Antologia, de Antero de Quental

 

Fonte:

QUENTAL, Antero de. Antologia. Organizacao de José Lino Grunewald. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1991. (Poesia de todos os tempos).

 

Texto proveniente de:

Biblioteca Virtual do Estudante de Língua Portuguesa <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>

A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo

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Maria Fernanda Amado Morillo de Andrade - São Paulo/SP

 

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ANTOLOGIA

Antero de Quental

 

 

Odes Modernas

 

Panteísmo

 

I

 

 

Aspiração... desejo aberto todo

Numa ânsia insofrida e misteriosa...

A isto chamo eu vida: e, d’este modo,

 

Que mais importa a forma? Silenciosa

Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço

Em homem igualmente e astro e rosa!

 

A própria fera, cujo incerto passo

Lá vaga nos algares da deveza,

Por certo entrevê Deus - seu olho baço

 

Foi feito para ver brilho e beleza...

E se ruge, é que a agita surdamente

Tia alma turva, ó grande natureza!

 

Sim, no rugido há uma vida ardente,

Uma energia íntima, tão santa

Como a que faz trinar ave inocente...

 

Há um desejo intenso, que alevanta

Ao mesmo tempo o coração ferino,

E o do ingênuo cantor que nos encanta...

 

Impulso universal! forte e divino,

Aonde quer que irrompa! e belo e augusto.

Quer se equilibre em paz no mudo hino

 

Dos astros imortais, quer no robusto

Seio do mar tumultuando brade,

Com um furor que se domina a custo;

 

Quer durma na fatal obscuridade

Da massa inerte, quer na mente humana

Sereno ascenda à luz da liberdade...

 

É sempre eterna vida, que dimana

Do centro universal, do foco intenso,

Que ora brilha sem véus, ora se empana...

 

É sempre o eterno gérmen, que suspenso

No oceano do Ser, em turbilhões

De ardor e luz, evolve, ínfimo e imenso!

 

Através de mil formas, mil visões,

O universal espírito palpita

Subindo na espiral das criações!

 

Ó formas! vidas! misteriosa escrita

Do poema indecifrável que na Terra

Faz de sombras e luz a Alma infinita!

 

Surgi, por céu, por mar, por vale e serra!

Rolai, ondas sem praia, confundindo

A paz eterna com a eterna guerra!

 

Rasgando o seio imenso, ide saindo

Do fundo tenebroso do Possível,

Onde as formas do Ser se estão fundindo...

 

Abre teu cálix, rosa imarcescícel!

Rocha, deixa banhar-te a onda clara!

Ergue tu, águia, o vôo inacesssível!

 

Ide! crescei sem medo! Não e avara

A alma eterna que em vós anda e palpita...

Onda, que vai e vem e nunca pára!

 

Em toda a forma o Espírito se agita!

O imóvel é um deus, que está sonhando

Com não sei que visão vaga, infinita...

 

Semeador de mundos, vai andando

E a cada passo uma seara basta

De vidas sob os pés lhe vem brotando!

 

Essência tenebrosa e pura... casta

E todavia ardente... eterno alento!

Teu sopro é que fecunda a esfera vasta...

Choras na voz do mar... cantas no vento...

 

 

II

 

Porque o vento, sabei-o, é pregador

Que através das soidões vai missionando

A eterna Lei do universal Amor.

 

Ouve-o rugir por essas praias, quando,

Feito tufão, se atira das montanhas,

Como um negro Titã, e vem bradando...

 

Que imensa voz! que prédicas estranhas!

E como freme com terrível vida

A asa que o libra em extensões tamanhas!

 

Ah! quando em pé no monte, e a face erguida

Para a banda do mar, escuto o vento

Que passa sobre mim a toda a brida,

 

Como o entendo então! e como atento

Lhe escuto o largo canto! e, sob o canto,

Que profundo e sublime pensamento!

 

Ei-lo o Ancião-dos-dias! ei-lo, o Santo,

Que já na solidão passava orando,

Quando inda o mundo era negrume e espanto!

 

Quando as formas o orbe tateando

Mal se sustinha e, incerto, se inclinava

Para o lado do abismo, vacilando;

 

Quando a Força, indecisa, se enroscava

Às espirais do Caos, longamente,

Da confusão primeira ainda escrava;

 

Já ele era então livre! e rijamente

Sacudia o Universo, que acordasse...

Já dominava o espaço, onipotente!

 

Ele viu o Princípio. A quanto nasce

Sabe o segredo, o gérmen misterioso.

Encarou o Inconsciente face a face,

Quando a Luz fecundou o Tenebroso.

 

III

 

Fecundou!... Se eu nas mãos tomo um punhado

Da poeira do chão, da triste areia,

E interrogo os arcanos o seu fado,

 

O pó cresce ante mim... engrossa... alteia...

E, com pasmo, nas mãos vejo que tenho

Um espírito! o pó tornou-se idéia!

 

Ó profunda visão! mistério estranho!

Há quem habita ali, e mudo e quedo

Invisível está... sendo tamanho!

 

Espera a hora de surgir sem medo,

Quando o deus encoberto se revele

Com a palavra o imortal segredo!

 

Surgir! surgir! ¾ é a ânsia que os impele

A quantos vão na estrada do infinito

Erguendo a pasmosíssima Babel!

 

Surgir! ser astro e flor! onda e granito!

Luz e sombra! Atração e pensamento!

Um mesmo nome em tudo está escrito¾

...................................................................

Eis quanto me ensinou a voz do vento.

1865 ¾ 1874.

 

 

 

À História

 

 

I

 

...............................................................

Mas o Homem, se é certo que o conduz,

Por entre as cerrações do seu destino,

Não sei que mão feita d’amor e luz

Lá para as bandas d’um porvir divino...

Se, desde Prometeu até Jesus,

O fazem ir ¾ estranho peregrino,

O Homem, tenteando a grossa treva,

Vai... mas ignora sempre quem o leva!

 

Ele não sabe o nome de seus Fados,

Nem vê de frente a face do seu guia.

Onde o levam os deuses indignados?...

Isto só lhe escurece a luz do dia!

Por isso verga ao peso dos cuidados;

Duvida e cai, lutando em agonia:

E, se lhe é dado que suplique e adore,

Também é justo que blasfeme e chore!

 

Já que vamos, é bom saber aonde...

O grão de pó que o simoun levanta,

E leva pelo ar e envolve e esconde,

Também, no turbilhão, se agita e espanta,

Também pergunta aonde vai e d’onde

O traz a tempestade que o quebranta...

E o homem, bago d’água pequenino,

Também tem voz na onda do destino!

 

Porque os evos, rolando, nos lançaram

Sobre a praia dos tempos, esquecidos,

E, náufragos d’uma hora, nos deixaram

Postos ao ar, sem teto e sem vestidos.

Estamos. Mas que ventos nos deitaram

E com que fim, aqui, meio partidos,

Se um Acaso, se Lei nos céus escrita...

Eis o que a mente humana em vão agita!

 

Ó areias da praia, ó rochas duras,

Que também prisioneiras aqui estais!

Entendeis vós acaso estas escuras

Razões da sorte, surda a nossos ais?

Sabê-las tu, ó mar, que te torturas

No teu cárcere imenso? e, águas, que andais

Em volta aos sorvedouros que vos somem,

Sabeis vós o que faz aqui o Homem?

 

Fronte que banha a luz ¾ e olhar que fita

Quanta beleza a imensidão rodeia!

Da geração dos seres infinita

Mais pura forma e mais perfeita idéia!

No vasto seio um mundo se lhe agita...

E um sol, um firmamento se incendeia

Quando, ao clarão da alma, em movimento

Volve o astro do céu do pensamento!

 

E, entanto, ó largo mundo, que domina

Seu espírito imenso! ele é mesquinho

Mais que a ave desvalida e pequenina,

A que o vento desfez o estreito ninho!

Quanto mais vê da esfera cristalina

Mais deseja, mais sente o agudo espinho...

E o círculo de luz da alma pura

É um cárcere, apenas, de tortura!

 

Um sonho gigantesco de beleza

E uma ânsia de ventura o faz na vida

Caminhar, como um ébrio, na incerteza

Do destino e da Terra-prometida...

Sorri-lhe o céu de cima, e a natureza

Em volta é como amante apetecida ¾

Ele porém, sombrio entre os abrolhos,

Segue os passos do sonho... e fecha os olhos!

 

Fecha os olhos... que os passos da visão

Não deixam mais vestígios do que o vento!

Tu, que vais, se te sofre o coração

Virar-te para trás... pára um momento...

Dos desejos, das vidas, n’esse chão

Que resta? que espantoso monumento?

Um punhado de cinzas ¾ toda a glória

Do sonho humano que se chama História. ¾

 

II

 

Oh! a História! A Penélope sombria,

Que leva as noites desmanchando a teia

Que suas mãos urdiram todo o dia!

O alquimista fatal, que toma a Idéia,

E, nas combinações da atroz magia,

Só extrai Pó! A fúnubre Medéia

Que das flores de luz do coração

Compõe seu negro filtro ¾ a confusão!

 

Eis do trabalho secular das raças,

Das dores, dos combates, das confianças,

Quanto resta a final... cinzas escassaas!

O tédio sobre o céu das esperanças

Suas nuvens soprou! E ódios, desgraças,

Desesperos, misérias e vinganças,

Eis a bela seara d’ouro erguida

Do chão, onde ilusões semeia a vida!

 

Os cultos com fragor rolam partidos;

E em seu altar os deuses cambaleiam;

E dos heróis os ossos esquecidos

Nem um palmo, sequer, do chão se alteiam!

Os nossos Imutáveis ei-los idos

Como as chamas no monte, que se ateiam

Na urze seca e a arage ergue um momento,

E uma hora após são cinza... e leva o vento!

 

Ó duração de sonhos! Fortalezas

De fumo! Rochas de ilusão a rodos!

Que é dos santos, dos altos, das grandezas,

Que inda há cem anos adoramos todos?

As verdades, as bíblias, as certezas?

Limites, formas, consagrados modos?

O que temos de eterno e sem enganos,

Deus ¾ não pode durar mais que alguns anos!

 

Tronos, religiões, impérios, usos...

Oh que nuvens de pó alevantadas!

Castelos de nevoeiro tão confusos!

Ondas umas sobre outrasconglobadas!

Que longes que não têm estes abusos

Da forma! Tróias em papel pintadas!

Babilônias de névoa, que uma aragem,

Roçando, abala e lança na voragem!

 

Sobre alicerçes d’ar as sociedades

Como sobre uma rocha têm assento...

E os cultos, as crenças, as verdades

Ali crescem, lá têm seu fundamento...

Ó grandes torreões, templos, cidades,

Babéis de orgulho e força... sopre o vento

Sobre os pés do gigante que se eleva...

E era d’ar essa base... e o vento a leva!

 

E o vento a dispersou! Ele é seguro

O Forte da ilusão... mas se a primeira

Rajada o céu mandou, pedras do muro,

Não rolam mais que vós os grãos na eira!

Vê-se então a alma humana, pelo escuro,

No turbilhão que arrasta essa poeira

Ruir também, desfeita e em pó tornada,

Té que se esvai... té que a sumiu o nada!

 

III

 

E isto no meio do infinito espaço!

Dos sóis! dos mundos! sala de fulgores!

Isto no chão da vida... e a cada passo

Rebentam sob os pés cantos e flores!

Quando abre a Natureza o seu regaço,

E o seio da Mulher os seus amores!

E tem beijos a noite... e o dia festas...

E o mar suspira... e cantam as florestas...

 

Por cima o céu que ri... e embaixo o pranto...

Harmonias em volta... e dentro a guerra...

Dentro do peito humano, o templo santo,

O vivo altar onde comungue a terra!

Vede! habita no altar o horror e o espanto,

E a Arca-de-amor só podridão encerra!

Que espantosa ilusão, que desatino,

Ó luz do céu! é pois este destino?

 

Os montes não entendem estas cousas!

Estão, de longe, a olhar nossas cidades,

Pasmados com as lutas furiosas

Que os turbilhões, chamados sociedades,

Lhes revolvem aos pés! Vertiginosas

No mar humano as ondas das idades

Passam, rolam bramindo ¾ eles, entanto,

Com o vento erguem ao céu sereno canto!

 

Às vezes, através das cordilheiras,

Com ruído de gelos despregados,

Um exército passa, e as derradeiras

Notas da guerra ecoam nos valados...

Então há novas vozes nas pedreiras,

E as bocas dos vulcões mal apagados,

De monte em monte, em ecos vagarosos,

Perguntam ¾ onde vão estes furiosos? ¾

 

Sim, montes! onde vamos? onde vamos,

Que a criação, em volta a nós pasmada,

Emudece de espanto, se passamos

Em novelos de pó sobre essa estrada?...

As águias do rochedo, e a flor, e os ramos,

E a noite escura, e as luzes da alvorada,

Perguntam que destinos nos consomem...

E os astros dizem ¾ onde vai o Homem? ¾

Porque o mundo, tão grande, é um infante

Que adormece entre cantos noite e dia,

Embalado no éter radiante,

Todo em sonhos de luz e de harmonia!

O forte Mar (e mais é um gigante)

Também tem paz e coros de alegria...

E o céu, com ser imenso, é serenado

Como um seio de herói, vasto e pausado.

 

Quanto de grande aí dorme e sossega:

Tudo em sua lei onde adormece:

Tudo, que pode olhar, os olhos prega

N’algum Íris d’amor que lhe alvorece...

Só nós, só nós, a raça triste e cega,

Que a três palmos do chão nem aparece,

Só nós somos delírio e confusão,

Só nós temos por nome turbilhão!

 

Turbilhão ¾ de Desejos insofridos,

Que o sopro do Impossível precipita!

Turbilhão ¾ de Ideais, lumes erguidos

Em frágil lenho, que onda eterna agita!

Turbilhão ¾ de Nações, heróis feridos

Em tragédia enredada e infinita!

Tropel de Reis sem fé, que se espedaça!

Tropel de deuses vãos, que o nada abraça!

 

Há n’isto quanto baste para morte...

Para fechar os olhos sobre a vida

Eternamente, abandonando à sorte

A palma da vitória dolorida!

Há quanto baste por que já se corte

A amarra do destino, enfim partida,

Com um grito de dor, que leve o vento

Onde quiser ¾ a morte e o esquecimento!

