O
Vaqueano, de Apolinário Porto-Alegre
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O VAQUEANO
Apolinário Porto-Alegre
I
Paisagem morta
II
A marcha
III
Avençal
IV
A canguçu
V
Os guaicanâs
VI
Moisés
Moisés era um mulato, cuja
vida desde a infância passara na caça.
Não havia na Província
mais perito e experimentado caçador. Raro era o mês que não fazia descer
aos portos mais freqüentados e comerciais, pelo menos, dez peles, ramo
de negócios que, de sobejo, satisfazia as suas necessidades.
Uma exígua e diminuta horda
indígena, pálido resto da antiga nação guaicanã, obedecia-lhe como a
seus tradicionais caciques, recebendo em retomo da submissão, além da
amizade sincera e leal, imensos favores do mestiço. Também ele fazia
consistir toda a felicidade e alegria de sua existência naquele mundo
à parte que criara para si. Casara há quatro anos com uma das mais gentis
índias da tribo, e o novo laço mais reatara as relações que existiam.
Todo o poder de Moisés
provinha menos do extremo valor e inteligência superior que incutiam
respeito aos índios, que da gratidão pelo amor e simpatia que sempre
lhes tributava. Nem há melhores penhores que os das dívidas do coração.
Quando rebentara a revolução,
procuraram atraí-lo de ambas as parcialidades; porém, convicto de que
os brancos que o desprezariam em qualquer outra ocasião, o chamavam
agora por mero interesse ou para constituído ignóbil instrumento de
suas lutas, teve a coragem e sabedoria de repulsar os encantos mágicos
das promessas.
Respondeu que era bastante
rico nos matos para desejar maiores posses e quanto às idéias que se
debatiam entre os dois partidos, lhe eram indiferentes: porquanto a
cor que trazia no rosto de per si o afastava da comunhão dos brancos,
onde seria considerado com desprezo.
As derradeiras palavras
aos mensageiros merecem ser rememoradas:
- Liberdade?! Quem é mais
livre do que Moisés na serrania, onde não há ódio de raças? Onde o homem
domina a terra, onde o amigo não mente ao amigo e a mulher não mente
ao marido? Não quero mais liberdade do que tenho. Vede. Desde o cerro
ali dependurado até o fundo dos taimbés, isto me pertence. Piso a pedra
que traz o ouro e a atiro longe. E é isto que vindes oferecer-me? Parti,
adeus. O mulato vive bem nas brenhas.
Eis o estereótipo do novo
personagem.
Seu caráter ai se reproduz.
Quando as duas turmas toparam
na selva e se seguiu o reconhecimento de Avençal e Moisés, este bradou
aos asseclas:
- Soltem os homens.
Feito isto, voltou-se para
o vaqueano, dominado por luridas e negras recordações.
- Então, José - pronunciou
com carinho e expressão paternal -, como depois de doze anos vim encontrar-te
em minhas terras?
- É simples, Moisés, não
viste os fogos nas abas da serra?
- Vi e vinha para campear,
quando um tiro me dirigiu para aqui.
- Pois são as forças do
general Canabarro; faço parte delas como vaqueano.
- E o encontro aqui?
- Não tivemos hoje ração
de carne; convidei a meus companheiros para tentarem a caça.
- De tigres?!
- Escuta - e em tom baixo
prosseguiu -, o general ia mandar-me amanhã à estância de José Capinchos.
Sabes que me era impossível, por isso ataquei a fera com a firme tenção
de deixar-me ferir. Nesse estado, outro iria. Devia vir sozinho.
- Caramba! E não pensaste
em mim?
- Eu não penso mais, Moisés,
desde aquela noite. .. Oh! Não a lembro sem me arrepiar as carnes. Desde
então procuro a morte e a morte zomba de mim! Pobre Rosita!
- Não tenhas cuidado, José,
ela e o irmão ainda ficaram por cá dois anos; depois venderam campos
e gadaria e ninguém mais falou deles, nem soube notícias.
- Nem desconfiam para onde
foram?
- Não.
- Rosita deve amaldiçoar-me.
- Qual! rapaz. A doninha
por ti era capaz de conchavar alma com o demo.
O caçador, notando que
o assunto o mortificava, quis distraí-lo.
- Vamos a meus pagos; distam
daqui vinte quadras. Lá temos bons assados de veado, tatu, anta e o
mais que queiram.
- Ainda bem, que desde
ontem não temos uma rês para carnear - refletiu Manduca.
- Com um tempo assim o
gado retirou-se para o mato.
Pouco depois se puseram
todos em marcha para a de Moisés.
Demorava a habitação do
mulato numa clareira circular, impenetrável e oculta para qualquer outro
que não fosse ele ou sua gente. O arvoredo, naturalmente cercado de
grossos e longos cipós e pamponosas trepadeiras, tinha recebido retoques
artísticos!
Assim, uma cinta de bambus
cerrava o âmbito de tal modo que uma saracura ou galinhola com dificuldade
romperia o ordume de folhas e espinhos. Em seguida a esta defensão que
forrava o exterior, na parte interna via-se uma estacada de pau-a-pique,
cujas extremidades chanfravam, formando perigosas puas.
Também a entrada não era
por ali.
Dum lado desatava-se um
cordão de rochedos alcantilados. Entre eles destacava uma larga fenda,
conseqüência dum raio ou de abalo na crosta do globo.
Parecia sumir-se nas entranhas
da terra, mas quem penetrasse por ela depararia um conduto ou via subterrânea
de cinco a seis braças, terminando numa rua assoberbada pela penedia,
que, de fora erguida a pino, por dentro era acessível e de fácil subida.
Constituía uma trincheira
natural e inexpugnável pela qual se ia à clareira.
Aqui se desenrolava a taba,
não estritamente como a dos selvagens, aperfeiçoada pela influência
do mulato, marco miliário entre a civilização e a barbaria. As choças
ou copés tinham janelas e portas e as últimas de altura que não obrigava
a abaixar-se para entrar, como acontece geralmente nas moradas do gentio.
Farroupilhas e índios entraram
e momentos após refestelavam-se em torno dum braseiro, onde o cheiro
de apetitosa carne lhes pruria o olfato, prometendo em pouco dar o que
fazer ao paladar.
Enquanto não começava o
br6dio, foram desentanguindo-se com alguns borrachões de chifre cheios
de aguardente de palmito.
O vaqueano era o único
que se mostrava sombrio no meio da alegria geral.
VII
Os quero-queros
Estamos a 22 de julho.
Anoitecera.
A vila de Laguna, à margem
oriental do lago do mesmo nome, destacava nas sombras com suas casas
que resplendiam caiadas com cal de marisco.
Era um lugar triste sob
o céu invernoso, entre os nevoeiros hibernais, uma cena desoladora,
uma perspectiva que estringia o coração.
Mal entardecia, o silêncio
reinava.
Os balidos do lago e os
bufidos do oceano, quase a meia légua de distância, perturbavam somente
a mudez que selava aquele como movimento funerário branquejando no escuro
da noite.
À borda do lago, na margem
oposta, resvalou uma canoa em direção à vila.
Dois homens a tripulavam.
Talvez pescadores, diria
quem os visse.
Abicaram à praia em horas
mortas, ataram o barco a uma estaca e cautelosos começaram a subir uma
cochilha que demora junto à povoação.
Mal haviam dado alguns
passos, um bando de quero-queros levantou vôo fazendo desmesurado alarido.
- Diacho! Os malditos vêm
até aqui! - murmurou um deles em tom baixo, em que se sentia a modulação
trémula da cólera reconcentrada.
O outro enfiou o olhar
pela espessa escuridão e respondeu:
- O irmão não receie, o
pássaro da campina vela mais que o branco. O branco. O branco dorme.
No entretanto, as aves
pervígeis dos vargedos pátrios continuavam a despertar a solidão com
o gárrulo e ruidoso acento.
Os dois vultos deitaram-se
por terra, por precaução.
É admirável o papel que
representaram na revolução os quero-queros. Eram bombeiros que ambos
os partidos tiveram sempre a seu serviço.
Os gansos, um dia, salvaram
Roma de cair no poder dos gauleses; eles muitas vezes fizeram abortar
ciladas e surpresas bem combinadas e amadurecidos.
Quantos que ainda subsistem
daquele cataclismo político não se recordam agradecidos dos amigos voláteis
que lhes salvaram a vida de traiçoeira emboscada, em que de certo pereceriam?
Quantos não lhes votam
ainda hoje uma espécie de culto, como o romeiro árabe ao katã do deserto!
Quantos?
Porto Alegre sitiada, raro
era o dia em que na Várzea e caminhos do Meio, da Azenha e outros não
houvesse sanguinários tiroteios e correrias.
De parte a parte inventavam
meios de destruição. As guerrilhas não cessavam. Os assaltos noturnos
e de surpresa, protegidos pelo arvoredo dos arredores, eram diários.
Também ali velavam os pássaros
das campinas do sul, como sentinelas incomparáveis que nunca conciliavam
o sono.
Eram eles que davam sempre
o sinal de alarma, que frustravam os ardis, onde o sangue espadanaria
em tufos, e mais algumas vítimas seriam o êxito da empresa.
Os dois homens, quando
viram que tudo permanecia no mesmo estado, continuaram em sua incursão.
Num sobrado, nas imediações
da igreja de Santo Antônio dos Anjos, por uma vidraça, derramava-se
abundante luz.
O que primeiro ouvimos
disse:
- Quem está tão tranqüilamente
não se teme de perigos. Esta gente não teve aviso.
- Irmão, a macega está
sossegada e oculta a jararaca e a jararaca traz a morte no dente. Vou
pedir pousada na casa em que vemos luz. Tomarei informações. Antes de
amanhecer, virei dizer-te o que há para partires. Se te acontecer alguma
coisa, faze-me ouvir o grito da gaivota.
E, dito isso, partiu.
Três vezes agitou a aldrava
de uma porta de rótulas, antes que viessem abrir-lha. Uma negra apareceu
afinal e, ouvindo o pedido de pouso, retirou-se, mandando-o esperar.
A demora foi curta. Voltou logo para fazê-lo entrar.
VIII
Conhecidos
O passageiro penetrou na
sala.
Três exclamações rebentaram
a um tempo, em coro.
- André! Rosita!
- Moisés!
André Capinchos e sua irmã
rodearam o mulato, cuja epiderme de bronze empalidecera, a ficar fula.
O destemido caçador tremia, tremia. . . De quê?
Tinha medo, ele que só
se arreceava do braço de Deus, ele cujo punho robusto macerava os músculos
das garras da onça, cuja clavina não errava um tiro, cuja faca não falhava
um pontaço? Ele cuja grandeza o fizera o ídolo de uma tribo?
Não seria funda emoção?
Era tudo simultaneamente.
Travemos agora conhecimento
com os novos personagens.
A família Capinchos compunha-se
nessa épooa de duas pessoas: André e Rosa, irmãos.
O primeiro tinha uma bela
fisionomia velada em melancólico descor, que denunciava uma mocidade
abalada por fortes comoções morais. Quando a alma sangra, as rosas dos
anos juvenis desbotam; o viço vai-se, resta a palidez da angústia entre
os espinhos que pungem.
Então, contava trinta e
dois anos.
Rosita era uma mimosa criação
rio-grandense, o tipo sedutor da serrana; linda hortênsia como a que
desabrocha nas suas florestas natalícias, figura radiante que demonstrava
no moreno do semblante a aliança de duas raças, a comunhão do sangue
americano e europeu.
Os olhos negros, úmidos
de volúpia, eram como dois guabijus nos rocios da madrugada, refulgindo
ao primeiro raio do sol; diziam tanto amor, tanta saudade que mais não!
Às vezes, dir-se-ia, vendo
dentre os cílios veludosos fugir rúbea centelha, que uma tempestade
rugia em seu coração. Então o rubor que lhe purpurava a face, esvaecia
em ténue vapor, e o corpo, de contornos de uma estátua helena, sentia
como lhe passar o fluido da morte.
O que era?
Deus e ela o sabiam, e
quem sabe se ninguém! Há tanto mistério e incoerência numa compleição
feminil, que mais vale atingir as raias do infinito, contar as areias
do fundo do oceano que lhe profundar os pensamentos.
Há 12 anos, depois que
perdera o pai, se um sorriso vinha engastar em seu lábio mórbido, distendia
as pétalas da melancolia. Parecia trazer lágrimas de imenso infortúnio.
Choraria de constante aquela
moça?
O que significavam as lívidas
olheiras, mergulhando em sombras os lindos olhos?
Há arcanos num quarto de
virgem que nenhum profano ousará jamais devassar.
Talvez chorasse por noites
em que a imagem de uma saudade se reclinasse no seio túmido de suspiros,
quando em ermas insônias uma visão deslumbrante lhe passasse pela mente,
como uma estrela à face do céu, como uma pluma de colheireiro à flor
do lago; talvez chorasse um passado que foi e não há de voltar.
Nós, os homens, naturezas
graníticas, quantas vezes não folheamos o livro da florida razão da
existência, enviando-lhe um temo saudoso, saturado de pranto que embarga
a voz e nos faz descrer do futuro? Há momentos em que o passado resume
todas as venturas da vida; porque o presente é uma agonia, o futuro,
um mausoléu. Então ele vale mais que uma recordação agridoce, soberba
flor do cacto entre os acúleos, sentimento que só o lábio luso derrama
nesta harmonia: Saudade! Saudade!
Por que Rosita na vigésima-sétima
primavera não terá também uma história - compêndio do sorriso que se
entrelaça à lágrima? Ilha de delícias num mar de procelas?
O coração de uma moça,
desde que atinge a nubilidade, enceta um romance, às vezes, rico em
episódios, raros, quase excepcionalmente pobre de sentimento.
IX
O caracará e a juriti
Moisés - dizia André -,
sete anos lancei-me em busca do assassino de meu pai. Eu havia jurado
uma vingança se, parelha... Hépuxa! se lhe boto a mão! ... Queria estaqueá-lo
durante dois dias, insultando-o, cuspindo-lhe às faces. .. E depois?!
Ah! Ah! Pôr-lhe-ia a marca da vítima, o ferro em brasa no rosto...
E fez breve pausa para
rir como não ri um ente humano. Estranho rir, mefistofélico e divino!
onde à ironia adunava uma dor profunda, ao ódio a grandeza de um sentimento
santo, onde o céu e o inferno pareciam fazer a mais incrível das alianças!
O mulato sentia gelo até
a medula dos ossos.
Rosita empalidecera. Um
busto de lioz não tinha a brancura dela: mas também despedia do olhar
rútilos do jaguar ferido. Semelhava uma camada de gelo em cujo seio
ebulia um vulcão.
- Que tens, irmã? - perguntou
com acerbo sarcasmo.
- É horrível! É horrível
- e ocultou a fronte entre os braços.
- És muito piedosa! - e
tinha tal expressão no cenho carregado, onde condensava uma tempestade
que arrancou um grito involuntário a Moisés.
Voltando-se para este,
prosseguiu:
- Não é nada ainda, Moisés.
Descansarei por alguns dias. Vendi todos os meus cabedais para campeá-lo,
semanas, meses, anos e séculos, se fora possível. Dobras, as tenho de
remanescente. Depois das estacas o ataria ao palanque, e o laço havia
de vergoar aquele corpo infame. Ah! eu não o ter, não poder executar
meus planos!
A raiva o sufocava, parou
e tomou fôlego.
- Em continuação, cerceando
a mão direita, mandaria queimá-la em sua presença, mão maldita, que,
por Deus, hei de topá-la ainda! Ainda, Moisés, nova parada para tratá-lo.
Quem assim sabe poupar o inimigo, torna mais doce a vinganga. E o fim?
Coepuxa! Que bonita charqueada! Carneava-o vivo.
O caçador em pé, aterrorizado,
tinha uma das mãos na cadeira, em atitude de fugir. Os cabelos encarapinhados
estavam hirtos no pericrânio como os espinhos na palma da urumbeba.
A moça erguera o porte.
O colo arfava ofegante. A cólera bulhava; das pálpebras chispavam incêndios.
A fronte altiva derrubada sobre a espádua cingida de uma auréola rubra
e luminosa era a mais sublime idealização do desafio. A destra erguida
radiava uma provocação:
- És um miserável! - exclamou.
E na frase que soltara espargia todos os estos do coração, todos os
eflúvios da alma... Aquela frase queimava mais que a lava candente.
