Amor por anexins
Artur Azevedo
Entreato cômico
Esta farsa, entremez, entreato, ou que melhor nome tenha em juízo, o meu primeiro trabalho teatral, foi escrito há mais de sete anos, no Maranhão, para as meninas Riosa, que a representaram em quase todo o Brasil e até em Portugal. Pô-la em música e em boa música, Leocádio Raiol; mas ultimamente representaram-na sem ela Helena Cavalier e Silva Pereira: desencaminhara-se a partitura. Tem agora nova música, e não inferior, de Carlos Cavalier.
Personagens
Isaías.................................................................................................. solteirão
Inês......................................................................................................... viúva
Um Carteiro.....................................................................................................
A cena passa-se no Rio de Janeiro.
Época, atualidade.
Ato Único
Sala simples, janela à esquerda, portas ao fundo e à direita. Mesa à esquerda com preparos de costura. Num dos cantos da sala uma talha d'água. Cadeiras.
- Cena I -
(Inês)Inês (Cose sentada à mesa, e olha para a rua, pela janela.) - Lá está parado à esquina o homem dos anexins! Não há meio de ver-me livre de semelhante cáustico. Ora eu, uma viúva, e, de mais a mais com promessa de casamento, havia de aceitar para marido aquele velho! Não vê! E ninguém o tira dali! Isto até dá que falar à vizinhança... (Desce à boca de cena.)
Copla
Eu, que gosto, perdido
Tenho casamentos mil,
Com mais de um belo marido,
Garboso, rico e gentil,
De um velho agora a proposta,
Meu Deus! Devia aceitar?
Demais um velho que gosta
De assim tão jarreta andar!
Nada! Nada!
Não me agrada!
Quero um marido melhor!
É bem mau não ser casada,
Mas mal casada é pior.Ainda hoje escreveu-me uma cartinha, a terceira em que me fala de amor, e a Segunda em que me pede em casamento. (Tira uma carta da algibeira.) Ela aqui está. (Lê.) "Minha bela senhora. Estimo que estas duas regras vão encontrá-la no gozo da mais perfeita saúde. Eu vou indo como Deus é servido. Antes assim que amortalhado. Venho pedi-la em casamento pela Segunda vez. Ruim é quem em ruim conta se tem, e eu que não me tenho nessa conta. Jamais senti por outra o que sinto pela senhora; mas uma vez é a primeira." (Declamando.) Que enfiada de anexins! Pois é o mesmo homem a falar! (Continua a ler.) "Tenho uns cobres a render; são poucos, é verdade, mas de hora em hora Deus melhora, e mais tem Deus para dar do que o diabo para levar. Não devo nada a ninguém, e quem não deve não teme. Tenho boa casa e boa mesa, e onde come um comem dois. Irei saber da resposta hoje mesmo. Todo seu, Isaías." (Guardando a carta.) Está bem aviado, Senhor Isaías! Vou às compras; é um excelente meio de me ver livre de vossemecê e de seus anexins. Vou preparar-me. (Sai pela porta da direita. Pausa.)
