Crisfal, de Cristóvão Falcão

 

Fonte:

FALCÃO, Cristóvão. Crisfal. 2.ed. Lisboa, 1962. 77 p. (Coleção Textos Literários).

 

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CRISFAL

Cristóvão Falcão

 

 

I

 

 Antre Sintra, a mui prezada,

e serra de Ribatejo

que Arrábeda é chamada,

perto donde o rio Tejo

se mete n’água salgada,

houve um pastor e pastora,

que com tanto amor se amarom

como males lhe causarom

este bem, que nunca fora,

pois foi o que não cuidarom.

 

II

 

A ela chamavam Maria

e ao pastor Crisfal,

ao qual, de dia em dia,

o bem se tornou em mal,

que ele tam mal merecia.

Sendo de pouca idade,

não se ver tanto sentiam,

que o dia que não se viam,

se viam na saudade

o que ambos se queriam.

 

III

 

Alg.as horas falavam,

andando o gado pascendo,

e então se apascentavam

os olhos, que, em se vendo,

mais famintos lhe ficavam.

E com quanto era Maria

piquena, tinha cuidado

de guardar milhor o gado

o que lhe Crisfal dezia;

mas, em fim, foi mal guardado;

 

IV

 

Que, depois de assi viver

nesta vida e neste amor,

depois de alcançado ter

maior bem pera mor dor,

em fim se houve de saber

por Joana, outra pastora,

que a Crisfal queria bem;

(mas o bem que de tal vem

não ser bem maior bem fora,

por não ser mal a ninguém).

 

V

 

A qual, logo aquele dia

que soube de seus amores,

aos parentes de Maria

fez certos e sabedores

de tudo quanto sabia.

Crisfal não era então

dos bens do mundo abastado

tanto como do cuidado;

que, por curar da paixão,

não curava do seu gado.

 

VI

 

E como em a baixeza

do sangue q e pensamento

é certa esta certeza -

cuidar que o mericimento

está só em ter riqueza -

enquerirom que teria[m]

e do amor não curarom;

em que bem se descontarom

riquezas, se faleciam,

por males que sobejarom.

 

VII

 

Então, descontentes disto,

levarom-na a longes terras,

esconderom-na entre .as serras,

onde o sol não era visto,

e a Crisfal deixarom guerras.

Além da dor principal,

pera mor pena lhe dar,

puserom-na em lugar

mau para dizer seu mal,

mas bom pera o chorar.

 

VIII

 

Ali os dias passava

em mágoas, da alma saídas,

dizer a quem longe estava,

e chorava por perdidas

as horas que não chorava.

Em vale mui solitário e

sombrio e saudoso,

send’o monte temeroso,

pera o choro necessário,

pera a vida mui danoso,

 

IX

 

Dizer o que ele sentia,

em que queira, não me atrevo,

nem o chorar que fazia;

mas as palavras que escrevo

são as que ele dezia.

Ali sobre .a ribeira

de mui alta penedia,

donde a água d’alto caía,

dizendo desta maneira

estava a noite e o dia:

 

X

 

“Os tempos mudam ventura

bem o sei, pelo passar;

mas, por minha gram tristura,

nenhuns puderam mudar

a minha desaventura.

Não mudam tempos nem anos

ao triste a tristeza;

antes tenho por certeza

que o longo uso dos danos

se converte em natureza.

 

XI

 

Coitado de mim, cuitado,

pois meu mal não se amansa

com choro nem com cuidado!

Quem diz que o chorar descansa

é de ter pouco chorado;

que, quando as lágrimas são

por igual da causa delas,

virá descanso por elas;

mas como descansar hão,

pois que são mais as querelas?

 

XII

 

Com tudo, olhos de quem

não vive fazendo al,

chorai mais que os de ninguém,

que o que é para maior mal

tenho já para maior bem.

Lágrimas, manso e manso,

prossigam em seu ofício:

que não façam benefício:

não servindo de descanso,

servirão de sacrefício.

