IV
No dia seguinte à mesma hora voltei à casa de Lúcia; achei-a ao piano
—O que estava tocando?
—Nem sei!... Uma valsa que aprendi de ouvido.
—Continue!
—Não sei tocar, não! Estava brincando; não tinha que fazer. Como passou de ontem?
—Bem, obrigado. Já vê que a minha segunda visita não se demorou muito.
—Ainda assim não compensa a demora da primeira.
—Sentiu essa demora?. Qual! ontem nem me conheceu.
—Tanto como na Glória. Ainda que se tivessem passado anos, creio que em qualquer parte onde me encontrasse com o senhor, o reconheceria.
—Por que motivo então fingiu ontem não se lembrar de mim, logo que entrei ?
—Por quê?... Queria ver uma coisa.
—E não se pode saber o que era?
—Não é preciso!
—Há de me dizer!...
E tomei-lhe as mãos que estavam frias e trêmulas.
—Pois bem, eu lhe digo. Queria ver se ainda se lembrava do nosso primeiro encontro, respondeu ela furtando o corpo ao meu abraço.
—Duvidava? . . Não tinha razão; talvez fosse eu o que melhor guardasse essa lembrança.
Lúcia abanou a cabeça lentamente:
—Que vestido levava eu naquela tarde? perguntou sorrindo.
A pergunta embaraçou-me. Quando admiro uma mulher bonita, a impressão que ela produz em mim não me deixa ver mais que a sua beleza.
—Nem se recorda!
—É um defeito meu. Não reparo na toilette das moças bonitas pela mesma razão por que não se repara na moldura de um belo quadro.
—Que desculpa!... E eu por que reparei no seu traje, na cor de sua sobrecasaca, em tudo; até na sua bengala? Não é esta; a outra era mais bonita; tinha o castão de marfim. Está vendo que me lembro perfeitamente, e entretanto não tenho esses objetos diante dos olhos!
—Ah! É este o vestido?
—O vestido, as jóias, o penteado, o leque, aquele que o senhor apanhou. Nem desse se lembrava! Só falta o chapéu! Quer vê-lo ?
Lúcia saiu um instante e voltou. Ou porque a minha memória se avivasse, ou porque a ausência desse gentil chapéu, que parecia fugir-lhe da cabeça, tão de leve a cingia, mutilasse a graciosa imagem que eu vira na tarde de minha chegada; o fato é que a aparição já desvanecida surgira de repente aos meus olhos.
—Agora lembro-me! Estou vendo-a como a vi da primeira vez!
—Como daquela vez não me verá mais nunca!
—O que lhe falta?
—Falta o que o senhor pensava e não tornará a pensar! disse ela com a voz pungida por dor íntima!
Não compreendi então aquelas palavras, nem o tom com que foram proferidas; procurei-lhe o sentido, acompanhando com os olhos a Lúcia que tirava lentamente o chapéu, e fitava na sua imagem refletida pelo espelho um triste olhar.
—Ah! já sei! O que eu pensava?... Mas ainda penso: acho-a hoje tão bonita ou mais do que naquela tarde.
—Não é isto!
—O que é então ? Venha dizer-me.
Passei-lhe o braço pela cintura e apertei-a ao peito; eu estava sentado, ela em pé; meus lábios encontraram naturalmente o seu colo e se embeberam sequiosos na covinha que formavam nascendo os dois seios modestamente ocultos pela cambraia. Com o meu primeiro movimento, Lúcia cobriu-se de ardente rubor; e deixou-se ir sem a menor resistência, com um modo de tímida resignação.
Quando porém os meus lábios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as formas encantadoras que debuxavam a seda, pareceu-me que o sangue lhe refluía ao coração. As palpitações eram bruscas e precipites. Estava lívida e mais branca do que o alvo colarinho do seu roupão. Duas lágrimas em fio, duas lágrimas longas e sentidas, como dizem que chora a corça expirando, pareciam cristalizadas sobre a face, de tão lentas que rolavam.