- Cena II -
(Isaías)Isaías (Deita com precaução a cabeça pela porta do fundo.) - Porta aberta, o justo peca. (Avançando na ponta dos pés.) A ocasião faz o ladrão. Preciso estudar o gênio desta mulher: antes que cases, olha o que fazes. Dois gênios iguais não fazem liga; se a pequena não me sai ao pintar, para cá vem de carrinho. É preciso olhar para o futuro: quem para adiante não olha atrás fica; quem cospe para o ar cai-lhe na cara, e quem boa cama faz nela se deita. Resolvi casar-me, mas bem sei que casar não é casaca. Alguém dirá que resolvi um pouco tarde, porém, mais vale tarde que nunca. Deus ajuda a quem madruga, é verdade; mas nem por muito madrugar se amanhece mais cedo. Procurei uma mulher como quem procura ouro. Infeliz até ali! Vi-as a dar com um pau: bonitas, que era um louvar a Deus de gatinhas; mas... nem tudo o que luz é ouro; feias também que era um Deus nos acuda; mas muitas vezes donde não se espera daí é que vem. Quem porfia mata caça dizia com meus botões, e não foi nada, que enquanto o diabo esfrega um olho, cá a dona encheu-me... o olho. Pois olhem que não me passou camarão pela malha... Esta é viúva e costureira... Estou pelo beicinho, e creio que estou servido. Quem já deu não tem para dar, é certo; mas, ora adeus! Quem muito quer muito perde. Já tomei informações a seu respeito: foram as melhores possíveis; ma como o saber não ocupa lugar, e mais vale um tolo no seu que um avisado no alheio, observei-a . Eu sou como São Tomé: ver para crer. Vi-a andar sempre sozinha... e nada de pândegas! Dize-me com quem andas, dir-te-ei as manhas que tens. (Examinando a casa.) Boa dona-de-casa parece ser! Asseio e simplicidade. Pelo dedo se conhece o gigante. Há de ser o que Deus quiser: o casamento e a mortalha no céu se talham. (Reparando.) Ai, que ela aí vem! (Perfilando-se.) Coragem, Isaías! Lembra-te de que um homem... (Atrapalhando-se.) é um gato e um bicho é um homem! Disse asneira...
- Cena III -
Isaías e InêsInês (Vem pronta para sair, ao ver Isaías assusta-se e quer fugir.) - Ai!
Isaías (Embargando-lhe a passagem.) - Ninguém deve correr sem ver de quê.
Inês - Que quer o senhor aqui?
Isaías - Vim em pessoa saber da resposta de minha carta: quem quer vai e quem não quer manda; quem nunca arriscou nunca perdeu nem ganhou; cautela e caldo de galinha...
Inês (Interrompendo-o .) - Não tenho resposta alguma que dar! Saia, senhor!
Isaías - Não há carta sem resposta...
Inês (Correndo à talha e trazendo um púcaro cheio d'água) - Saia, quando não...
Isaías (Impassível.) - Se me molhar, mais tempo passarei a seu lado; não hei de sair molhado à rua. Eh! Eh! Foi buscar lã e saiu tosquiada...
Inês - Eu grito!
Isaías - Não faça tal! Não seja tola, que quem o é para sim pede a Deus que o mate e ao diabo que o carregue! Não exponha a sua boa reputação! Veja que sou um rapaz; a um rapaz nada fica mal...
Inês - O senhor, um rapaz?! O senhor é um velho muito idiota e muito impertinente!
Isaías - O diabo não é tão feio como se pinta...
Inês - É feio, é!...
Isaías - Quem o feio ama bonito lhe parece.
Inês - Amá-lo eu?! Nunca...
Isaías - Ninguém diga: desta água não beberei...
Inês - É abominável! Irra!
Isaías - Água mole em pedra dura, tanto dá...
Inês - Repugnante!
Isaías - Quem espera sempre alcança.
Inês - Desengane-se!
Isaías - O futuro a Deus pertence!
Inês - Há alguém que me estima deveras...
Isaías - Esse alguém (Naturalmente.) sou eu.
Inês - Isso era o que faltava! (Suspirando.) Esse alguém...
Isaías - Quem conta um conto, acrescenta um ponto...
Inês - Esse alguém é um moço tão bonito... de tão boas qualidades...
Isaías - Quem elogia a noiva...
Inês - O senhor forma com ele um verdadeiro contraste.
Isaías - Quem desdenha quer comprar...
Inês - Comprar! Um homem tão feio!...
Isaías - Feio no corpo, bonito na alma.
Inês (Sentando-se.) - Deus me livre de semelhante marido!
Isaías - Presunção e água benta cada qual toma a que quer... (Senta-se também.)
Inês (Erguendo-se.) - Ah, o senhor senta-se? Dispõe-se a ficar! Meu Deus, isto foi um mal que me entrou pela porta!
Isaías (Sempre impassível.) - Há males que vêm para bem.
Inês - Temo-la travada.
Isaías - Venha sentar-se a meu lado. (Vendo que Inês senta-se longe dele.) Se não quiser, vou eu... (Dispõe-se a aproximar a cadeira.)