 

XIII

 

Minhas lágrimas cansadas,

sem descanso nem folgança,

a minha triste lembrança

vos tem tam aviventadas

como morta a esperança.

Correi de toda vontade,

que esta vos não faltará.

Mas isto como será?

Pedi-la-ei à saudade,

e a saudade ma dará.

 

XIV

 

Todos os contentamentos

da minha vida passarom,

e em fim não me ficarom

senão descontentamentos

que de mim se contentarom.

Destes, polo meu pecado,

(inda que nunca pequei

a e quem amo e amarei),

nunca desacompanhado

me vejo nem me verei.

 

XV

 

Faz-me esta desconfiança

ver meu remédio tardar,

e já agora esperar

não ousa minha esperança,

por me mais não magoar.

Se por isto desmereço,

dê-se-me a culpa assim

e seja só com a fim,

que há muito que me conheço

aborrecido de mim.

 

XVI

 

Meu coração, vós abristes

caminho a meus cuidados,

pera virem a ser banhados

na água de meus olhos tristes,

tristes, mal galardoados.

Necessário é que vamos

algum remédio buscar

para se a vida acabar:

est’ é [o] bem que dessejamos,

est’é [o] nosso dessejar.

 

XVII

 

Iremos pela estrada

por onde os tristes vão,

porque nela, por rezão

deve ser de nós achada,

achada consolação.

Soir-me-ei ao pensamento,

qu’é alto; de ali verei,

verei eu se poderei

ver algum contentamento

de quantos perdidos hei.

 

XVIII

 

Mas o que poderá ver

quem já da vista cegou?

Porque quem me a mim levou

meu alongado prazer

nenhum bem ver me deixou.

Deixou-me em escuridade,

um mal sobre outro sobejo,

pelo que triste me vejo

tam longe de liberdade

como do bem que dessejo.

 

XIX

 

Verei a vida, que em vida

bem vista tanto aborrece,

aborrece a quem padece

tristeza mal merecida,

que minha fé mal merece.

Levarom-me toda a glória,

com quanto bem dessejei,

dessejei e alcancei;

ficou-me só a memória,

por dor, de quanto passei.

 

XX

 

Lembrança do bem passado,

que não devera passar,

esta me há-de matar;

dá-me tal dor o cuidado,

que se não pode cuidar.

Nada, se não for a morte,

me dará contentamento:

segundo sei do que sento,

não sento prazer tão forte

que conforte meu tormento.

 

XXI

 

Não devo eu mal querer

a quem me aqui deixou;

que ouvido nom possa ser,

já me algum bem ficou,

que é meu mal poder dizer.

Mas, triste, não sei que digo;

isto é falar a ersmo:

que assaz me foi enemigo

quem se vingou de mim mesmo

com me só deixar comigo.

 

XXII

 

Que me queira consolar,

o meu mal não tem conforto

nem eu lho posso buscar:

para o prazer sou morto

e vivo para o pesar.

Quanto mal tam desvairado

e todos para dar fim!

Tudo me é contrairo, assim:

descuido matu meu gado,

cuidado matou a mim.

 

XXIII

 

Vida de tam longos males,

como não cansa de ser!

que eu canso já de viver,

e o eco destes vales

cansa de me responder.

As ribeiras, em eu vê-las,

correm mais do que é seu foro,

entrando meu chorar nelas;

e pois ajudam meu choro,

quero só falar com elas.

 

XXIV

 

Companheiras do meu mal,

águas que d’alto correis,

onde caís desigual,

parece que me dizeis:

- Porque não choras, Crisfal?

Contar-vos quero, amigas,

o que esta noute sonhei,

com o qual tal dor me dei,

que minhas muitas fadigas

em mais fadigas dobrei.

 

XXV

 

Despois de ontem deixar

de vos contar os meus males,

fui-me cá baixo geitar

no mais baixo destes vales,

antre pesar e pesar;

onde, despois que aos ventos

descobri minhas paixões,

gastadas muitas rezões,

mudei os meus pensamentos

em minhas contemplações.