O irmão caminhou com passo
lento, tomou-lhe o pulso, o constringiu a roxear, sem que ela mostrasse
nos músculos a menor crispatura espasmódica de sofrimento, sem que soltasse
um só gemido.
André disse com inflexão
lúgubre:
- Rosa, eu quero vingar
nosso pai. Ouviste?
- Mentes... Eles cruzaram
as armas. .. Mentes, covarde! Não ousarias afrontar José, face a face.
André apertou-lhe o pulso
com mais força. O sangue golfou em jorro. Ela desmaiou.
- Mulheres?! Audácia e
fraquez!I Nódoas numa família!
Abandonou-a.
Seu rosto readquiriu a
impassibilidade habitual. As rugas distenderam. Procurou Moisés. Desaparecera
durante a última cena. O mulato saíra alucinado. Só ao transpor a soleira
da casa, sentindo a baforada fria da noite, voltou a si e pôde refletir.
A caminho, veio-lhe mentalmente a comparação do homem que deixara, com
tão agradável conspecto, ocultando um coração pervertido, e os animais
que caçava constantemente. E em sua consciência decidia que se o houvesse
morto teria feito um grande bem à humanidade. Veleidades teve ele de
retroceder para satisfazer a inspiração de momento; mas a comissão que
desempenhava o retinha, bem como a espécie de terror que lhe incutia
o adversário.
- Caramba! Ver a pequena
assim aperreada e consentir que ele fizesse o que não deixo um caracará
fazer à juriti!
Teve medo... Ninguém dirá...
E assim ponderando, lembrou-se
do guaicanã: - Que a erva tranquila escondia a jararaca.
- E quem mata uma jararaca
não tem lá nenhum crime - continuou a falar de si para si. - Valia a
pena lhe destroçar a cabeça. Não sei mesmo que diabo tive; foi uma nuvem
que me passou cá pela vista...
O grito da gaivota penetrou
o silêncio da noite.
Moisés parou o passo e
o cogitar. Arrastado pelo monólogo, abalado pelo que assistira, e quase
de corrida, esquecera o companheiro.
O índio encostado a uma
moita adormecera. O filho da selva tem o sono leve como os quero-queros
da campina. Acordara às compridas pisadas do caçador. Lobrigou o vulto
na penumbra, e em distância não pôde reconhecê-lo. Atirou o nariz ao
espaço; três minutos depois recebeu emanações que o fizeram desconfiar,
e, para certificar seu perigo, deu o sinal convencionado.
Outro grito da gaivota
repercutiu.
Um corpo serpenteou na
escuridão como um reptil e foi deter-se junto a Moisés.
- Então?
- À canoa, depressa.
X
Regata noturna
Acanoa deslizou na superfície
arrepiada da laguna sem fazer bulha. Ia remando a voga surda o índio.
Mal haviam arrancado da
praia, os quero-queros desprenderam o clamor de desperto no descampado.
O irmão acordou o branco.
E, suspendendo o remo, debruçou meio coreto à borda da popa, com o ouvido
inclinado para a terra.
- Que vês? - perguntou
Moisés.
- O capim estala às passadas
do inimigo. O vento traz algumas vozes.
- Quantos julgas?
Sobresteve por instantes
na mesma atitude, distendendo finalmente a mão e mostrando os cinco
dedos.
- Vêm perto?
- Sim, e a cotia não anda
mais ligeira nas folhas secas do mato.
- Partamos, não há tempo
a perder.
E o mulato, engatilhando
a clavina, que depositou sobre o joelho, travou com rapidez de um remo.
A pequena nave arquejou
e rompeu o seio das águas, deixando após si uma esteira espuma. Jamais
o biguá sulcara a onda do lago tão ligeiro como o leve lenho.
O mulato procurava adivinhar
os motivos de semelhante perseguição. Enquanto os braços se esforçavam
na retirada, o pensamento passava por laboriosa gestação. Quem o perseguia?
- perguntava. Não cria que o tomassem por bombeiro dos farroupilhas.
Na vila ninguém mesmo os supunha capazes da inaudita audácia de invadirem
uma província comarcã.
Concluíra isto da conversação
que tivera com André, antes do último episódio a que assistimos.
Quem sabe se o próprio
André, como ele fora testemunha da cena com Rosita, não queria envidá-lo?
Daquele homem tudo era fácil de esperar.
- Moisés! - rugiu uma voz
sobre a margem. Era ele. O caçador, como ferido por uma pilha elétrica,
notou sobre se devia responder. Resolveu calar-se.
Uma descarga de fuzilaria
fez reverberar fosforescentes as águas que despediram feixes de centelhas,
ao clarão inesperado. Uma bala assoviou junto à face de Moisés, que,
tomando a arma, a desfechou em direção ao ponto de onde atiraram. Um
gemido anunciou-lhe que a carga fora bem empregada.
O guaicanã travara do arco
no fundo da canoa e fizera também voar duas flechas, cujo sibilo foi
abafado pela voz de Capinchos, ordenando aos seus:
- Depressa ao bote, tragam-me
o negro morto ou vivo.
- Aos remos! - gritou Moisés.
- Aos remos - repetiram
os outros como em eco na lezíria.
Sucedeu-se então uma cena
cheia de movimento, uma regata a vogas forçadas, onde cada qual punha
todo o cometimento, uns em tocarem a terra, outros em alcançarem a canoa.
Expliquemos os motivos
que obrigaram André a seguir as pegadas do hóspede arredio. Quando o
procurou e achou-se a sós, suspicaz como era, dominado por uma idéia
fixa e invariável de sangue, natureza felina sempre preparada ao salto,
teve um pressentimento ominoso. Ligou certos acidentes, a principio
despercebidos, como o ar assustadiço de Moisés, o recato em dar informações
quando ele as pedira, e tomou a resolução de, a todo transe, sondar
a suspeita que pungia.
O mais já desfilou nas
peripécias referidas.
Não lhe restou, porém,
mais dúvida quanto às más intenções do mestiço, desde que o viu embarcado
e fugitivo. Chamou-o, e não obtendo resposta, mandou seis dos peões
ou capangas, que o seguiam, atirarem, fazendo-os incontinenti embarcar.
Um destes caiu-lhe ao lado e ele mesmo sentiu a pluma de uma taquara
titilar-lhe a pele. Não se intimidou, pelo contrário, o ataque exacerbara-o
mais. Ter agora o inimigo sob seu guante ferro, sob sua vontade inabalável,
era não só urgente, mas necessário, impreterível. Os meios não os considerava
ele, ex-estanceiro de baraço e cutelo, o homem que respirava pelo pulmão
do crime, movia-se pelo nervo do ódio, não pensava senão pelo cérebro
da vingança. Todos os meios eram possíveis, legítimos; o mais escabroso
não era justificá-los, a dificuldade residia na execução. Também a ela
punha ombros com afinco desesperado. Assim havia 12 anos que procurava
Avençal, sem desânimo e fadiga; havia 12 anos que a contrariedade lhe
desenvolvia de dia para dia o plano cruento em germe, o fazia abrolhar
mais robusto e vivaz, ajuntava mais alguns apêndioes terríveis, mais
se radicava em sua natureza, consubstanciava o próprio homem.
Não são apenas as grandes
idéias e os nobres e acendrados sentimentos que granjeiam fanáticos;
os instintos grosseiros, a causa do mal e da perversidade arrastam-nos
também a seu carro de triunfo. Com Sócrates vem Anito, com o Nazareno
a seita farisíaca, com Galileu a inquisição. Maxêncio sorri. vendo a
extenuação da vítima ligada aos cadáveres; Nero depara um devaneio de
artista no incêndio de Roma.
Numa esfera mais obscura
e menos esplêndida, porém não menos verdadeira, destaca Avençal a par
do vulto de André. A diferença repousa na distância da história ao romance.
A lógica das paixões é idêntica.
XI
Pechada morruda
O tiroteio marítimo continuou
talvez pelo espaço de duas horas sem a gente de André, apesar da superioridade
do número e do batel o conseguir dar abordagem ao fraco toro de timbaúva
concavado, cuja tripulação resumida e em retirada não entibiava de ânimo.
A canoa ricocheteava salpicando o ar de gotas por miríades à contadora
quilha. Os remeiros tinham a vertigem de vôo.
O leve madeiro semelhava
à ave aquática abrindo as asas e esvoejando à flor das ondas.
Os mercenários peões não
puderam nunca romper e ganhar terreno nas 50 braças que os distanciavam,
nem poupavam balas que, sempre desviadas do alvo, indicavam os braços
servis que as atiravam.
O céu, entretanto, embruscou-se,
a frouxa claridade das estrelas começou a empanar pela carneirada de
nuvens que uma brisa do sul arreganhava.
A escassez de luz protegia
a Moisés e a seu companheiro, tornando-os menos visíveis; contudo não
se embeveceu com o auxílio quase providencial, viu que o perigo não
era menos iminente. Com o pensamento em atividade, os pulsos em moto-contínuo,
a pupila acesa na treva espessa da noite, o suor a filtrar em bagas,
não confiava muito em milagres, sem esforço individual. Vislumbrara-lhe
a doce esperança numa sombra projetada na face cintilante das águas.
Há muito a contemplava com olhar magnético. Era uma grande ilha de aguapés
que boiava na rota seguida.
Quando se avizinhou dela,
achegou a boca ao ouvido do índio e disse em tom baixo e incisivo, indigitando-a:
- Ali.
Ergueu o talhe robusto,
sepultou a clavina no fundo do pego. O outro, que logo lhe compreendeu
o Pensamento, tomou o arco.
Ambos segurando as folhas
da planta marinha, impeliram com os pés a borda da canoa que flutuou
em direção norte, quando eles com bracejo surdo arrastaram a salvadora
cesta de nenúfares à margem meridional, e só perderam um pouco de terror
misterioso que os dominava, depois que ouviram mais ao longe o ranger
dos toletes às remadas no bote.
O estratagema iludiu perfeitamente
os contrários.
Mas qual não foi a admiração
e pasmo destes quando se viram no triste ludíbrio de uma ilusão ou de
um acontecimento fantástico, deparando com a canoa vazia. Interrogaram-se
mutuamente com os olhos, com a palavra e os esgares.
Oscilaram alguns instantes
duvidosos sobre o rumo que tomariam. Ao fim com o instinto de feras
esfaimadas foram no encalço certeiro. Verdade é que os perseguidos lhes
davam lampas, além da circunstância de terem desaparecido de um modo
estranho e sobrenatural.
O mulato e o guaicanã apojam
à praia, galfam o solo, entre a rama miúda e rúla dos sarandis. Ladeiam
alguns momentos o lago e internam-se numa ponta de mato, onde haviam
deixado à soga dois cavalos. Parou de súbito Moisés e levando as mãos
à cabeça:
- Aquele homem! Aquele
homem! Sempre que o encontro uma desgraça me acontece.
O outro curvando-se e examinando
um arbusto donde pendiam ainda os fragmentos de duas rijeiras de guasca,
disse com gravidade:
- O guaraxaim protege o
inimigo, irmão. Os cavalos voltaram ao acampamento.
Sem trocarem mais uma palavra,
ambos sumiram numa densa reboleira do matagal.
As nuvens caliginosas distenderam
e o céu começou a peneirar fina garoa que, condensando, cobriu a terra
de um manto inconsútil, alvacento e imenso, como o espaço que o olhar
abrangia.
Deus velava por eles.
A cada passo os interceptava
à perseguição.
Meia hora escoara. Moisés
e o guaicanã caminhavam calados e tristes, tendo na passagem sérias
precauções para evitar que encontrassem a trilha percorrida por eles.
Nenhum sinal até então indicava que os sicários de Capinchos os fariscavam.
Súbito o indígena estremeceu,
abaixou-se, colou o ouvido ao chão e sacudiu a cabeça.
- O que há?
- Eles!
- Caramba!
Trazem cachorros.
A brenha era cerrada. De
instante a instante o latir dos cães aproximava. A folhagem ramalhou.
O índio embebeu uma seta no arco, a qual sibilou e deitou por terra
um bugio. Também, sem demora, cingindo um tronco, trepou por ele acima.
O mulato fez outro tanto. Ambos começaram a saltar de galho em galho
como dois quatis que fogem à sanha dos caçadores. A viagem aérea foi
de pouca duração, no espaço de menos de uma quadra.
O guaicanã calculara que
os seguiam pelo rastro. Matreiro como um veado que conhece o olfato
da raça canina, extinguiu todas as emanações que pudessem traí-los.
E para ganhar tempo e deter os cães, abateu o bugio que tivera a imprudência
de vir espreitá-los.
Enquanto uns assim exauriam
os recursos de defesa, a peonada de André, tão prática e conhecedora
de semelhantes meios como eles próprios, não os economizava para alcançá-los.
-Desembarcando, conheceram
logo o desastre da perda dos cavalos e concluíram que fugiam a pé. Puseram,
pois, os animais à pista.
- Furtam-nos a volta -
disse um, parando ante a presa que agonizava atravessada de uma flecha.
- Vamos negaceá-los de outro jeito. Dividiu a gente em duas turmas e
cada uma tomou diferente caminho com o propósito de se reunirem numa
campina fora do mato.
O mulato e o companheiro,
saindo do bosque, entraram num descampado, onde agachados entre as macegas
prosseguiam rápidos na retirada. Ali encontraram uma partida volante
de farroupilhas. Criaram alma nova e, em vez de recuarem, avançaram,
esperando a pé firme. O inimigo não tardou muito. Vinha a marcha forçada.
Além da cerração, o auxílio que viera como caído das nuvens deu a Moisés
o condão de fazer prodígios. E os fez. Quando a gente de André pensava
agarrá-los e conduzi-los como terneirinhos à mangueira, sofreu tal refrega,
que nenhum conseguiu escapar; uns mortos, outros prisioneiros.
- Caramba! - rugiu o mulato
- que pechada morruda!
XII
A estância de Gil
Devemos algumas explicações
ao leitor.
Quais as relações do vaqueano
com o caçador?
Por que o último resolvera
tomar parte na revolução, relutando ao princípio em acompanhar quaisquer
das parcialidades?
Lancemos uma vista de olhos
ao passado, onde se descortinam as peripécias de um drama congênere
do que vamos esboçando.
Em 1813, Gil de Avençal,
descendente de uma antiga família de vicentistas, que no começo do século
18 viera em demanda de novas terras, vivia na Vacaria, feliz e abastado.
Menos inquieto que a raça ciclópea de onde provinha, raça que vencera
todos os obstáculos e dotara o Brasil das fronteiras atuais. Gil sentara
a tenda sedentária no sertão e deixara a vida deslizar como tranquilo
regato à sombra do arvoredo. Deus lhe dera para cúmulo de venturas uma
terna mulher e quatro loiras crianças, prole mimosa e gentil em que
remoçava e a cujos sorrisos transparentes de candura desfranzia o cenho
de natural carregado.
Possuía uma estância de
seis a sete léguas.
Quem no pino do dia contemplasse
seus dilatados domínios, os imensos plainos a perder de vista, teria
um espetáculo digno de recrear-se. A úbera savana semeava a uma alfombra
de turmalina com os mais variegados recamos, formados pelos reflexos
de pêlos dos inúmeros rebanhos. Ali as reses não se contavam senão nos
apartes. Se havia necessidade de carnear uma, dois laços iam procurá-la,
um a enlaçava pelas aspas, e outro a pealava; e a abundância era tal
que levavam apenas a porção mais preciosa. O que largamente remanescia
deixavam para repasto dos urubus aninhados nos calvos mamilos dos cerros
ou aos maracajás e cães selvagens, de espreita no debrum das selvas.
Nesta terra abençoada onde
a charrua do progresso só há quatro séculos começou a rotear, todos
têm o seu quinhão na distribuição dos bens; ainda a esfinge da miséria
e do infortúnio sem nome não atirou aos ângulos do espaço um enigma
desolado que faz aborrecer a vida e blasfemar de Deus. Ninguém morre
de fome. Os frutos prendem das árvores seculares, a maniva rebenta por
mil estolhos do terreno inculto, os campos pejam-se de armentio sem
conta. Parecem dizer: "Pássaros do céu, habitantes das florestas
e das campinas, vinde, isto tudo é vosso". O colono deixa a pátria,
e das praias ultramarinas vem faminto, sequioso, desesperado ao éden
do Colombo, à luz de um sol que alenta e não mata. A Europa é o Prometeu
mítico, em cujas vísceras o bico de um abutre trabalha sem cessar: a
comuna que há de arrojá-la moribunda às portas do futuro. Às vezes,
o homem aqui mesmo arranca um grito de angústia, rola na degradação
de sua própria entidade... Por quê? Porque herdamos com uma civilização
estranha, importada diariamente, seus vícios orgânicos.