 

IV

 

Mas que alma é a tua então, Homem, se ainda

Podes dormir o sonho da esperança,

Enquanto a mão da crueldade infinda

Teu leito te sacode e te balança?

Que fada amiga, que visão tão linda

Te enlaça e prende na dourada trança,

Que não ouves, não vês o negro bando

Dos lobos em redor de ti uivando?

 

E persistes na vida...e a vida ingrata

Foge a teus braços trêmulos de amante!

E abençoas a Deus... Deus que te mata

Tua esperança e luz, a cada instante!

Que tesouro de fé (que ouro nem prata

Não podem igualar, nem diamante)

É teu peito, que doura as negras lousas...

E crês no céu... e amá-lo ainda ousas?

 

Passam às vezes umas luzes vagas

No meio d’esta noite tenebrosa...

Na longa praia, entre o rugir das vagas,

Transparece uma forma luminosa...

A alma inclina-se, então, por sobre as fragas,

A espreitar essa aurora duvidosa..

Se é d’um mundo melhor a profecia,

Ou apenas das ondas a ardentia.

 

Sai do cadinho horrível das torturas,

Onde se estorce e luta a alma humana,

Uma voz que atravessa essas alturas

Com vôo d’águia e força soberana!

O que há-de ser? que verbo d’amarguras?

Que blasfêmia a essa sorte desumana?

Que grito d’ódio e sede de vingança?...

Uma bênção a Deus! uma esperança!

 

Rasga d’entre os tormentos a esperança...

Dos corações partidos nasce um lírio...

Ó vitória do Amor, da confiança,

Sobre a Dor, que se estorce em seu delírio!...

A mente do homem, essa, não se cansa...

Sob o açoute, sem pão, lar nem cidade,

Crê... sonha um culto, um Deus ¾ a Liberdade!

 

Flor com sangue regada... e linda pura!

Olho de cego... que adivinha a aurora!

Oh! mistério do amor! que à formosura

Exceda muito o feio... quando chora!

Vede, ó astros do céu, o que a tortura

Espreme da alma triste, em cada hora...

O Ideal ¾ que em peito escuro medra,

Bem como a flor do musgo sobre a pedra!

 

Por que se sofre é que se espera... e tanto

Que as dores são os nossos diademas.

O olhar do homem que suplica é santo

Mais que os lumes do céu, divinas gemas,

Desgraças o que são? o que é o pranto?

Se a flor da Fé nas solidões extremas

Brotar, e a crença bafejar a vida...

É nossa, é nossa a Terra-prometida!

 

V

 

Ó ideal! se é certo o que nos dizem,

Que é para ti que vamos, n’este escuro...

Se os que lutam e choram e maldizem

Hão-de inda abençoar-te no futuro...

Se há-de o mal renegar-se, e se desdizem

Ainda os Fados seu tremendo auguro...

E um dia havemos ver, cheios d’espanto,

Deus descobrir-se d’este negro manto...

 

Se o Destino impassível há-de, uma hora,

Descruzar os seus braços sobre o mundo,

E a sua mão rasgar os véus da aurora,

Que, alfim, luza também no nosso fundo...

Se há-de secar seu pranto o olhar que chora,

E exultar inda o inseto mais imundo,

Mostrando o céu, à luz d’estranho dia,

As constelações novas da Harmonia...

 

Ah! que se espera então? o sangue corre,

Corre em ribeiras sobre a terra dura...

Não há já fonte, n’esse chão, que jorre

Senão lágrimas, dor, e desventura...

O último lírio, a Fé, secou-se... morre!...

Se não é esta a hora da ventura,

Do resgate final dos padecentes,

Por que esperais então, céus inclementes?

 

Sim! por que é que esperais? Tem-se sofrido,

Temos sofrido muito, muito! e agora

Desceu o fel ao coração descrido,

Vem já bem perto nossa extrema hora...

Abale-se o universo comovido!

Deixe o céu radiar a nova aurora!

Que os peitos soltem o seu longo enfim!

E o olhar de Deus na terra escreva: Fim!

 

Fim d’esta provação, fim do tormento,

Mas da verdade, mas do bem, começo!

Erga-se o homem, atirando ao vento

O antigo Mal, com trágico arremesso!

Na nossa tenda tome Deus assento,

Mostre seus cofres, seus corais de preço,

Que se veja afinal quanto guardava

Para o resgate d’esta raça escrava!

 

Escrava? escrava que já parte os ferros!

Eu creio no destino das nações:

Não se faz para dor, para desterros,

Esta ânsia que nos ergue os corações!

Hão-de ter fim um dia tantos erros!

E do ninho das velhas ilusões

Ver-se-á, com pasmo, erguer-se à imensidade

A águia esplêndida e augusta da Verdade!

 

VI

 

Se um dia chegaremos, nós, sedentos,

A essa praia do eterno mar-oceano,

Onde lavem seu corpo os pustulentos,

E farte a sede, enfim, o peito humano?

Oh! diz-me o coração que estes tormentos

Chegarão a acabar: e o nosso engano,

Desfeito como nuvem que desanda,

Deixará ver o céu de banda a banda!

 

Felizes os que choram! alguma hora

Seus prantos secarão sobre seus rostos!

Virá do céu, em meio d’uma aurora,

Uma águia que lhes leve os seus desgostos!

Há-de alegrar-se, então, o olhar que chora...

E os pés de ferro dos tiranos, postos

Na terra, como torres, e firmados,

Se verão, como palhas, levantados!

 

Os tiranos sem conto ¾ velhos cultos,

Espectros que nos gelam com o abraço...

E mais renascem quanto mais sepultos...

E mais ardentes no maior cansaço...

Visões d’antigos sonhos, cujos vultos

Nos oprimem ainda o peito lasso...

Da terra e céu bandidos orgulhosos,

Os Reis sem fé e os Deuses enganosos!

 

O mal só d’eles vem ¾ não vem do Homem.

Vem dos tristes enganos, e não vem

Da alma, que eles invadem e consomem,

Espedaçando-a pelo mundo além!

Mas que os desfaça o raio, mas que os tomem

As auroras, um dia, e logo o Bem,

Que encobria essa sombra movediça,

Surgirá, como um astro de Justiça!

 

E, se cuidas que os vultos levantados

Pela ilusão antiga, em desabando,

Hão-de deixar os céus despovoados

E o mundo entre ruínas vacilando;

Esforça! ergue teus olhos magoados!

Verás que o horizonte, em se rasgando,

É por que um céu maior nos mostre ¾ e é nosso

Esse céu e esse espaço! é tudo nosso!

 

É nosso quanto há belo! A Natureza,

Desde aonde atirou seu cacho a palma,

Té lá onde escondidos na frieza

Vegeta o musgo e se concentra a alma:

Desde aonde de fecha da beleza

A abóbada sem fim ¾ té onde a calma

Eterna gera os mundos e as estrelas,

E em nós o Empíreo das idéias belas!

 

Templo de crenças e d’amores puros!

Comunhão de verdade! onde não há

Bonzo à porta e estremar fiéis e impuros,

Uns para a luz... e os outros para ...

Ali parecerão os mais escuros

Brilhantes como a face de Jeová,

Comungando no altar do coração

No mesmo amor de pai e amor d’Irmão!

 

Amor d’Irmão! oh! este amor é doce

Como ambrosia e como um beijo casto!

Orvalho santo, que chovido fosse,

E o lírio absorve como etéreo pasto!...

Dilúvio suave, que nos toma posse

Da vida e tudo, e que nos faz tão vasto

O coração minguado... que admira

Os sons que solta esta celeste lira!

 

Só ele pode a ara sacrossanta

Erguer, e um templo eterno para todos...

Sim, um eterno templo e ara santa,

Mas com mil cultos, mil diversos modos!

Mil são os frutos, e é só uma a planta!

Um coração, e mil desejos doidos!

Mas dá lugar a todos a Cidade,

Assente sobre a rocha da Igualdade.

 

É d’esse amor que eu falo! e d’ele espero

O doce orvalho com que vá surgindo

O triste lírio, que este solo austero

Está entre urze e abrolhos encobrindo.

D’ele o resgate só será sincero...

D’ele! do Amor!... enquanto vais abrindo,

Sobre o ninho onde choca a Unidade,

As tuas asas d’águia, ó Liberdade!

1865.

 

 

 

Pater

(A Abilio Guerra Junqueiro)

 

I

 

Já que os vejo passar assim altivos

E cheios de vanglória, como quem

Ao peito humano deu a luz que tem,

E a nossos corações os lumes vivos;

 

Já que os vejo, assentados na cadeira

Da prudência, falar com voz segura,

Dar-se em adoração à gente escura

E doutrinar d’ali à terra inteira;

 

Já que os vejo, co’a mão que ata e desata,

Entre os homens partir o mundo todo

E todo o céu ¾ e dar a este o lodo,

E àquele o reino de safira e prata;

 

Dizer a uns ¾ falai! e pôr na boca

Dos outros a mordaça da doutrina;

Dar a estes a espada de aço fina,

E, ao resto, pôr-lhe à cinta a estriga e a roca;

 

Já que os vejo fazer a noite e o dia

Com o abrir e fechar dos olhos baços;

E pretender que o sol lhes segue os passos,

E em seus sermões aprende a harmonia;

 

Dispor do céu como de casa sua,

A que pusessem Deus como porteiro;

E receber com rosto prazenteiro

Este ¾ e àquele deixá-lo aí na rua;

 

Eu quero perguntar aos Zoroastros

Do pôr-do-sol, videntes do passado,

Que medem, pelo ritmo compassado

De seus passos, o giro aos grandes astros;

 

Eu quero perguntar aos Sacerdotes,

Que, chamando rebanho a seus irmãos,

Cuidam que Deus lhes cabe em duas mãos,

E todo o céu debaixo dos capotes;

 

Quero-os interrogar ¾ porque, em verdade,

Se saiba qual mais val, se o pau se a cruz?...

Se o sol ao círio deu a sua luz,

Ou deu o círio ao sol da claridade?...

 

Se a cúpula do Céu teve modelo

Na cúpula da Igreja? e se as estrelas,

Para alcançar licença de ser belas,

Foram pedir a alguém o santo-selo?

 

Se foi Deus, quando o sol saiu do abismo,

Que à luz do infinito o batizou;

Ou se algum bispo foi que o sustentou,

Inda infante, nas fontes do batismo?

 

Se há quem tenha na terra monopólio

Do câmbio-livre, que se chama Idéia?
Se a Verdade não vale um grão de areia

Sem que, antes, a batize o santo-óleo?

 

Se terá mais comércio co’as estrelas

O velho livro ou o novo coração?

Quem vai mais perto ¾ a forma ou a inspiração ¾

Das grandes cousas e das cousas belas?

 

Que, n’esta confusão, n’estas desordens,

Se veja, enfim, bem claro, à luz dos céus,

Se o Messias nasceu entre os Judeus,

Ou se, quando nasceu, já tinha ordens?

 

Sim! que afinal se saiba tudo isto,

E se veja o caminho aonde vamos.

Ver e saber ¾ para que enfim possamos

Escolher entre o Padre e entre o Cristo.

 

II

 

Padre?! Padre... é o Pai ¾¾ que nos cobre,

E a todos com a mão afaga e amima,

E em meio do caminho nos anima,

E vai conosco ¾ o que está sob e sobre.

 

O que escreve o Evangelho cada dia

Em nossos corações ¾ e em cada hora,

A quanto olhar se eleva e mudo adora,

Diz a eterna missa da Harmonia.

 

O que veste a estola do infinito

Para deitar a grande bênção ¾ Vida ¾

E reza, lendo em página fúlgida,

O que em letra de estrelas anda escrito.

 

É quanto d’ele fala ¾ o livre oceano,

O psalmista das vastas solidões;

O que desenha a voz das orações

Sobre a tela do coro soberano.

 

Padres, o mar e o céu ¾ apostolando

A Terra sempre crente e sempre nova:

Um ¾ que a força da crençalhe renova...

O outro ¾ o que está Deus sempre amostrando.

 

A aurora é o sursum-corda do Universo;

A luz é oremus, por que é hóstia o Sol;

Quanto abre o olhar aos raios do arrebol

Eis o povo-cristão aí disperso.

 

Quando as flores, que se abrem, são espelhos...

E a ervinha é berço, e berços os rosais...

Quando são as florestas catedrais...

Eis aí outros tantos Evangelhos!

 

O cedro da montanha apostoliza;

O vento prega às livres solidões;

As estrelas do céu são orações,

E o amor, no coração, evangeliza!

 

O Amor! o evangelista soberano!

Para quem não há tarde nem aurora!

O que sobe a pregar, a toda a hora,

Ao púlpito-da-fé... o peito humano!

 

De dois raios de uns olhos bem-amados

É que se faz a cruz que nos converte;

E a palavra, que a crença às almas verte,

Faz-se essa de suspiros abafados.

 

Esse é o Confessor que absolve ¾ e tem

Sempre o perdão consigo e a paz radiante...

Ou n’uns lábios bem trêmulos de amante,

Ou n’uns olhos bem úmidos de mãe.

 

Homens, olhai ¾ que o seio maternal,

Em se abrindo, é o livro aonde Deus

Escreve, com a luz que vem dos céus,

A eterna Bíblia, a única imortal!

 

Cada lábio de mãe escreve um salmo

Na fronte do filhinho, em o beijando...

Nem há santo que tenha, radiando,

Uma auréola assim de brilho calmo!

 

Esses são Padres ¾ porque são os Pais ¾

Os que do amor nos batizaram na água...

Os que, inclinados sobre a nossa mágoa,

Bebem em nosso peito os nossos ais.

 

É tudo que tem voz que se ouça ao longe,

E coração tamanho como a esfera:

A voz do inverno e a voz da primavera...

E a voz do peito humano... o grande monge.

 

Sim, monge! triste e só ¾ porque o devora

A vaga nostalgia do deserto;

E vela a noite, e vai sempre desperto

A olhar de que banda venha a aurora.

 

Padre... o Espírito! o que anda em nós ¾ o auguro,

Que n’alma traça o círculo divino;

A Cumana, que em verso sibilino

Dita aos homens os cantos do futuro.

