma mesa bem servida, sobre macios tapetes; e preferes o amor bucólico ao relento e sobre a relva!. . .

 

—Sou extremamente egoísta nesta matéria, meu amigo; só partilho o amor com a mulher que o sente.

 

—São gostos; mas ficaste sabendo o que é Lúcia, e entretanto ela estava de mau humor. Num dos seus bons dias, não tem que invejar às cortesãs gregas ou as messalinas romanas.

 

—Ela já contou-me tudo isso, Sá, respondi com impaciência.

 

—Pudera não! São os seus brasões de glória; e por isso previno-te. É uma mulher que só pode ser apreciada de copo na mão e charuto na boca, depois de ter no estômago dois litros de champanha pelo menos. Nessas ocasiões torna-se sublime! Fora disso é excêntrica, estonteada e insuportável. Ninguém a compreende.

 

—Eu compreendo-a perfeitamente. É uma moça gasta para os prazeres; ainda jovem no corpo, mas velha n'alma. Quando se atira a esses excessos de depravação, é estimulada pela esperança vã de um gozo que lhe foge; atordoa-se, embriaga-se e esquece um momento; depois vem a reação, o nojo das torpezas em que rojou, a irritabilidade de desejos que a devoram e que não pode satisfazer; nestas ocasiões tem suas veleidades de arrependimento; a consciência solta ainda um grito fraco; a cortesã revolta-se contra si mesma. Isso passa no dia seguinte. Eis o que é Lúcia; daqui a algum tempo o hábito fará dela o mesmo que tem feito das outras: envelhecerá o corpo, como já envelheceu a alma.

 

Sá me ouviu rindo à socapa e com malícia:

 

—Pois já que a compreendeste tão bem, explica-me isto.

 

E apresentou-me uma carta aberta, que ao tirar do sobrescrito deixou cair algumas notas do banco. Era de Lúcia, e dizia:

 

«O senhor enganou-se. Sou eu que lhe devo, e tanto, que não lho poderei pagar nunca.:,

 

Senti lendo esta carta um bem-estar inexprimível.

 

—Que dizes? perguntou Sá. - Digo que ela fez o que devia. -Talvez por conselho teu?

 

—Afirmo-te que não sabia disto; e que soubesse, bem se importa Lúcia com os meus conselhos. Seguiu o seu próprio impulso; arrependeu-se do que fez; e te agradece a lição. Nada mais natural.

 

Sá olhou-me um instante:

 

—Somos ambos moços, Paulo; porém sou mais velho três anos de idade, e oito anos de Rio de Janeiro. A corte é um país onde se envelhece depressa; por isso não te admires se falo como um homem de cinqüenta anos. Queres te divertir: é justo, é mesmo necessário; porém não tomes Lúcia ao sério.

 

—Não te entendo!

 

—Sabes que terrível coisa é uma cortesã, quando lhe vem o capricho de apaixonar-se por um homem! Agarra-se a ele como os vermes, que roem o corpo dos pássaros, e não os deixam nem mesmo depois de mortos. Como não tem amor, e não pode ter, como a sua inclinação é apenas uma paixão de cabeça e uma excitação dos sentidos, orgulho de anjo decaído mesclado de sensualidade brutal, não se importa de humilhar seu amante. Ao contrário sente um prazer novo, obrigando-o a sacrificar-lhe a honra, a dignidade, o sossego, bens que ela não possui. São seus triunfos. Fá-lo instrumento da vingança ridícula, que todas essas mulheres prosseguem surdamente contra a boa sociedade, porque não as aplaude. O seu ciúme é fome apenas; se o amante tem alguma afeição honesta, ela torna-se confidente de seus amores, encoraja-o, serve-o mesmo, para ter o gosto de mais tarde disputar a presa. Então não há excesso que não cometa. Se for necessário aviltar o homem, ela o fará, à semelhança desses torpes glutões que cospem no prato para que os outros não se animem a tocá-lo.

 

—Mas a que vem este sermão, Sá? As minhas relações com Lúcia não têm nada que se pareça com o teu romance; tu me conheces bem para saber que não há mulher no mundo capaz de me atar à cauda de seu vestido, ainda quando fosse para elevar-me, quanto mais para arrastar-me na lama.

 

—Quando essa mulher é Lúcia, o próprio José devia temer, Paulo.

 

—É perigosa assim? perguntei zombando.