Esquecemos a originalidade
que nos era própria pela cópia servil que nos mostra contrafeitos. Devíamos
ser para imitar e não imitadores.
Deixemos, porém, a digressão
e voltemos ao remanso da felicidade. Falemos de Gil.
Além dos cabedais mencionados,
dizia-se que ele tinha em cofre riquezas fora de toda a estimativa,
ouro que minerara em época remota nas lavras de Santo Antônio, perto
de Caçapava.
O maior amigo do estancieiro
era José Capinchos. Ocupava um dos principais postos da fazenda e era
pago como nenhum posteiro do tempo. Recebia mensalmente quatro dobrões,
três reses para alimentação, uma ração de tudo que se consumia em casa,
devendo juntar-se a tais vantagens a permissão de criar numa sesmaria
de campos e matos que lhe fora doada.
Capinchos tinha rara habilidade
para insinuar-se no ânimo do amigo, que, em qualquer negócio, por mais
íntimo que fosse, o consultava, fazendo sempre prevalecer sua opinião.
Maria, a mulher de Gil,
via seus conselhos bons e santos, como o coração que lhe pulsava no
seio, destruídos ao influxo de um estranho, a quem desde o princípio
votara desconfiança, e para o qual sentia tão instintiva aversão, que
procurar extingui-la foi sempre lhe dar incremento.
Era um anjo Maria. A asa
negra dos pressentimentos tocou-lhe o cristalino lago da alma, riçou-lhe
a superfície serena. Entristeceu a olhos vistos. E a prevenção em que
estava para com o posteiro fizera-a, por vezes, como entrever planos
tenebrosos que, incubados silenciosamente no cérebro, vinham refletir-lhe
na fronte sombria. Mas calava tudo, recolhia-se merencória e resignada
no santuário de suas virtudes, no amor de seus filhos. Não queria que
o mais tênue laivo de dissabor anuviasse o céu do lar, onde jamais cruzara
o losango de tempestades domésticas.
Uma tarde Capinchos saíra
com Avençal a uma correria na selva. Dizem que voltara sozinho.
No dia seguinte, a casa
do estanceiro era um lúgubre cenário, no quadro de horrores. Maria e
três filhos tinham sido assassinados. O marido, ninguém sabia dele,
bem como o primogênito das crianças.
Num ápice fora consumada
uma tremenda tragédia!
A morte selara tantos lábios
cintilantes da vida e inocência! Almas cândidas e puras o braço do crime
abriu-lhes as veredas celestes, correu-lhes a cortina dos horizontes
intérminos, atirou-as aos braços de Deus.
Quem desfez o idílio da
ventura?
Que ave maldita soltou
o pio agoureiro sobre a mansão plácida e risonha, o retiro campestre
sumido e obscuro na imensidade dos desertos americanos?!
.........................................................
Foi o ninho do beija-flor
no sarmento da mucunã. O pampeiro veio e levou-o.
XIII
A lenda
O posteiro estava desesperado,
chorava sobre os cadáveres da inditosa família e, na exaltação de seu
ressentimento, acusava o mulatinho Moisés do horrendo crime.
A dor que lhe arrancava
lágrimas e suspiros em borbotões tinha tal caráter de sinceridade, que
ninguém poderia duvidar da amizade que ele tributava a Gil de Avençal.
Mas foi injusto em suas
recriminações contra Moisés.
O que então era este da
casa? Que papel representava na família?
Nascera de uma escrava
e fora liberto na pia batismal. Nas senzalas afirmavam que era filho
do estanceiro. Faltavam as provas e quem as pudera apresentar, sua mãe,
morrera na ocasião de dá-lo à luz. Todavia o fato da manumissão, sem
motivos plausíveis, mormente nesta época, deixara entrever, porventura,
alguma coisa de verdadeiro no boato espalhado pelos negros da fazenda.
Quando se consumou a catástrofe
sanguinária, ele estava ausente; saíra a tropear, fato que ou Capinchos
desconhecia na acusação que lhe fez, ou então de que quis aproveitar
para distrair a atenção de sobre si.
De volta, encontra de pé
a calúnia, apesar de o defenderem todos os escravos de Gil, e diante
da imputação de crime tão horrendo desvaira, foge, busca os sítios mais
impérvios da serra, quando poderia demonstrar sua inocência com o depoimento
das pessoas entre quem se achava, quando se dera o acontecimento.
Só um ano depois, serenado
o espírito, deseeu dos retiros onde convivera com indômitas feras e
a já minguada tribo dos guaicanã, procurou a justificação que devia
lavar a pecha infamante atirada a seu nome.
Pela ciência criminal a
evasão agravaria o suposto delito. Pobre ciência, pois vê no rosto conturbado
um documento comprobativo! Pobre ciência que não tenta sondar o oceano
dos fenômenos morais, que afasta de si, repele com ar severo e movimentos
ríspidos o testemunho da fisiologia! que admitiu uma craveira invariável
para o gênero humano, como se todos os corações fossem vazados num mesmo
molde e todas as naturezas tivessem idêntica manifestação do sentimento!
que, enfim, não deduz dos fastos dos tribunais a luz da verdade que
deve conduzi-la e aclará-la, e onde, no entretanto, a face de Lacenaire
desorienta os juizes pela cínica cotagem e doce placidez que a reveste,
e o inocente Lesurques estremece, titubeia, desmaia ante o aparato e
espetáculo da vindita social!
Por ela Moisés fora um
sicário, sofreria a última pena; para a consciência do mulato, e para
Deus a justiça da terra cometeria a mais clamorosa das iniqüidades.
Felizmente, nos tempos que iam, a vítima da caluniosa imputação saiu
sã e salva. A ação judiciária não chegava senão tíbia a lugares distantes;
até garantia a impunidade. Ninguém, portanto, teve a lembrança de fazer
averiguações relativas aos verdadeiros culpados. O ano decorrido começara
a apagar a triste impressão, e o pó do esquecimento depusera a primeira
camada sobre a tela de horrores.
Moisés tinha lá consigo
desconfianças pouco mais ou menos verossímeis. Recaíam de cheio em José
Capinchos. O posteiro tornara-se dono da estância, senhor opulento que
trajava como o mais guapo monarca das cochilhas, despendia à larga e
pretendia os foros de caudilho, quando não havia muito arrastava as
chilenas à sombra de Gil. Fortuna e maneiras tão de rebate faziam-no
refletir, mas na falta de um indício veemente, que o guiasse à verdade,
recalcava na alma a suspeita e suspendia os juizos.
Soube então que o filho
mais velho de Avençal conseguira escapar milagrosamente ao ferro homicida.
Era José. Procurou-o. Três anos despendeu ele em pesquisas infrutíferas,
até que foi depará-lo numa distância de cem léguas. Foi nessa ocasião
sabedor do que ignorava a respeito dos episódios da noite do ano de
1813. O pequeno José fora deitar-se e uma negra, que servia na casa
de mucama e o estimava como filho, o entretinha antes de conciliar o
sono com um desses contos que todo o mundo relembra saudoso dos dias
da infância. O menino a escutava preso da atenção que se lhe difundia
na pálpebra largamente descerrada.
A história, vamos reproduzi-la
pelo caráter peculiar de pertencer à Província e mais certo ao Brasil
inteiro. É uma lenda que suaviza o cálice amargo da escravidão, grinalda
de odorosas flores entrelaçados às algemas, bálsamo anódino sobre a
úlcera que sangra no peito do cativo. Ai vai. Falta-lhe em nosso estilo
o pitoresco da linguagem e a fidelidade no desenho dos costumes; resta-lhe,
porém, a verdade de fundo:
O RESSUSCITADO
O pai Curruira, filho do
reino de Benin, acaba de morrer com 93 anos pelos cálculos de seus companheiros.
Morreu, e a tristeza não se estereotipa nos rostos azevichados da cafraria;
a angústia e o alarido de carpideiras não cercam o corpo do finado,
como última homenagem a seus restos. Ao contrário, o urucongo e o bujamé
despedem sons festivos. Cada matrona e cada rapariga se enastrou do
melhor que pôde. Colares e manilhas de missangas de coral e vidrilho
com caurins entremeados ou pendentes lhe cingem a garganta e os pulsos,
fazendo ao reflexo variegado realçar o ébano da cútis. O candombe deslaçado
em meneios lascivos, o canto de diapasão áspero e monótono formam o
cortejo mortuário em roda do cadáver.
Presidia a festa, que simulava
estranha macabra de vampiros ou bruxas, Maria a Conga, a quem a senzala
venerava como rainha ou fetiche de um culto profundo.
- Mãe Maria - perguntou
um crioulo vivo e esperto como um demônio traquinas como todo moleque
-, por que o branco chora quando morre um dos seus e o negro ri?
- O negro - respondeu a
respeitável veterana, passando a masca de fumo de um lado para o outro
da bochecha - morre aqui para viver na África. Vai ver o berço em que
nasceu debaixo das tamareiras e abóboras, vai correr as areias em que
brincou em tempo de criança, vai ver a pátria.
O crioulo arregalou ao
princípio os olhos, pensou por instantes e, em seguida, coçando a cabeça,
a sacudiu em ar de dúvida.
- Quem morre então vive
depois? - ajuntou.
- Não crês, menino? Vou
contar o que aconteceu ao irmão de Inhabané.
- Mãe Maria vai contar
uma história! Hih!
Hih! Hih! Venham ouvir.
E de contente saltava como
um cabrito. Logo um cardume de cabeças infantis e alegres, mostrando
os dentes alvos como as presas do elefante, com as pupilas de gazela
avivadas pela curiosidade, ferveu em torno da velha negra.
Músicas, cantos e danças
sustaram.
Todos quiseram ouvir a
palavra do oráculo de suas crenças, da pitonisa africana que guardava
no coração as memórias da pátria distante. Mãe Maria tomou um cepo junto
ao fogo. Os mais cruzaram as pernas no chão de argila pousando o cotovelo
sobre elas e a face sobre a mão. É a atitude de quem quer ouvir atentamente.
Em pouco nem o mais leve
ruído saía do círculo, de gente, cujo centro era a venerando Maria.
Até a respiração parecia estar sufocada.
Ela começou pausada como
a prudência, solene como um mistério:
- Muitos anos já vão, filhos,
desde o tempo em que Inhabané, junto às águas de Cuanza, fazia guerra
aos homens do outro lado do mar! Muitos! Quantas vezes já as árvores
não despiram as folhas?
- Quem era Inhabané, Mãe
Maria? Quem era Inhabané? - interrogaram em coro.
- Rei e senhor de Cassange...
A velha que fala agora não era como vêem. Hoje está curvada ao peso
dos anos, não caminha, nem pode trabalhar... Oh, naqueles tempos ! Bons
tempos em que tinha por cama finas esteiras de Loanda, e vestia lindas
roupas de pele e tinha os caurins do mar e pisava o tibar, ambição do
branco. Então meu corpo era direito como a palmeira, ligeiro como o
gamo dos montes de Kong... Ah! Bons tempos de Cassange que Maria há
de tornar a ver!...
- Bons tempos de Cassange!
Bons tempos! - repetia multidão com a fidelidade de um eco quando ela
curvava fronte senil no seio das recordações e nas saudades do berço.
Depois de instantes de
místico recolhimento, prosseguiu:
- Os homens do outro lado
do mar venceram a Inhabané, o guerreiro, o valente, a esperança de Cassange.
Ele foi preso, ligado e vendido para as terras dos Brasis.
- Mau branco! Mau branco!
- rumorejavam os ouvintes com assomos de ódio.
- Inhabané teve um ruim
senhor que amou a mulher do cativo e quis tomá-la. Era Kuniah, formosa
entre as formosas. E Kuniah resistiu, porque tinha um coração que não
era dela, era de Inhabané, seu senhor e seu rei e pai de seus filhos.
Kuniah resistiu e teve o corpo cortado ao açoite e foi vendida longe
dos filhos e do marido, alegria e sol de sua vida.
- Que dor, Mãe Maria! Que
dor! - gemia a turma.
- Inhabané teve uma tempestade
aqui - e a velha pôs a mão rugosa sobre o peito -, feriu o perseguidor
de Kuniah. Pobre rei! Foi levado ao tronco como o último dos servos,
o laço regoou suas carnes, o sangue do príncipe de Cassange ensopou
a terra do cativeiro.
Ah! quizília de branco!
- E a cafraria saltava de pé, trêmula e fula de cólera, o olhar ardente
e sanguíneo, as crispadas pelo ódio e desejo de vingança, o gesto saturado
de ameaças.
- Filhos, silêncio! - E
desatou um ademane imperativo para que sentassem.
Tudo voltou à imobilidade
das cariátides no sopé do antigo monumento.
- O rei de Camange sofreu
muito. .. muito! Desonrado procurou um jerivá que recordava a pátria
em suas palmas, subiu até o olho do coqueiro, atou um cipó e enforcou-se.
- Pobre Inhabané! - murmuraram
em tom pungente.
- Feliz! feliz! repeti,
filhos. . . - E atirava longe de si a masca com um movimento de inspirada.
Todos a fitaram pasmados,
Ela continuou.
- Ninguém viu dependurado
o príncipe, sem chorá-lo. Quando foram no outro dia buscar o corpo para
enterrar tinha desaparecido.
- Tinha desaparecido!?
- perguntaram boquiabertos.
- É verdade, Inhabané tinha
dormido nas terras do cativeiro para acordar nas terras da pátria.
- Quem viu? - interrogou
o crioulo que der, motivo narração.
- Maria viu, menino. Era
de madrugada. Maria inda era livre, ia banhar-se nas águas do Cuanza.
Então Inhabané saíra dentre as palmas de uma tamareira, contemplava
como num sonho o país que há tanto deixara e vinha de novo possuir.
Desceu e começou uma guerra de morte contra os inimigos. Esperemos,
filhos. O pai Curruira foi hoje, amanhã nós iremos. Quem diz é Mãe Maria.
- Amanhã iremos... nós
iremos - repetiam profunda fé.
Por momentos trataram do
caso, sem comentários, e em seguida foram renovar com mais entusiasmo
as festas em tomo do finado.
Eis o que a escrava narrara
ao pequeno José Avençal, pouco mais ou menos.
Era uma cena a que havia
pouco assistira nos galpões da senzala.
XIV
Amaral
Mal terminava, ouve um
grito tremendo, seguido de gemidos dolorosos. Corre a ver o que era.
Na varanda, à luz de uma
candeia de garavato, cujo eslabão fora torcido com grande esforço para
arrancá-lo do muro, onde estava pregado, presenciou um quadro, que a
pena não traça com suas mais negras cores, e compreende-o só quem pôde
assisti-lo.
Sobre o soalho estorcendo-se
em cruas vaseas, Maria, a esposa de Gil; junto um homem degolando o
filhinho que a desventurada mãe amamentava. A miséria toda retalhada
de golpes, rotas as artérias, arquejante, ainda tinha forças nas derradeiras
convulsões da vida para erguer o corpo a meio e pedir com palavras,
que vinham em ondas de sangue, pela inocente vítima. Sublime arranco
da maternidade! ...
A escrava não pôde reconhecer
o assassino, pois estava envolto num imenso poncho talar e mergulhava
o semblante nas largas abas de um sombreiro. Recuou espavorida, voou
ao quarto de José, fechou a porta por dentro, tomou o menino ao colo,
e, abrindo uma janela que dava para o campo, vingou-a de um salto. De
passagem incorporou à fugida três companheiros que encontrara, contando-lhes
o ocorrido em frases rápidas e interjectivas.
Depois, como caminheiro
que embebe sob as patas do cavalo, cochilhas, canhadas, sangas e várzeas,
fugindo aos olhos azuis dos boitatás, eles atravessaram durante meses
larga extensão da capitania, tendo o cuidado de evitar os povoados.
Grandes e nobres romeiros!
Quando podiam quebrar os
grilhões da servidão, faziam timbre em mantê-los, guardando a infância
do único senhor com todo desvelo, todo o amor capaz de conter o coração
humano para um filho, todo o culto, que se derrama nas aras divinas!