 

Vós, Poetas, vós sois também sibilas,

Que adivinhais e andais com voz fremente

Sempre a gritar ¾ avante! avante! à gente,

Por cidades, por montes e por vilas.

 

Vós sois os pregadores do Ideal,

Que lançais a palavra aos quatro ventos;

A tribo de Levi, que em mil tormentos

Guarda a Arca, dos filhos de Baal.

 

Sim, padre! o poeta crente, que alevanta,

Como hóstias, as almas para os céus!

O pregador, que fala, enquanto Deus

Lhe arma de corações tribuna santa.

 

Os que na frente vão, bradando ¾ alerta!

Sentinelas perdidas do futuro...

Os que o clarim do abismo, pelo escuro,

Faz em sonhos tremer, e enfim desperta.

 

A coorte dos pálidos proscritos,

Que tem nos rostos estampada a fome;

Que, enquanto o frio os rói e os consome,

Trazem no coração deuses escritos.

 

Os heróis que, com pulsos algemados,

Vão ao mundo pregando a liberdade ¾

Astros, a quem se nega a claridade...

Nas trevas dos ergástulos cerrados.

 

Que ¾ enquanto a Lei os tem em fundas covas,

Como traidores, ímpios, embusteiros ¾

Sobre esse mesmo chão dos cativeiros

Semeiam a seara das leis novas.

 

Os inventores, que, soltando ais,

Deixam das mãos cair obras gigantes;

E riscam templos sobre céus distantes...

Assentados à porta de hospitais!

 

Quem a estes lhes deu suas Missões

Foi o alto Messias ¾ sofrimento ¾

Por que possam o Verbo, o pensamento,

Abaixar sobre a fronte às multidões.

Foi o Espírito, o fogo incandescente,

Que os batizou ao lume da Idéia,

Por que possam pegar no grão de areia

E mudá-lo n’um astro reluzente...

 

Que eles fazem milagres ¾ desde o espaço

Galgado já e unificada a terra,

Té aos irmãos, há tanto tempo em guerra,

Que, afinal, já se estreitam n’um abraço:

 

Desde a lepra, dos corpos, e os abrolhos,

Dos montes, arrancados... desde as flamas

Tiradas ao trovão... té às escamas

Arrancadas aos cegos de seus olhos:

 

Eles fazem do mundo eucaristia,

Onde vêm Ter os povos comunhão;

E, do gênio assoprando-lhe o clarão,

Fazem da noite humana imenso dia.

 

Fazem nascer, por entre espinhos bravos,

Flores, a um lado, e ao outro lado, frutos;

E os novos risos, dos antigos lutos,

E a liberdade, em corações escravos!

 

Pois, se são operários do futuro,

Semeadores da seara nova,

Que lançam uma idéia em cada cova,

Da dura história sobre o chão escuro;

 

Se vão na frente, e a bússola que os leva,

Para o pólo de Deus se inclina e pende;

Buscando o continente que se estende

Além do sofrimento e além da treva;

 

Se a cada voz de guerra dizem ¾ basta!

Lançando-se entre os ferros dos irmãos;

E exclama ¾ ainda! ¾ pondo as mãos,

A cada voz de amor serena e casta;

 

São os grandes profetas da consciência;

Bíblias que o povo com a mão folheia;

Reveladores santos da Idéia,

Que em cada hora, vão furtando à Essência:

 

São milícia sagrada ¾ são coortes

Do céu, passando aqui ¾ são missionários

Amostrando Jesus aos homens vários...

Ajudam pois a Deus! são sacerdotes!

 

III

 

Aí tendes os Padres! que nos cobrem

Nossas frontes do mal, e nos desvendam

Os olhos por que vejam, amem, entendam...

Não os que o sol co’as capas nos encobrem!

 

A Igreja dera o Inferno ao triste réu

(Que beijo maternal! E que olhar terno!)

Mas Dante, a pé enxuto, passa o Inferno,

Para, chegando à porta, bradar céu!

 

Desde essa hora... acabou! abriu-se a porta!

Os condenados ruem para fora!

O que era multidão ainda agora...

Tornou-se solidão deserta e morta...

 

Inda às vezes os vemos ir na praça...

Mas no lábio morreu-lhes a palavra!

O incêndio agora de outra banda lavra...

São como os restos de uma extinta taça.

 

Quando se ergue a um lado o olhar pasmado

Das gentes, que já cuidam enxergar

D’essa banda do céu Deus assomar...

Heis de vê-los olhar o oposto lado!

 

E quando as mães lhes vêm beijar os pés,

Erguendo um filho, como um raio a estrela,

Olhando o inocente  e a mãe bela,

Não têm mais bênção do que pulvis es!

 

E, quando de uma amante o olhar velado

Se encontra, acaso, com o seu, passando,

Não tem aquele espectro miserando

Melhor saudação do que pecado!

 

Se o século se atira, como onda,

À praia do futuro, nos espaços,

Cuidais acaso que lhe siga os passos?

Não! O mocho não tem onde se esconda!

 

IV

 

Por que, pois, traz da sombra ides correndo,

Homens, que a luz no berço batizara?

Quando correis assim virais a cara...

Pelas costas o sol vos vem nascendo!

 

Ó vós ¾ se ides em busca da Verdade! ¾

Olhai bem... que essa mão, que assim vos leva,

Bem pode ser que seja toda treva,

Quando se aclama toda claridade!

 

V

 

Quando a sede nos seca o paladar,

E o sol a pino o peito nos esmaga,

Se enfim se chega à praia, junto à vaga,

Quem hesita entre a areia e entre o Mar?

 

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Deitai-vos a nadar, homens! e vede

Que a onda é que se chama liberdade!

O dogma é a areia, apenas ¾ a verdade

É esse o Mar ¾ que o Mar nos mate a sede!

1864.

 

 

 

Vida

(A uns políticos)

 

 

Por que é que combateis? Dir-se-á, ao ver-vos,

Que o Universo acaba aonde chegam

Os muros da cidade, e nem há vida

Além da órbita onde as vossas giram,

E além do Fórum já não há mais mundo!

 

Tal é o vosso ardor! tão cegos tendes

Os olhos de mirar a própria sombra,

Que dir-se-á, vendo a força, as energias

Da vossa vida toda, acumuladas

 

Sobre um só ponto, e a ânsia, ao ardente vórtice,

Com que girais em torno de vós mesmos,

Que limitais a terra à vossa sombra...

Ou que a sombra vos toma a terra toda!

Dir-se-á que o oceano imenso e fundo e eterno,

Que Deus há dado aos homens, por que banhem

O corpo todo, e nadem à vontade,

E voguem a sabor, com todo o rumo,

Com todo o norte e vento, vão e percam-se

De vista, no horizonte sem limites...

Dir-se-á que o mar da vida é gota d’água

Escassa, que nas mãos vos há caído,

De avara nuvem que fugiu, largando-a...

Tamanho é o ódio com que a uns e a outros

A disputais, temendo que não chegue!

 

Homens! para quem passa, arrebatado

Na corrente da vida, n’essas água

Sem limites, sem fundo ¾ há mais perigo

De se afogar, que de morrer à sede!

 

De que val disputar o espaço estreito,

Que cobre a sombra da árvore da pátria,

Quando são vossos cinco continentes?

De que vale apinhar-se junto à fonte

Que ¾ fininha ¾ brotou por entre as urzes,

 

Quando há sete mil ondas por cada homem?

De que vale digladiar por uma fita,

Que mal cobre um botão, quando estendida,

Deus pôs sobre a cabeça de seus filhos

A tenda, de ouro e azul, do firmamento?

De que vale concentrar-se a vida toda

N’uma paixão apenas, quando o peito

É tão rico, que basta dar-lhe um toque

Por que brotem, aos mil, os sentimentos?

 

Oh! a vida é um abismo! mas fecundo!

Mas imenso! tem luz ¾ e luz que cegue,

Inda a águia de Páthmos ¾ e tem sombras

E tem negrumes, como o antigo Caos!

Tem harmonias, que parecem sonhos

De algum anjo dormido; e tem horrores

Que os nem sonha o delírio!

 

É imensa a vida,

Homens! não disputeis um raio escasso,

Quem vem d’aquele sol; a tênue nota,

Que vos chega d’aquelas harmonias;

A penumbra, que escapa àquelas sombras

O tremor, que vos vem d’esses horrores.

Sol e sombras, horros e harmonias,

De quem é isto, se não é do homem?!

Não disputeis, curvado o corpo todo,

As migalhas da mesa do banquete;

Erguei-vos! e tomai lugar à mesa...

 

Que há lugar no banquete para todos:

Que a vida não é átomo tenuíssimo,

Que um feliz apanhou, no ar, voando,

E guardou para si, e os outros, pobres,

Deserdados, invejam ¾ é o ar todo,

Que respiramos; e esse, inda mais livre,

Que nos respira a alma ¾ a terra firme.

Onde pomos os pés, e o céu profundo

Aonde o olhar erguemos ¾ é o imenso,

Que se infiltra do átomo ao colosso;

Que se ocultou aqui, e além se mostra;

Que traz a luz dourada, e leva a treva;

Que dá raiva às paixões, e unge os seios

Com o bálsamo do amor; que ao vício, ao crime,

Agita, impele, anima, e que à virtude

Lá dá consolações ¾ que beija as frontes

De povo e rei, de nobre e de mendigo;

E embala a flor, e eleva as grandes vagas;

Que tem lugar, no seio, para todos;

Que está no rir, e está também nas lágrimas,

E está na bacanal como na prece!

 

Eis a Vida! o festim que Deus, no mundo,

Para os homens armou! para seus filhos!

Forma mais pura do Universo augusto!

Da lira universal nota mais alta!

Do chão infinito seara ardente!

Quando os orbes de luz, que andam na altura,

Sentem a face, às vezes, enublar-se

E o seio lhes revolve íntima mágoa,

É que n’essa hora uma ânsia de venturas,

De amor mais vasto, de mais bela forma,

Uma aspiração vaga os acomete...

Pedem a Deus que estenda a mão piedosa

E os erga a luz maior, à luz do espírito,

E tem inveja ao homem, porque vive!

Da árvore do Eterno pendem frutos,

E frutos aos milhões ¾ estrelas, astros,

Formas e criações que nem se sonham ¾

Mas só onde seus ramos se mergulham

No espírito vital do infinito,

Só onde a ar puríssimo do Belo

Lhe beija as franças últimas ¾ somente

Lá se abre o lírio augusto, o lírio único,

A flor dos mundos, que se chama vida!

 

Inundação de crenças... e dilúvio

De dúvidas fatais! hino de glórias...

E rugido feroz! Se és fera, toma

A parte dos rugidos ¾ e, se és homem,

Ergue ao céu tua face, e entoa os hinos!

Se há valor em teu peito, corta as águas

Nadando, d’esse mar de infindas dúvidas:

Ergue-te, luta, arqueja, precipita-te,

Deixa as ondas lavar-te o corpo, ou dar-te

A pancada da morte ¾ mas sê homem!

Sê grande sempre! e, ou Satã ou Anjo,

Blasfema ou exulta... mas não desças nunca!

 

Porque descer é morte, é sombra, é nada!

É a pedra que dorme: é lodo escuro

Que sombrio fermenta! a alma, se é espírito,

É por que à farta possa encher, crescendo,

O espaço todo e todo o ar infindo!

E, bela ou triste, horrível ou sublime,

Santa ou maldita, a vida é sempre grande!

 

Rocha por onde os tempos vão seguindo

No caminho que os leva ao infinito...

É tão vasta, que os séculos marchando

Com passos de gigante, há milhões de evos,

Não puderam ainda ver-lhe o termo,

Não puderam gastá-la um pouco, apenas!

 

É tão fundo esse mar, é tão fecundo,

Que os homens todos, que há milhões de séculos

Nascem da espuma e vêm encher as praias,

Bebendo a longos tragos, não puderam

Fazê-lo inda baixar, sequer um palmo!

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E não vos chega para vós? Os tempos

Deixaram cheia aquela taça imensa...

E estes três homens já lhe vêem o fundo!

As idéias serenas e os combates

Da eterna liberdade; o amor e as lutas

E as dores da verdade; as doces lágrimas

E os rugidos altivos; o que os sábios

Nos ensinam, e quanto o olhar ingênuo

Da mulher nos revela ¾ tudo, tudo,

Tudo isto, nos banquetes da existência,

É um bocado apenas para a boca

D’estes Titãs imensos... de seis palmos!

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Por que é que combateis? O mundo é vasto!

Dá para todos ¾ todos, no seu oano,

Podem talhar à farta e à larga um manto

Com que cobrir-se... e que inda arraste... É vasto!

Erguei somente os olhos! alongai-os

Pelo horizonte! e, além d’esse horizonte,

Há mil e mil como este!

Se vós tendes

 

O olhar fito nos pés, aonde a sombra

Em volta de vós mesmos gira apenas,

O que podeis saber d’esse Universo?

Não há olhos que contem tantos orbes!

E cada um d’esses mundos tem mil vidas!

E cada vida tem milhões de afetos,

De paixões, de energias, de desejos!

Cada peito é um céu de mil estrelas!

Cada ser tem mil seres! mil instantes!

E, em cada instante, as criações transformam-se!

E cousas novas a nascerem sempre!

 

Descei, descei o olhar ao próprio seio!

Como n’um espelho, esse Universo todo

Reflete-se lá dentro! é como um caos

Donde, ao fiat ardente da vontade,

Podem surgir as criações aos centos.

Podeis tirar daí a luz e a treva!

Podeis tirar o bem, e o mal, e o justo,

E o iníquo, e as paixões torvas da terra,

E os desejos do céu!

Pois não vos chega?

Assim queirais viver, que há muita vida!

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Alexandre! Alexandre! és tu que choras

Não haver já mais mundo que conquistes...

E sais d’aqui, ó triste! sem ao menos

Ter olhado uma vez dentro em tua alma!

Alexandres inglórios! toda a terra

Acabou, onde a vista vos alcança!

Correis... correis... correis... atrás de um átomo...

E ides deixando, ao lado, os universos!

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Mas vós não vedes nada d’isto! nada!

E quereis aos homens ensinar a vida?!

 

 

 

Luz do sol, luz da razão

(Resposta à poesia de João de Deus, Luz da fé)

 

Tu, sol, é que me alegras!

A mim e ao mundo. A mim...