Inês - Pois sim! Não se incomode! (Faz-lhe a vontade.) Não há remédio!
Isaías (Chegando mais a cadeira.) - O que não tem remédio remediado está.
Inês (Afastando a sua.) - O que mais deseja?
Isaías - Diga-me cá: o seu noivo? ... (Faz-lhe uma cara.)
Inês - Não entendo.
Isaías - Para bom entendedor meia palavra basta...
Inês - Mas o senhor nem meia palavra disse!
Isaías - Pergunto se... fala francês...
Inês - Como?
Isaías - Ora bolas! Quem é surdo não conversa!
Inês - Mas a que vem essa pergunta?
Isaías (Naturalmente.) - Quem pergunta quer saber.
Inês - Ora!
Isaías (Sentencioso.) - Dois sacos vazios não se podem Ter de pé.
Inês - Essa teoria parece-se muito com o senhor.
Isaías - Por quê?
Inês - Porque já caducou também.
Isaías (Formalizado.) - Então eu já caduquei, menina? Isso é mentira.
Inês - É verdade.
Isaías - Não é.
Inês - É.
Isaías - Pois se é, nem todas as verdades se dizem. (Ergue-se e passeia.)
Inês - Ah! O senhor zanga-se? É porque quer; não me viesse dizer tolices! (Ergue-se.)
Isaías (Interrompendo o seu passeio, solenemente.) - Na casa em que não há pão, todos ralham, ninguém tem razão.
Inês - Ora! Somos ainda muito moços!
Isaías - Quem? Nós?
Inês (De mau humor.) - Não falo do senhor: falo dele...
Isaías - Ah! Fala dele...
Inês - Havemos de trabalhar um para o outro...
Isaías - É bom, é: Deus ajuda a quem trabalha.
CantoInês -
Sem desgosto viveremos,
Seremos ricos, talvez;
Muitos morgados teremos...
Isaías -
Mas um só de cada vez...
(Zangado.) A faceira
Talvez convidar-me queira
Para padrinho de algum!
Inês - E não suponha que, apesar de pobre, não me faça bonitos presentes o meu noivo.
Isaías - É! Quem cabras não tem e cabritos...
Inês - Insulta-o?
Isaías - Cão danado, todos a ele! Pois eu havia de insultá-lo, senhora?
Inês - Se estivesse calado...
Isaías - Sim, senhora: em boca fechada não entram mosquitos... mas é que o seu futurozinho me interessa...
Inês - Muito obrigada. (Senta-se.)
Isaías - Não há de quê. Se bem que eu não seja nenhum Matusalém, estou no caso de lhe dar conselhos. Ouça-me; quem me avisa meu amigo é; quem à boa árvore se chega, boa sombra o cobre.
Inês - Mesmo por já estar no caso de me dar conselhos, é que o não quero para marido.
Isaías - Se eu fosse jovem, não me havia de aceitar, por estar no caso de os receber. Preso por ter cão e preso por não ter!...
Inês - Não desejo enviuvar de novo...
Isaías - Vaso ruim não quebra...
Inês - Desengana-se, senhor: não são os seus ditados que me hão de fazer mudar de resolução! (Passeia.) Oh! Isaías (Acompanhando-a .) - Talvez façam, talvez!... Devagar se vai ao longe... muito tolo é quem se cansa... (Inês volta-se param defronte um do outro.) Menina, antes só do que mal acompanhado... Olhe que o pior cego é aquele que não quer ver...
Inês (À parte.) - Vou pregar-lhe uma peta. (Alto.) Mas se me faltasse esse noivo, outros rapazes há que me têm feito pé-de-alferes.
Isaías - Águas passadas não movem moinhos!
Inês - E entre eles...
Isaías -O passado! Passado!
Inês - Não me interrompa!.. E entre eles há um ricaço que em outro tempo...
Isaías -O tempo que vai não volta!
Inês - Não me interrompa, já disse! E entre eles há um ricaço que noutro tempo se esqueceu da promessa...
Isaías - O prometido é devido!
Inês - Ai, mau!... se esqueceu da promessa que me havia feito; mas que está outra vez pelo beicinho...
