IX

 

Acordei por volta de duas horas, e fui escrever. Depois da noite que passara talvez suponha que fiz versos. Pois engana-se: fiz contas.

 

Revi o meu livro de assentos, dando balanço à minha fortuna, que então orçava por uma quinzena de contos. Era bem pobre; mas estava independente, formado, no ardor da mocidade e sem encargos de família. Já tinha a intenção de estabelecer-me aqui; e antes de começar a vida árida e o trabalho sério do homem que visa ao futuro, queria dar um último e esplêndido banquete às extravagâncias da juventude.

 

Quem melhor do que Lúcia me ajudaria a consumir as migalhas que me pesavam na carteira, e me embelezaria um ou dois meses da vida que eu queria viver por despedida? Separei o necessário para a minha subsistência durante dois anos; e com a fé robusta que se tem aos vinte anos, rico de esperanças, destinei o resto ao festim de Sardanapalo, onde eu devia queimar na pira do prazer a derradeira mirra da mocidade.

 

Tendo registrado no meu budget, com um simples traço de pena, a importante resolução, saí para matar a sede de ar, de sol e de espaço que sente o homem depois do sono tardio e enervador. Espaciei o corpo pela Rua do Ouvidor; o espírito pelas novidades do dia; os olhos pelo azul cetim de um céu de abril e pelas galas do luxo europeu expostas nas vidraças.

 

Era um domingo; o ócio dos felizes desocupados tinha ganhado o campo e os arrabaldes. Encontrei por isso poucos conhecidos e fria palestra.

 

Queria fazer horas para ir ver Lúcia. Com os hábitos de voluptuosa indolência, que tomam as mulheres a quem faltam os cuidados domésticos, não era natural que tão cedo fosse visível. Para ocupar-me dela, entrei em casa do Valais, o joalheiro do bom-tom.

 

Comprei, não o que desejava, mas o que permitiam as minhas finanças. Só os milionários gozam do prazer de medir a sua liberalidade pela efusão do sentimento; entretanto o desejo avulta justamente onde mingua a fortuna. Tinha escolhido uma dessas galantarias de ouro e brilhantes, que custam algumas centenas de mil-réis, e valem um capricho, uma tentação, um sorriso de prazer.

 

Ao sair vi um adereço de azeviche muito simplesmente lavrado, e por isso mesmo ainda mais lindo na sua simplicidade. Tênue filete de ouro embutido bordava a face polida e negra da pedra. Há certos objetos que um homem dá à mulher por um egoístico instinto do belo, só para ver o efeito que produzem nela. Lembrei-me que Lúcia era alva, e que essa jóia devia tomar novo realce com o brilho de sua cútis branca e acetinada. Não resisti; comprei o adereço, e tão barato, que hesitei se devia oferecê-lo.

 

Seriam quatro horas.

 

Achei Lúcia reclinada no sofá. Estava matando o tempo, ora examinando o crivo dos punhos e o debuxo do penteador de cambraia, ora cerrando as pálpebras para engolfar o espírito nalguma deliciosa reminiscência.

 

—Preguiçoso! Há duas horas que o espero! disse dando-me a mão e sorrindo.

 

—Saí há muito tempo, e não passei por aqui com receio de incomodar-te.

 

—Tenha bondade de dizer: quem lhe deu o direito de pensar que me incomoda?

 

—O meu gênio! Desconfio de mim.

 

—Pois o seu gênio enganou-o; fique sabendo que o senhor nunca me pode incomodar a qualquer hora que venha aqui! Nunca; ouviu ?

 

—E quanto tempo durará isso?

 

—Ah! já lhe disseram que sou volúvel! Eles têm razão de o dizer; porém má como sou, ainda assim não me julgue pelo que lhe contarem.

 

—Não te julgo, nem te quero julgar. Conheço-te de ontem; de ontem somente, tu o disseste!

 

—Pois essa que fui ontem continuarei a ser, já que Deus não quis que fosse a outra, que viu da primeira vez.

 

—Não era mais bonita do que a desta noite.

 

—Quem sabe? Mas diga-me, continuou acariciando-me o rosto com a mão travessa; deveras pensou hoje alguma vez em mim, ou esqueceu-se apenas nos separamos?

 

—Tanto, que te trouxe uma lembrança.

 

—Ah! quero ver, sou muito curiosa!

 

Tirei as jóias e dei-lhe; o sorriso faceiro que despontava no lábio murchou de repente. Atribuí a excesso de curiosidade e atenção, porém ela abrindo lentamente a caixa, lançou-lhe apenas um olhar distraído, e deitou-a sobre a cadeira com uma frieza glacial e um desgosto, que transparecia entre a expressão de forçada amabilidade com que me agradeceu:

 

—Obrigada; não valho tanto!