Que eu não sou mais que o mundo,

Nem mais que o céu sem fim...

 

Nem fecho os olhos baços

Só porque os fere a luz...

Ergo-os acima ¾ e embora

Cegue, recebo-a a flux!

 

Crepúsculos são sonhos...

E sonhos é morrer...

Sonhar é para a noite:

Mas, para o dia, ver!

 

Sim, ver com os olhos ambos,

Com ambos devassar

Os astros n’essa altura,

E os deuses sobre o altar!

 

Ver onde os pés firmamos,

E erguemos nossas mãos!

E quer nos montes altos,

Quer nos terrenos chãos,

 

É sempre amiga a terra

E é sempre bom viver,

Se a terra à luz da aurora

E a vida ao amor se erguer!

 

Em toda a parte as ondas

D’esse infinito mar,

Por mais que andemos longe,

Nos podem embalar!

 

Em toda a parte o peito

Sente brotar a flux,

E sempre e à farta, a vida...

Vida ¾ calor e luz!

 

Nos seixos d’essas praias,

Se o sol lá lhes bater,

N’um átomo de areia,

Deus pode aparecer!

 

Bata-lhe o sol de chapa,

E um deus se vê também

No pó, tornado um astro

Como esses que o céu tem!

 

Desprezos para a terra?!

Também a terra é céu!

Também no céu a impele

O amor que a suspendeu...

 

E quem lá d’esse espaço

Brilhar ao longe a vir

Dirá que é paraíso

E um éden a sorrir!

 

Embaixo! O que é embaixo?

Embaixo estar que tem?

Ninguém à eterna sombra

Nos condenou! ninguém!

 

Se até nos surdos antros,

Nas covas dos chacais,

Penetra o sol, vestindo-os

Com raios triunfais

 

Se ao céu até se viram

As bocas dos vulcões...

E têm os próprios cegos

Um céu... nos corações!

 

Não! não há céu e inferno:

Divino é quanto é!

Para que a rocha brilhe,

Basta que o sol lhe dê...

 

Basta que o sol lhe beije

As chagas que ela tem,

E a morta d’essa altura,

A lua, é sol também!

 

E as trevas da nossa alma,

A nossa cerração,

Oh! como se desbarata

A aurora da razão!

 

Mas se a razão, surgindo,

Nossa alma esclareceu,

Também tu, sol, no espaço

Surges, razão do céu...

 

Por isso é que me alegras,

Ó luz, o coração!

Por isso vos estimo...

Tu, sol, e tu, razão!

1865.

 

 

 

Et Ccelum et virtus
(A Jayme Batalha Reis)

 

Dizem profetas, que esse céu perscrutam,

Que, às noites, entre as trevas condensadas,

Se tem visto brilhar ígneas espadas,

Como d’anjos hostis que entre si lutam...

 

E dizem que, na orla do infinito,

Entre os astros, se vê errar sem tino

Um espectro que traz fulgor divino,

Como o vulto d’um deus triste e proscrito...

 

Entre os sóis passa o espectro gemebundo,

Murmurando morramos! Aos sóis vivos,

E empana o brilho aos astros primitivos

De sua boca o alento moribundo...

 

Onde passou dez-se silêncio e escuro.

Seu manto sepulcral varre os espaços,

E arrasta, entre os celestes estilhaços,

A crença antiga e os germens do futuro!

 

Ó crença antiga! ó velho firmamento!

Como as almas vacilam e baqueiam!

E as lúcidas plêiades volteiam,

Como a poeira que levanta o vento!

 

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.........................................................

 

Mas quando o largo céu da crença avita

Desaba com fragor e espanto e treva,

E a luz, a paz, a fé, tudo nos leva

Nas ruínas da abóbada infinita;

 

Quando um sopro falta nos deuses vivos

Toca e em cinzas desfaz seus frios vultos,

E se ergue aquela voz cheia de insultos

Que brada aos deuses pálidos: “sumi-vos!”

 

Homens de pouca fé! não tenhais susto:

Fecunda é essa treva e essa ruína...

Palpita n’esse pó vida divina...

Rebentam fontes do areal adusto...

 

Sim, podeis crer, ó gente pouco calma:

Não se aluiu no abismo este universo,

Se entre as cinzas de Deus e o pó disperso

Ficou de pé, heróica e firme, uma alma!

 

Quem bem souber olhar verá no fundo

D’essa alma forte outro infinito erguer-se...

Em espaços ideais verá mover-se

Um Deus sem nome, ignoto ao velho mundo...

 

Verá, do interno caos, constelada,

Surgir criação nova e palpitante,

Ao sopro ardente, à voz clara e vibrante

Do espírito de vida que ali brada...

 

Verá, por um céu novo, novos sóis

Que em novo firmamento o vôo desprendem;

E astros de luz estranha, que se acendem

Na consciência estrelada dos heróis!

 

 

 

Tentanda via

 

I

 

Com que passo tremente se caminha

Em busca dos destinos encobertos!

Como se estão volvendo olhos incertos!

Como esta geração marcha sozinha!

 

Fechado, em volta, o céu! o mar, escuro!

A noite, longa! o dia, duvidoso!

Vai o giro dos céus bem vagaroso...

Vem longe ainda a praia do futuro...

 

É a grande incerteza, que se estende

Sobre os destinos d’um porvir, que é treva...

É o escuro terror  de quem nos leva...

O fruto horrível que das almas pende!

 

A tristeza do tempo! o espectro mudo

Que pela mão conduz... não sei aonde!

¾ Quanto pode sorrir, tudo se esconde...

Quanto pode pungir, mostra-se tudo. ¾

 

Não é a grande luta, braço a braço,

No chão da Pátria, à clara luz da História...

Nem o gládio de César, nem a glória...

É um misto de pavor e de cansaço!

 

Não é a luta dos trezentos bravos,

Que o solo amado beijam quando caem...

Crentes que traz um Deus, e à guerra saem.

Por não dormir no leito dos escravos...

 

É a luta sem glória! é ser vencido!

Por uma oculta, súbita fraqueza!

Um desalento, uma íntima tristeza

Que a morte leva... sem se ter vivido!

 

Não há aí pelejar... não há combate...

Nem há já glória no ficar prostrado ¾

São os tristes suspiros do Passado

Que se erguem d’esse chão, por toda  a parte...

 

É a saudade, que nos rói e mina

E gasta, como a pedra a gota d’água...

Depois, a compaixão, a íntima mágoa

De olhar essa tristíssima ruína...

 

Tristíssimas ruínas! Entristece

E causa dó olhá-las ¾ a vontade

Amolece nas águas da piedade,

E, em meio do lutar, treme e falece.

 

Cada pedra, que cai dos muros lassos

Do trêmulo castelo do passado,

Deixa um peito partido, arruinado,

E um coração aberto em dois pedaços!

 

II

 

A estrada da vida anda alastrada

Das folhas secas e mirradas flores...

Eu não vejo que os céus sejam maiores,

Mas a alma... essa é que eu vejo mais minguada!

 

Ah! Via dolorosa é esta via!

Onde uma Lei terrível nos domina!

Onde é força marchar pela neblina...

Quem só tem olhos para a luz do dia!

 

Irmãos! irmãos! amemo-nos! é a hora...

É de noite que os tristes se procuram,

E paz e união entre si juram...

Irmãos! irmãos! amemo-nos agora!

 

E vós, que andais a dores mais afeitos,

Que mais sabeis à Via do Calvário

Os desvios do giro solitário,

E tendes, de sofrer, largos os peitos;

 

Vós, que ledes na noite... vós, profetas...

Que sois os loucos... porque andais na frente...

Que sabeis o segredo da fremente

Palavra que dá fé ¾ ó vós, poetas!

 

Estendei vossas almas, como mantos

Sobre a cabeça d’eles... e do peito

Fazei-lhes um degrau, onde com jeito

Possam subir a ver os astros santos...

 

Levai-os vós à Pátria-misteriosa,

Os que perdidos vão com passo incerto!

Sede vós a coluna do deserto!

Mostrai-lhes vós a Via-dolorosa!

 

III

 

Sim! que é preciso caminhar avante!

Andar! passar por cima dos soluços!

Como quem n’uma mina vai de bruços,

Olhar apenas uma luz distante!

 

É preciso passar sobre ruínas,

Como quem vai pisando um chão de flores!

Ouvir as maldições, ais e clamores,

Como quem ouve músicas divinas!

 

Beber, em taça túrbida, o veneno,

Sem contrair o lábio palpitante!

Atravessar os circos do Dante,

E trazer d’esse inferno o olhar sereno!

 

Ter um manto da casta luz das crenças,

Para cobrir as trevas da miséria!

Ter a vara, o condão da fada aérea,

Que em ouro torne estas areias densas!

 

E, quando, sem temor e sem saudade,

Poderdes, d’entre o pó d’essa ruína,

Erguer o olhar à cúpula divina,

Heis de então ver a nova-claridade!

 

Heis de então ver, ao descerrar do escuro,

Bem como o cumprimento de um agouro,

Abrir-se, como grandes portas de ouro,

As imensas auroras do Futuro!

1864.

 

 

 

Secol’ si rinuova

(Ao sr. J. P. Oliveira Martins)

 

I

 

Não sei que pé, na estrada do Infinito,

Vai andando, não sei! mas as Cidades

E os templos e, nos altos minaretes,

A Meia-Lua, e a Cruz nas altas torres,

E os Castelos antigos e os Palácios,

¾ Tudo quanto aí estava edificado

E assente como a rocha sobre o monte ¾

Tudo sente pavor e se perturba

E tem tremor pressago de ruína

E se escurece e teme...

 

Das alturas

Do passado, olha o abismo do futuro

E, vendo-o a vez primeira tão cavado,

Tão lívido por baixo e, por instantes,

Cortado de relâmpagos... anseia

E tem vertigens de atirar-se ao pego!

 

A ossada das Babéis do mundo antigo

Gemeu ¾ e viu-se então esse esqueleto,

À luz de incêndio estranho, conchegando,

Como se fosse carne aos ossos, restos

Da mortalha de púrpura d’outr’ora...

Mas os vermes roeram-lhe a mortalha

E bem se vê a ossada nua...

 

II

 

Anseiam

Por encobrir essa nudez aos olhos,

Ou por cegar então os olhos todos!

 

Porque se, um dia, os pés d’essas estátuas

Se virem ser de barro e não de bronze;

Se se vir que os Jardins de Babilônia

Estão suspensos por uns débeis fios,

E não assentes sobre pedra e abóbada;

Se se vir que as colunas d’esse templo

Não são mármores rijo, mas formadas

De uns troncos velhos meio podres, e o Ídolo

Se conhecer que já não faz milagres...

Em verdade, em verdade, que há-de ouvir-se,

Sobre a face da terra, ao Sul e ao Norte,

Erguer-se, como o vento das tormentas,

E voar, como relâmpago nas ondas,

Bem estranho clamor ¾ misto de choros

E imprecações e súplicas e brados

E ódios, tudo a rugir!... e muita escama

Há-de aos olhos cair... e muita fronte

Que beija o pó há-de entestar co’as nuvens!

 

Muito machado de aço, que anda agora

Cortando na floresta o cedro e o sândalo

Para a pira dos Ídolos, quem sabe

Se não há-de voltar talvez o gume

Contra esses pés mirrados do esqueleto?

Muitos braços, que puxam hoje ao carro,

Quem nos diz que não hão-de, enfim quebrando

As algemas servis, precipitá-lo

E muitas postas mãos em prece humilde,

Talvez erguer-se e dar na cara ao morto?

E muito lábio, que murmura a súplica,

Abrir-se enfim para escarrar o ultraje?

E muito olhar tremente soltar chamas?

E muitos curvos ombros, que acarretam

O ouro em pó e incenso e mirra ainda

Quem o sabe? talvez ir-se de encontro

À base da estátua ¾ e derrocá-la?

 

III

 

Eu tenho visto a pedra, desprendida

Da montanha, levar meia floresta

Na carreira ¾ e não há-de esse granito

Colossal, que é o Povo, despregado

Por mãos do tempo, com trabalho imenso,

Ao rolar no declive da História

Esmagar, ao correr, os troncos secos

E o mirrado ossuário do passado?

Não há-de o solo heróico, que se agita,

Lançar ao ar castelos e cidades?

Há-de se abrir-se ao vulcão só por que atire

Um só jato de fumo e cinza apenas?

E a alma dos homens há-de entrar nas dores

De um parto crudelíssimo, e volver-se

N’um leito de torturas, por que o feto

Predestinado, a pálida Esperança,

Fruto de mil angústias, em chegando

A ver a luz se chame desespero?

 

Eles sabem que não. Sabem que o oceano,

Chamado humanidade, gasta séculos

A revolver, lá dentro em si, uma idéia

Mas que, se um dia chega a vê-la clara,

A frase com que a deita ao mundo é o estrondo

Da tormenta... e é seu verbo o cataclismo!

 

IV

 

Eles sabem e temem ¾ Como ovelhas,

A quem faro de lobos pôs espanto,

Uniram-se formando um grande círculo.

 

‘Stá no centro o Pastor ¾ báculo de ouro

Por fora, mas por dentro ferro todo!

Em volta do cajado da legenda

(Como em volta ao bordão do Sete-estrelo

As estrelas do céu) é que se juntam

As estrelas fatais da treva humana.

Os que trazem na mão a cruz de Cristo

(Onde a Cristo pregaram!) e os que apertam

Com o guante ferrado a cruz da espada!

Os que do peito humano fazem cunho

E, vazando-lhe prantos, lhes sai ouro!

Os cabos do exército traidores,

Porta-bandeiras que o pendão venderam;

Que, vendo na auriflama esta palavra

Justiça escrita, vão (línguas de víbora)

Lambendo a letra de ouro, e a baba horrível

Deixa bordado a fio de peçonha

O mote d’eles Interesse! os sábios

Que andam tapando o sol co’a capa negra!

Os Cains, que subindo sobre a espádua

Dos irmãos, lhes deixaram cada ombro

¾ Marca de servidão ¾ beijo do inferno ¾

Ferido dos sapatos tauxiados!

Os leprosos que põem ouro nas chagas!

Os que vendem a Cristo cada dia,

E o renegam três vezes cada noite!

Os herdeiros do Abuso! os feudatários

Do crime! os titulares da Ignomínia!