Isaías - Cesteiro que faz um cesto faz um cento... (Movimento de Inês. Com força.) Se tiver verga e tempo! E quem é esse... ricaço?
Inês - É segredo.
Isaías - Segredo em boca de mulher é manteiga em nariz... (A um gesto de Inês.) de homem! Mas faz bem, faz bem: o segredo é a alma do negócio...
Inês - O senhor tem na cabeça um moinho de adágios! Passa!...
Isaías - O que abunda não prejudica.
Inês - Bem! Para maçadas basta. Mude-se!
Isaías - Os incomodados é que se mudam.
Inês - Mas eu estou em minha casa, senhor!
Isaías - Descobriu mel de pau!
Inês - Irra! Que homem sem-vergonha!
Isaías (Examinando cinicamente a costura.) - Quem não tem vergonha todo o mundo é seu.
Inês - Se o meu noivo o visse aqui! Ele, que jurou dar cabo do primeiro rival que...
Isaías - Cão que ladra não morde.. E eu sou homem!... tenho força... E contra a força não há resistência!...
Inês (Irônica.) - Ora, por quem é, não faça mal ao pobre moço, sim?
Isaías - Faço!... Quem o seu inimigo poupa às mãos lhe morre. Julga que não estou falando sério? Uma coisa é ver a outra...
Inês (No mesmo.) - Ora não faça tal.
Isaías - Faço! Isto tão certo como dois e três serem cinco. São favas contadas. Quem não quiser ser lobo não lhe vista a pele!
Inês - Ma sabe que ele é valente?
Isaías - Também eu sou! Cá e lá más fadas há! Duro com duro não faz bom muro, e dois bicudos não se beijam!
Inês - Ponha-se ao fresco, preciso sair; tenho que fazer lá fora.
Isaías - E eu tenho que fazer cá dentro. Um dia bom mete-se em casa. (Pausa.) Olhe, senhora, olhe bem para mim acha-me feio; não acha?
Inês - Ai, ai, ai!...
Isaías - Eu também acho, e feliz é o doente que se conhece. Mas muitas vezes as aparências enganam e o hábito não faz o monge. Experimente e verá. (Suplicante.) Case comigo.
Inês - Gentes!
Isaías - Ah! Se fôssemos casadinhos, outro galo cantaria! Por exemplo: em vez de sair agora à rua, com este sol de matar passarinho, mandava-me a mim, ao seu maridinho...
Inês (Arremedando-o .) - Ao seu maridinho... (À parte.) Oh! Que idéia! Vou me ver livre dele. (Alto.) Então, sem sermos casados, não pode prestar-me um pequeno serviço?
Isaías - Conforme o serviço: ponha os pontos nos ii.
Inês - Se me fosse comprar três metros de escumilha. Olhe... Aqui tem a amostra... No armarinho do Godinho.. Sabe onde é?
Isaías - Sei; mas quando não soubesse? Quem tem boca vai a Roma.
Inês - Está contrariado?
Isaías - O que vai por gosto regala a vida.
Inês - Tome o dinheiro.
Isaías - Nada... não é preciso... (Vai saindo e estaca.) Diabo! Não me lembra um ditado a propósito! (Sai.)
- Cena IV -
(Inês)Inês - Está bem aviado... Quando voltares, hás de achar a porta fechada. Safa! Que maçador! Agora, tratemos de sair: são mais que horas. (Aparece à porta um carteiro.)
- Cena V -
Inês, o CarteiroO Carteiro - Boa tarde, minha senhora.
Inês - Boa tarde. O que deseja?
O Carteiro - Aqui tem esta carta... é da caixa urbana...
Inês - Uma carta? (Recebendo a carta, consigo.) De quem será? (Ao carteiro.) Obrigada.
O Carteiro - Não há de quê, minha senhora. Passe muito bem!
Inês - Adeus. (O carteiro sai.)