Não digam que era a fidelidade do cão! Não, por Deus! Onde há uma alma
livre, uma consciência, só pode haver sacrifício e abnegação, nunca
o rastejar do animal que é servil, submisso, feliz atido ao jugo, porque
não concebe a liberdade e muito menos pode aspirá-la.
Detiveram os passos numa
casa nas imediações do sítio em que hoje existe a freguesia de Taim.
Pertencia ao cavalheiro
de Amaral, que, em conseqüência de uma série de duelos contrários às
disposições da Ordenação, fora obrigado a expatriar-se de Portugal.
Nobre pela ascendência, como pelos sentimentos que o exornavam, tivera
até o momento em que embarcara ocultamente para o Brasil uma existência
agitada e cheia de dissabores, pelo caráter independente que manifestara
sempre, como por dissensões com outra família do reino. Então casado
e sem filhos, feliz e tranquilo num recanto da América, era um verdadeiro
filósofo a ver os dias deslizarem sem nuvens e tempestades, a pensar
cotidianamente sobre o homem e a natureza, modificando assim idéias
errôneas e grosseiros prejuízos que a educação e determinadas circunstâncias
conseguiram inocular-lhe no espírito. Entre os últimos sobressaíam duas
estranhas teorias sobre as raças e sobre os castelhanos, mormente estes,
que por meio de alguns falsos raciocínios ele chegava a separar do gênero
humano.
Não tinha outros senões.
Quanto aos motivos que lhe impuseram o voluntário desterro, ninguém
os sabia nem mesmo os dizia ele, evitando com desgosto pronunciado a
conversação sobre semelhante assunto.
Eis a nova personagem em
breve bosquejo.
Quando Amaral ouviu o acontecimento
relatado no estilo rústico da negra, conveio de si para si que a catástrofe
era extraordinária e deliberou tomar averiguações. O que feito, confirmou-se
a verdade.
O tópico final, a salvação
da criança, que lhe sugerira a mais tenaz objeção, pela gente que a
tinha realizado, veio trazer alguma mudança em sua maneira de pensar.
Foi a ocasião de admirar
as frontes cafres, aureoladas da estema de uma realeza que eclipsava
o ignóbil ferrete da escravidão. Pela primeira vez, sugeriram-lhe pensamentos,
os quais a educação do tempo e os preconceitos sociais não haviam ainda
provocado. O negro deixou de ser o orangotango, o ente inferior julgado
não só incompleto e defeituoso pelas formas, como pela inteligência
que lhe transparecia do crânio. O pobre pongo, o poleá da colômbia terra,
a seus olhos começou a reassumir os direitos que lhe negavam por aferro
de opinião ou torpe especulação de negreiro; desde então merecia para
ele o título de homem. Ponderou com justeza que a inteligência e virtude
não se tornavam privativas de uma espécie da grande família humana,
e recebeu a caravana de infelizes com os braços abertos e o mesmo entusiasmo
que manifestaria por qualquer dos seus.
Trabalhou, enfim, para
descobrir o motor de tantas desgraças, porém, como era de esperar, a
distância neutralizou a boa vontade e o empenho empregados.
XV
À sombra do umbu
José Capinchos, com faro
de tigre que pressente a vítima, muito antes de Moisés, descobriu o
esconderijo do mísero arpão.
Uma tarde, Amaral recebeu
três hóspedes. Eram o capataz e dois asseclas do antigo posteiro. Vinham
em embaixada para reclamar a criança.
O cavalheiro recebeu-os
com altivez, sem quebra das leis de hospitalidade.
- Dize a teu amo que o
menino me pertence, já o estimo muito para privar-me de sua companhia.
Sou casado e não tenho filhos. Vou instituí-lo meu herdeiro. Não duvido,
quero crer mesmo com toda a lealdade que ele fosse amigo dos pais; no
entretanto, devo recordar-lhe o abandono e menosprezo lançado ao último
descendente de uma mal-aventurada gente, pois deixaram-no de tão longe
vir bater à minha porta.
Quis insistir o capataz.
Ele fê-lo emudecer pelo tom em que continuou:
- Porfiar é inútil. Disputá-lo-ei
como a um lance de cenas. Agradeço as boas intenções, sem todavia aceitá-las.
Patenteia a teu amo os respeitos e estima de que lhe sou credor, desde
que se interessa tanto pelo filho do finado Avençal.
O mensageiro enfiou e retirou-se
murcho e cabisbaixo qual raposa apanhada por galinhas. Planejara contudo
o rapto da criança e o pusera em prática, se no dia seguinte não vira
no curral possantes e rápidos ginetes prontos à menor eventualidade,
como peões armados de ponto em branco, na casa, nos campos, por toda
a parte, enfim.
Amaral tivera um pressentimento
ou o raio do crepúsculo lhe foi bom conselheiro.
Refletira que, para de
tão longínquas terras virem em demanda do órfão, era necessário um grande
móvel, por isso pusera desde o cambar do dia em armas toda a gente de
que dispunha.
Adivinhara. O enviado de
Capinchos teve de voltar, abanando as mãos, e com reconcentrado despeito
contra o providencial protetor do menino. Meses mal passados surgiu
Moisés.
- Venho visitar o pequeno
Avençal - disse logo de entrada.
O cavalheiro franziu o
sobrolho e perguntou com presteza:
- De onde vem?
- Da Vacaria.
Visos de cólera reverberaram-lhe
de todo a fisionomia.
- É muito teimar - disse.
- Como?
- Como?! - E a voz estremecia-lhe
nas arcas do peito com estranho rumor. - Ninguém o vê com mil diabos!
- Ninguém o vê! - repetia
o outro já meio quente com os modos de Amaral.
- Ninguém o vê o repito.
Minha casa é franca para todos, menos para habitantes da Vacaria. -
E ia virar-lhe as costas com medo de si mesmo.
- Quem deu ao senhor tal
direito? - exclamou o mulato com sobranceria.
- Quem me deu, vilão?!
E vens perguntar a mim que stou em meus senhorios? - E o diapasão de
estentor casou formidável como o estrondar de rochas que despencam e
embatem no declive dos morros.
- E eu reclamo meu irmão
- saltou o outro com esfuziada de pampeiro.
A tempestade já desfeita
na alma do cavalheiro esvaeceu como um manto de brumas à luz do sol.
- Seu irmão?! ... - E a
interjeição prolongou-se semelhante ao som nos acidentes do terreno
derramado em despenhos e montes.
- Seu irmão?!!... - E procurava
associar no pensamento duas coisas que ele separaria em outra qualquer
ocasião, como impossíveis de liga, harmonia ou de qualquer laço de relação.
Ainda o prejuízo não desvanecera inteiramente. A intervalos voltava.
Dentro de pouco foi ciente
de tudo.
O caçador não ocultou a
menor circunstância, concluindo assim:
- Uma coisa peço a vossa
mercê, não lhe diga jamais que o mesmo sangue, nos corre nas veias.
Pode algum dia envergonhá-lo.
Amaral contemplou aquela
fronte bronzeada, com admiração. Uma só frase não lhe ocorreu de momento.
Apertou com força a mão do mestiço. Tinha dito tudo. Com mais eloqüência
falavam as pálpebras rorejantes ...
Nessa noite tornaram as
considerações sobre as raças, ficando indeciso sobre qual delas obteria
a primazia. Relativamente, pondo em conta a objeção a que estava votada
a negra, a balança de seus juízos propendia contra a branca.
- É admirável! - acrescentou.
- Se estivesse em Portugal, juraria por todos os santos do calendário
que um filho da África valia tanto como um macaco! Até Moisés, criação
híbrida, mescla de diversos sangues, nos atos é um gentil homem de boa
estofa!
No dia seguinte, vamos
encontrá-los em animado colóquio. O sol sumia a fronte no arrebol auri-róseo
da tarde.
Em face à vivenda, anoso
umbu espalmava os galhos. As raízes erguidas em socalco formavam cômodo
assento. Numa delas está sentado Moisés com o pequeno de Avençal sobre
os joelhos. Ao lado Amaral numa dessas poltronas clássicas de espaldo
elevado, forradas de couro lavrado de São Vicente, com tabões amarelos
e as pernas em cruz.
A réstia loura de crepúsculo
dourava a paisagem.
Era um soberbo painel.
De vez em vez Moisés osculava
a face do pequerrucho adormecido, em cujo sorriso se adunava o tênue
raio da tarde e o raio da inocência.
- A vingança é doce, mas
os frutos são amar. Eu quero diga o quanto custa. Não fossem uns endemoninhados
botes de espada, estaria a essa hora tranquilo no solar de meus avós.
- Mas... isso de matarem
crianças como a perros... Caramba!
- É horrível, é! ...
- Só tigres! Só tigres!
... José deve ser forte, valente guapo, manejador de toda a casta de
armas: flecha, pistolão, mosquete, adaga, lança e mais coisas ainda;
deve atirar o laço desembaraçado e reter o mais xucro dos novilhos,
jogar bolas de maneira a não perder um tiro. Seus inimigos, pelo que
penso, são todos campeiros.
- Enquanto ao que sei,
homem, bem ou mal há de sair-se, mas lá da flecha, adaga, bolas e laço...
Cáspite! Não sei por onde as tomar.
- Não dê cuidado a vossa
mercè; aqui passo um ano e... caramba! Verá que o muchachito se tira
melhor que o mestre.
- E os adversários?
- Irei desencavá-los, ainda
que nas bibocas do inferno.
- E se o matarem, o que
não é difícil de prever em negócios assim...
O mulato sorriu e ajuntou.
- Matarem o menino! Deus
não seria Deus, e poderiam dizer que Moisés mal avisado andou, quando
tomou a espingarda para viver nos matos. Se me chamasse Moisés de Avençal
não esperaria tanto tempo, em pessoa iria buscá-los um por um e esmagar-lhes
a cabeeça... raça de cobras!
XVI
Volta aos pagos
O menino cresceu. O rebento
fez-se tronco. Mas a harpa fremente de seu coração vibrava a uma idéia
fulminante, fibra por fibra estremecia a uma só palavra do vocabulário
das paixões humanas: - Vingança!
Vingança?! Vertigem do
ultraje, ebriez de sangue, desforço da honra e simultaneamente justiça
fora dos códigos.
Vingança?! Mancenilha -
pomo de ouro no galho, no lábio fel e veneno!
Vingança?! Abraço da alma
sorridente num sonho e da alma esmoída ecúleo de angústia!
Vingança! És tu também
uma das sombras a embruscar os traços magistrais do caráter rio-grandense,
falha que ninguém pode, nem deve ocultar. Que importa no entretanto?!
Talvez seja o quinhão ou
partilha dos povos cavalheirescos, a quem a hospitalidade, a lhaneza,
a honra e a lealdade parecem antes virtudes inatas do que obediência
às leis do dever ou o resultado de obrigações morais. Lá no fundo de
seu deserto envolto no largo cafta, como o árabe se assemelha contigo!
Como a própiria generosidade, que tanto o distingue, pare arrancar-lhe
do imo do peito o grito de ódio e morte, quando foi cruelmente ofendido.
Avençal, rota a crisálida
da puerícia, não via outro fanal nos horizontes da mocidade. Crescera
dado a um sentimento que tudo fazia recordar, ora a voz insinuativa
e grata de Amaral devassando-lhe os segredos da esgrima, ora a solicitude
maternal de Moisés, preparando-lhe o braço nos rudes manejos do campo.
Infante, não teve outra
balata acalentando-o no berço; homem, não tinha outra rota a seguir.
Era a fatalidade de uma romagem: a herança que o punhal do assassino
codicilara na garganta ensanguentada de seus pais.
O céu diria a ele pela
voz do Evangelho: - O perdão resgata o crime.
A lógica das paixões dizia-lhe:
- Nódoa de sangue lava-se com sangue.
Fora forçoso obedecer aos
próprios pensamentos pessoais, e aos ditames de uma educação recebida
e conforme às leis que todas as idades têm chamado de honra.
A vingança o armara, ela
só devia desarmá-lo um dia.
O cavalheiro nada descurou;
mais previdente que o caçador, juntara aos predicados corporais os predicados
do espírito. Iniciou-o nos conhecimentos a seu alcance. Deu-lhe mesmo
uma tintura da arte heráldica, que enfim de nada servia para o moço
mas que satisfazia um dos gostos especiais do preceptor evocando recordações
européias.
Quem censurará o esmero
e cuidados para lance tão tremendo? Quem? Se a própria história louva
em Amílcar o ódio que perpetuou no filho desde tenros anos? Que tamanha
diferença existe entre pátria e família, dúplices origens de sentimentos
idênticos e fecundos, focos luminosos na esfera da vida social, cujos
eflúvios se embebem, amalgamam, liquescem confundidos e se entornam
na mesma âmbula - o coração?
Arranquem a víscera que
o produz, e, morto o homem, ei-lo destruido para sempre nas desoladoras
ruínas da humanidade. Então - vingança -, como todos os sentimentos
bons ou maus, sublimes ou repugnantes, não será mais que uma articulação
sem sentido, acordando o silêncio de um ermo, o hieróglifo estampado
na pirâmide de uma raça extinta.
José de Avençal atingira
os 18 anos.
Em casa de Amaral havia
grande rebuliço. Corriam daqui para ali em contínua dodadoura. Ajoujavam
bois, enfreavam cavalos, carregavam carros, os homens de guerra poliam
as armas. Balbúrdia por toda a parte. Dir-se-ia que marchavam à grande
expedição como um magote de bandeirantes em véspera de partir.
Afinal saiu a caravana.
A mulher do cavalheiro,
a negra que salvara o moço e os escravos que a auxiliaram também seguiam
na comitiva.
Decorreram muitos sóis
em viagem.
Uma manhã foram surpreendidos
por Moisés, que trazia o concurso de seus guaicanã.
O que era? Para que levantar
tantos escarcéus? Iam instalar Avençal nos seus domínios como "legítimo
senhor de juro e herdade" na frase da antiga etiqueta mantida por
Amaral no bando que mandou deitar entre a gente reunida.
Chegaram em pouco na estância
que, se com a catástrofe de 1813 ficara durante dois anos uma tapera,
depois pelos cuidados de Moisés prosperara mais que em mãos do primeiro
dono.
À chegada, festas e bródios,
"arruídos e folgares", como dizia esfregando as mãos jovialmente
o cavalheiro autor de tanto barulho.
Avençal não sentiu alegria,
como era natural. Abalou-o funda comoção apenas viu o teatro do sanguinolento
drama, onde pais e irmãos haviam sucumbido sob o punhal vibrado por
mão covarde, traiçoeira, infame e anônima, pois nem tivera a coragem
de deixar um sinal, a assinatura que se a reconhecesse!... Seu peito
arfou semelhante à primeira mareta formada ao cair da tempestade, Soltou
das arcas um gemido, de cruciante mágoa e desespero. .. Foi laboriosa
a sístole, sufocava-o, todo o sangue afluíara em tufos ao coração.
Quis falar... nenhuma palavra!
Acudiu-lhe aos olhos copioso
pranto, refluxo salutar do sofrimento, rocio vivificante na extenuação
da vida, que, como a aura suave e o orvalho das névoas erguendo a flor
debruçada no hastil, ergueram sua fronte pendida.
- Dize onde o encontrarei,
Moisés... Dize e irei buscá-lo além do mundo.
O caçador já desesperava
por essa época de levantar o véu ao misterioso acontecimento. Todavia
tinha esperança de, mais dia menos dia, descobrir um só vestígio e tanto
bastaria para achar o resto. Era o seu fio de Ariadne.
Conversando consigo, sempre
repetia entre dentes:
- Deixa estar, teatino
fuá, hás de dar a mão e depois corcoveia... e verás!
XVII
A gavota fatal
Seguiu-se um baile.
A família de Capinchos
compareceu com outras dos arredores. Rosita tinha então 15 anos.
Jamais pubescência radiara
com tanto viço e frescor ao sol da vida. Não era dessas figuras aéreas
de nossas cidades, que tão apropriadamente os poetas de hoje, sem o
saber, chamam visões vaporosas. Não, nela havia a beleza física em toda
a plenitude: contornos cheios, guardando a mais exata euritmia em suas
partes e a flexibilidade da criciúma num porte de palmeira. A fina cútis
transparecia reflexos róseos e não o mórbido palor que hoje faz o encanto
de tantos olhos degenerados e míopes. Era uma criação que destacaria
esplêndida do cinzel de um Scopas ou da tela de um Praxiteles; o tipo
da serrana rio-grandense que traz em si a pureza de linhas no perfil
como o ar que se respira nas cordilheiras.