 

—A mulher de Putifar foi uma pobre moça, devorada pela concupiscência, que se atirava cega e alucinada nos braços do homem, desejado. Era natural que a virtude chocada bruscamente repelisse o vício, como um corpo elástico repele outro. Essa mulher não conhecia a arte da tentação. Se ardendo em febre sensual, quando estendia a perna nua ou descobria o seio a José, tivesse a força de olhá-lo como ao cão importuno que gira em torno do festim a quem o conviva repele com o pé, não se passaria muito tempo sem que o animal exasperado se lançasse sobre o osso, que o tentava, para devorá-lo, embora soubesse que lhe atravessaria a garganta.

 

—Mas eu não sou José I, respondi sorrindo; e prefiro a carne que me dão, ao osso, que me recusam.

 

—Por isso mesmo, bebeste o primeiro trago do vinho provaste uma vez do fruto proibido. Já conheces o amor dessa mulher: é um gozo tão agudo e incisivo que não sabes se é dor ou delícia; não sabes se te revolves entre gelo ou no meio das chamas. Parece que dos seus lábios borbulham lavas em bebidas em mel; que o ligeiro buço que lhe cobre a pele acetinada se eriça, como espinhos de rosa através das pétalas macias; que o seu dente de pérola te dilacera as carnes deixando bálsamo nas feridas. Parece enfim que essa mulher te sufoca nos seus braços, te devora e absorve para cuspir-te imediatamente e com asco nos beijos que atira-te à face!

 

—É verdade! disse eu lembrando-me, mas já a senti uma vez sem esse sabor agro e corrosivo.

 

—Porque teu paladar se vai habituando. Só conheci uma criatura assim e não era uma cortesã... Mas não se trata disto, atalhou Sá como repelindo uma recordação importuna. Quando supuseres que o tédio te invade, procurarás debalde o prazer; a mulher a mais provocante, esteja ela possessa de vinho e de amor, te parecerá morta. Eis o perigo: terás a força de resistir?

 

—Tu não resististe ?

 

—Com esforço; e entretanto quando a conheci, há um ano, já tinha feito todas as minhas provas; não creio que possas dizer o mesmo.

 

—Mas, se Lúcia é essa mulher esquisita, insuportável e caprichosa, ela mesma se incumbirá de curar-me.

 

—E se eu te disse que é essa versatilidade e inconstância de humor que a torna mais excitante! Acrescenta que Lúcia tem vontade de apaixonar-se por ti.

 

—Oh! essa é galante! Como fizeste semelhante descoberta ?

 

—Esta carta! O que é que Lúcia me pode dever daquela ceia, senão o teu conhecimento?

 

—Eu já a conhecia.

 

—De vista.

 

—Na frase da escritura, Sá.

 

—Ah!

 

—Estive em sua casa, quinta-feira.

 

—Bem: cumpri o meu dever de amigo; cumpre o teu de homem sensato. Adeus.

 

Voltei de tarde à casa de Lúcia; encontrei na sala uma das nossas companheiras de ceia. Lúcia vendo-me entrar, ergueu-se bruscamente.

 

—Desculpa, Laura, amanhã passarei por tua casa, e então conversaremos; agora não posso.

 

—Eu te deixo, mas acredita que não esquecerei nunca o favor que me fizeste.

 

—Não vale a pena. Adeus.

 

—Hei de lembrar-me sempre que sem ti, não teria amanhã onde dormir. É pequeno serviço?

 

—Não vês que me estás aborrecendo, Laura! disse Lúcia batendo o pé com impaciência.

 

—Está bem, não quero que te arrependas do benefício.

 

—Certamente me farás arrepender Sabes que eu não gosto que me contrariem. Adeus.

 

Laura fitou nela um olhar surpreso, no qual passou rapidamente a sombra de um ressentimento; mas acabou rindo-se, e saiu depois de dizer estas palavras:

 

—Tu me expulsas de tua casa? Não tenho o direito de me ofender; acabas de pagar o aluguel da minha.

 

A porta fechada por Lúcia bateu com tanta força que as vidraças das janelas estremeceram.

 

Tinha assistido de parte a esse pequeno e vivo diálogo, e compreendera tudo. A alusão que Lúcia fizera na noite da ceia realizava-se; Laura recorrera a ela numa dificuldade, e acabava de receber o benefício da mão que insultara. Inda mais, sem delicadeza para compreender o motivo da contrariedade de Lúcia que desejava ocultar de mim a sua generosidade, saía maculando com uma ironia grosseira a gratidão que exprimia.