 

XXVI

 

Contente de descontente,

a noute sendo calada,

como é certo em quem sente,

não ficou cousa passada

que me não fosse presente.

Vindo-me à memória dar,

quando andava com o gado,

ter com Maria sonhado,

fez-me o dormir dessejar,

de mim pouco dessejado.

 

XXVII

 

E crendo que aproveitasse

pera meu contentamento

se eu com ela sonhasse,

deu-me logar meu tromento

que algum pouco respousasse.

E como cansada estava

do que no dia passei,

a dormir pouco tardei;

e adormecido sonhava

o que vos ora direi:

 

XXVIII

 

Sonhava, em meu sonhar,

onde dormindo estava

ali velando estar,

quando da parte do mar

gram vento se alevantava,

o qual com tal sobressalto

chegava onde eu jazia,

e que da terra me erguia

em tanto extremo alto

que a vista me falecia.

 

XXIX

 

Vendo-me em lugar tal,

baixei os olhos a terra,

vi craro dia, não al,

e os vales e a serra

tudo julguei ser igual;

mas como aborrecido

tanto da vida andasse,

que meu mal já dessejasse,

temor tam pouco temido

não creo eu que se achasse.

 

XXX

 

Depois de me ser mostrado

este perigo de morte,

a terra mais abaixado,

contra a parte do norte

sonhava que era levado.

Entre Tejo e Odiana

era o meu caminhar,

donde poderei contar,

se o que notei nom me engana,

cousas bem pera notar.

 

XXXI

 

Porque vi muitos pastores

andar guardando seus gados,

vestidos d’alegres cores,

bem fora dos meus cuidados

mas não dos de seus amores (não querendo mais haveres

nem querendo mais riqueza,

porque amor tudo despreza);

mas todos os seus prazeres

foram pera mim tristeza.

 

XXXII

 

Em um vale, descontente

estar Natónio vi,

destes assaz diferente,

que cási não conheci,

sendo bem meu conhecente.

Aqueste é o pastor

que já veo aqui buscar-me,

não mais que por consolar-me;

e vi-o com tanta dor,

que dor me dá o lembrar-me.

 

XXXIII

 

Chorando lágrimas mil,

estava consigo só

ao modo pastoril

de dó, bem pera haver dó,

tinto o hábito vil.

Em .a frauta tangendo,

ao pé de uma árvore estava;

dês que da boca a tirava,

de dentro d’alma gemendo,

em vez de cantar, chorava.

 

XXXIV

 

Quisera-o eu consolar,

mas em cujo poder ia

não me deu a mais lugar

que ouvir-lhe kque dezia:

Oh! Guiomar! Guiomar!

Em vós pus minha esperança,

e quanto ela encobre

agora em dor se descobre:

perigos de confiança

fizerom do rico pobre.

 

XXXV

 

Assi, por ele passando,

- Natónio, tenhas prazer!

lhe dixe, gram brado dando,

té o da vista perder,

os olhos nele deixando.

Deus lhe dê contentamento,

pois que nos fez a ventura

companheiros na tristura,

em que seu e meu tormento

cada vez tem menos cura.

 

XXXVI

 

Daqui fomos descorrendo

até o Tejo passar,

a água de quem eu vendo,

me foi dor sobre dor dar,

indo já dor padescendo.

Chorando a lembrança dela,

virada foi minha face

pera onde o gado pasce

da grande Serra da Estrela,

da qual o Zêzare nasce.

 

XXXVII

 

Posto no seu alto cume,

deixarom-me ali estar.

O meu coração presume

que foi por me magoar,

como tinham por costume.

Dali os pãis semeados

ver a meus olhos deixarom,

que por não grados julgarom;

mas, posto que foram grados,

eu sei que não me agradarom.

 

XXXVIII

 

Já o sol se encobria

a este tempo, e mais

ficando a terra sombria,

e o gado aos currais

já então se recolhia;

ouvi cães longe ladrar,

e os chocalhos do gado

com um tom tam concertado,

que me fizerom lembrar

de quanto tinha passado.