Mas nos olhos é que ela
vivia e reconcentrava toda a alma, inteligência, graça, pudor, donaire
e vida, nos olhos tão meigos e melancólicos, velados pela sombra de
uma cisma, quando vagueavam após o indefinido e dúbio de um sentimento
que ela ainda não conhecia; tão mimosos, castos, risonhos e travessos
entre as galas florescentes dos 15 anos, tão esmagadores, soberanos,
terríveis e deslumbrantes se traduziam as tempestades de seu coração!
Valia a pena possuí-los!...
Quem não amaria o poema cujas estrofes fossem dias de ventura? A cadeia
cujos elos fossem grinaldas de balsâmicas flores?
Eis a linda moça com que
já ao princípio travamos conhecimento! Quão diferentes não são os períodos?!
Que distância entre ambos?! Como a vemos e como a vimos?! Aqui ala nas
asas douradas de um sonho para as devesas do infinito, o porvir é a
nuvem rosicler que balouça à viração matutina, a existência um sorriso
de anjo; lá o coração geme ao peso de uma realidade tremenda, desabrido
tufão encapela o temporal num céu de bronze, a esperança aponta-lhe
um túmulo, como o marco de repouso.
A história de sua felicidade
foi curta.
O baile estava animado.
O véu da tristeza, se velava ali algum semblante, breve caiu.
A dança, porventura, espedaçou-o
em seus vórtices rápidos e doidejantes.
As violas, machetes e duas
flautas espaireciam os ânimos em cada retornelo, em cada nota desferido.
Os tocadores gradativamente foram tomados de entusiasmo e arrancavam
à porfia dos rudes instrumentos melodias em delírio.
Campava o fandango em suas
múltiplas espécies e, como novidade de época, a gavota, que nascera
na ópera francesa no século anterior e fora depois preparada para os
salões por Gardel. Quando a Europa cansara de ouvir e ver a interessante
combinação coreográfica, ela fez sua entrada na América.
O baile, em que todos tomavam
parte, interrompia-se, só o cavalheiro e a dama, que iam executá-la,
ficavam no meio da sala.
Avençal, dançando-a com
Rosita, tivera uma noite de triunfos.
Que lindo par - disseram
a uma voz, quando os viram a primeira vez.
Como todos os olhares que
convergiram sobre eles os devoravam!
E como iam bem, encetando-a
com o passo de minueto grave e tristonho, seguindo de um movimento ao
princípio lento, aumentando pouco a pouco até o meneio delirante a floresta
febril, a alegria no auge!
O moço, naquele momento,
esquecera as idéias sinistras que o preocupavam, de ordinário, para
voar no turbilhão da insânia!
Os ódios do mundo esvaeceram
para fazê-lo gozar fruições celestes, raras na existência, por isso
mesmo as mais preciosas.
Ambos no arroubo dos sentidos
se agitavam em louco prazer. A face ardia-lhes purpurada pelo exercício,
os seios arquejavam de fadiga voluptuosa.
Durou um quarto de hora.
Quando terminaram, cobriram-nos
de aplausos.
Só Moisés não buliu.
A um canto vira com maus
olhos o que o próprio Amaral aprovava.
O mulato não abandonara
de todo as suspeitas sobre o ex-posteiro. Se nunca as comunicara a outrem,
retido pela dúvida, não era porque a mesma antevidência não lhe sombreasse
a fronte. Uma voz íntima lhe dizia: se algum dia descobrisse o bandido
que trucidara a família de Avençal, não seria outro senão Capinchos.
Talvez prevenido, porquanto este o fizera alvo de análoga acusação.
O rapaz é capaz de arrastar
cambão pela Rosita - refletia Moisés -, e se o pai é o tratante do assassino,
ele a refugará ante a idéia de matá-lo como diante de um casamento.
Careço de afastá-lo de tal gentinha de minha quizília; trago-a sempre
pelo gasganete...
Terminado o sarau, quando
preparava o arrazoado para indispor o moço contra Rosita, uma índia
veio referir aos guaicanã que a taba tinha sido assaltada na véspera,
por uma tribo do Norte, que lhes levara os utensílios, mulheres e filhos.
O grito de guerra dos selvagens
soou, e o mulato teve que partir com os irmãos da floresta.
Quase um mês decorreu até
a volta.
O que desconfiava aconteceu.
José do Avençal e Resita
amavam-se até o delírio. Rútila inflorescência que viçava com toda a
seiva do afeto, toda a vitalidade da paixão naquelas almas virgens e
inocentes!
Atração que os unia uma
vez para não os separar jamais, amor primeiro e único que devia ser
infeliz pelos erros dos antepassados!
Amavam-se, consubstanciavam-se
numa s6 entidade, viviam por um mesmo pensamento, as mesmas aspirações
e sonhos!
Pobres crianças!
A primavera é bela mas
o futuro é negro!
Enquanto as nuvens pressagas,
donde pende o tufão, não o desprenderem, aproveitem as migalhas da ventura,
corram o prado da vida, colham suas flores, entrancem-nas aos cabelos...
Amanhã será tarde, o vento
virá e hão de vê-las esfolhadas em volutabros, tristes e flácidas!...
Pobres crianças! Nem vêem
o que já se passa em torno!
Capinchos, cujo rosto à
chegada de Avençal ficara anuviado e taciturno, agora andava satisfeito.
já falava no próximo casamento de ambos, afirmando que semelhante aliança
constituía para ele a suprema felicidade na Terra.
Moisés não menos sombrio.
Felizmente, vendo os negócios
mal parados, não quis turbá-los nos castos devaneios.
Poupou-lhes por algum tempo
o travo da taça amarga que tinham de prelibar.
Em retorno exigiu um juramento
sobre uma sepultura.
Foram testemunhas no ato
terrível e solene: Deus, e consciência, o mulato e os espíritos evocados
da outra margem da existência - a eternidade.
- Juro - pronunciou calmo
e firme - que esta mão, meus queridos pais, meus inocentes irmãozinhos,
não desposará Rosita, o que mais amo na Terra, sem tê-la levado a uma
nódoa.
- Basta.
E ambos se abraçaram.
Em seguida, vergaram o
joelho sobre a terra da campa e os lábios pronunciaram fervorosa oração,
enquanto as pálpebras instalavam fio a fio serenas lágrimas de saudade.
Pelo dorso da mata perpassou
um arrepio.
Um caboré, cortando o ar,
soltou um guincho dolente.
O mais continuou como sempre.
No mesmo dia chegou um
mensageiro da parte de Amaral.
O cavalheiro enviava muito
saudar e a recomendação especial de não aviar com os negócios da família,
sem que ele tomasse parte ao menos como testemunha.
Os negócios da família
eram a vingança há tanto preparada.
XVIII
A marca dos Capinchos
Estava-se em 1827.
Era por uma noite de procela.
O ribombo dos trovões aumentava de intensidade nas cavernas e profundezas
seris, a chuva caía em grossas bátegas, que iam açoitar freneticamente
a casa da estância, e a rajada do vendaval tinha escassas intermitências.
A terra convulsava ao clarear incessante dos relâmpagos. Era a epilepsia
da natureza!
O pandemônio transmudado
para a Vacaria!
Torrentes espúmeas, levando
de envolta troncos e rochas, despenhavam pela rampa dos morros, coleavam
em catadupas pelos couvales e desfiladeiros, e frementes e rápidas arrojavam
as vagas da inundação sobre as ubérrimas pastagens.
A abóbada do céu era de
uma fosforescência deslumbrante e assustadora, Cuspindo, a raros intervalos,
um chuveiro de faíscas elétricas.
No entretanto, um homem
desvivia fora daquele túmulo. Na sala, recostado à mesa, alheio a quaisquer
sensações transmitidas do exterior, em íntimo recolho da alma, ele transbordava
de prazer na contemplação de urna imagem que se havia encarnado em sua
pessoa. Ele com os cílios semicerrados em doce languidez a via destacar
dentro da retina; a sentia unida a seu coração, tão unida como dois
cactos gêmeos, como dois raios de uma mesma estrela, duas pétalas de
uma mesma flor.
A imaginação o arrebatava
do mundo em suas asas coloridas e o deixava entrever uma mansão de felicidade
celeste ao lado do anjo que lhe absorvia todos os sentidos.
Bateram de rijo à porta,
e antes que o despertassem, foi necessário repetir as pancadas por várias
vezes.
Ergueu-se ao ruido, sacudiu
os anéis de cabelo derramados sobre a testa e foi abrir.
- Que noite horrível! Quem
será capaz de andar a tais desoras e com um temporal destes?
Correu os ferrolhos.
A lufada escancarou os
batentes.
O mulato, que há muito
não lhe aparecia, surgiu entre os umbrais, entrou e arremessando de
si o ponche talar impregnado de água, cingiu com ternura o mancebo.
- Com tal tempo, Moisés?
- Cumpro um voto, Avençal
- respondeu com solenidade.
- Qual?
Não obteve resposta.
- Eu te quero como um filho.
- Tenho bem vivas provas...
Ele atalhou-o:
- Isso não! Que não pude
dar ainda como sinto, aquilo - e pôs a mão sobre o peito. - Sabes o
que recorda esta sala?
- Um crime que clama vingança.
E uma ligeira sombra turvou-lhe
o rosto.
- Pois bem, pé no estribo
e avante!
- Descobriste? - interrogou
com impetuosidade.
- Sabes que teu pai, se
morreu, foi fora daqui.
- Sei.
- Amanhã, antes que as
barras do dia apontem, estaremos de marcha.
- Uma viagem?
- Perto, umas 50 quadras.
Com escuro partiram. O
tempo estiava e prometia um dia bonito.
Breve deixaram o campo
e sumiram-se sob o dócil da folhagem pendente em laçarias que gotejavam
brilhantes à luz matutina.
Iam silenciosos, embebidos
em negros cogitares.
Em torno tudo respirava
alegria.
Após uma noite tempestuosa,
nada há de comparável ao albor da bonança. A vegetação, que abatera,
retoma mais viço e esmeraldino esmalte, mais espalma e estende as ramas;
o chilro dos pássaros tem mais frescura e melodia; é o idílio grandioso
da natureza, que se expande depois de um espasmo de terror.
O sol já mareava seis horas,
quando chegaram junto a uma cajarana secular.
- Aqui - disse o caçador.
Pararam.
No chão havia grande parte
de um esqueleto. Faltava-lhe o lado direito desde o fêmur.
- Eis os restos de teu
pai.
O moço curvou-se reverente.
Orou.
Moisés fez outro tanto.
Igual motivo os unia.
A prece no sertão é sublime.
Parece que Deus deve ser mais visível no espetáculo maravilhoso de criação.
Crer-se-ia ali que cada folha, cada brisa, cada volátil murmura seu
nome em místico segredar, cada gota espelha sua imensidade. Quantas
vezes o homem, a sós, no regaço da floresta, não ouve ruídos indefiníveis,
que ele não pode adunar no espírito a coisa alguma conhecida? Ora suave
cicio como a nota de uma harpa eólia a lhe prurir a alma; ora um som
profundo e misterioso a premar-lhe o anélito no lábio? Sempre como uma
voz que faz vibrar-lhe as fibras do sensório, uma por uma, chamando-o
a cogitações transcendentes sobre imaterial?
Quem fala nas solidões?
De onde vem o mistério
que recolhe a alma nas mais recônditas dobras de sua essência?
Por que essa espécie de
respeito, melancolia e terror, que nos possui sob o pavilhão viridante
das selvas?
Não será a intuição do
infinito?
O mesmo fenômeno moral
que observamos nos vastos plainos do mar, quando aos pés temos os abismos
imperscrutáveis das águas, e sobre a fronte os abismos sem fim do firmamento?
Por isso, cremos que não
há templo onde a oração seja mais sincera e mais ouvida.
Em nossas cidades, estábulos
em que se embotam as santas Crenças e os ternos sentimentos, o lábio
balbucia geralmente o que não sente o coração. Dos fiéis que enchem
o recinto de uma igreja, poucos rezam com unção, os mais satisfazem
as conveniências sociais, cumprindo automaticamente as fórmulas de uma
etiqueta. O culto das cidades, nos tempos que vão, é uma mentira, uma
profanação, conseqüentemente. Também o Senhor não se mostra nos focos
de egoísmo e hipocrisia; não, tendo levitas, nem adoradores, deixa os
rebanhos contaminados pela febre da ouro, pelo vírus de interesses reprovados,
e deixa-os para não os ver escravos de si, dos vícios e do crime...
Vai receber o voto das
almas como Avençal e Moisés.
Ergueram-se os dois homens
bastante comovidos.
Moisés mostrou uma verônica
de metal no torso do esqueleto.
- Eis como o conheci. Sabes
onde foi ferido? No coragão, traiçoeiramente. E tirou dentre as duas
costelas uma faca cravada até o cabo. Apenas saiu este, o ferro estava
carcomido pela ferrugem.
- Enterremos os ossos -
e mostrou a Avençal uma cova feita.
O moço preencheu para com
os despojos paternos as últimas honras fúnebres, resoluto, porém, sem
dizer palavra. O mulato afastou-se por espaço, voltando logo. Trazia
o fêmur e a ossada da perna e do pé.
- Alguma fera os levou,
de certo, para longe.
Cheia de terra a cova,
puseram sobre um cruzeiro tosco de madeira, de antemão preparado.
Avençal estendeu o braço
para o símbolo das redenções e deixou cair com ligeira emoção estas
palavras:
- Meu pai, mais três dias,
o teu assassino não verá o sol nascer.
Voltou-se para Moisés.
- Agora partamos. .. Antes,
dize quem foi ele... Quem foi?
- Vês isto? - E indigitou-lhe
um isqueiro meio soterrado no solo e oxidado pela ação do tempo. Tomou-o
do chão e entregou-o juntamente com o cabo da faca, que era de chifre
com rudes lavores.
- Então?
- Continuemos.
- Moisés?!
- Ainda mais provas hás
de ver. Continuemos.
Devoraram mais algumas
dez braças.
Moisés parou. Fez-lhe ver
um novo objeto que, pelos vestígios, mostrava ter estado também encravado
na terra. Era uma enorme chilena de prata.
Entregou-a ao moço, que
a contemplava como quem não o compreendia.
Retrocedeu, sem lhe responder
à muda interrogação do gesto, e em igual distância da cajarana, na parte
oposta, colheu um fragmento de pau, um tanto eivado e sem cor distinta.
- Era de cotia - disse
-, foi cabo de relho, a açoiteira apodreceu, eis o buraco em que entrava
o tento e ali está a argola. Gil de Avençal foi batido primeiro com
isto... aqui. A bordoada atordoou-o e depois chegou a vez da faca. .
. Sim, foi aqui, pela banda de lá, fugiu. - E emudeceu vergando a fronte.
- Ainda não?
O caçador falou grave e
pausadamente:
- Há cinco dias fiz a descoberta
que vês, meu amigo, meu filho. Passei muito por perto desta árvore e
nada via... As provas do crime estavam escondidas debaixo da galheira
seca e troncos atravessados. Descobri por um bambúrrio. Eu corria uma
anta. O animal na carreira desembestada levou a madeira por diante e
deixou-me ver a ossada. Mas eu tremo em dizer o nome de quem...
Foi interrompido por uma
explosão:
- Não sou nenhuma criança,
Moisés! Se vivo, sabes bem para que é.
- Então...
E vacilava.
- Oh fala, por Deus!
- Tens na mão o nome...
No cabo da faca e do relho, no insqueiro e na chilena... Olha a marca...
Coragem, meu irmão!...
O moço reparou, desprendeu
um grito desesperado e terrível, abraçou-se ao estípite de um coqueiro,
porque os olhos se empanavam na vertigem ao estalar do coração, e caiu
nos braços de Moisés.
A marca era a mesma que
tinha o gado de José Capinchos.
XIX
A cajarana funerária
Três dias depois vamos
encontrar Avençal, pálido como um morto, em sua estância.
Era uma múmia do que fora.
A comoção moral o transformara
em curto lapso. Há um quê de avelhentado naquele corpo no esflorir da
juventude, uma ou outra plica já se esboça nos traços ontem cheios de
frescor e vida, hoje sombreados por um desalento precursor da morte.
As velhices prematuras
são como os frutos lampos, trazem no seio acético amargume, que transparece
no palor da epiderme.
O moço está à espera de
alguém.