Eis do inferno o rebanho, que obedece

A um Pastor... herdeiro da Serpente!

 

V

 

São estes que fizeram de cadáveres

O grande monte do Passado: estes

Que de ossadas fizeram os castelos

E os púlpitos e os tronos ¾ e fizeram

De prantos óleo santo e água benta...

 

São estes que fizeram da cruz negra

Do mau ladrão sinal com que se absolvem

Entre si: e, deitando a toga preta

Pelo espaço, fizeram Firmamento;

E chamaram, ao sol, a escuridade;

E, ao pensamento, lepra; e à ignorância

Elevaram altar; e à ignomínia

Chamaram dignidade; e andam pedindo

Esmola para a Treva; e querem do homem

As lágrimas, apenas... com que reguem

Do seu jardim roubado as negras flores!

 

VI

 

E, entanto, sabem (quem tem olhos vê...

Vê com espanto!) que o tremor do solo

É largo e vem de longe; e que há no espaço,

Fora do mundo, mão que impele as cousas

E, como onda, as agita a ir de encontro

À cidadela das ruínas! Sentem

Já sobre o coração um frio horrível...

E, olhando em volta, vêem pelo escuro

Vir essa negra mão, que traz erguida

A espada flamejante do Destino!

 

Vêem... e lutam! Deus é que eles tentam

E ao destino é quem eles desafiam!

Mas têm medo ¾ os covardes ¾ porque mentem

E não sabem bradar, olhando os astros,

“Nós cá somos o Mal... guerra de morte!”

Não sabem ¾ mentem ¾ dizem que o Passado

Era urze fraquinha que a Revolta,

Bem como golpe de alvião valente,

De uma vez arrancou. Fazem-se humildes

E, como o canavial, vergam gemendo...

E dizem meu irmão a cada inseto...

E querem ver se enganam a Verdade...

E querem ver se Deus lhes cai no laço!

 

VII

 

O Passado! Essa larva macilenta,

Misto de podridão, tristeza e sombras,

Se morreu... ressurgiu do seu sepulcro!

Bem o que vemos andar, pavonear-se

Entre nós, nos vestidos ilusórios

Da triste morte, arremedando a vida,

Passar ¾ e sobre a fronte d’esse espectro

Bem se vê uma sombra de tiara

Ou de coroa, ao longe, branquejando!

 

Mudou de roupa ¾ mas o corpo ainda

É o mesmo... é pior, que cheira à cova!

 

O castelo feudal tinha raízes

Bem fundas n’esse chão: e a árvore heráldica,

Antes que a decepassem, alastrou-se

Subterrânea e botou rebento ao longe...

Se a regou tanto sangue e tanta lágrima!

Tem muita vida ainda a árvore negra...

 

O velho mundo, a Babilônia antiga,

¾ Leviatã dos tempos ¾ tem amarras

De ferro colossais que à praia o ligam:

Cada fuzil é um abuso; a âncora

É a inércia das agentes; e é o interesse

E julga-se seguro... mas um dia

Há-de estalar... e então! então o oceano

Terá pouca fundura para a cova,

E poucas ondas a deitar-lhe em cima!

 

VIII

 

O novo mundo é toda uma alma nova,

Um homem novo, um Deus desconhecido!

 

No nosso sangue há glóbulos legados

Pelo mistério das idades idas:

Há toda a podridão da árvore antiga,

Legada ao gérmen da árvore futura...

 

Há o espírito e a forma. A Autoridade,

Esse mistério, espada de Dâmocles,

Essa nuvem sombria onde se escondem

O Senhor do Sinai e as doze-tábuas:

A rede de mil fios, que atirando

Uma ponta à família, em mil meandros

Vai, desce, sobe, some-se, aparece,

Té que prende no trono a última ponta,

Onde a Água-bifronte os fios une!

 

Há o Terror ¾ a nuvem das alturas

Trazida para aqui (ou aqui formada);

Raio de luz do eterno santuário

Metido no candil d’estes Diógenes!

Uma ponta do véu azul do augusto

Cobrindo a fronte cínica do eunuco!

Deus¾ o segundo termo do dilema

Sempre apontado ao peito, como seta!

Não se poder andar, correr os campos,

Sem que, de um canto escuro, um vulto negro

Nos brade logo “arreda! aqui começa

O domínio do céu ¾ atrás, profano!”

 

O pensamento livre e iluminado

Metido ao canto d’essa jaula negra

De pedra e ferro! o céu sempre na terra!

A tenda do deserto em mil retalhos

Partida! e a onda do mar pulverizada!

....................................................................

Há de que perguntar porque é que os astros

Se põem a olhar assim com tal carinho

Para aqui, e temer que o sol, um dia,

Revolvendo o que viu, fuja no espaço

Ou se apague co’as lágrimas choradas...

Porque isto é baço e isto é atroz!

 

IX

 

Entanto,

Da História o solo trágico, regado

Com o sangue dos tempos, anda em dores

Concebendo um mistério ¾ porque dentro

Em seu seio, n’um rego tenebroso,

Não sei que mão deitou uma semente

Escura mas divina, a do Futuro!

 

X

 

Há-de crescer até ao céu esta árvore!

Há-de vingar! o bafo, o ar que respira,

É o Desejo do homem, essa eterna

Aspiração, essa atmosfera ardente

Aonde bebe vida quanto há grande,

Quanto de novo e estranho à luz se eleva!

 

Há-de crescer essa árvore divina!

Porque as raízes d’ela vão, na sombra,

Buscar a vida às duas largas fontes,

Verdade e Amor ¾ e a seiva que a alimenta

É a Idéia... e é o chão a Humanidade!

 

XI

 

Deixá-la ir! Os vermes que a rodeiam

Querem comer-lhe o tronco ¾ estes insetos

São audazes... por quê? porque são cegos!

Hão-de gastar os dentes n’essa lida;

Hão-de gastar, depois, ainda a cabeça;

Hão-de por fim gastar o corpo todo!

 

E ela como se vinga?

A essa poeira

Escura, que deixarem quando extintos,

Lá irá procurá-la co’as raízes,

E transformá-la em seiva; e d’essa seiva

Fazer ou folha ou ramo ou flor, acaso,

E, generosa, ao sol do belo erguê-la

Que veja, ao menos uma vez, os astros!

 

Eles são fortes ¾ eles têm o Mundo:

Ela, por si, apenas tem... o Espírito!

 

 

 

Ode III

 

Como o vento às sementes do pinheiro

Pelos campos atira e vai levando...

E, a um e um, até ao derradeiro,

Vai na costa do monte semeando:

 

Tal o vento dos tempos leva a Idéia

A pouco e pouco, sem se ver fugir...

E nos campos da Vida assim semeia

As imensas florestas do porvir!

1864.

 

 

 

No templo

 

I

 

O Povo há-de inda um dia entrar dentro do Templo,

E há-de essa rude mão erguer-se sobre o altar;

E há-de dar de piedade um grande e novo exemplo,

E, ao púlpito subindo, o mundo missionar.

 

Heis de essa voz solene ouvir ¾ na nave augusta

O canto popular ao longe soará;

E a pedra, carcomida às mãos do tempo e adusta,

Ansiosa palpitando, o hino escutará!

O Povo há-de fazer-se, então, bispo e levita;

E será missa nova a missa que disser:

E há-de achar ao sermão por tema o que medita

Hoje confuso e está na mente a revolver.

 

Então, por essa imensa abóbada soando,

Há-de correr o som de um órgão colossal;

E uma outra cruz no altar, outro esplendor lançando,

Há-de radiar luz nova às letras do missal.

 

Dia santo há-de ser esse de festa estranha!

Com a calosa mão o Povo toma a cruz,

Amostra-se à multidão e ¾ Cristo na Montanha ¾

Missiona... e a fronte, entanto, inunda-se de luz!

 

Então o seu olhar será como o espelho

Doce, que o filho tem no olhar de sua mãe:

E, tendo n’uma mão erguido o Evangelho,

Com a outra aponta ao longe o vago espaço, além...

 

II

 

Ninguém o dia sabe ao certo: enquanto vemos

Pelos sinais do céu que a aurora perto está...

Pelas constalações é que esse espaço lemos...

A estrela do pastor desmaia... Ei-lo vem já!

.......................................................................

Sabeis que missa nova essa é que diz o Povo?

E o órgão colossal que, em breve, vai soar?

Qual é o novo altar e o Evangelho novo?

E o tema do sermão que às gentes vai pregar?

 

O Evangelho novo é a bíblia da Igualdade:

Justiça, é esse o tema imenso do sermão:

A missa nova, essa é missa de Liberdade:

E órgão a acompanhar... a voz da Revolução!

1864.

 

 

 

Aos miseráveis

 

I

 

Vós vedes esse lobos carniceiros,

Que em volta dos redis andam bramindo?

Que onde se espalha o sangue são primeiros,

E últimos onde o Amor está sorrindo?

Tremeis de medo ao vê-los? ou, rasteiros,

Da vista d’eles vos andais sumindo?

Ou, cheios de ódio, estais a invejá-los?

Pois, em verdade, que é melhor chorá-los!

 

Eles não vêem d’este grande mundo

Mais que os tetos dourados de seus paços...

Vós tendes todo o céu largo e profundo

Por teto, e por palácio esses espaços!

O que Deus dá a todos... o fecundo...

Que não se nega aos mais mirrados braços...

O brado que de um peito amado sai...

E o que do olhar das mães n’alma nos cai...

 

A herança é bela, miseráveis! vede...

Miseráveis! por quê? porque no estio

Só piedoso olhar vos mata a sede?

Por que, quando tremeis de fome e frio,

Deus só seio de amigo vos concede?

Só tendes a esperança, como rio,

Para banhar-vos no maior calor?

Eles têm tudo... só lhes falta o Amor!

 

Nem têm Inteligência! A que vem d’alma!

Esse grande entender da Grande Cousa!

Cacho nascido na mais alta palma!

Coroa de quem crê e de quem ousa!

Sangue de irmãos a sede lhes acalma...

Dão banquetes no mármore da lousa...

E saber isto? é isto inteligência?

Não! que o Bem é o perfume d’essa essência!

 

A cânfora... a balsâmica resina...

A essência que destila sobre os Povos,

Na fronte d’eles, como unção divina...

Quando o tronco deitou rebentos novos,

E palpitou a ave pequenina

Por um leve rumor dentro em seus ovos,

Então caiu também da imensidade,

Sobre a fronte dos povos, a Verdade!

 

É Ela, que ressalta, como lume,

Do choque das idéias e das cousas!

Não há grilhões que a prendam... que os consume!

Nem campa... que ela estala as frias lousas!

Machado de aço fino, com o gume

A árvore decepou onde te pousas

Tu, negro mocho da Hipocrisia,

E tu, águia fatal da Tirania!

 

II

 

Derruba com seu pé tronos erguidos,

Com um sopro, no pó lança os castelos,

E aos vermes que na sombra vão sumidos

É a quem ela chama filhos belos!

Os cometas, que ao ar andam subidos,

Fez-se cair... e tomando uns alvos velos

Pálidos e trementes, a Verdade

Com eles construiu trono e cidade!

 

Nós vimos esse Deus e a nossa boca,

Não sabendo quem é, chamou-lhe Idéia:

N’um dia faz-se nada, e a si apouca...

No outro o mundo envolveu na imensa teia!

Pareceu bem minguado e cousa pouca,

Quando com Cristo se assentou à ceia...

No outro dia chamava-se Martírio...

Alma depois... depois chamou-se Empíreo!

 

Vai indo e vai varrendo a casa imunda

Que se chama passado ¾ e faz o novo

Da poeira, inda ontem infecunda,

E que já amanhã se chama Povo.

É ela quem destrói e quem inunda;

E, entre as ruínas, faz chocar um ovo

Onde se agita um feto, hoje ainda escuro,

Mas que é aurora e luz... porque é Futuro!

 

É gosto ver os tronos abalados

Por essa férrea mão, e ver os cultos

Por terra, e entre os altares alastrados,

Ver sob eles no pó deuses sepultos!

Ver os nomes dos grandes apagados,

E a sombra dos heróis cheia de insultos...

Porque esse sopro que o incêndio atiça,

E essa mão e esse braço... é a Justiça!

 

A Justiça flameja como a espada

Do arcanjo invisível ¾ resplandece

Como a chama dos fogos ateada,

Que, ao longe, nas montanhas aparece

Vela à porta dos grandes assentada:

À ruína dos maus é que ela desce:

E tem por trono e sólio soberanos

As ossadas comidas dos tiranos!

 

Ninguém a vê chegar... mas, de repente,

Aparece ¾ e mudou a face às cousas!

Encheu de prantos quem dormiu contente;

Dos felizes sentou-se sobre as lousas;

Do olhar do forte fez olhar tremente;

E a ti, ó miserável, que nem ousas

Do chão teus tristes olhos levantar,

Foi quem ela tomou para beijar!

 

Não são consolações que dê o acaso,

São leis misteriosas e divinas...

A providência oculta em cada caso...

Presente na ventura e nas ruínas...

O que se achou no fundo d’esse vaso

Que se libou na vida... as surdas minas

Por onde o incêndio lavra sem ser visto,

Chame-se embora Garibaldi ou Cristo!

 

III

 

Ó Justiça! eu sorrio quando encaro

Os semideuses d’esta terra ingrata,

Que cheios de vaidade e de descaro

Se julgam feitos de ouro e fina prata...

Sorrio ao ver como em seu trono avaro

Cuidam falar com voz de catarata,

E crêem ser na altura uns Sete-estrelos...

Que eu bem sei que Tu hás-de subvertê-los!

 

Os Tronos caem sem acharem eco,

E os deuses morrem sem fazer ruído;

É o cetro ramo que só fruto peco

Dará, e o Montante de aço buído

Não poda a vinha... deixa tudo seco!

 

Tudo isto morre e vai-se em pó sumido...

Tronos, tiaras, cetros, potestade,

Que pesam na balança da Verdade?

 

Mas a idéia, que sai da nossa fronte;

E a dor, que irrompe e rasga o nosso peito;

Mas a água,. que tem n’uma alma a fonte;

E o feto, que nasceu todo imperfeito;

E o ai de um triste em solitário monte;

E um pranto maternal em frio leito;

Eis quem pesa no prato da balança

Onde se mede o amor e a esperança!