 

XXXIX

 

Por mais minhas queixas vãs,

vi berrar o gado moucho,

coberto das finas lãs,

e assoviar o moucho

com o triste cantar das rãs.

Já as serranas ao [a]brigo

se iam, os prados deixando,

as mais delas suspirando:

.a dezia: - Ai, Rodrigo!

outra dezia: - Ai, Fernando!

 

XL

 

.a ciúmes temia,

outra de si tem receo;

.a ouvi que dezia:

- Quanasinha a noute veo!

Outra: - Já tarda o dia!

E por este esperimento

foi Amor de mim julgado

por nom menos ocupado

do que [é] o pensamento,

que nunca está descansado.

 

XLI

 

Antre estas, só, saudosa,

vi antre duas ribeiras

.a serrana queixosa

cercando .as cordeiras,

sendo cordeira fermosa,

como ali tem por uso,

em .a roca fiando;

mas, como que ia cuidando,

caía-se-lhe o fuso

da mão de quando em quando.

 

XLII

 

Tendo parecer devino,

pera que milhor lhe quadre,

cantar cantou dele dino:

Yo me iva, la mi madre,

a Sancata Maria del Pino.

O vestido lhe oulhei

e vi que era um brial

de seda e não de saial,

a qual eu afigurei

a Menga, la del Boscal.

 

XLIII

 

Depois d’acabar seu canto,

dezia: - Ninguém me crea

por me ver alegre tanto:

visto-me à vontade alhea

e o meu cantar é pranto.

Anda a dor dessimulada,

mas ela dará seu fruito;

a minha alma traz o luito:

de pouco sam esposada,

mas descontente de muito.

 

XLIV

 

Troquei amor por riqueza,

porque mo trocar fizerom;

mas bem pago esta crueza,

que, em que cem contos me derom,

descontaram-se em tristeza.

Meu esposo aborreço

quando me à lembrança vem

do primeiro querer bem:

ninguém venda amor por preço,

pois ele preço não tem.

 

XLV

 

Não tenho que lhe falar

se não sam cousas passadas;

se lhe estas quero contar,

vam ser todas namoradas

pera o pouco namorar.

Fora ele o meu amor

e vivera eu pobremente!...

Que grande engano de gente!:

que pobreza há i maior

que a vida descontente?

 

XLVI

 

Quando com ele me assento,

mil vezes caio em míngoa,

porque, por esquecimento,

falando, descobre a língua

o que está no pensamento.

Faz-nos isto então ficar

eu muda e ele mudado;

ama-me como é amado;

pera me disto guardar

por bom hei guardar o gado.

 

XLVII

 

Maria perdi - mesquinha!

Logo em sermos apartadas,

do meu mal fui adevinha;

milhor sejam suas fadas

do que foi a fada minha.

Deus a dê ao seu Crisfal,

por ambos contentes ter,

e mais não lhe quero ver,

mas já sei, pelo meu mal,

o bem d’outrem escolher.

 

XLVIII

 

Quando a eu assi ouvi

doer-se de minha pena,

com novos olhos a vi,

e então que era Helena,

minha amiga, conheci.

Esta pastora e dama

certo que milhor lhe ia

quando a cantar ouvia,

dando fé que em sua cama

o velho não dormiria.

 

XLIX

 

Pena me deu de não crer

vê-la em tal tristeza posta;

quisera-lhe eu responder,

mas trespôs .a tresposta,

pelo qual não pôde ser.

Depois de ver-me sem ela,

os meus olhos me chorarom:

quantas cousas lhe lembrarom

que antre mim, Maria e ela

em outros tempos passarom!

 

L

 

Dês que aqui, com meu cuidado,

me estive fazendo guerra,

sendo o dia já passado,

vi-me levado da terra,

contra as nuvens alçado.

Então, como que voante,

de quem me ali trouxera

sonhei que levado era

contra onde, a tarde ante,

o sol vi que se pusera.

 

LI

 

Indo não com menos dor,

em que já com mais sossego,

os ventos me foram pôr,

depois de passar Mondego,

sobre as serras de Loor.