Pelas quatro horas da tarde
ouviu-se o chouto de um cavalo. Ele chegou à janela. Um ancião de barbas
brancas e longas, cútis tostada com vincos profundos e verticais no
esvão da sobrancelha, olhar viperino, nariz adunco como o do caracará,
apeou-se do animal, onde os arreios desde a badana até a carona iriavam
mil fulgores de finas pratas. O rabicho, freio, a testeira e as canas
das rédeas de delicada lonca não carregavam menos tesouros.
Era José Capinchos.
Fizeram mútuos cumprimentos.
- Entonces, que retirada
da nossa casa, Avençal. A Rosita não está muito às boas contigo. Não
queres deixar mais a querência?
- Não é; vou partir. o
cavalheiro Amaral está em perigo de vida. Inimigos poderosos o rodeiam.
Vou partir e quem sabe se voltarei! Moisés acompanha-me, por isso retiro-me
entregando-lhe a administração da estância.
- Mas que tu tens lá com
os negócios dos outros?
- Amaral foi um pai que
encontrei. Minha vida e haveres pertencem-lhe, desde que os queira.
- Faz o que te bacoreia
o coração; porém, o casamento?
O moço empalideceu, mas
com esforço heróico respondeu sem titubear.
- Nada arreceie. Um tesouro
oculto ali confiá-lo ...
- Um tesouro?! - e os olhos
lampejaram.
- Ouro em pó - e fitou-o
com penetração.
- Em negócios de viver
e morrer...
- O senhor ficará meu herdeiro
universal... Espere-me enquanto vou desenterrá-lo.
- É longe? - perguntou.
- Não muito, uma légua.
- Vou contigo.
- Para que se incomodar!
- Vou, é perto. Era boato
antigo que teu pai tinha panelas enterradas com imensas riquezas.
- Sabia?
- Por ouvir dizer.
O espírito do ex-posteiro
sofria uma revolução que se revelava nos traços e lhe fazia ir maquinalmente
afagar o cabo de prata de uma faca terçada na cinta.
Miserável criatura! Talvez
estivesse pensando em matar o filho de sua vítima, algoz desapiedado.
Ambos montaram a cavalo.
Avençal carregava uma enxada. Chegando na ourela da mata, apearam-se,
puseram a maneia nos animais e desapareceram.
O moço percebia nos gestos
de Capinchos maus desígnios, precedeu-o, mas guardando distância.
Pararam. A noite havia
descido. O velho sentia calafrios, os cabelos se lhe eriçavam na cabeça.
Avençal fez ponto de respaldo
no tronco da cajarana, arrimou-se a ela com o coração aos ímpetos.
Capinchos, tateando a treva,
tocou a cruz. Estremeceu e perguntou em tom de terror:
- Onde estamos, José?
- Sobre a sepultura de
meu pai, salteador!
A floresta iluminou-se
de súbito aos clarões de muitos fachos. Ninguém apareceu; no entretanto,
se fossem procurar encontrariam no cimo das árvores, nos esgalhos, atrás
dos troncos, acocorados em touceiras de arbustos, suspensos em cipós,
deitados no chão, índios cujos arcos alvejavam o peito de Capinchos.
Na penumbra da cajarana
havia um vulto em pé. Seu braço apontava um mosquete na mesma direção,
sua pálpebra não interceptava o raio visual, parecia a de uma estátua
de mármorre.
Era Moisés.
- Lembras-te deste lugar?
- Queres enxugar-me - dizia
sufocando o medo para travar do acicalado ferro.
- Quatorze anos há que
meu pai caiu à traição! Tu, seu amigo, foste o autor de tão negro crime!
Não quero assassinar-te, velho, quero matar-te junto desta cruz... Vês?
No chão há armas de toda a sorte. Escolhe. .. Devia tratar-te como um
perro...
O outro retrucou com audácia:
- Como me trouxeste até
aqui, caborteiro, senão por embustes?
- E crês que uma vingança
não é um tesouro? Pesado, velho, bem pesado! Fez estar-me o coração.
Capinchos ia dar um bote
como uma caninana enfurecido.
Um grito terrível abalou
a floresta.
- Tento, Avençal! Não brinques
com a cobra. Basta de negacear.
Era tão oco o subterrâneo
que se diria sair da terra.
Era o caçador.
Capinchos saltou sobre
uma espada e enveredou para o mancebo; este aparou o golpe que resvalou
pela enxada e, com um movimento rápido abaixou e tomou a outra.
As lâminas cruzaram.
- Por minha mãe - e fustigou-lhe
a face.
Ele caiu de joelhos.
- Em nome de Rosita não
me mates... Sou um infame, mas perdoa-me. Perdão! Moço, não queiras
glória sobre um homem morto quebrado - pelos anos. .. Sim, José... Pelo
amor que tens a Rosita. . .
Avençal arremessou a espada
para longe de si.
- Não posso, não posso!
Moisés apareceu terrível
como uma borrasca.
- José, que fazes?! - bramou.
- Moisés, não posso. ..
- Então... Também eu tive
um pai; vou vingá-lo, porque tremeste, irmão branco!... O filho mulato
fará o que não fizeste...
O ex-posteiro aproveitando
o colóquio que apartava a atenção dele ia atirar-se sobre eles, quando
se ouviu o ciciante estridor como de um bando de pássaros ao levantar
o vôo. Era uma chuva de flechas que foram embeber-se-lhe no pleito.
Estava morto sem exalar
um gemido.
Os guaicanã mostraram a
face de cobre por toda a parte.
O caçador contemplou o
cadáver nas últimas contorções, com desprezo.
Tinha tantas flechas que
um índio o comparou a um coandu.
- Enforquem-no no galho
por cima da cruz. Amanhã os urubus terão pasto, se quiserem comer carne
tão ruim.
Os selvagens obedeceram
em silêncio.
Voltou-se para o irmão,
que assistia ao espetáculo sem consciência.
- Se te ofendi, José, perdoa-me.
O outro lhe caiu nos braços
desfeito em soluços.
- Moisés, eu parto, vou
morrer por aí caminhando... Fica com os meus cabedais.
- Estás louco?! Sou rico
demais, sou senhor dos matos.
- Então reparte com os
meus escravos. A vida é insuportável. Quero morrer.
- Não partirás...
- Oh, Rosita!... Rosita!...
E chorava como uma criança
no estiolar das doces ilusões e sonhos queridos.
O mulato sacudiu a cabeça
com tristeza e monologou mentalmente:
- Aquela gavota botou tudo
a perder! Eu bem pensava mal que batesse palmas o bem falante do cavalheiro.
XX
Vaqueania
No dia seguinte André recebia
um bilhete deste teor, pouco mais ou menos:
"Em combate frente
a frente comigo teu pai morreu.
Descobri nele o assassino
de minha família; as provas aí vão. Fui eu, eu só, não culpem outro;
também morri para o mundo".
Rosita teve uma súplica
verbal: que rezasse por ele pois o que ele sofria só Deus era sabedor.
E sumiu-se da Vacaria.
Desde então viveu a caminhar.
E caminhava de sol a sol!
Vinda a estrela do ocaso,
desencilhava a cavalgadura, estendia por terra as coronas e a manta,
debruçava a fronte exausta sobre o lombilho, rude travesseiro do rio-grandense
em viagem, e dormia!
Ninguém lhe invejasse o
repouso.
Que de efialtas medonhos
o recordo do passado lhe sugeria à imaginação livre, sem peias na síncope
do sono?!
Sopitava o corpo quebrado
da árdua provança do dia, a alma agonizava no martírio devorador de
anos.
Mal o frouxo clarão da
alvorada comegava de jaspear o horizonte, verão ou inverno, e ei-lo
de pé, e de novo a volver às vertiginosas marchas, a buscar perigos,
a exaurir gota a gota o alento exuberante de sua compleição atlética.
Não o perdia, no entretanto; algumas horas de descanso durante a noite
renovavam a força perdida. Antélio de um suplício sem nome apenas tocava
a terra, remoçava; a própria febre do desespero o nutria. A revezes
escoou-lhe pelo cérebro o suicídio, como a única tábua de salvação;
recuava, não por medo, mas porque o assemelhava a um desertor, pecha
para ele mais aviltante que a morte.
- Cumpra-se o mau fado
- dizia.
E caminhava adiante.
Corria do Prata até a feira
de Sorocaba, das courelas do litoral às fraldas dos Andes. Não havia
trilho em tão larga área que ele não tivesse pisado, torrão de que na
memória não guardasse os delineamentos do perfil.
Não tinha pouso certo e
nunca acontecera ficar duas noites a eito num mesmo sítio, sendo raramente
nos povoados, cujo rebuliço o inquietava. A campanha imensa, ondeando
em cochilhas, salpicado de capões, como oásis do deserto, o cerro empinado
entestando as franças com os céus davam alguma trégua à mágoa que o
flagelava. A solidão da natureza consorciava-se à solidão de sua alma,
compreendiam-se, talvez.
Uma trazia a expressão
indefinida da criação depois de muitos cataclismos, a outra o selo de
uma agonia sem termo. Sob o manto verde do campo e sob o peito do homem
sentiam-se dois infinitos intraduzíveis, duas almas cheias de vida,
porém numa luta titânica com os invólucros que as revestiam. O globo
e o homem são uma série de revoluções. Os séculos as assinalam em camadas
e gerações.
José de Avençal, apesar
do gênio que lhe era peculiar e o isolava do mundo, não havia quem o
não conhecesse.
Como Bento Gonçalves, a
glória tradicional do Rio Grande, como Cláudio, o Contador, a maravilha
de olhar de Iynce, como Quadrado - nosso Demócrito, e tantas outras
popularidades da época, onde passava, o apontavam com o dedo.
A profissão que escolhera
ainda mais aumentava a celebridade.
O que é a vaqueania senão
a variedade de conhecimentos e relações a cada instante, nas viagens
e trajetos?
O que é um guia, o cicerone
de estradas, páramos e desertos, senão o homem de todo o mundo, a quem
procuram para as peregrinações e mudanças, a quem confiam vida e tesouros
por ermos campos e bravios sertões?
E a ele podiam entregar-se
em corpo e alma. De mais fiel e seguro condutor não se sabia.
Ahasvero do infortúnio,
não era por cobiça de salário, nem pela mera ambição de acumular fortuna,
ceitil a ceitil, que errava sobre a terra. Outro móvel o impelia às
imensas jornadas, outra lei levava o pálido caminheiro a longos estirões.
Buscava afogar no cansaço do dia as atribulações do espírito.
Dinheiro?! Tais naturezas
não roçam na moeda que azinhavra, podiam corromper-se ao atrito. Não
são feitas para a craveira das mediocridades, rebanhos de misérias brotadas
em cada ângulo, como a má erva. Apuraram-se no cadinho do sofrimento,
despiram o manto enlodado para revestir a túnica de Cristo, auréola
da apoteose.
Dinheiro?! Não o recusava,
no entanto, o vaqueano. Era uma propriedade adquirida pelo trabalho;
aceitava-o do rico e ia de passagem com ele enxugar a lágrima do pobre.
Para si não carecia. Viajor
da fatalidade tinha bastante no cavalo, fido companheiro das lidas,
e nos arreios, camilha da noite. O mais encontrava em qualquer choupana
hospedeira.
Contavam o seguinte a respeito
do desprezo que votava ao metal, único rei da sociedade humana.
Guiava, por exígua e sombria
picada do rincão da Cabeça Funda às margens do arroio Colorado, um negociante
em viagem de Bajé a Caçapava. A picada esmorecia num fachinal.
Ao chegarem ali, dois vultos
erigiram o porte dentre os raleiros de folhas; um desfechou a pistola,
cujo balazio esfloreceu face ao viajante, o outro não teve tempo para
fazê-lo. A faca do vaqueano, como alada jitiranabóia, cortando os ares,
se lhe embebeu na garganta, e um corpo mediu a terra redondamente. O
primeiro vendo frustrada a tentativa fugiu em direção à água, porém
a armadilha do laço de Avençal, tomando-o pela cintura, reteve-o na
carreira. Isto foi obra de minutos. Fora uma espera armada em conseqüência
de um litígio de terras.
Chegados em Caçapava, o
homem de trato derramou a guaiaca de onças nas mãos de Avençal, que
recusou ofendido a recompensa.
- Não foi do conchavo,
amigo.
- Veja que me salvou a
vida!
- A vida vale mais do que
uma ponchada de onças. Aceito o reconhecimento - e repeliu com a mão
o ouro para sobre uma mesa.
Partiu para São Gabriel.
A algumas léguas um próprio
veio encontrá-lo; entregou uma bolsa de couro e, sem mais explicações,
dera de rédea. Abrindo-a viu o dinheiro. O negociante resistira em galardoá-lo.
Apresilhou a um tento a bolsa e prosseguiu na tirada.
Quando atravessava a cochilha
do Fidélis teve de parar num rancho na orla da estrada. Ali vivia um
hábil lombilheiro e trançador, com 36 anos e numerosa prole.
O artífice trabalhava junto
à banca, à sombra de uma árvore, nos botões de um boçalete.
Ele esteve contemplando
a delicadeza de filigrana, e observou depois de alguns momentos de silêncio:
- Por que não vai para
a cidade? Faria mais.
O outro levou-o para casa.
Havia 17 pessoas num largo
alpendre, a mãe, 12 filhos e só quatro crianças de menor idade. Uns
preparavam o tenro couro do portilho ou o desfiavam em tentos, outros
traçavam os filetes da alva lonca ou o manufaturavam em obras.
- Vê? Na cidade como poderia
viver com este mundo de povo?
O argumento calou no ânimo
do vaqueano, que sobresteve pensativo, tirou uma palha do bolso, cortou-a,
picou um pedaço da torcida de fumo, fez o cigarro, feriu a pederneira
sobre a isca de pita, e fumou; e durante que passeava, soltando imensas
baforadas ao lado do guasqueiro, já de volta ao serviço, seu espírito
passava pelas crises de uma imensa elaboração. Pensava em proteger o
operário inteligente, sem ofendê-lo. Preparou o cavalo e foi ajustar
umas rédeas com ele, recebendo-as por módico preço.
Uma menina apresentou-lhe
uma cuia de mate.
- Agradecido, minha filha,
tenho pressa de chegar a São Gabriel, leve a seu pai esta bolsa, é o
dinheiro da compra.
E cavalgou como uma seta
pela estrada.
O ato traduz o homem.
Talvez fossem os únicos
instantes de alegria, no correr de dias amargurados, que passava!
Teve que suportar, no entanto,
um golpe terrível, meses depois deste fato.
O Brasil abriu a campanha
contra seus vizinho do Sul.
Avençal estava longe, mas
corre para deixar honrosamente nos campos de batalha uma vida que lhe
pesava. já se havia empenhado a ação do Ituzaingo, e quando chegou foi
para chorar a morte de Amaral, que ali acabara, trocando uma existência
inútil pelo sangue de oito perros, como ele mesmo dissera antes de expirar.
XXI
Rosita
Moisés, que recusava tomar
parte na revolução, resolvera afinal acompanhar o vaqueano, com o contingente
de quase todos os seus guaicanã.
Eis por que o encontramos
na Laguna.
O exército republicano
ficara a três léguas, nas abas do morro de Santa Marta, e ele viera
ver, como bombeiro, o que faziam na praça.
No dia 23 de julho, o estandarte
de cores amarela, encarnada e verde da República de Piratini flutuava
sobre a vila, desfraldado aos ventos da vitória.
Fácil vitória sem derramamento
de uma lágrima, sem a troca de um tiro.
Canabarro tratou logo de
se precaver contra qualquer eventualidade. Levantou na barra uma forte-bateria
em defesa do porto e fez armar quatro embarcações para o corso.
Garibaldi não só bom soldado,
mas excelente marinheiro, pois na marinha piemontesa galgara até o grau
do segundo-tenente por mérito, foi nomeado chefe de esquadrilha.
Também em pouco infestou
a costa, e raro era o dia em que não fazia presas consideráveis de navios
mercantes do Império, requintando de audácia até o ponto de aparecer
em frente à cidade do Desterro e de ameaçá-la com um canhoneio. Canabarro,
no continente, não descansava; os planos de hostilidades abrangiam a
Província inteira. Esperava em breve ocupar toda a ilha de posições
tão importantes, que o tornariam formidável por terra.
Enquanto não chegamos a
sérios e culminantes combates, voltamos aos nossos conhecidos.