É o coração, quando fortemente confrangido por violenta emoção, que espreme esse soro do sangue que gela e coalha.
Pungiu-me aquela aflição.
Retirei vivamente o braço; enquanto Lúcia sentava-se trêmula, afastei-me revoltado contra mim, e ao mesmo tempo indignado contra essa mulher que zombava da minha credulidade, e contra Sá que me iludira. Não sabia o que pensar; para fugir a uma posição que me incomodava horrivelmente, fui debruçar-me na janela.
Um instante depois ouvi sua voz doce e carinhosa:
—Não se agaste comigo !
Voltei-me; ela sorriu a dois passos de mim, e com uma expressão suplicante, como de quem pedisse perdão.
—Acabemos com isso, Lúcia. Sabes o que me traz à tua casa: se te desagrado por qualquer motivo, dize francamente, que eu tomo o meu chapéu e não te aborrecerei mais. Se pensas que valho tanto como os outros, não percas o tempo a fingir o que não és. Esta comédia de amor pode divertir os mocinhos de 18 anos e os velhos de 50; mas afianço-te que não lhe acho a menor graça.
—Não seja tão injusto' Em que lhe pareço fingida? Já me perguntou alguma coisa que eu lhe negasse? Já me recusei a um pedido seu?
—Entretanto te ofendeste com uma simples carícia!
—Não me ofendi; e a prova é que não dei sinal de desagrado, nem conservo o menor ressentimento. Não me conhece!... Sei o que valho, e não sou capaz de iludir a ninguém, muito menos ao senhor.
—Mas, há pouco, o que significavam essas lágrimas?
—Ah, não repare! Sofro do coração; às vezes sobe-me o sangue à cabeça, fico muito pálida, e sinto uma dor aguda que me arranca lágrimas dos olhos!. . . Não é nada; passa-me logo. Já passou! concluiu com um sorriso dorido.
—É diferente; desculpa. Incomodava-me essa idéia de pensares que estava disposto a fazer-te a corte. Seria soberanamente ridículo para nós ambos.
—Decerto!
Lúcia acompanhou estas duas palavras com um riso estridente e um olhar que ainda vejo brilhar nas sombras de minhas recordações: olhar vivo e cintilante, que luziu como as chispas do brilhante ferido pela réstia da luz, e veio bater-me em cheio na face, cobrindo-me com o mais agro desprezo que pode estilar um coração de mulher.
Dirigiu-se a uma porta lateral, e fazendo correr com um movimento brusco a cortina de seda, desvendou de relance uma alcova elegante e primorosamente ornada. Então voltou-se para mim com o riso nos lábios, e de um gesto faceiro da mão convidou-me a entrar.
A luz, que golfava em cascatas pelas janelas abertas sobre um terraço cercado de altos muros, enchia o aposento, dourando o lustro dos móveis de pau-cetim, ou realçando a alvura deslumbrante das cortinas e roupagens de um leito gracioso. Não se respiravam nessas aras sagradas à volúpia, outros perfumes senso o aroma que exalavam as flores naturais dos vasos de porcelana colocados sobre o mármore dos consolos, e as ondas de suave fragrância que deixava na sua passagem a deusa do templo.
Lúcia não disse mais palavra; parou no meio do aposento, defronte de mim.
Era outra mulher.
O rosto cândido e diáfano, que tanto me impressionou à doce claridade da lua, se transformara completamente: tinha agora uns toques ardentes e um fulgor estranho que o iluminava. Os lábios finos e delicados pareciam túmidos dos desejos que incubavam. Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da narina que tremiam com o anélito do respiro curto e sibilante, e também nos fogos surdos que incendiavam a pupila negra.