Vão ali grandes montanhas

de alguns vales abertas,

todas de soutos cobertas,

aos naturais estranhas,

mas à saudade certas.

 

LII

 

Junto de .a fonte era

o lugar onde fui posto,

onde sê-lo não quisera,

sendo bem lugar de gosto

para quem gosto tivera;

mas a mim nem o passado

nem o que me era presente

nada me não fez contente,

que nisto o magoado

é como o muito doente.

 

LIII

 

Coberta era a fonte

de tam fresco arvoredo,

que não sei como o conte,

mui quieto e mui quedo,

por ser antre monte e monte.

A noite, de ventos muda,

como saudade escolha;

e, por que mais prazer tolha,

chovia água miúda

por cima da verde folha.

 

LIV

 

Depois que ali chegava,

ou depois que ali cheguei,

sonhava que acordava;

e do que atrás passei

de ser sonho me lembrava.

O que então me era mostrado

tendo só por verdadeiro,

ao pé de um castanheiro

me pus, triste, assentado,

ouvindo o tom de um ribeiro.

 

LV

 

Meus olhos e eu passamos

ali a noute em clamores,

até que ao tempo chegamos

a que nós outros, pastores,

o dilúculo chamamos.

Naqueste tempo corrompe

a ave que chamam leal

o silêncio de seu mal,

que é quando a alva rompe

e o dia faz sinal.

 

LVI

 

Então, por que tudo fale,

contanto as mais paixões

que rezão é que não cale,

ouvi gritar uns pavões

lá no mais baixo do vale.

Trás isto, pouco tardando,

um doce cantar ouvia

que na minha alma caía,

o qual eu, bem escutando,

entendi que assi dezia:

 

LVII

 

Não sei para que vos quero,

pois me d’olhos não servis,

olhos a que eu tanto quis!

 

LVIII

 

Pera ver me fostes dados,

vós só a chorar vos destes;

e se eu tenho cuidados,

meus olhos, vós mos fizestes:

dês que neles me pusestes,

de descanso me fugis,

olhos a quem eu tanto quis!

 

LIX

 

Meus olhos, por muitas vias

usais comigo cruezas;

tomais as minhas tristezas

pera vossas alegrias.

Então noites, então dias,

olhos, nunca me dormis:

olhos a quem eu tanto quis!

 

LX

 

Quando vós primeiro vistes,

que não me era bom sabíeis;

mas, por gozar do que víeis,

em meu dano consentistes.

O que então me encobristes,

agora mo descobris,

olhos a quem eu tanto quis!

 

LXI

 

Ando-vos a vós buscando

cousas que vos dêm prazer,

e vós, quando podeis ver, tristezas me andais tornando.

Agora vou-vos cantando,

vós a mim chorando me is,

olhos a que eu tanto quis!

 

LXII

 

Quem o que digo cantava,

dês que o cantado teve,

não sei o que o causava,

mas espaço se deteve

assi como que cuidava.

Depois de cuidado ter,

a voz de novo alçou;

este cantr começou,

o qual devia de ser

aquilo em que cuidou:

 

LXIII

 

Como dormirão meus olhos?

Não sei como dormirão,

pois que vela o coração.

 

LXIV

 

Toda esta noite passada,

que eu passe em sentir,

nunca a pude dormir,

de ser muito acordada.

Dos meus olhos foi velada;

mas como não velarão,

pois que vela o coração?

 

LXV

 

As horas dela cuidei

dormi-las, foram veladas;

pois tão bem as empreguei,

dou-as por bem empregadas.

Todas as noutes passadas

neste pensamento vão,

pois que vela o coração.

 

LXVI

 

Pássaros, que namorados

pareceis no que cantais,

não ameis, que, se amais,

de vós sereis desarmados.

E em meus olhos agravados

vereis se tenho rezão,

pois que vela o coração.

 

LXVII

 

Como a cantiga mostrava,

femenil, a meu cuidar,

era a voz de quem cantava,

qu’em, por mais de bem cantar,

eu ouvir me contentava;

por que de quem ser podia

então sospeita me deu,

que todo o cantar seu

era o da minha Maria

ou a do dessejo meu.