O vaqueano e o caçador
gozavam de privilégios - na turba-multa soldadesca. O primeiro não era
mais que o guia do exército, e, se tomou parte nas lutas, sempre foi
espontaneamente; o segundo não quis soldo, para obrar em liberdade,
dando contudo dez homens para o serviço de guarnição, e pronto a tomar
parte em qualquer ocorrência perigosa. O mulato fez todos os esforços
para afastar Avençal do teatro da guerra, onde então se achava seu figadal
inimigo. Supunha-o capaz de qualquer crime, mormente depois do que com
ele praticara, vindo bombear a vila, e da perseguição de que fora alvo.
Ouvindo a proposta, o moço encolheu os ombros.
- Já morri uma vez, Moisés.
Que importa agora que me maltratem o corpo, quando já me machucaram
o coração. A morte, negaceio-a, não lhe volto as costas.
- Mas...
- Basta, afliges mais minha
pobre alma - redarguiu com ligeiro assomo de impaciência.
- Está bom, irmão. Não
é para te zangares...
Levantaram um arranchamento
na coroa da colina. Moisés, aventando os desígnios de André, cuja sanha
já conhecia pessoalmente, chamou três dos principais guiacanã, e assim
lhes falou:
- Irmãos, a vida de vosso
irmão caçador está em perigo. O inimigo o olha de perto. Se quereis
que vosso irmão viva, rodeai as ocas de cuidados.
Os selvagens responderam
com a habitual gravidade:
- O irmão descanse nos
arcos dos guaicanã. Os guerreiros da serra têm a vista do urutau que
encara o sol, e a vigilância do pássaro da campina; têm o faro do urubu
e o ouvido do cervo.
Desde então o arranchamento,
numa área de quarenta braças, ninguém transpunha, além da companhia
que encontramos na Vacaria. Às vezes, um transeunte distraído ia passar
pelo outeiro e saía-lhe do chão um bugre carrancudo e torvo com enorme
clava em punho, desviava e mais adiante entrevia um cano reluzindo entre
a rama de uma moita de guaximas; fazia um novo circunlóquio mental a
que correspondia um novo circunlóquio dos pés. Mas, prosseguindo, encontrava
a alguns passos uma bola que, ao vê-lo, distendia com espantosa elasticidade
como uma serpente, e mostrava o arco com a flecha embebida. E, como
a prudência é uma virtude nos próprios generais, estabelecendo premissas
e uma conclusão de lógica de ferro, o nosso caminhante estugava a passada
em longo rodeio, cujo termo era na vila.
Canabarro uma noite saíra
da tenda e viera falar ao vaqueano.
Mal quis vingar o perímetro
guardado, um vulto se lhe opôs, e o general, furioso e admirado, arrancou
da espada. O grito do carancho soou. Era a senha, e, como por encanto,
viu-se rodeado de tantos homens, num momento, que, de 40 que eram, julgou
divisar um exército nas sombras flutuantes da hora. Os guaiacã levaram-no
prisioneiro ao chefe.
Moisés sorriu, quando reparou
no preso de tão alta categoria.
- Chega, Moisés! Que diabo
de costume é este?
- Não recebo a pessoa de
um general sem cortejo - disse gracejando.
E contou-lhe então os motivos
por que assim procedia.
- Se ele não estivesse
alistado em minha gente mandava prendê-lo; mas, vocês, por que não vêem
lá se podem acomodá-lo?
- General, dois dos meus
índios não deixam aquele demônio noite e dia. Se quiséssemos fazê-lo
estender o molambo, por Deus! que não nos incomodaria mais. Eu cá pensei,
mas o vaqueano não quer. ..
- Está bem, arranjem como
puderem... Onde foi o vaqueano? Ando pensando que temos chamusco mais
dia, menos dia.
- Os caramurus querem corcovear?
- Pior! Querem-nos pôr
carona e boçal.
Armemos um pealo e zás!
Serão eles os emboçalados.
- Ficaram desbarrigados
depois do Rio Pardo, e agora pedem desforra. Hão de ver como os desabusamos,
bagualada do rei.
Alguns dias depois os ranchos
estavam vazios.
Os índios apreenderam um
soldado que - por força queria falar com Avençal e trouxeram-no para
as habitações onde o retinham, sob guarda rigorosa. Era de noite. Ele
entrou na peça principal e sentou-se num cepo perto de alentador braseiro,
sem pronunciar palavra. Não se lhe enxergava o rosto na penumbra do
chapéu desabado. Silencioso e sombrio pousou a barba nas mãos, mergulhando
em funda cisma. Sua imobilidade o assemelhava a esses guerreiros americanos
acocorados nos camucins da derradeira morada.
A ampulheta do tempo vazava
hora por hora sem que ninguém aparecesse.
Só a sentinela guaicanã
descansava sobre o arco quase da longura de um corpo de homem. Parecia
adormecida e, no entretanto, na atitude de estátua, era a personificação
da vigilância. Imperturbável como a penedia ereta tinha cem olhos de
argos, não perdia o menor acidente do teatro em que se achava; o ouvido
era uma acústica viva, o argueiro que tombava, o zumbido do noctívago
inseto nele repercutiam.
Avençal, Manduca, Moisés
e outros entraram, já sabedores da prisão efetuada em sua ausência.
Seria meia-noite.
O soldado, ao vê-los, soltou
um grito e caiu nos braços do vaqueano.
- Avençal! - murmurou.
- Rosita! - exclamou ele.
Largo espaço estiveram
unidos, seio contra seio, os olhos debulhados em lágrimas, os lábios
exaustos de carinhos.
Numa exclamação tinham
dito tudo.
- Avençal e Rosita!
Que mais poderiam dizer?
Aqueles dois nomes para
eles não constituíam uma religião, um poema de amor, a imensidade do
infortúnio de duas almas nutridas dos mesmo sentimentos, refociladas
na mesma crença ao pungir da mocidade? Que se fundiam na mesma aspiração?
Tão irmãs como duas flores de um corimbo, como duas asas de beija-flor?
Culto grandioso e sublime
de dois corações que se amam, de Romeu e julieta, malgrado os ódios
de raça!
Em suas irradiações parecem
superiores à natureza, ao espaço e a Deus, embora caiam inânimes na
luta!
Quem lhes bradará: - Suspendam!
Vã tentativa! A pira recebe
alimento, mais cresce a paixão a cada óbice, a labareda corre como na
queimada devoradora e rápida, e torna-se como a entranha da terra; quanto
maior pressão, mais a cratera vulcânica fumega, arde, extravasa, vence,
mata!
Reprimiram afinal os ímpetos
do peito.
- Avençal, fujamos daqui.
Amanhã será tarde... Meu irmão procura-te, Avençal... Foge, eu te acompanho.
Irei aonde fores. . . - E travava-lhe das mãos com ar súplice.
- Também enveredo - disse
o mulato.
- Fugir?! Não, não posso...
- Partamos... - renovou
com o peito partido por um soluço. - Queres morrer! Não vês que nossa
ventura deixará de ser uma mentira?
A imagem de José Capinchos,
pedindo-lhe a vida em nome da amante, destacou-se no cérebro do mancebo.
Esta recordação repassou de amargume o júbilo que por instantes lhe
inundara a alma.
Tornou-o forte contra a
tentação.
Falou consigo resoluto:
- Cumpra-se o fado! - E a ela:
- Nossa ventura, minha
Rosita... - e volveu os olhos para o céu... - Só lá!...
André, apenas chegara o
exército da República, fora apresentar-se ao general para prestar o
auxílio de que ele carecesse, e, de fato, prestou valiosos serviços,
já em gente sua reunida ao exército, já em dinheiros. Não fora o amor
à causa que o guiara. Foi o pressentimento do ódio. julgava encontrar
não só o caçador, mas também o inimigo do íntimo, mas a hora da vingança,
hora há tanto almejada e estremecida.
Acertara.
Deparou ambos.
Captara o reconhecimento
de Canabarro. Podia operar livremente. Pôs-se em cama. Mas a sanha do
tigre teve de quebrar contra a fera têmpera dos aborígenes dedicados
até a heroicidade. Moisés, de seu lado, também o pressentira e opusera
a única força capaz de resistir-lhe, o único elemento de fidelidade
a toda prova.
André queria tomar Avençal,
a imaginativa deu-lhe o recurso de mil planos e emboscadas, malogrados
sempre pela vigília eterna do gentio. Uma ocasião, no auge do desespero,
estrangulou um destes. Outro apareceu, depois um outro e, por fim, turmas
que iam aumentando progressivamente como onda após onda na fola dos
mares. Fugiu. A irmã, ao vê-lo chegar em casa com as feições decompostas,
abrigou-se no quarto. Tinha também feito um plano. Suas faculdades estavam
reconcentradas num só ponto: a salvação do amante. Queria vê-lo e confiava
em arrastá-lo longe da Laguna. Anoitecia. A hora era propícia. O silêncio
reinava em torno da morada. Abriu a rótula, e, disfarçando o sexo nos
trajes de homem, saiu.
Com o passo apressado e
trêmula foi dar no arranchamento como vimos. Não notara que dois vultos
a seguiam de longe: André e um peão.
Quando voltara com o desalento
e o desespero na alma e a intuição de uma próxima desgraça, ao transpor
a janela, viu destacar tremenda nos umbrais a figura do irmão, lívida
de cólera, porém calma no exterior, como a face do oceano antes do furacão.
Ligeiro arrepio frisava-lhe
a espaços os traços, e um som cavo e profundo regougava surdamente nas
faces prestes a escancarar-se.
- Onde foste, Rosita? -
perguntou.
- Que me queres? - respondeu,
medindo-o, alucinada, da tartaraúna, como o leite da guararema, espadanou
e foi borrifar a face da mimosa donzela.
- Que te quero ! Vai dizer
tuas últimas rezas. . . E depois... irás contar a nosso pai o que fizeste
por aqui esta noite... infame!
Rosita sentou-se à borda
do leito e mergulhou a mão sob as roupas, que oscilaram por momentos.
E, plácida e radiante,
a fronte como o lago em tarde serena ferido dos resplendores do ocaso,
esfolhou um sorriso como pétalas de rosas, como acentos de harpas eólias,
como dunas seráficas:
- Eu te amo, Avençal...
Adeus!
Foi um sussurro... O adejo
do espírito que foge do corpo.
Estava morta. Tinha uma
adaga cravada no coração.
XXII
O corredor do pangaré
Manduca e João de Deus
ataram uma carreira entre um alazão-ruano e um pangaré.
Logo no acampamento formaram
partidos, apenas feito o atilho, e a parada subiu a trezentos patacões.
O vaqueano era o corredor
do alazão.
Do outro não se soube até
o dia. Os dois pujantes animais, tratados a palha de jerivá e bem amilhados,
apareceram na raia.
Havia ali um mundo de gente
toda agitada, soltando alta grita, a efervescência da arraia miúda preparada
para uma grande festa.
- Paro três doblas no ruano
- bradava um. - lsto é que é ginete, pelichou de dias e já fino na raia
como uma seta. O alazão não reserva tiro nem parada em cinco quadras...
Coepuxa! - E sacudia o relho com ar provocador.
- Sente-se no tiro, e a
parada morta - disse outro. - Não um salta-pedras que dá pancas.
- Envido, amigo - retorquiu.
- Reenvido...
Rebentou sáfara pocema.
Um aderente do pangaré,
que não vira com bons olhos a provocação do primeiro interlocutor, também
rugiu-lhe aos ouvidos:
- Aquilo é um matungo,
patrício! Um reúno!... Largo-lhe na cola a tiro de bola e ainda vou
tomar-lhe o boçal.
- Helá! Este potranquilho
agora desponta o colomilho e já no partir mata o pangaré a sacar de
paleta...
- De fiador...
- Nem de orelha...
- Eu torno a repetir que
cem léguas em derredor não há cavalo mais monarquiador, voluntário e
parelheiro...
- Basta de levantar polvadeira!
Não é só a boca que faz jogo, é a raia que há de fazê-lo. Não é por
escarcear que se conhece o pingo. Num prisco do pangaré vai tudo raso.
- Qual pangaré, nem meio
pangaré! O ruano, sim, é que voa, nem risca o chão!...
- Por Deus e um patacão!
Ao heu da carreira o bagual do ruano se desmancha. .. E se há quem diga
o contrário pise-me no poncho, que verá como o corto de arreador. E,
desenfiando o poncho, e o revoluteando nos ares, arremessou-o por terra.
Num minuto facas despiram
as bainhas e rebenques alçaram as açoiteiras. Era iminente um grave
conflito, se não fosse a intervenção de Moisés e outros, que interceptaram
e fizeram abortar furiosas agachadas.
São prelúdios das corridas.
- O que não dirá o general
- advertiu o mulato -, se sabe que no brinquedo houve rusgas? Sosseguemos,
se não queremos conselho de guerra e fuzilamentos.
Aplacou-se a conflagração.
Ao tumulto sucedeu o murmúrio
de vozes comentando baixinho o sucesso.
Decorridos instantes um
ponderou em tom alto:
- Com o diacho! Onde está
o corredor do pangaré? Esperam que caia ali da carapuça do morro? -
disse aludindo à névoa que coroava o cume de Santa Marta.
Era motivo para novo distúrbio,
porém João de Deus apaziguou-o.
- Há dias veio um sujeito
falar-me para corrê-lo, afirmando que ganharia e ao contrário pagaria
o dobro. Às duas horas ele vem. Prometeu. Moisés teve apreensão tão
repentina que bradou:
- Vamos lá esperar!...
Corro eu com o mesmo conchavo.
- Não queremos. Não queremos
- tomou em coro um sem-número de vozes. - Esperemos nosso corredor.
O mulato sobresteve fulo
de cólera.
Depois achegou-se ao vaqueano
e pronunciou mansinho: - Abandona o alazão, quem corre o outro é André
Capinchos.
O moço encolheu os ombros
com indiferença.
- Por Deus o digo, José!
O mesmo movimento.
Moisés mostrou impaciência
e foi até o arranchamento aconselhar-se com os índios.
Às duas horas viram um
cavalheiro a toda a brida.
Chegou.
Era André.
Avençal nem de leve se
fez surpreso.
Os corredores puseram-se
em mangas de camisa, ataram um lenço nos cabelos, tomaram dois talos
de jerivá e montaram os cavalos em pêlo.
A carreira era de quatro
quadras. Os julgadores nomeados foram para a raia. O poviléu apinhoscara
em duas imensas turmas.
Começaram a partir.
- Assassino - dizia entre
dentes, André -, hoje não tens um velho... Covarde!
As faces de Avençal carminaram
levemente, porém não respondeu.
O outro prosseguiu:
- É necessário que eu te
corte a cara, para te fazer falar?
Ainda o mesmo silêncio.
Quem os visse, diria que
conversavam. Só Moisés adivinhava o que se passava, acariciando a coronha
dum pistolão.
Na quarta vez, cerraram
pernas e saíram. Os animais dilataram as narinas, distenderam o talhe
esguio. Assemelhavam dois dardos num arremesso violento à flor da terra.
Os dois homens, inclinados sobre as crinas dos briosos ginetes, com
a respiração difícil na vertigem do galope a toda a rédea, devoravam
o lançante do cerro com a velocidade do corisco...
Segui-los com os olhos,
fitá-los era crer nos centauros míticos, era sentir as fontes latejarem
no ourijo do pensamento.
O alazão começou a cortar
luz de fiador. Capinchos aproveitou a ocasião, levantou o braço, ia
ferir na face a Avençal... Uma flecha silvou dentre a rama dum salgueiro
e arrancou-lhe o talo da mão erguida.
O fato produziu tão profunda
sensação, que por momentos paralisou todas as línguas. Depois uma tempestade.
Moisés foi abraçar com
entusiasmo o guaicanã de vista certeira. Os julgadores, em vista da
ocorrência, anularam o que se tinha feito.
Avençal na velocidade em
que ia não vira o que passara.
Mal deram a assentada,
pularam dos cavalos.
André esbravejou:
- Houve trapaça de pés
e mãos, e meteram caboclos no meio...
O vaqueano não pôde conter-se.
- Mentiste, perro! - bradou.
Duas facas lampejaram.
Muita gente rodeou-os.
Moisés acercou-se dos grupos
e disse com voz de trovão:
- Deixem-nos brincar..
. São contas antigas... Caramba! Deixem-nos, ou então faço saltar os
miolos do último dos Capinchos, raça de matadores... E tinha na destra
o pistolão engatilhado, e o cenho ameaçador.