 

Esse tanto foi dito com uma surda vibração, e profunda, como se a voz que o articulara houvesse ferido interiormente todas as cordas de sua alma. <<Cunha tinha razão, pensei eu; a cupidez e a avareza são as molas ocultas que movem este belo autômato de carne. Está habituada a presentes de milionário; desdenha a migalha do pobre>>.

 

Tive ímpetos de cuspir dos lábios os beijos que recebera e não podia pagar pelo seu justo preço.

 

Abria ela a outra caixa com a mesma lentidão e indiferença; quando súbito expandiu-se num desses enlevos que descem, como ondas de fluido luminoso, da fronte apaixonada e inteligente da mulher que ama. Soltou um pequeno grito de prazer, e agradeceu-me desta vez sem palavras, com um só olhar, mas olhar como ela unicamente os tinha; olhar fundo e longo, que parecia surgir de um abismo e dilatar-se ao infinito.

 

Posso eu descrever-lhe a ingênua alegria e as visagens graciosas e infantis que ela fez diante dessa jóia sem valor? Era a gárrula travessura da criança a quem se deu um brinquedo bonito; a mimosa garridice da menina que festeja o seu primeiro enfeite de moca; as carícias felinas do gato brincando com a tímida presa que vai devorar.

 

—Que bonito, meu Deus! exclamava a cada instante. Quero ver como me fica! Hei de trazê-lo sempre!

 

Imediatamente substituiu os brincos que tinha pelos de azeviche, cingiu o colar, e saltando como uma louquinha, correu ao espelho; ai repetiu-se a mesma cena. Apesar da naturalidade e do ímpeto involuntário destes gestos, a minha habitual desconfiança suspeitou naquela efusão de contentamento uma zombaria amarga; supus um momento, que ela pretendia ironicamente fazer-me sentir por esse modo a mesquinhez do presente.

 

Não lhe cause isto surpresa; lembre-se que idéia devia fazer então dessa mulher pelos precedentes que conhecia de sua vida.

 

—Que significa esta admiração fora de propósito, Lúcia? Estou arrependido de te haver oferecido semelhante ninharia; mas cuidei que me perdoasses em atenção à outra, que não me parecia muito digna de tua beleza Não sou rico; e há pouco a indiferença com que recebeste esta pulseira fez-me sentir bem amargamente a minha pobreza. Estou convencido que o fizeste sem querer.

 

Essa criatura tinha a intuição rápida e instantânea, que é no homem a segunda vista do gênio, e em algumas mulheres privilegiadas um instinto sutil do coração. À primeira palavra, a expansiva alegria que vertia de toda sua pessoa caiu-lhe aos pés. Ficou séria, submissa e envergonhada, como a criança traquinas, que surpreende em flagrante o ralho paterno. Recolheu confusa o adereço e veio sentar-se ao meu lado.

 

—Diz que recebi com indiferença esta pulseira! E qual é a causa da minha alegria? Disfarcei para o senhor não pensar que desejo me venha ser somente pelo valor destes brilhantes. Além disto, quando se recebe mais do que se vale, fica-se acanhada

 

Compreendo hoje as rápidas transições que se operavam nessa mulher; mas naquela ocasião, como podia adivinhar a causa ignota que transfigurava de repente a cortesã depravada na menina ingênua, ou na amante apaixonada!

 

—Mas por isso não se zangue comigo!

 

E inclinou a face para receber uma carícia.

 

—Torno a pedir-te, Lúcia; nunca me digas o que não sentes. Tens o mau gosto de te rebaixares.

 

—Se eu quisesse parecer melhor do que realmente sou e fingir sentimentos que não posso ter, me tornaria ridícula. Talvez o senhor fosse o primeiro a escarnecer de mim.

 

—Tudo isto, sabes o que é? É orgulho ofendido por algumas palavras que me escaparam anteontem. Não negues; já te conheço melhor do que tu mesma.

 

—Deveras! É difícil conhecer-me; mais difícil do que pensa. Eu mesma, sei o que às vezes se passa em mim? E o motivo que me arrasta sem querer? Não repare nestas esquisitices! Ralhe comigo, quando eu merecer; prometo corrigir-me.

 

—Era o meio de me tornar insuportável. Daqui a uma semana não me poderias aturar.

 

—Experimente!