 

LXVIII

 

Com um temeroso prazer,

que soe ter quem recea,

dessejava eu de ver

a quem eu ainda veja,

antes da vida perder.

Neste dessejo, de cima

estando-a eu ouvindo,

a Deus ser ela pedindo,

vi-a vir o vale acima

em seu cantar prossiguindo.

 

LXIX

 

Muito a vi eu mudada;

mas, com tudo, conheci

ser a minha dessejada,

a quem , assi vendo, vi,

a vista no chão pregada,

com o seu cantar pensoso

e passadas esquecidas,

ao tom dele medidas,

vestida vir de arenoso,

as mãos nas mangas metidas.

 

LXX

 

A coifa não lavrada,

antes sem nenhum lavor;

e em cima, por mais dor,

.a talhinha pedrada

ou um pedrado arenor.

Quisera-a ir receber,

vendo-a ante mim presente,

mas não pude, de contente,

que, indo pera me erguer,

de prazer me achei doente.

 

LXXI

 

Vendo então que me forçava

o prazer fazer demora,

olhei o que mais passava

e vi-a, que àquela hora

comigo emparelhava.

Dando uns mui doces brados,

saídos do coração,

a cantiga vinha então:

“em meus olhos agravados

vereis s etenho rezão”.

 

LXXII

 

Ao que eu responder

me lembra: - São agravados?

Podem logo os meus dizer

que são bem-aventurados,

pois que vos puderom ver.

Como ela em me ouvir

gram sobressalto sentisse,

quis fugir; mas quem lhe disse

que se pusesse em fugir

lhe fez com que não fugisse.

 

LXXIII

 

Nas mulheres o temor

tanto o poder empede

quanto o medo maior for,

e contra donde procede

os olhos costumam pôr.

Ela fazendo-o assi,

vendo-me, ficou mudada;

depois, já em si tornada,

se chegou mais pera mim,

a ser bem certificada.

 

LXXIV

 

Depois de me visto ter

e já que me conhecia,

lágrimas lhe vi correr

dos olhos, que não movia

de mim, sem nada dizer.

Eu lhe disse: - Meu dessejo,

- vendo-a tal com assaz dor -

dessejo do meu amor,

crerei eu ao que vejo

ou crerei ao meu temor.

 

LXXV

 

A isto, bem sem prazer,

me tornou então assi,

com voz de pouco poder:

- Crisfal, que vês tu em mim

que não seja pera crer?

Eu lhe respondi: - Perder-vos

de vos ver, por tanto ano,

faz-me assim temer meu dano,

que vejo meus olhos ver-vos

e temo que me engano.

 

LXXVI

 

- Pois crê certo que esta sam -

deu a isto por resposta,

ainda que alegre não. -

E quem em tal dor é posta

o que dela não crerão?

Bem é de crer o meu choro,

a que tu causa me deste;

não t’espante o que fizeste,

que quem me pôs neste foro

tu es o que me puseste.

 

LXXVII

 

Por ti vim eu desterrada

a estas estranhas terras

de donde eu fui criada;

e por ti, antre estas serras,

em vida sam sepultada,

onde a se me perderom

a frol dos anos se vão;

ora julga se é rezão

d’as minhas lágrimas serem

menos daquestas que são.

 

LXXVIII

 

Despois que isto falou,

como quem em si respeita,

as mãos ambas ajuntou,

e, postas na face direita,

dizer assim começou:

- Sobre o muito que perdi,

nenh.a cousa duvido

em ter o saber perdido,

pois tam mal me defendi

do que me era defendido.

 

LXXIX

 

Eu lhe perguntei a hora,

mui triste de assm a ver:

- Quem teve tanto poder

que tenha poder, senhora,

de nada vos defender?