- Querem pelejar, rapazes?
- refletiu um capitão da República, testemunha ocular do combate entre
Bento Gonçalves e Onofre e muitos outros. - Eu os arranjo, venham cá.
E voltando-se para o ajuntamento, cuja maioria era composta de soldados:
- Retirem-se, ou mando
convidar o pelego do que não obedecer.
As mós do populacho pouco
a pouco se rarefizeram, ainda que com murmúrio de descontentamento.
No dia seguinte vamos encontrar
o referido capitão, os dois adversários e Moisés na costa dum rincão.
Iam atirar a faca numa distância de 15 passos. O capitão quis sorteá-los,
em conformidade das leis da honra.
O vaqueano com o habitual
sangue-frio e indiferença da vida e, quem sabe, por desprezo do antagonista
deu-lhe a primazia. Este aceitou com um sorriso, onde transluziam íntimos
júbilos, reflexos da alma que ia saciar a sede de sangue, alastro de
ódio profundo. Tomaram os lugares.
Só o mulato tremeu diante
da resolução do amigo, mas não ousou fazer a menor consideração deixou
a Deus o desfecho do drama negro em que ele figurara entre as principais
personagens.
André empalmou a faca,
ficando o cabo para fora e a ponta da lâmina estendida sobre a parte
interna do braço. Pinchou-a em direção ao peito de Avençal. Ia feri-lo
no coração. Mas antes que o ferro o tocasse, este arredou o corpo e
tomou-a no ar pelo cabo.
- Bravo! - exclamou o capitão,
esfregando as mãos de contente. Isso é que é furtar a volta!
O filho de Capinchos empalideceu.
Avençal fez o mesmo movimento, no entretanto com admiração de todos
não fitou o adversário.
- Capitão - disse ele com
voz onde o sarcasmo palpitava -, vê aquela lixiguana na ponta daque
galho?
Todos olharam, viram a
faca transpor um intervalo de 40 passos e vibrar encravada no centro
da abelheira, a qual o mais que tinha era um palmo de diâmetro.
Era a soberania do desprezo.
André rugiu ao novo insulto,
e, travando do pistolão na cinta, desfechou-o; o tiro seria mortal se
Avençal presto como o galheiro não se inclinasse ... Num salto de rara
agilidade coseu-se com o competidor, cingiu-o pela cintura, ergueu-o
do chão e fê-lo rojar por terra como um brinco. Pôs-lhe um joelho no
peito.
- André, vê? Podia matar-te.
. . Não quero.
- Mata-me, que não perdoarei
nunca a morte de meu pai.
- E quem assassinou os
meus e a meus irmãos, roubando-lhes suas riquezas? Foi José Capinchos,
amigo da casa. Fiz o que devia... Devia ter feito o mesmo em tua família,
olho por olho, dente por dente. Não quis... entendeste? Deixa-me, não
me procures mais ou então...
- Mata-me - repetia o outro
-, venceste, salteador, tens direito... Não te pouparei se me deixas
a vida.
- Vai-te, não temo os tigres.
O outro montou a cavalo
ralado de raiva. Avençal foi buscar a faca na colméia. O capitão fez-lhe
os maiores elogios. Só Moisés resmoneou entre os dentes:
- Aquela gavota. Aquela
gavota, que tanto apreciou o cavalheiro de Amaral! - O mulato entendia
que, se o irmão poupava André, era por causa de Rosita.
O vaqueano e o caçador,
quando chegaram ao acampamento, foram rodeados dos populares, o capitão
narrou o combate com todas as particularidades. Produziu hurras e algazarras
formidáveis o acontecimento.
A popularidade do moço
atingiu mais alguns furos.
João de Deus bebia como
um inglês. Dizia ele satisfeito:
- Por Deus! Isto me livra
dum peso de cem arrobas. Fui eu quem fez o amigo vaqueano ter a pendenga.
E os martelinhos de vinho
se sucediam uns após os outros.
XXIII
A cabeça de um anjo
A noite reuniram-se na
bodega do Bino Capenga, homem que seguia o exército com negócio.
Moisés convidara seus amigos
para uma patuscada, donde excluiu a dança, porque desde certo tempo
lhe votava singular ojeriza.
Havia com que molhar a
palavra, cartas e violas. Bastava.
Avençal, como sempre, triste.
As violas tangiam.
- Lá vai verso, disse um
guasca, tipo de cheripá, calças franjadas e chapéu de barbicacho.
Era um belo moço que aborrecia
a estada em Santa Catarina, a ponto de sofrer de terrível nostalgia.
Começou:
Já não ando enrabichado,
Não arrasto o meu cambão! Aos bamburrais da tristeza Foi-se o pobre
coração.
Que de saudades que sinto
Das cochilhas lá do sul, Dos campos onde escarceia Meu parelheiro taful!
Ai vida longe dos pagos,
Vida tirana, por Deus! Quem não gosta da querência, Da querência que
é dos seus?
Abombado, cabisbaixo Ando
nas terras de cá, Deixo as bolas, deixo o laço, Deixo o pingo, tudo
já.
Boi xucro que vai de tropa,
Não chora o que eu já chorei; Ai saudades de meu peito, Saudades do
que deixei!
Vem-me tudo na memória:
As tronqueiras e o curral, A estância com seus potreiros, O vargedo
e o macegal!
Vem-me a casa da Marucas,
junto ao cerro do Baú, Marucas, a morenita, Sem parelha no tatu.
Ó tempos que eu roseteava
Com Marucas no sertão, Chilenas finas de prata Repenicando no chão!
Adeus, barrigas-verdes,
já vou a monarquiar, mosto mais do meu churrasco Que desses bagres do
mar.
Dos campos do meu Rio Grande
Muito quero e até demais; Eu como dos seus rodeios E bebo dos seus ervais.
Volto à cancha dos amores,
A cancha do meu viver, Que só lá posso chibante Estar com meu bem-querer.
Eh! muchacha, se me viras,
Juraras que não sou eu, Pois vou-me desbarrigado Como quase quem morreu.
E juraras por teu rosto,
Encarnadinho como uva, Que fiquei sem pelego E tornei-me boitatá?...
Heu! Heu! o meu cavalo
Epuxa! que vou partir! ... Risca a raia e teu relincho Novamente faz
ouvir.
Salta sangas e Porteiras
Que depressa já me vou Pouco rodar e planchar-me A campeiro como sou...
Retovei as boleadeiras,
Nova ínhapa o laço tem. Heu! Heu! a toda a rédea Prisco a prisco rompe
além ...
Vamos, pingo, terra fora,
Feia terra que pisei! Ai saudades, ai saudades, Saudades do que deixei!
Terminou.
Os aplausos choveram sobre
o trovador, cujas pálpebras umedeciam de pranto.
- Isto sim é botar versos!
Senti cá por dentro não sei quê! Parece que o coração também me chorou...
- A quem toca?
- A mim.
E assim prosseguiram nos
descontes, acabando pelo hino a Bento Gonçalves, cuja primeira estrofe
é a seguinte:
Bento Gonçalves da Silva
Da liberdade é o guia É herói porque detesta A infame tirania.
Todos o entoaram, exceto
Avençal.
Enquanto uns jogavam a
primeira, o trinta-e-um e a manilha, outros estalavam a língua nos sorvos
da aguardente que chamavam a patrícia, e do vinho do reino, e alguns
outros dedilhavam nos instrumentos os clássicos Anum, Tirana, Chimarrita
e Tatu, além dos improvisos, toadas e canções da época, ele em seus
pensamentos, isolado da reunião, ia longe refestelar o espírito numa
imagem pura e santa, aurora que nos primeiros anos lhe sorrira com tanta
volúpia, que ele pudera esquecer em muito tempo de adversidade e esquecimento
de si próprio, mas que ao tornar a vê-Ia, fazia como reviver todo o
passado risonho, toda uma paixão nascida para ser logo sufocada nos
braços da consciência.
Na atmosfera de tristeza
e infortúnio onde respirava, cria entrever uma luz... miragem do náufrago
no meio do oceano! O mundo não tinha mais um raio para fecundar a esterilidade
de um semelhante coração. A alma humana exposta a um longo período de
angústia suprema, queda como o rochedo do mar batido pelo vagalhão.
Aquela não tem mais germe de crenças fundas, e como este não tem mais
germes de vegetação, a não ser pelas fendas uma ou outra radícula moribunda.
Um guaicanã entrou. Entregou
ao caçador uma caixa, dizendo:
- Irmão, trouxeram.
- Quem? - perguntou Moisés.
- Não sabe o guerreiro.
Entregou a caixa uma mão estranha, que desapareceu ligeira como a nhandu
do campo.
- Vamos abri-la.
Todos, salvo Avençal, rodearam,
açulados pela curiosidade.
Mal o tampo ligado com
uma corda de imbé cedeu à mão de Moisés, um grito de terror partiu de
todos os peitos, os cabelos ouriçaram em cada fronte.
Havia uma cabeça de mulher.
Era a de Rosita.
O vaqueano despertou da
cisma, ergueu-se e veio ao grupo.
Ficou estátua.
- André Capinchos! - vociferou
Moisés, quase branco de fula que estava.
- E não o mataste, quando
hoje o podias, amigo! - E voltando-se para o índio:
- Os guaicanã sigam o inimigo,
tragam-no vivo... Caramba! Hei de fazer o que ele me ensinou uma vez.
E para os outros companheiros
da tasca: - A cavalo, patrícios! Temos rebentona.
- A cavalo, patrícios!
Temos rebentona. armas à cinta.
A sala esvaziou-se. Só
José Avençal ficara.
- Pobre Rosita!
E o moço estreitou com
veneração aquela cabeça ainda mais bela depois de morta, pálida como
um busto de lioz com os cílios entreabertos como faria ainda uma vez
ver o amante, com os lábios que pareciam nas inflexões em que congelaram
estar pronunciando um só verbo: Avençal.
Ele beijou-a em delírio.
- Vítima de meu infortúnio,
perdoa-me, perdoa-me...
Breve serei contigo.
E chorava, chorava o pobre
moço.
XXIV
Pavilhão tricolor
O governo central assustou-se
com a tomada da Laguna, viu a ilha de Santa Catarina ameaçada de próxima
invasão, como os navios mercantes apresados por um inimigo cuja audácia
e valor não tinham limites e chegavam até as fortificações de Tamarim
e Ratones.Resolveu pois acabar com tão precária situação.
Nomeou no intuito o marechal
Francisco José de Souza Soares de Andréa comandante das armas da Província
invadida, e chefe de uma força naval o capitão-de-mar-e-guerra Frederico
Mariath.
No dia 15 de novembro de
1839 entre imperiais e republicanos ia renhir-se porfiada luta, em que
ambas as facções tinham de cobrir-se de memorável glória.
Canabarro campava na bateria
que defendia o porto. Garibaldi com a esquadrilha em ordem de batalha.
Rompeu o fogo...
Quantas façanhas, quantos
atos de bravura e heroismo não ficaram sepultos nesse dia em nuvens
de fumo, no fundo das águas e no estrupido da peleja?
Como Canabarro e Garibaldi
sorriam jubilosos, sob um céu de metralha e fogo! Leões da guerra, colunas
avançadas da liberdade, cederam; mas, quando o exército dizimado por
forças superiores constituiu num pugilo de bravos, quando da flotilha
se viam apenas fragmentos boiantes sobre as ondas, cederam, é certo,
ao número de recursos poderosos, não ao esforço e bizarria. Grandes
na vitória e no infortúnio. Grandes na derrota, porque tinham no coração
as lágrimas do desespero!
Derrota?! Não... Retirada
grotiosa, ressaca de vagalhões que imprimiram o selo de sua pujança
onde bateram, fracassando.
Senão, por que não os seguiram
aqueles que cantavam os hinos triunfais? Por que os deixaram voltar
sem oferecer combate, quando eram senhores da liça?
Razão intuitiva. A natureza
do lugar, sem amplo desenvolvimento de fortificações, deslocou-os, não
os venceu. O rio-grandense confia mais em seus braços do Briareo e em
seus ombros de Atlante do que nos recursos oferecidos pela engenharia
militar.
Retirando-se, poucos na
verdade, ainda infundiam terror nas hostes contrárias, imobilizavam-nas.
O reduto fora arrasado.
As pedras do parapeito atulhavam a berma, ostentando calva a banqueta
onde pisavam tantos valentes, onde ainda alguns davam o último arranco
de vida pela República.
Mariath varava a barra.
A bandeira tricolor flutuava
na haste, crivada de balas, porém, como sempre, medindo altiva a bandeira
do Império.
- Colham a bandeira! -
bradou Canabarro, rubro de cólera, trêmulo de desesperação. . . - Coepuxa!
Que é impossível estacar mais um momento! A posição vai ser tomada...
E de fato vários destacamentos
vinham em direção.
- General, deixe-a - disse
o vaqueano -, eu fico, vou dar-lhe uma lição. O chefe o conhecia muito
bem para lhe confiar o estandarte, sem susto. Não quis saber mais, abraçou-o.
Tocou-se a retirada.
E partiram tantos heróis
ainda com ímpetos de retrocederem, se a voz do chefe ordenasse.
Quantos naquele momento
não preferiam ter ficado na arena da batalha, ouvindo o som estridente
das cornetas? Quantos não seguiam constrangidos? O contrário, no entretanto,
era impossível.
Mas o campeiro onde é que
vê impossíveis, ele habituado às intempéries, vencendo dia após dia
a natureza selvagem?
Partiram.
Avençal, só, ali se conservava.
Por minutos desaparecera na casamata. Quando voltou trazia na mão um
morrão aceso. As feições, há tanto contraídas pelos sofrimentos, difundiam-se
numa alegria íntima e inefável. Volveu os olhos para o céu e pronunciou:
- Rosita, espera... é um
instante.
Os imperiais aproximavam-se.
Ele espalhou um rastilho
de pólvora através do terrapleno, da casamata até o mastro em que desfraldava
o pavilhão. E sentou-se junto dele num cômoro de ruínas.
Os legalistas galgaram
a posição, julgando-a abandonada, com tanta rapidez que nem viera a
lembrança de retirar a bandeira. Vinham desprevenidos, porém mal o viram
as armas procuraram a pontaria.
Não tiveram tempo.
Avençal bradou:
- Viva a República! - E
seu braço abaixou o morrão; o rastilho incendiou e... uma detonação
horrenda, nuvens de fumo, espadanas de fogo!
Quando o ar desanuviou,
viu-se que o pavilhão da República não costumava render-se, ardia com
seus inimigos.
.........................................................
Em frente à barra da Laguna
ou do Tubarão demora a ilha dos Lobos. Enquanto o combate seguia as
diversas evoluções, ali, sobre um penhasco, um homem contemplava impassível
a cena. O fresco do mar açoitava-lhe a fronte e as ondas marulhavam-lhe
as plantas, sem demovê-lo.
Tinha a fisionomia carregada
de ódio. Parecia o ideal do mau gênio assistindo ao espetáculo da destruição
entre os homens.
A rocha que lhe servia
de pedestal não era mais imaleável, áspera e dura do que a têmpera de
seu caráter.
Viu a explosão.
O lampejo de um pressentimento
iluminou-lhe a alma. Sorriu como Caliban ou Mefistófeles! Instilação
de fel e veneno!
- Meu pai - exclamou, gesticulando
para o céu - estás vingado!
Meia hora depois um cadáver
surgiu ao longe. O sangradouro o vomitava ao oceano. Ele, em cima do
rochedo como o abutre farejando a preá, estendeu a vista e estorceu-se
no acesso de uma gargalhada.
- É ele! É ele! - fremiu.
E arrojou-se ao mar após
o corpo do morto...
Este homem era André Capinchos...
.........................................................
Moisés chorava no acampamento.
O caso era virgem, por
isso mesmo teve o respeito de todo o exército.
Naquele dia que ia finar,
perdera o querido irmão e quase todos os índios, seus fiéis companheiros.
Os guaicanã desapareciam
para sempre da Terra. Entravam no domínio da posteridade, como uma tradição.
Alguns 20 sobreviviam feridos e mutilados; poucos para representarem
sua tribo guerreira.
Mas não era só a face do
mulato que rorejava.
Todos que conheciam o vaqueano,
ainda que muitos lhe invejassem a morte, o choravam. É que o pranto
é sempre o epitáfio da saudade numa ruína onde vicejam flores olentes.
Porto Alegre, 1869.
XXV
Epílogo
FIM
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