- Cena VI -
(Inês)Inês - Ah! A letra é de Filipe. Faz bem em escrever-me o ingrato! Há doze dias que nos não vemos... (Abre a carta e lê. Jogo de fisionomia.) "Inês. Peço-te perdão por ter dado causa a que perdesses comigo o teu tempo. Ofereceram-me um casamento vantajoso, e não soube recusar. Ainda uma vez perdão! Falta-me o ânimo para dizer-te mais alguma coisa. Dentro em uma semana estarei casado. Esquece-te de mim - Filipe." (Declamando.) Será possível! Oh! Meu Deus! (Relendo.) Sim... cá está... é a sua letra... (Depois de ter ficado pensativa um momento.) Ora, adeus. Eu também não gostava dele lá essas coisas... Digo mais, antes o Isaías; é mais velho, mais sensato, tem dinheiro a render, e Filipe acaba de me provar que o dinheiro é tudo nestes tempos. Espero aqui o Isaías com o meu "sim" perfeitamente engatilhado! Oh! O dinheiro...
RecitativoLouro dinheiro, soberano esplêndido,
Força, Direito, Rei dos reis, Razão.
Que ao trono teu auriluzente e fúlgido
Meus pobres hinos proclamar-te vão.Do teu poder universal, enérgico,
Ninguém se atreve a duvidar! Ninguém!
Rígida mola desta imensa máquina,
Fácil conduto para o eterno bem!Aos teus acenos, Deus antigo e déspota,
Aos teus acenos, Deus modernos e bom,
Caem virtudes e se exaltam vícios!
Todos te almejam precioso Dom!Inda hás de ser o derradeiro ídolo,
Inda hás de ser a só religião,
Louro dinheiro, soberano esplêndido,
Força, Dinheiro, Rei dos reis, Razão!...
- Cena VII -
Inês, IsaíasIsaías (Entrando.) - Quem canta seus males espanta.
Inês - Já de volta! O senhor foi a correr!
Isaías - Nada! Quem corre cansa. Encontrei outro armarinho mais perto...
Inês (Tomando a fazenda.) - Muito obrigada. Quanto custou?
Isaías - Um pau por um olho. Mil e duzentos o metro...
Inês - Pois olhe: o outro vende mais barato.
Isaías - O barato sai caro, e mais vale um gosto do que quatro vinténs.
Inês - Regateou?
Isaías - Regatear! Para quê? Mais tem Deus para dar do que o diabo para tomar.
Inês - Já vejo que é tão pródigo de dinheiro como de anexins!
Isaías - Da pataca do sovina o diabo tem três tostões e dez réis. Poupado sim, sovina não. Eu cá sou assim! Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Tenho um só defeito: quero casar-me. Cada louco com sua manha.Canto
Há sido um gato sapato;
Preciso do casamento!
O maldito celibato
Não é viver, é tormento.Quero honesta rapariga
Entre as belas procurar,
Muito embora o mundo diga:
Quem já andou não tem pra andar...A existência de casado
Talvez venturas me traga,
Se diz verdade o ditado:
Amor com amor se paga.Se eu for constante e fervente,
Ela tudo isso será;
Se eu amá-la eternamente,
Ela também me amará!Eu escravo e a esposa escrava,
Viveremos sem desgosto;
Uma mão a outra lava
E ambas lavam o rosto!...Faço-lhe pela milésima vez o meu pedido. Nem todos os dias há carne gorda. A senhora falou-me em um apaixonado. Por onde andará ele? Eu estou aqui, e mais vale um pássaro na mão do que dois a voar.
Inês (À parte.) - Levemos a coisa com jeito. (Alto.) O senhor... (Com uma idéia.) Ah!
Isaías - Oh!
Inês - Já viu representar As pragas do Capitão?
Isaías - Não, senhora. De pragas ando eu farto.
Inês - Era um militar que praguejava muito. A senhora que ele amava deu-lhe a mão de esposa, mas depois de estabelecer-lhe a condição de não praguejar durante meia hora.
Isaías - Falo em alhos, a senhora responde com bugalhos!
Inês - Já lá vamos aos alhos aceito a sua proposta.
Isaías (Impetuosamente.) - Aceita?
Inês - Sim, senhor.
Isaías (Incrédulo.) - Qual! Quando a esmola é muita, o pobre desconfia...