 

O coração de uma me apareceu vil e torpe, quanto a alma da outra se mostrava nobre, elevada e rica de sensibilidade.

 

Lúcia deu algumas voltas pela sala, enquanto dominava a sua agitação, e caminhou para mim risonha, meiga, e ainda resplandecente das cores vivas que uma cólera passageira abrira em suas faces, como as tempestades rápidas, que atravessam a atmosfera, deixando a natureza mais brilhante e viçosa.

 

—Agora é meu até?. . . e a última palavra desfez-se num sorriso celeste. Até amanhã! E meu só.

 

Inclinou a fronte, que eu beijei.

 

Por que estavas há pouco tão zangada?

 

—Já não me lembro! respondeu com faceirice, pousando a unha rosada no lugar que os meus lábios tinham tocado. Apagou tudo! Estas horas que acabam de passar, não contam na minha vida Dormi e sonhei. Foi o senhor que me acordou; e eu acordei rindo-me. Não viu?

 

—Quiseste ocultar-me; mas entendi tudo. Acabavas de fazer um benefício à mulher que te ofendeu.

 

—Ela não teve culpa! Foi um despeito porque não lhe deram a preferência: eu faria o mesmo. Demais, não era justo o que ela disse!

 

—Em todo o caso é preciso muita baixeza para pedir-se um favor à pessoa a quem se dirigiu um insulto.

 

—Tinha pedido antes; e nem foi o que o senhor pensa

 

—Ah! Veio exigir o cumprimento da promessa feita.

 

—Não foi assim, não senhor. Não exigiu coisa alguma.

 

—E que fazia ela aqui quando eu cheguei?

 

—Estava me aborrecendo.

 

—Estava te agradecendo.

 

—É o mesmo.

 

—E por que te agradecia? Porque lhe tinhas dado c que veio pedir; o dinheiro para pagar o aluguel da casa.

 

—Que teimoso! Se estou lhe dizendo que ela não me veio pedir nada.

 

—Percebo; tu lhe ofereceste espontaneamente, e ela aceitou, porque vindo aqui não tinha outro fim.

 

—Meu Deus! disse com um gracioso enfado, quando eu estou junto dele, não me lembro de outra coisa; e ele esquece-se de mim para ocupar-se com Laura! Quer saber tudo? pois eu lhe digo. Fui eu quem lhe mandou ontem esse dinheiro, uma ninharia; e ela veio aqui aborrecer-me e contar as suas desgraças. Está contente ?

 

—Não; fizeste uma esmola, é generoso; quiseste ocultá-la é modesto; mas esqueceste que eu devia ter a minha parte nessa boa ação; e não te perdôo.

 

—Assim nunca remiria os meus pecados! E o que eu fiz, não é tal uma boa ação; quando chegar a minha vez de precisar, ela me dará.

 

—Ainda!.. . Deixarás de pedir-me a mim para pedir a ela?

 

— Disse-o sem sentir! Não precisarei de nada; de nada senão que me venha ver! Isso, fique certo que lhe pedirei todos os dias.

 

Tomou-me a cabeça. e reclinando-a sobre o ombro, cobriu-me de carícias.

 

—Hão de lhe ter dito já que sou muito avarenta. Não lhe enganaram, não! Sou; gosto de esconder assim o meu tesouro; de fazer tinir docemente as minhas moedas; de contá-las uma a uma até perder a soma; de embriagar-me como agora na contemplação de meu ouro, e estremecer só com a idéia de perdê-lo!

 

Cada uma dessas palavras caía através dos beijos amiudados que me sufocavam.

 

— Dizem que a avareza é um vicio; mas desse não peço perdão a Deus, que me deu o meu tesouro, mesmo para que o escondesse do mundo, e não expusesse a maus olhados. Portanto fique sabendo, não há de vir à minha casa todos os dias como pensa!

 

Quis levantar-me despeitado. Ela obrigou-me a sentar; e saltando ligeira sobre os meus joelhos, desfolhou no meu rosto uma risada fresca e argentina.

 

—Não, senhor; não ha de vir todos os dias: Ah: supunha ?. . .

 

—Tinha-me enganado; não será a última vez.

 

—Já está me querendo mal; pois tenha paciência. Só há de entrar aqui duas vezes por semana: na segunda e na quinta-feira.

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