A suave fluidez do gesto meigo sucedeu a veemência e a energia dos movimentos. O talhe perdera a ligeira flexão que de ordinário o curvava, como uma haste delicada ao sopro das auras; e agora arqueava enfunando a rija carnação de um colo soberbo, e traindo as ondulações felinas num espreguiçamento voluptuoso. As vezes um tremor espasmódico percorria-lhe todo o corpo, e as espáduas se conchegavam como se um frio de gelo a invadira de súbito; mas breve sucedia a reação, e o sangue abrasando-lhe as veias, dava à branca epiderme reflexos de nácar e às formas uma exuberância de seiva e de vida, que realçavam a radiante beleza.
Era uma transfiguração completa.
Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega desfazia ou antes despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe as vestes. A mais leve resistência dobrava-se sobre si mesmo como uma cobra, e os dentes de pérola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda que lhe opunha obstáculos. Até que o penteador de veludo voou pelos ares, as trancas luxuriosas dos cabelos negros rolaram pelos ombros arrufando ao contato a pele melindrosa, uma nuvem de rendas e cambraias abateu-se a seus pés, e eu vi aparecer aos meus olhos pasmos, nadando em ondas de luz, no esplendor de sua completa nudez, a mais formosa bacante que esmagara outrora com o pé lascivo as uvas de Corinto.
Saí alucinado!
Fora delírio, convulsão de prazer tão viva que, através do imenso deleite, traspassava-me uma sensação dolorosa, como se eu me revolvera no meio de um sono opiado, sobre um leito de espinhos. É que as carícias de Lúcia vinham impregnadas de uma irritabilidade que cauterizava
Há mulheres gastas, máquinas do prazer que vendem, autômatos só movidos por molas de ouro. Mas Lúcia sentia; sentia sim com tal acrimônia e desespero, que o prazer a estorcia em cãibras pungentes. Seu olhar queimava; e às vezes parecia que ela ia estrangular-me nos seus braços, ou asfixiar-me com seus beijos.
De repente surgiu lívida, e estendeu-me a mão aberta Ouvi uma palavra soluçada, voz opressa, que não entendi, mas adivinhei.
Imagine qual revolução houve em mim; e a profunda indignação com que me precipitei sobre minha carteira para atirá-la à face dessa mulher. Mas ela reteve-me com a força sobre-humana que lhe davam as contrações nervosas.
—Estava gracejando-me! Não é assim que me queria?
E soltou uma gargalhada.
Debalde pedi uma explicação. Ao delírio sucedera prostração absoluta, orgasmo da constituição violentamente abalada. Vendo então esse corpo inerte e pasmo, com os olhos vítreos e as mãos crispadas, tive dó e como um pressentimento de que a vida o abandonaria breve.
Quando lho dei a perceber, ela respondeu-me:
—Que importa? Contanto que tenha gozado de minha mocidade! De que serve a velhice às mulheres como eu?
Ao retirar-me ia pela segunda vez levar a mão à carteira, quando o olhar de Lúcia correu-me de vergonha. Entretanto ela, abatida ainda, porém calma, apertava-me a mão por despedida. Que magia tinham aqueles olhos fúlgidos, quando um sentimento forte lhes toldava a doce serenidade!
Conto-lhe estes fatos, como se escrevesse no dia em que eles sucederam, ignorando o seu futuro; entretanto, talvez que, apesar disto, compreenda as palavras equívocas e as causas ocultas que naquela ocasião resistiram à minha perspicácia.
Mas a senhora lê e eu vivia; no livro da vida não se volta, quando se quer, a página já lida, para melhor entendê-la; nem pode-se fazer a pausa necessária à reflexão. Os acontecimentos nos tomam e nos arrebatam às vezes tão rapidamente que nem deixam volver um olhar ao caminho percorrido.
Assim o meu espírito preocupou-se um momento com a singularidade daquela cortesã, que ora levava a impudência até o cinismo, ora esquecia-se do seu papel no simples e modesto recato de uma senhora; porém vieram logo outros pensamentos distrair-me.