XVI

 

O alvo disco da lua surgiu no horizonte.

 

A luz brilhante do sol empalideceu a virgem do céu, como o amor do guerreiro desmaia a face da esposa.

 

—Jaci !... Mãe nossa!. . . exclamaram os guerreiros tabajaras.

 

E brandindo os arcos, lançaram ao céu com a chuva das flechas, o canto da lua nova:

 

"Veio no céu a mãe dos guerreiros; já volta o rosto para ver seus filhos. Ela traz as águas, que enchem os rios e a polpa do caju.

 

"Já veio a esposa do sol; já sorri às virgens da terra, filhas suas. A doce luz acende o amor no coração dos guerreiros e fecunda o seio da jovem mãe."

 

Cai a tarde.

 

Folgam as mulheres e os meninos na vasta ocara; os mancebos, que ainda não ganharam nome de guerra por algum feito brilhante, discorrem no vale.

 

Os guerreiros seguem Irapuã ao bosque sagrado, onde os espera o Pajé e sua filha para o mistério da jurema. Iracema já acendeu os fogos da alegria, Araquém está imóvel e extático no seio de uma nuvem de fumo.

 

Cada guerreiro que chega depõe a seus pés uma oferenda a Tupã. Traz um a suculenta caça; outro a farinha-d'água; aquele o saboroso piracém da traíra. O velho Pajé, para quem são estas dádivas, as recebe com desdém.

 

Quando foram todos sentados em torno do grande fogo, o ministro de Tupã ordena o silêncio com um gesto, e tres vezes clamando o nome terrível, enche-se do deus, que o habita:

 

—Tupã! . . . Tupã! . . . Tupã ! . . .

 

De grota em grota o eco ao longe repercutiu.

 

Vem Iracema com a igaçaba cheia do verde licor. Araquém decreta os sonhos a cada guerreiro, e distribui o vinho da jurema, que transporta ao céu o valente tabajara.

 

Este, grande caçador, sonha que os veados e as pacas correm de encontro às suas flechas para se traspassarem nelas; fatigado por fim de ferir, cava na terra o bucâ , e assa tamanha quantidade de caça, que mil guerreiros em um ano não acabariam.

 

Outro, fogoso em amores, sonha que as mais belas virgens tabajaras deixam a cabana de seus pais e o seguem cativas de seu querer. Nunca a rede de chefe algum embalou mais voluptuosas carícias, do que ele frui naquele êxtase.

 

O herói sonha tremendas latas e horríveis combates, de que sai vencedor, cheio de glória e fama. O velho renasce na prole numerosa, e como o seco tronco donde rebenta nova e robusta sebe, ainda cobre-se de flores.

 

Todos sentem a felicidade tão viva e continua, que no espaço da noite cuidam viver muitas luas. As bocas murmuram; o gesto fala; e o Pajé, que tudo escuta e vê, colhe o segredo no intimo d'alma.

 

Iracema, depois que ofereceu aos chefes o licor de Tupã, saiu do bosque. Não permitia o rito que ela assistisse ao sono dos guerreiros e ouvisse falar os sonhos.

 

Foi dali direito à cabana, onde a esperava Martim:

 

—Toma tuas armas, guerreiro branco. E tempo de partir.

 

— Leva-me aonde está Poti, meu irmão.

 

A virgem caminhou para O vale; o cristão a seguiu. Chegaram à falda do rochedo, que ia morrer à beira do tanque, em um maciço de verdura.

 

— Chama teu irmão!

 

Soltou Martim o grito da gaivota. A pedra que fechava a entrada da gruta caiu; e o vulto do guerreiro Poti apareceu na sombra.

 

Os dois irmãos encostaram a fronte na fronte e o peito no peito, para exprimir que não tinham ambos mais que uma cabeça e um coração.

 

—Poti está contente porque vê seu irmão, que o mau espírito da floresta arrebatou de seus olhos.

 

— Feliz é o guerreiro que tem ao flanco um amigo como o bravo Poti; todos os guerreiros o invejarão.

 

Iracema suspirou, pensando que a afeição do pitiguara bastava à felicidade do estrangeiro.

 

—Os guerreiros tabajaras dormem. A filha de Araquém vái guiar os estrangeiros.

 

Seguiu a virgem adiante; os dois guerreiros após. Quando tinham andado o espaço que transpõe a garça de um vôo, o chefe pitiguara tornou-se inquieto e murmurou ao ouvido do cristão:

 

—Manda à filha do Pajé que volte à cabana de seu pai. Ela demora a marcha dos guerreiros.

 

Martim estremeceu; mas a voz da prudência e da amizade penetrou em seu coração. Avançou para Iracema, e tirou do seio a voz mais terna para acalentar a saudade da virgem:

 

—Quanto mais afunda a raiz da planta na terra, mais custa arrancá-la. Cada passo de Iracema no caminho da partida é uma raiz que lança no coração de seu hóspede.

 

—Iracema quer te acompanhar até onde acabam os campos dos tabajaras, para voltar com o sossego em seu coração.

 

Martim não respondeu. Continuaram a caminhar, e com eles caminhava a noite; as estrelas desmaiaram, e a frescura da alvorada alegrou a floresta. As roupas da manhã, alvas como o algodão, apareceram no céu.

 

Poti olhou a mata e parou. Martim compreendeu e disse a Iracema:

 

—Teu hóspede já não pisa os campos dos tabajaras. É o instante de separar-te dele.

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