 

—Não; dizem que és muito caprichosa, e não há nada que eu respeite como os caprichos de uma mulher. Fica o que tu és; somente sentiria que cometesses excessos como os de ontem.

 

—Já lhe dei um juramento!

 

—Acredito nele. Portanto não há necessidade de te humilhares diante de mim, que não tenho direito de pedir-te contas de tua vida. Não te pergunto pelo passado. O que te peço são alguns instantes de prazer. Quando te aborrecer, previne-me.

 

O senhor nunca me há de aborrecer! Se este prazer que lhe dou vale alguma coisa, tome dele quanto queira; pertence-lhe todo!

 

Davam seis horas. Lúcia pediu-me que jantasse com ela, e fê-lo com tal humildade e timidez, que apesar dos meus escrúpulos aceitei para não mortificá-la. Enquanto ela vestia-se no toucador, recostei-me no sofá e descontei quase uma hora do sono perdido na véspera. Abrindo os olhos vi Lúcia reclinada sobre mim.

 

—Devias estar maçada por me ver dormir. Por que não me acordaste?

 

—Agora mesmo acabei de aprontar-me.

 

Estava encantadora com o seu roupão de seda cor de pérola ornado de grandes laços azuis, cuja gola cruzando-se no seio deixava-lhe apenas o colo descoberto. Nos cabelos simplesmente penteados, dois cactos que apenas começavam a abrir às primeiras sombras da noite. Mas tudo isso era nada a par do brilho de seus olhos e do viço da pele fresca e suave, que tinha reflexos luminosos.

 

—Foi para mim que te fizeste tão bonita?

 

—E para quem mais? disse com um acento queixoso. Estou a seu gosto?

 

—Como sempre.

 

—Pois vamos jantar.

 

Ela fez-me as honras de sua casa como uma verdadeira senhora, com o tato esquisito que põe o hóspede à sua vontade, cercando-o contudo de mil atenções delicadas. O jantar foi sério. Ou porque Lúcia nessa ocasião desejasse conservar a sua dignidade de dona-de-casa; ou porque a presença dos criados a acanhasse, o fato é que não deixou nunca o tom ligeiramente cerimonioso que havia tomado.

 

Depois de jantar sentamo-nos no terraço, onde tomamos café, e eu fumei o meu charuto, do qual ela brincando roubou-me algumas fumaças com tal graça e prazer, que bem provavam ter cultivado mais esse vício.

 

A noite estava bonita e estrelada, e o céu coalhado de nuvens que recortavam sobre o azul as formas caprichosas. Lúcia tinha a alma poética; falava da natureza com o entusiasmo ingênuo que dá a vida contemplativa àqueles que não conhecem os segredos da ciência; muitas vezes fazia-me perguntas que me embaraçavam; outras cortava a frase colorida com um riso em que vertia a sua fina ironia.

 

—Ali está a minha estrela! Olhe, sou eu! disse mostrando-me Lúcifer, que se elevava no oriente, límpida e fulgurante.

 

Não pude deixar de sorrir-me.

 

—És muito linda no céu, sobretudo hoje que vestes um manto de tão puro azul; mas eu te prefiro aqui junto de mim, Lúcia.

 

—Também eu; antes queria viver sempre neste cantinho da tem como agora, respondeu-me tomando as mãos e olhando-me, do que no céu como ela brilhando para o mundo inteiro.

 

Calou-se um instante.

 

—Se eu ainda lá estivesse, desceria agora para vir sentar-me aqui. Mas Lúcifer deixou no céu a luz que perdeu para sempre.

 

Quando voltamos ao salão, já estava iluminado.

 

É preciso ter como Lúcia a beleza, a sedução e o espírito que enchem uma sala; a mobilidade e a elegância que multiplicam uma mulher, como o prisma reproduz o raio do sol por suas mil facetas; para assim consumir deliciosamente uma noite com as filigranas da galantaria feminina. Em três horas, que voaram, quer saber o que fez essa mulher? Tocou e cantou com sentimento, conversou com a sua graça habitual, representou-me tipos da comédia fluminense; fez a sátira dos ridículos da época; recitou versos de Garrett, como o faria a Gabriela; brincou, saltou, dançou; e por fim acabou tornando-me criança como ela, e obrigando-me a jogar prendas que eram resgatadas com um beijo na face.

 

As dez horas quis retirar-me. Lúcia suspendeu-se ao meu ouvido, e balbuciou muito baixo uma súplica:

 

—Fique!

 

Um olhar eloqüente, raio voluptuoso que rompeu o enleio encantador de seu gesto, disse-me quanto havia nessa palavra. O meio de resistir a semelhante pedido?

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