Respodneu por antre dentes,

como fala quem se peja:

- Dir-to-ei, em que erro seja:

defendem-me meus parentes

que te não fale nem veja,

 

LXXX

 

E, Crisfal, é-me forçado

fazer a vontade sua,

porque lho tenha jurado

e também porque da rua

o certo me têm mostrado:

que me dam certa certeza,

porque fazem conhecer-me

(o que eu hei por gram crueza)

o amor que mostras ter-me

ser só por minha riqueza.

 

LXXXI

 

Ouvir-lhe eu isto me era

passar o trago mortal,

que não há cousa tam fera

como é achar-se o mal

onde o bem achar se espera.

Vendo já que estava posta

em o que eu não esperei,

com minha dor, trabalhei

por lhe dar esta reposta

que me lembra que lhe dei:

 

LXXXII

 

- Ó Maria, ó Maria,

brando achara meu mal,

se, para minha alegria,

vos vira a vontade tal

como me ela ser devia;

mas não é nova usança

quem grande bem esperou

não ver o que dessejou.

Muito pode a mudança,

pois que vos tanto mudou!

 

LXXXIII

 

Quem pudera sospeitar

que no amor e na fé

me havíeis de faltar!

Mas pois já isto assi é,

tudo é pera cuidar;

pois, por mais mal que se guarde,

sempre será meu amor

como a sombra, em quanto eu for:

quanto vai sendo mais tarde,

tanto vai sendo maior.

 

LXXXIV

 

Quando vos dei a vontade,

inda vós éreis menina

e eu de pouca idade;

mas caíu minha mofina

sobre a minha verdade.

Muito vos quis bem, primeiro

que de riquezas soubesse,

pois meu amor verdadeiro,

de quem só sois interesse

[é} quem me faz interesseiro.

 

LXXXV

 

Sobre a terra anda o gado

e sobre ela ouro e riqueza;

mas pera que é dessejado,

que em fim não tira tristeza

e acrescenta cuidado?

Não sei em que se encerra

ser esquecida e estranha:

esta verdade tamanha:

cá fica o haver na terra,

o amor a alma acompanha.

 

LXXXVI

 

Nus neste mundo nascemos

e nus sairemos dele;

neste meio que vivemos,

só o rico é aquele

que ser contente sabemos.

E que grandes bens vos dessem

aqueles que vo-los derom,

eu sei bem que nus nascerom,

e antes que os tivessem

é certo que não tiverom.

 

LXXXVII

 

Pois se isto é assi

e o eu tam bem conheço,

como se crerá de mim

que sofrer o que padeço

pode ser a este fim?

Cuidar que cuidado tinha

das vossas riquezas grossas!...

Nas cousas passadas nossas,

vereis ser riqueza minha

vós, que não riquezas vossas.

 

LXXXVIII

 

Mas que fosse assi e mais,

que remédio vos dão

com quem conselho tomais

à grande obrigaçào

em que, quanto a Deus, me estais?

Que não são casos pequenos

pera que se a alma não doa...

Respondeu: - Essa é boa:

dizem que isso é o menos,

que Deus que tudo perdoa.

 

LXXXIX

 

E dizem que eu moça era

ao tempo que isso foi ser;

e como tempo de crescer

tinha, que assi justo me era

tê-lo de me arrepender.

Isto e mais se me diz

- crê que te falo verdade -

que não tinha liberdade

pera fazer o que fiz,

por minha pouca idade.

 

XC

 

Então me mandam que meça

amor com quam longe estamos,

pera que mais não me empeça;

e se prazeres passamos,

os dessemule e esqueça;

e que então me buscarão

um mui grande casamento,

tam de meu contentamento

quanto meus olhos verão;

e que o mais crea que é vento.

 

XCI

 

Muitos pastores buscaram;

mas um pastor, por ser-te amigo,

e outro, por ser-te enemigo,

um e outro se escusaram;

e dão-lhe logo comigo

gado, que farão mil queijos;

mas o com que se despediram

é já mostrar que temiam

que o sabor dos teus beijos

na minha boca achariam.

 

XCII

 

E eu, de mui esquecida

vou-lhe fazer o contrairo!