 

Esperança! debalde não se  sofre!

Ó vós que andais curvados, vede a altura

E dizei-nos se pode dar de chofre

No lodo quem nasceu da formosura?

E espalhar os brilhantes do seu cofre

Entre as urzes, e pobre em noite escura

Ir curvado sem ver a cousa-bela

Quem nasceu para andar de estrela em estrela?

 

Caminhai para a estrela da alvorada

Que vos sorri de lá ¾ não tenhais medo ¾

Té que se desembrulhe esta meada...

E há-de desembrulhar-se tarde ou cedo!

Miseráveis! segui na vossa estrada

De miséria, segui, com rosto ledo...

É a estrada real de um reino certo!

Vai na frente a coluna do deserto!

 

 

 

Ode IX

 

Por mais que o mundo aclame os vãos triunfadores,

Os que passam cantando e os que passam ovantes,

Os que entre a multidão vão como uns hierofantes,

E os que repartem d’alto, augustos julgadores,

Às turbas o favor e os desdéns cruciantes,

 

Não há glória ou poder, cousa que o mundo aclame,

Igual à morte obscura, erma, vil, impotente,

D’um homem justo e bom, que expira injustamente

Na miséria, no exílio, ou em cárcere infame,

Mas que aplaude a consciência ¾ e que morre contente!

 

 

 

Sobra

(A Raymundo de Bulhão Pato)

 

Quando Cristo sentiu que a sua hora

Enfim era chegada, grave e calmo,

Sereno se acercou dos que o buscavam.

A  turba vinha em armas. Mas, de tantos,

Nem um só se atreveu a dar um passo,

A pôr a mão no Filho do Homem. ¾ Todos

De olhos no chão, as armas encobriam

Ante Jesus inerme.

 

Então aquele

Que o tinha de entregar, aproximando-se,

O tomou nos seus braços, murmurando:

Que Deus de salve, Mestre! e, sobre a face

O beijou, como fora contratado:

Então os mais, chegando-se, o prenderam.

 

Mas Jesus, sem os ver, lhes perdoava:

De olhos no céu, seguia-os sereno.

Era duro o caminho. Sobre um monte

Iam e, dos dois lados, lá embaixo,

Cobria a treva a terra toda.

 

Quando,

Porém, sobre o mais alto d’esse monte

Foram enfim chegados, de repente

Viu-se-lhe uma das faces alumiar-se

De uma luz doce e branda, mas imensa!

 

E quanta terra, desde o monte ao oceano,

Lhe ficava do lado aonde virada

Lhe estava aquela face, refletindo-a,

Tudo se esclarecia ¾ vale e serra

E a metade do céu ¾ aparecendo

Como em puro luar, ou qual se fosse

Vir nascendo uma aurora d’esse lado.

E essa face radiante era a que Judas

Não chegara a tocar.

 

Porém a outra,

Que ele beijara, conservou-se ercura

Como se o crime d’ele ali guardasse...

Nem dava a luz; e o espaço d’essa banda

Onde a virava, era uma noite imensa,

Coberto o horizonte de nevoeiro...

Partido o mundo em dois, essa metade

Era a que se ficara envolta em sombras.

................................................................

................................................................

Foi d’essas sombras que se fez a Igreja!

1865.

 

 

 

Carmen Legis...

 

I

 

Muito ruído e pó, e muito escuro!

É d’isso que se vestem...

É d’esse ar que respiram e que vivem...

Salamandras da sombra!

 

Chamam-se Bispos, Reis, Imperadores,

Altos, Grandes e Ricos!

Pairam sobre uma nuvem sobranceira,

E sobre as nossas frontes!

 

Agitam-se, revolvem-se, remexem-se...

Ferem os grandes ecos...

Enchem de brulha e pasmo o universo...

Põem terror e espanto!

 

Alevantam o pó de toda a estrada...

E agitam toda a onda!

Têm o cetro, a tiara, a espada, a bolsa...

Mandam nos corpos todos!

 

Vê-os passar a gente, como uns astros,

E abaixa ao pó a fronte,

Com medo de ser visto e que se abrase

No rabo do cometa!

 

II

 

Pois bem! Grandes, Altivos, Poderosos,

E Cometas da altura,

E Senhores da terra e Semideuses...

Vós sois o pó e o nada!

 

Atroadores! o ruído imenso,

Com que abalais o mundo,

É apenas fracasso e pó estrépito

De casa que se alui!

 

III

 

O espanto,  que espalhais não vos pertence...

Não é a vossa força.

É o tremor do solo, é o presságio

Do grande terremoto!

 

É o vôo da asa poderosa.

D’aquela águia cruenta,

Que vos há-de abater, precipitando-vos

Co’a face contra o solo!

 

É o eco longínquo das revoltas!

É o grande rebate!

É o seio do povo, que concebe

Um feto monstruoso!

 

E a desilusão! são as escamas

Caindo d’esses olhos,

Ao ver de perto os ídolos antigos...

E achando-os terra e barro!

 

O nascer da esperança n’esses cérebros,

Que nem d’ela sabiam!

Modo estranho de olhar o horizonte,

Ao ver os astros novos!

 

É a onda, que sobe dos abismos

E põe à luz a coma...

Que abala... mas que vem lavando tudo...

 E se chama Justiça!

 

São as vozes, que o ar pávido escuta,

Que nunca ouvira d’antes!

E aos ecos do espaço em vão pergunta

De d’onde aquilo sobe!

 

É a Revolução! a mão que parte

Coroas e  tiaras!

É a Luz! a Razão! é a Justiça!

É o olho da Verdade!

 

IV

 

Quem foi que disse aos povos estas cousas?

Quem foi que disse ao Servo

Que Deus, quando o criou, no seu registro

Lhe pôs o nome de Homem?

 

E disse que o viver é lei de todos,

E não só de alguns poucos?

Para tudo beber, o mar? e a terra

Soco da estátua humana?

 

Qual é a mão intrépida, que arranca

De sobre os olhos d’eles

A venda negra, que amarrara, há séculos,

A mão do sacerdócio?

 

Quem é que diz às faces, há mil anos,

Curvadas sobre a terra,

¾ “Erguei-vos para o céu! o céu é vosso!

É essa a vossa herdade!” ¾ ?

 

V

 

Quem foi? fostes vós mesmos! Impelida

Por força que não víeis,

A vossa mesma mão foi escrevendo

Sua própria sentença!

 

Trabalhais! E mal vedes que trabalho!

Sois as rodas da máquina

Que a si mesmo se está esmigalhando!

E, Reis e Sacerdotes,

 

E Levitãs do mundo! sois vós mesmos

Que abris a grande Porta,

Por onde há-de ruir o mundo todo

No vosso templo egoísta,

 

E deitar, sobre o altar, as cruzes todas,

E beber regalado

Esse néctar da vida ¾ a Liberdade ¾

No vosso cálix santo,

 

E esmigalhar, co’a fronte do Levitã,

A fronte do seu ídolo!

Vede o que há-de sair do horrível choque

Do santo contra santo!

 

VI

 

E sabeis vós por quê? Por pouco... apenas,

Porque o Deus da história

Traduziu n’uma lauda do seu livro,

A tradução estranha,

 

Que diz, em vez de rei ¾ lobo e tirano ¾

E em vez de sacerdócio,

¾ Serpente, que se enrosca ao mundo todo ¾

e, em vez de rico ¾ egoísta ¾

 

E ajuntou senhor e escravo, ambos

N’esta palavra ¾ Homem ¾

E casta e privilégio, traduziu-as

Ambas por ¾ Igualdade ¾

 

E, em vez de templo estreito, pôs ¾ espaço

Imenso e infinito ¾

E, em vez de rio, mar! e, das migalhas,

Fez um grande banquete!

 

E à terra e ao homem, ambos condenados

À fixidez do mármore,

Deu um sopro gigante, batizando-os

Com um nome ¾ Progresso ¾ !

 

VII

 

Por isso os vossos tronos se racharam,

E as cruzes vão rolando,

E as libras se derretem como gelo...

E foi por isto, apenas!

 

 

 

Ode XII

 

A espada inexorável que flameja

No horizonte d’um povo impenitente,

E não poupa, na ameaça indiferente,

Nem tugúrio, nem paço, nem igreja;

 

O gládio que encoberto peregrino

Ergue, imprevisto, nas humanas liças,

A espada das históricas justiças,

A espada de Deus e do Destino;

 

De que pensais que é feita? Por ventura

Pensais que é feita d’um metal terreno,

Cheio de jaça e fezes, e em veneno

Temperado talvez por mão impura?

 

Que é feita de cobiça e violência?

E de ódios cegos, brutos, truculentos?

De covardes e falsos pensamentos?

De ultraje, de furor e de demência?

 

Quanto vos iludis, irmãos! Sabei-o,

Homens de pouca fé! sabei que a espada

Sinistra e em cuja folha esbraseada

Uma palavra em língua estranha eu leio,

 

Que esse rubro sinal de mudo espanto,

Fixo, pregado ali n’um céu terrível,

Contínuo, inquebrantável, inflexível

À prece, à ameaça, à dor, ao pranto,

 

Que essa espada da morte e do pavor

É só feita de Bem inalterável,

De Verdade ideal e impecável...

E que esse açoute é feito só de Amor!

 

Sabei, povos, que em horas de demência

Amaldiçoais a mão que vos castiga:

Essa inflexível mão é mão amiga,

É a mão paternal da Providência!

1873.

 

 

 

Versos escritos da margem d´um missal

 

Bem pode ser que nossos pés doridos

Vão errados na senda tortuosa,

Que o pensamento segue nos desertos,

Na viagem da Idéia trabalhosa...

 

Que a árvore da Ciência, sacudida

Com força, jamais deite sobre o chão,

Aos pés dos tristes que ali’stão ansiosos,

Mais do que o fruto negro da ilusão...

 

Que o livro do Destino esteja escrito

Sobre folhas de lava, em letra ardente,

E não chegue a fitá-lo o olho humano

Sem que ofusque e cegue de repente...

 

Pode ser que, na luta tenebrosa

Que este século move sob o céu,

Venha a faltar-lhe o ar, por fim, faltando-lhe

A terra sob os pés, bem como Anteu...

 

Que do sangue espalhado nos combates,

E do pranto que cai da triste lira,

No árido chão da esperança humana

Mais não nasça que a urze da mentira...

 

Que o mistério da vida a nossos olhos

Se torne dia a dia mais escuro,

E no muro de bronze  do Destino

Se quebre a fronte ¾ sem que ceda o muro...

 

Que o pensamento seja só orgulho,

E a ciência um sarcasmo da verdade,

E nosso coração louco vidente,

E nossas esperanças só vaidade...

 

E nossa luta, vã! talvez que o seja!

Cego andará o homem cada vez

Que vê o céu um astro! e os passos d’ele

Errados pelo mundo irão, talvez!

 

Mas, ó vós que pregais descanso inerte

No seio maternal da ignorância,

E condenais a luta, e dás ao homem

Por seu consolo o dormitar da infância;

 

Apóstolos da crença... na inércia...

Vós que tendes da Fé o ministério

E sois reveladores, dando ao mundo

Em lugar de um mistério... outro mistério;

 

Se quanto o Universo tem no seio,

E quanto o homem tem no coração,

O olhar que vê e a alma que adivinha,

O pensar grave e a ardente intuição,

 

Se nada ¾ em terra e céu ¾ pode ensinar-nos

Do fado humano o imortal segredo,

Nem os livros profundos da ciência,

Nem as profundas sombras do arvoredo,

 

Se não há mão audaz que possa erguê-lo

O tenebroso véu do Bem e Mal...

Se ninguém nos explica este mistério...

Também o não dirá nenhum missal!

 

 

 

À Europa

(Durante a insurreição da Polônia em 1864)

                              

La Russie c’est le cholera

Michelet

 

Águia da França! que te vejo agora,

Como a ave da noite, triste e escura!

Há pouco ainda a olhar o sol ¾ n’esta hora

Meia ofuscada ao resplendor da altura!

Subindo sem se ver já quase, outr’ora,

E, hoje, tombada sobre a rocha dura!

E quem por nome teve já Esperança,

Chamar-se Desalento... Águia da França!

 

Irmã! Irmã! Irmã! por ti clamaram

Desde o desterro os míseros cativos!

Foi por ti que os olhos levantaram

Queimados da tortura aos lumes vivos!

Foi por ti, foi por ti que eles bradaram

Erguidos do sepulcro e redivivos!

E tu dormes no ninho da confiança?!

São irmãos teus! acorda, águia da França!

 

Ah! a águia-imperial inda tem asa...

Mas o que ela não tem já é vontade!

Há ainda algum fogo que a abrasa...

Mas não é nem amor nem liberdade!

Inda tem garra com que empolga e arrasa...

Mas já não os véus negros da verdade!

Porque, abraçando-a, lhe hão roubado a ardência

Dois amigos, o Egoísmo e a Prudência!

 

Ó prudentes! não sei se mais me ria,

Se mais chore de ver vossa cegueira!

Pois vós, cuidando ter a luz do dia

Nas mãos, tendê-las cheias de poeira!

Vós chamai-vos a Ordem, a Harmonia...

Mas, nos frutos, qualquer vê que a figueira

Que, em rebentando o estio, não rebenta

É porque apenas sobre a areia assenta!

 

A areia do Egoísmo! E, se a vaidade,

Vós não cegará, vereis que a semente

Que caiu sobre o chão da Liberdade,

Em vez de ser perdida inutilmente,

Dá, por um grão, milhares. ¾ E, em verdade,

Vereis tudo isto simplesmente

Se, em vez de ter por lei o livro escuro,

Só na Justiça lêsseis o Futuro!

 

Sim! o Futuro! Vós olhais a um lado

E a outro lado ¾ e vedes o horizonte...

Sabeis como passou quanto é passado,

E que alicerce teve cada monte...

Por vossa mão o mundo está marcado...

Cada mar, cada rio, cada fonte...

Tudo sabeis ¾ a noite e a manhã ¾

Só vos esquece... o dia de amanhã!