Inês - Mas imponho também a minha condição...
Isaías - Imponha: manda quem pode.
Inês - Se conseguir levar meia hora sem...
Isaías - Sem praguejar?...
Inês - Não! Sem dizer um anexim! Se conseguir, é sua a minha mão.
Isaías - Deveras?
Inês (Sentando-se.) - Deveras.
Isaías - Mas eu posso estar calado?
Inês - Como assim?! Era o que faltava! Há de falar pelos cotovelos!
Isaías - Isso é um pouco difícil: o costume faz lei...
Inês - Ai, que escapou-lhe um!
Isaías - Pois o que quer? A continuação do cachimbo...
Inês - Faz a boca torta, já duas vezes.
Isaías - Nas três o diabo as fez.
Inês - Ai, ai, ai! Vamos muito mal!
Isaías - Ma não tínhamos ainda entrado em campo... Aqueles foram ditos de propósito. Agora sim! Agora é que são elas!
Inês - Outro!
Isaías - Protesto! "Agora é que são elas" nunca foi anexim. A César o que é de César!
Inês - O senhor vai perder... Olhe: são duas horas. (Aponta para um relógio que deve estar sobre a mesa.) Aceita o desafio? (Pausa.) Bem. Quem cala consente...
Isaías - Ah! Agora é a senhora quem os diz! Virou-se o feitiço contra o feiticeiro...
Inês - Ai, ai!
Isaías - Foi engano.
Inês - Dos enganos comem os escrivães. (Pausa.) Então? Diga alguma coisa...
Isaías - O que hei de dizer.. senão.... que gosto muito da senhora... e...
Inês - Pois diga: vai tantas vezes o cântaro à fonte, que lá fica.
Isaías - Não me provoque, senhora, não me provoque!
Inês - Cada qual puxa a brasa para sua sardinha...
Isaías (Agitado.) - Brasa! Sardinha! Oh! Que suplício!
Inês - O que tem o senhor?
Isaías - Nada... não tenho nada... é que esta proibição me incomoda... Este maldito costume... parece que não estou em mim...
Inês - Sabe o que mais?
Isaías - Vou saber.
Inês - Diga o que quiser! Abra a torneira dos anexins, ditados, rifões, sentenças, adágios e provérbios... Fale, fale para aí?
Isaías - E a condição?
Inês - Caducou. (Dando-lhe a mão.) Aqui tem: sou sua.
Isaías (Contente.) - Minha! (Em outro tom.) E os outros?
Inês - Não existem, nunca existiram!
Isaías - Pois estou acordado? Se estiver dormindo, deixa-me estar: não me acordes.
Inês - Está bem acordado.
Isaías - Estou?! (Pulando de contente.) Então viva Deus! Viva o prazer! ... Trá lá lá rá lá! (Quer abraçá-la.)
Inês (Gritando.) - Alto lá! Mais amor e menor confiança!
Isaías - E que o rato nunca comeu mel, quando come.. (Outro tom.) Pode-se dizer este ditadozinho?...
Inês - Quantos quiser!
Isaías (Concluindo.) - ... se lambuza! (Tomando-lhe as mãos.) E tu? Amas-me, meu bem?
Inês - Sossegue: o amor virá depois. Seja bom marido e deixe o barco andar!
Isaías - Apoiado. Roma não se fez num dia!
Inês - E tenha sempre muita fé nos seus anexins.
Isaías - É verdade: O que tem de ser tem muita força. O homem põe... e a mulher dispõe!...
Inês - Basta! Despeça-se destes senhores, e vá tratar dos papéis...
Isaías - Quem tem boca não manda... cantar. Mas, enfim... (Ao público.)
Copla finalAntes que daqui nos vamos,
Inês vos dirá quais são
Os votos que alimentamos
No fundo do coração.Inês -
Os votos que neste instante
Fazemos nestes confins
(Deita a mão sobre o coração.)
É que nos ameis bastante
Embora por anexins.Ambos -
Muitas palmas esperamos
De vós:
Metade para o autor, metade para nós.(Cai o pano.)
FIM