A ser tal culpa sabida,

sei certo que este desvairo

pagarei com minha vida.

E em isto ser assi

assaz de razão seria,

pois tam mal naqueste dia

o seu mandado compri

como o que a mim cumpria.

 

XCIII

 

Não teveja aqui ninguém,

vai-te, Crisfal, desta terra;

não quero teu querer bem,

por que me não dê mais guerra

da que já dado me tem.

Em lhe isto eu ouvindo,

fui para lhe responder;

mas, depois de o dizer,

contra donde tinha vindo

se me tornou a volver.

 

XCIV

 

Dei .a voz mui dorida:

- Porque me negais conforto,

alma desagradecida?

Então caí como morto,

oxalá perdera a vida.

Não sei eu o que passou,

em quanto isto passei,

mas junto comigo achei

quem me este mal causou,

depois já que em mim tornei.

 

XCV

 

E dizendo: - Ó mezquinha,

como pude ser tam crua! --

bem abraçado me tinha,

a minha boca na sua

e a sua face na minha.

Lágrimas tinha choradas

que com a boca gostei;

mas, com quanto certo sei

que as lágrimas são salgadas,

aquelas doces achei.

 

XCVI

 

Soltei as minhas então,

com muitas palavras tristes,

e tomei por concrusão:

- Alma, porque não partistes,

que bem tínheis de rezão?

Então ela, assi chorosa

de tam choroso me ver,

já pera me socorrer,

com .a voz piadosa

começou-me assi dizer:

 

XCVII

 

- Amor de minha vontade,

ora nom mais! Crisfal manso,

bem sei tua lealdade:

ai, que grande descanso

é falar com a verdade!

Eu sei bem que não me mentes,

que o mentir é diferente:

não fala d’alma quem mente.

Crisfal, não te descontentes,

se me queres ver contente.

 

XCVIII

 

Quando contigo falei

aquela última vez,

o choro que então chorei

que o teu chorar me fez,

nunca o eu esquecerei.

Foi esta a vez derradeira

mas começo de paixão,

passando-me eu então

para o casal da Figueira,

do Val de Pantalião.

 

XCIX

 

Minha fé te é verdadeira,

no mal que te fiz o vi;

porque, em fim, à derradeira,

não quero mal contra ti

que o meu coração queira.

Por me ver livre de dor,

deixara eu de te querer,

se o pudera fazer;

mas poder e mais amor

não podem estar num poder.

 

C

 

Neste passo acordei eu,

e o meu contentamnto,

que eu cuidava que era meu,

deu-me depois tal romento

qual nunca cousa me deu.

Não sei eu que a Deus custava,

porque não me outorgara

que nesta glória ficara,

ou pois que já acordava,

que disto não me acordara.

 

CI

 

Assi como nos lugares,

em morte e enterramento,

os sinos dobram a pares,

morreu meu contentamento,

dobrarom-se meus pesares.

Por quem grande dita tivera,

se, por dar fim a tristura,

eu neste tempo morrera!

Sabe Deus que eu be quisera,

mas não quis minha ventura.

 

CII

 

Não vos posso mais contar,

águas minhas, minhas águas,

que me não deixa pesar.

Ora chorai minhas mágoas,

que bem são pera chorar;

que, em que cem olhos tivera,

como teve Argos pastor,

da vaca Io guardador,

mais olos mister houvera

para chorar minha dor”.

 

CIII

 

Isto que Crisfal dezia,

assi como o contava

.a ninfa o escrevia

num álemo que ali estava,

que ainda então crescia.

Dizem que foi seu intento

de escrevê-lo em tal lugar,

pera por tempo se alçar

onde baixo pensamento

lhe não pudesse chegar.

 

CIV

 

Eu o treladei dali,

donde mais estava escrito

que aqui não escrevi,

porque mal tam infinito

não se lhe pode dar fim.

O que se fez de Crisfal

não sabe certo ninguém;

muitos por morto o tem,

mas quem vive em tanto mal

nunca vê tamanho bem.

 

 

 

FINIS