 

Quando a Águia da Rússia as duas garras

Cravar no coração a liberdade,

Tapando com o vulto as cinco barras

D’esse Volga de luz, a humanidade;

Quando, enfim, estalar quantas amarras

A tem lá presa desde a velha idade,

E, tomando co’a sombra toda a altura,

Se estender sobre a Europa a asa escura:

 

Quando o vento do Norte em nossos prados

Tiver levado com os grãos as flores;

E, soprando nos ermos despovoados,

Semear a seara dos terrores;

Quando, enfim, sobre os sulcos arrasados,

Dormirem com os bois os lavradores;

E só brotar no chão da liberdade

¾¾ a erva da Rússia, a escuridade:

 

Vós haveis de exultar, então, prudentes,

E, sábios, ver o fruto ao vosso ensino!

E àquele velho conto dos dormentes

Tirar a sua moral... que é o Destino!

Então abrindo os olhos, ó videntes,

Sobre as cabeças heis de ver a pino

O cometa dos prósperos futuros...

Da negra Rússia sobre os céus escuros!

 

E, Diplomatas, heis de ler as notas

Escritas nas muralhas derrocadas!

E das cidades nas bastilhas rotas

Heis de ouvir das bocas mudas, botas,

A opinião extrema das espadas!

Lá quando no congresso se assentarem

As Potências da Noite... e concertarem!

 

Quando um povo se chama, em vez de Gente,

Cólera, peste, vento da Sibéria;

E uma nação é assim cousa impudente

Que, em vez de veste virginal, aérea,

Só tem andrajos com que aos olhos mente,

E é só, no fundo, escravidão, miséria;

E em vez de filho amado traz ao peito

Um monstro informe de hórrido trejeito;

 

Ó Nações, que dizeis abrir à vida

E à luz os olhos livres... ó Nações!

Quando é com cousa assim, crua e descrida,

Que se vão resgatar as opressões...

Não há voz de justiça ¾ a mais erguida ¾

Nem tratados, nem notas, nem razões...

Há uma folha só ¾ a da espada ¾

Para o grande tratado ¾ a cutilada ¾!

 

E vós passais a mão sobre as escamas

Do crocodilo... e credes convertê-lo?

Credes ligá-lo com as finas tramas

Da palavra, mais frágeis que um cabelo?

Ó homens hábeis, que falais às chamas,

E ao mar bravo co’a voz podeis contê-lo,

Sois uns grandes apóstolos por certo...

Que até andais pregando no deserto!

 

Apóstolo! mas vede que no mundo

Não há já hoje um só, com este nome,

Sem que lhe apaguem com um riso imundo

O nobre fogo em que arde e se consome!

Quanto vale a palavra n’este fundo

Poço da Europa de hoje, onde se some

A voz mais alta? quanto vale? Olhai!

Inclino o ouvido... mal escuto um ai!

 

Apóstolo ¾ é a bombarda da metralha

Estalando as bastilhas dos tiranos!

Apóstolo ¾ é o ferro quando espalha

O terror sobre os peitos desumanos!

É o clarim no meio da batalha

Tocando a retirada dos enganos!

É a mão do destino, que em seus ninhos

Esmaga a loba velha co’os lobinhos!

 

Contra a Rússia ¾ a heresia das nações ¾

Um grande e forte apóstolo de ferro!

Que vá direito dentro aos corações

Com rijo abalo esmigalhar o erro!

Que, em vez da branda voz das orações.

Pregue a sua missão com grande berro!

Não humilde, não doce, como os onze

De Cristo... mas apóstolo de bronze!

 

Esse, sim! que converta o povo ímpio

Que ao Dagon da matança deu seu culto!

Que lhe faça correr o pranto em fio,

Mas um pranto de sangue! Um rude insulto,

Não palavras de amor a esse Gentio!

Um missionário de tremendo vulto

Que enfim lhe escreve as letras da oração

(Mas com ferro) no duro coração!

 

Essa é a única voz que se ergue e brada!

Com que pode pregar-se, a essa descrida

Raça de Moabitas, a sagrada

Nova missão de Liberdade e Vida!

Nações da Europa! é ao canhão e à espada

A quem deveis dar a palavra. Erguida

Essa voz soará por toda a terra

A doutrina um Evangelho ¾ a guerra!

 

Ah! se há ainda olhos para verem,

Em despeito da venda, a luz infinda!

Se há almas juvenis para se erguerem

Com o sublime vôo que jamais finda!

Se há mãos ainda aí para estenderem

À luz da glória um ferro ¾ e se há aidna

Povos livres na terra, e em peitos novos

Há livres corações ¾ à guerra, ó Povos!

1864.

 

 

 

Ode XV

 

Há dois templos no espaço ¾ um d’eles mais pequeno;

O outro, que é maior, está por cima d’este;

Tem por cúpula o céu, e tem por candelabros

A lua ao ocidente e o sol suspenso ao este.

 

De sorte que quem ‘stá no templo mais exíguo

Não pode ver nascer o sol, nem pode ver

As estrelas no céu ¾ que os tetos e as colunas

Não o deixam olhar nem a cabeça erguer.

 

É preciso abalar-lhe os tetos e as colunas

Por que se possa erguer a fronte até os céus...

É preciso partir a Igreja em mil pedaços

Por que se possa ver em cheio a luz de Deus!

1864.

 

 

 

Pobres

(a João de Deus)

 

I

 

Eu quisera saber, ricos, se quando

Sobre esses montes de ouro estais subidos,

Vedes mais perto o céu, ou mais um astro

Vos aparece, ou a fronte se vos banha

Com a luz do luar em mor dilúvio?

Se vos percebe o ouvido as harmonias

Vagas do espaço, à noite, mais distintas?

Se quando andais subidos nas grandezas

 

Sentis as brancas asas de algum anjo

Dar-vos sombra, ou vos roça pelos lábios

De outro mundo ideal místico beijo?

Se, através do prisma de brilhantes,

Vedes maior o Empíreo, e as grandes palmas

Sobre as mãos que as sustem mais luminosas,

E as legiões fantásticas mais belas?

E, se quando passais por entre as glórias,

O carro de triunfo de ouro e sândalo,

Na carreira que o leva não sei onde

Sobre as urzes da terra, borrifadas

Com o orvalho de sangue, ó homens fortes!

Corre mais do que o vôo dos espíritos?

 

Ah! vós vedes o mundo todo baço...

Pálido, estreito e triste... o vosso prisma

Não é vivo cristal, que o brilho aumenta,

É o metal mais denso! e tão escuro,

Que ainda a luz que vê um pobre cego

Luzir-lhe em sua noite, e a fantasia

Em mundos ideais lhe anda acendendo...

Esse sol de quem já não espera dia...

 

Ah! vós nem tendes essa luz de cegos!

Que! subir tanto... e estar cheio de frio!

Erguer-se... e cada vez trevas maiores!

Homens! que monte é esse que não deixa

Ver a aurora nos céus? qual é a altura

Que vela o sol em vez de ir-lhe ao encontro?

Que asas são essas, com que andais voando,

Que só às nuvens negras vos levantam?

Certo que deve ser o vosso monte

Algum poço bem fundo... ou vossos olhos

Têm então bem estranha catarata!

 

II

 

Há às vezes no céu, caindo a tarde,

Certas nuvens que segue o olhar do triste

Vagamente a cismar... há nuvens d’estas

Que o vestem de poesia e de esperança,

E lhe tiram o frio d’este inverno

E o enchem de esplendor e majestade...

Mais do que as vossas túnicas de púrpura!

 

Eu, às vezes, nas naves das igrejas

Lá quando desce a luz a alma sobe...

E entre as sombras perpassam as saudades...

E no seio de pedra tem o triste

Mil seios maternais... eu tenho visto

Branquejar, nos desvãos da nave obscura,

Como as nuvens da tarde desmaiadas,

 

Uns brancos véus de linho em frontes belas

De umas pálidas virgens cismadoras,

Que, em verdade, não há para cobrir-nos

A alma de mistério e de saudade

Gaze nenhuma assim! Vede, opulentos,

Como Deus, com olhar de amor, as veste

A elas, de uma luz de aurora mística,

De poesia, de unção e mais beleza

Que o véu tecido com o velo de ouro!

 

Os vossos cofres têm tesouros, certo,

Que um rei os invejara... Mas eu tenho

Às vezes visto o infante, em seio amado

De mãe, dormir coberto de um sorriso,

Tão guardado do mundo como a pérola

No fundo do seu golfo... e sei, ó ricos,

Que aquele abrigo aonde a mãe o fecha

¾ Entre braços e seio ¾ é precioso,

Cerra um tesouro de mais alto preço

Que os tesouros que encerram vossos cofres!

 

III

 

Levitas do MILHÃO! o vosso culto

Pode ter brilhos e esplendor de pompas...

Arrastar-se nas ruas da cidade

Como um manto de rei... e sob os arcos

De mármore passar, como em triunfo...

Ter colunas de pórfido luzente...

E ser o altar do vosso santuário

Como o templo Sol... cegar de luzes...

O vosso deus pode ser grande e altivo

Como Baal... o Deus que bebe sangue...

Mas o que nunca o vosso culto esplêndido

Há-de ter, como um véu para o sacrário,

A velar-lhe mistérios... é a poesia...

 

Esse mimo de amor... esses segredos...

O ingênuo sorriso da criança...

O olhar das mães, espelho de pureza...

A flor que medra na soidão das almas...

O branco lírio que, manhã e tarde,

Aos pés da Virgem, no oratório humilde,

Rega a donzela, em vaso pobrezinho!

Nunca a vossa cruz-de-ouro há-de dar sombra

Como a outra da Gólgota ¾ o alívio,

Sombra que buscam almas magoadas ¾

Onde os citisos pálidos rebentam...

Consolações... saudade... e inda esperanças...

 

Podeis cavar... as minas são bem fundas...

Cavai mais fundo ainda... e já é o centro

Da terra, aí! Mas, onde, ó vós mineiros,

Por mais que profundeis não heis-de uma hora

Chegar mais... é ao coração...

E, entanto,

É lá a única mina de ouro puro!

 

IV

 

O coração! Potosi misterioso!

O grande rio de areais auríferos,

Que vem de umas nascentes ignoradas

Arrastando safiras em cada onda,

E depondo no leito finas pérolas!

 

O coração! É aí, ricos, a mina

Única digna de enterrar-se a vida,

Cavando sempre ali... sem ver mais nada...

Foi lá, como na areia o diamante,

Que Deus deixou cair da mão paterna

As esmeraldas do diadema humano...

 

O Sentimento vivo... a Ação radiante...

E a Idéia, o brilhante de mil faces!

Foi lá que esse Mineiro dos futuros

Encobertos andou co’os braços ambos

Metidos a buscar ¾ mas quando um dia

Do fundo as mãos ergueu... o mundo, em pasmo,

Viu-lhe brilhar nas mãos... o Evangelho!

1863.

 

 

 

Acusação

(Aos homens de sangue de Versailles em 1871)

 

Ergue-te enfim, Justiça vingadora!

Corusque em breve a tua espada ardente!

Eu vejo a Tirania onipotente,

Enquanto ao longe a Piedade chora...

 

Nasce rubra de sangue cada aurora,

E o sangue ensopa a terra ainda quente...

É congresso de sangue o que esta gente

Abriu entre as nações, que o sangue irrora!

 

Ante o olhar encoberto do Futuro

E ante ti, Vingadora, acuso e cito

Estes homens de insídia e ódio escuro!

 

Endurece minh’alma, e creia e espere,

Com um desejo estóico e infinito,

Só na Justiça que condena e fere!

Junho de 1871.

 

 

 

Flebunt Euntes

(Ao sr. Alexandre Herculano)

 

I

 

Também sei, também sei o que são lágrimas!

E sei quanto se deve

Às cinzas dos Avós, quando as lançamos

Aos ventos do oceano!

 

II

 

Eu falo das ruínas do passado,

E de glórias futuras;

E meu peito está cheio de desejos

E aspirações imensas.

 

E solto o canto, ébrio de esperanças,

Ao ver a nova Aurora:

E ergo a face, e meus olhos são de chama,

Por saudar a Justiça!

 

E ao ver a grande Lei, que vem correndo

Pela encosta dos tempos,

Como carro, e esmagando os troncos velhos,

E deslocando tudo;

 

Bato as mãos ¾ porque o eixo d’esse carro

É o braço da Verdade!

E o motor, que o impele, é a caldeira

Gigante do Progresso!

 

III

 

Que muito que me esqueçam as tristezas,

Os ais dos que atropela

E esmaga a larga roda portentosa

Em seu girar convulso?

 

Que só veja a vitória, e não os mortos?

A Obra majestosa,

E não o chão cavado, revolvido,

Onde tem alicerces?

 

A pele que a serpente vai largando,

E não as muitas dores?

E esses olhos que se abrem à verdade,

E não os que ela ofusca?

 

E, posto no convés da bela nave,

Que solta os largos panos,

Em demanda de mundos encobertos,

De misterioso rumo,

 

E, mergulhando o olhar nos horizontes,

Buscando nova América,

Não ouça os ais saudosos dos que deixam

A pátria, o berço, o ninho?

 

Nem lembre, agora que a ruína é certa,

(Revendo já na mente

Os palácios-de-fadas, que hão-de erguer-se

De sobre esses destroços)

 

Os corações, que estavam descansados,

E tinham travesseiro

E leito, no que vai ser revolvido

E ser despedaçado?

 

Os pendões que açoutavam, tremulando,

O ar nobre dos castelos,

Que a Justiça dos tempos vai agora,

Com mão rude, aluindo?

 

As crenças, que se herdaram? e as bebidas

Das mães no seio doce?

Essas louras cabeças, que se beijam

Em sonho cada noite?

 

E a cruz, que com seus braços, cada dia,

Nos mostra a nossa estrada?

E o altar da nossa fé? e o berço amigo

Das ilusões antigas?

 

IV

 

Também sei o que é dor ¾ e como as lágrimas

Saem, arando o peito;

E o que é inclinar-se um triste, às tardes,

Sobre gastas ruínas!

 

E ver os velhos ídolos partidos;

E os pendões de outro tempo

Lambendo agora o chão, com o mesmo tope

Onde a glória pousava!

 

E ver-se só no mundo e como errante...

(Crepúsculo das almas!)

Perdida a fé antiga, e ainda obscuros

O Deus e os cultos novos!

 

E não Ter já o leito de inda ontem...

E não saber já agora

Se o peito do irmão, do pai, do amigo,

Ainda tem um nome!

 

As almas, que como hera se enlaçavam

Ao carvalho gigante...

As vidas, flores à antiga sombra

Nascidas e medradas...

 

A tristeza do tempo... a dor dos séculos,

Que vão, como gemidos,

Caindo e arrastando homens e cousas...

Não se sabe a que abismo!

 

V

 

Eu sei quanto se deve ao desamparo,

E às tristezas profundas,

E às saudades, que vêm, como soluços,

Do fundo da História!

 

Se sei o que é Aurora ¾ essa poesia

Do que à luz vem nascendo,

Também entendo o Ocaso e as longas sombras...

¾ Poesia de ruínas! ¾

 

VI

 

Imensa soledade e angústia imensa!

Como Sião deserta,

Como o Povo levado em cativeiro,

Como os sós, como o exílio!

Vede o que foi, e vede o que é agora!

Os Tronos, lírios belos

Nascido e medrando à sombra vasta

Da Igreja, essa araucária!

 

E o solo, em volta e ao longe, perfumado

Pelos lizes heráldicos,

D’onde saía o aroma grato aos povos...

O aroma do Heroísmo!

 

E o povo ¾ o canavial humilde e trêmulo,

Mas bom, porque era amado;

Porque as lágrimas d’ele eram o bálsamo

Chamado sacrifício!

 

E as crenças, que brotavam aos cardumes

D’esse chão ferocíssimo,

Onde Deus semeava (mão paterna!)

A Fé e a Caridade!

 

O Passado! ¾ Jardim de sombra e aromas!

Cota de cavaleiro,

E véu de santa e manto de sacrários!

¾ Mistério e heroicidade ¾

 

O Passado! o Passado! ¾ A nau gigante,

Firme, mas sossegada,

Porque a âncora d’ouro que a sustinha

Chamava-se Virtude!

 

VII

 

E agora... oh! agora... esta palavra chora

Nos lábios, quando os fere...

¾ Reflexo das grandezas que se somem

E eco das saudades ¾

 

O solo social todo alastrado

D’estes grandes destroços...

Um mistério tristíssimo pairando...

¾ Sombras entre ruínas ¾

 

O Presente disforme e cheio de iras,

E tremendo o Futuro...

O sol no ocaso... os ventos gemedores...

E os corações partidos!

 

VIII

 

Quem não te havia amar, Igreja mística,

Madalena do mundo,

Bela e piedosa em meio dos tormentos,

Ungindo os pés do Cristo?

 

E quem não há-de agora dar-te lágrimas,

                Ó triste pecadora,

Vendo o teu manto de ouro retalhado,

                E márcida a coroa?

 

Vendo os teus pés na borda já do abismo,

                E o hino, o hino santo,

Feito um treno de angústias e gemidos

E abafados soluços?

 

E o véu da virgindade agora feito

                E talhado em sudário?

E a pompa feita agora saimento?

                E a cruz cheia de tudo?

 

Se eu não hei-de chorar!... Foi em teus braços

                Que dormi, ainda infante,

E, infante, me embalei ao som plangente

                De teus hinos sagrados!

 

Tive, criança loura, por brinquedo

                Jasmins d’essa coroa:

Deram-me sombra aos passos inda trêmulos

                Os teus longos cabelos!

 

E, quando ao seio maternal pendido,

Uma Lei soletrava

Nos olhos d’ela... eu lia nos seus olhos

Todo o teu Evangelho!

 

E, balbuciante ainda, me ensaiava

                Dizendo uma palavra,

Ensinavam-me então os lábios d’ela

                A tua Ave-Maria!

 

Oh saudades! saudades! Bem entendo,

Ó vós que estais chorando,

O que estais a chorar ¾ são as saudades

D’essa imensa poesia!

 

Eu, filho de outros céus e de outros cultos,

                Bem vos entendo o pranto:

E alevando também meus olhos, úmidos

D’esta grande tristeza!

 

Bem vejo como hão-de ir as vossas almas

Descendo na corrente,

Que a leva a Ela ¾ e a vós vos vai levando

                Quando tínheis de santo!

 

Choro ¾ se hei-de chorar! ¾ porque te vejo

                Tão só, tão abatida,

E, Rachel! ouço a voz que chama os filhos...

                Mas eles não respondem!

 

IX

 

E vós, Tronos, ó árvores gigantes!

                Dormi, à vossa sombra,

Das crenças infantis o sono amigo...

                Cobristes-me a inocência!

 

Houve um tempo em que o céu d’estes meus olhos

                Era o dossel de púrpura!

Em que os brilhantes das coroas régias

                Me pareciam astros!

 

E, agora, vejo as pérolas manchadas!

                E está tudo partido!

E há uma voz, que brada a tudo isto:

                “Deu a hora; sumi-vos!”

 

E eles     vão ¾ vai-se a árvore gigante...

                Mas as raízes d’ela

‘Stavam fundas, e arrancam, levantando-se,

                Corações gotejantes!

 

Ó corações fiéis! filhos da honra!

                Vestais do fogo santo!

Eu bem entendo o vosso sacrifício

                E o vosso desespero!

 

Porque é triste, bem triste essa ruína

                ¾ Ruína de dez séculos ¾

e vós tínheis ali a vossa vida,

E todo o vosso sangue!

 

X

 

Paladinos! Espadas de aço buído,

                Corações de ouro fino! ¾

Qye eu vi, em volta de outro Carlos Magno,

                Outros Pares-de-França!

 

Ó lenda de Beleza e Heroísmo,

                Onde li, ajoelhado,

As crônicas e os feitos de outra idade,

                E soletrei as Glórias!

 

Ó valentes! tapai as vossas lágrimas

                Com o punho das espadas!

Caí, como se cai sempre na pugna,

                Dando um sorriso à morte!

 

Venceu-vos, no torneio, espectro estranho!

                Caí... erguendo os olhos

À vossa Dama e ao vosso Deus... beijando

                A cruz da antiga crença!

 

Da trompa de marfim, como Rolando,

                Tirai um som... o último...

Que desperte as saudades d’esses ecos,

                No chão de Roncesvalles!

 

E, agora, acompanhai o saimento,

                ¾ Vossos velhos amigos ¾

servi de guarda-d’onra, ó Paladinos,

                e de escolta ao Passado!

 

XI

 

Passado!! ¾  Eu sei dar pranto a estas tristezas,

                A estes restos saudosos

Do mundo velho. Vós, que estais chorando,

                São belas essas dores!

 

Porque vós por altar, e fé, e crença,

                E sangue, e vida, e tudo...

Tínheis tudo dos olhos d’esse enfermo...

                E ele está condenado!

 

XII

 

Nós damos à saudade o que é do tempo...

                E às cinzas esfriadas

Dos Avós damos honra e saimento...

                ¾ O funeral das lágrimas! ¾

 

depois, avante! Os astros não se extinguem!

                Há céus e espaços novos!

Enterre-se o Passado com piedade...

                Mas o olhar... no Futuro!

 

XIII

 

Se já desaba o teto das Igrejas

                E o dossel d’esses Tronos,

É por que um outro céu maior nos cubra...

                O céu da Liberdade!

1864.

 

 

 

Sonetos

 

Ignoto Deo          

 

Que beleza mortal se te assemelha,

Ó sonhada visão d’esta alma ardente,

Que refletes em mim teu brilho ingente,

Lá como sobre o mar o sol se espelha?

 

O mundo é grande ¾ e esta ânsia me aconselha

A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,

Pelo mundo procuro um Deus clemente,

Mas a ara só lhe encontro... nua e velha...

 

Não é mortal o que eu em ti adoro.

Que és tu aqui? olhar de piedade,

Gota de mel em taça de venenos...

 

Pura essência das lágrimas que choro

E sonho dos meus sonhos! se és verdade,

Descobre-te, visão, no céu ao menos!

 

 

 

Lamento

 

Um dilúvio de luz cai da montanha:

Eis o dia! eis o sol! o esposo amado!

Onde há por toda a terra um só cuidado

Que não dissipe a luz que o mundo banha?

 

Flor a custo medrada em erma penha,

Revolto mar ou golfo ongelado,

Aonde há de ser de Deus tão olvidado

Para quem paz e alívio o céu não tenha?

 

Deus é Pai! Pai de toda a criatura:

E a todo o ser o seu amor assiste:

De seus filhos o mar sempre é lembrado...

 

Ah! se Deus a seus filhos dá ventura

N’esta hora santa... e eu só posso ser triste...

Serei filho, mas filho abandonado!

 

 

 

A. M.C.

 

Pôs-TE  Deus sobre a fronte a mão piedosa:

O que fada o poeta e o soldado

Volveu a ti o olhar, de amor velado,

E disse-te: “vai, filha, sê formosa!”

 

E tu, descendo na onda harmoniosa,

Pousaste n’este solo angustiado,

Estrela envolta n’um clarão sagrado,

Do teu límpido olhar na luz radiosa...

 

Mas eu... posso eu acaso merecer-te?

Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado,

Anjo! deu-te o Senhor um mundo à parte.

 

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,

Sem poder mais... a mim o que me há dado?

Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!

 

 

 

A Santos Valente

 

 

ESTREITA é do prazer na vida a taça;

Largo, como o oceano é largo e fundo,

E como ele em venturas infecundo,

O cális amargoso da desgraça.

 

E contudo nossa alma, quando passa

Incerta peregrina, pelo mundo,

Prazer só pode à vida, amor fecundo,

É com essa esperança que se abraça.

 

É lei de Deus este aspirar imenso...

E contudo a ilusão impôs a vida,

E manda buscar luz e dá-nos treva!

 

Ah! se Deus acendeu um foco intenso

De amor e dor em nós, na ardente lida,

Por que a miragem cria... ou por que a leva?

 

 

 

Tormento do ideal

 

CONHECI a Beleza que não morre

E fiquei triste. Como quem da serra

Mais alta que haja, olhando aos pés a terra

E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

 

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;

Assim eu vi o mundo e o que ele encerra

Perder a cor, bem como a nuvem que erra

Ao pôr-do-sol e sobre o mar discorre.

 

Pedindo à forma, em vão, a idéia pura,

Tropeço, em sombras, na matéria dura,

E encontro a imperfeição de quanto existe.

 

Recebi o batismo dos poetas,

E assentado entre as formas incompletas

Para sempre fiquei pálido e triste.

 

 

 

Aspiração

 

MEUS dias vão correndo vagarosos

Sem prazer e sem dor, e até parece

Que o foco interior já desfalece

E vacila com raios duvidosos.

 

É bela a vida e os anos são formosos,

E nunca ao peito amante o amor falece...

Mas, se a beleza aqui nos aparece,

Logo outra lembra de mais puros gozos.

 

Minh’alma, ó Deus! a outros céus aspira:

Se um momento a prendeu mortal beleza,

É pela eterna pátria que suspira...

 

Porém do pressentir dá-me a certeza,

Dá-me! e sereno, embora a dor me fira,

Eu sempre bendirei esta tristeza!

 

 

 

A Florido Telles

 

SE comparo poder ou ouro ou fama,

Venturas que em si têm oculto o dano,

Com aquele outro afeto soberano,

Que amor se diz é luz de pura chama,

 

Vejo que são bem como arteira dama,

Que sob honesto riso esconde o engano,

E o que a segue, como homem leviano

Que por um vão prazer deixa quem o ama.

 

Nasce do orgulho aquele estéril gozo

E a glória d’ele é cousa fraudulenta,

Como quem na vaidade tem a palma:

 

Tem na paixão seu brilho mais formoso

E das paixões também some-o a tormenta...

Mas a glória do amor... essa vem d’alma!

 

 

 

Salmo   

 

ESPEREMOS em Deus! Ele há tomado

Em suas mãos a massa, inerte e fria

Da matéria impotente e, n’um só dia,

Luz, movimento, ação, tudo lhe há dado.

 

Ele, ao mais pobre de alma, há tributado

Desvelo e amor: ele conduz à via

Segura quem lhe foge e se extravia,

Quem pela noite andava desgarrado.

 

E a mim, que aspiro a ele, a mim, que o amo,

Que anseio por mais vida e maior brilho,

Há de negar-me o termo d’este anseio?

 

Buscou quem o não quis: e a mim, que o chamo,

Há de fugir-me, como a ingrato filho?

O Deus, meu pai e abrigo! espero!... eu creio!

 

 

 

A.M.C.

 

No céu, se existe um céu para quem chora,

Céu, para as mágoas de quem sofre tanto...

Se é lá do amor o foco, puro e santo,

Chama que brilha, mas que não devora...

 

No céu, se uma alma n’esse espaço mora,

Que a prece escuta e enxuga o nosso pranto...

Se há Pai, que estenda sobre nós o manto

Do amor piedoso... que eu não sinto agora...

 

No céu, ó virgem! findarão meus males:

Hei de lá renascer, eu que padeço

Aqui ter só nascido para dores.

 

Ali, ó lírio dos celestes vales!

Tendo seu fim, terão o seu começo,

Para não mais findar, nossos amores.

 

 

 

A João de Deus

 

SE é lei, que rege o escuro pensamento,

Ser vã toda a pesquisa da verdade,

Em vez da luz achar a escuridade,

Ser uma queda nova cada invento:

 

É lei também, embora cru tormento,

Buscar, sempre buscar a claridade,

E só ter como certa realidade

O que nos mostra claro o entendimento.

 

O que há de a alma escolher, em tanto engano?

Se uma hora crê de fé, logo duvida:

Se procura, só acha... o desatino!

 

Só Deus pode acudir em tanto dano:

Esperemos a luz d’uma outra vida,

Seja a terra degredo, o céu destino.

 

 

A Alberto Telles

 

¾ Ao ermita sozinho na montanha

Visita-o Deus e dá-lhe confiança

No mar, o nauta, que o tufão balança,

Espera um sopro amigo que o céu tenha...

 

Só! ¾ Mas quem se assentou em riba estranha,

Longe dos seus, lá tem inda a lembrança;

E Deus deixa-lhe ao menos a esperança

Ao que à noite soluça em erma penha...

 

Só! ¾ Não o é quem na dor, quem nos cansaços,

Tem um laço que o prenda a este fadário,

Uma crença, um desejo... e inda um cuidado...

 

Mas cruzar, com desdém, inertes braços,

Mas passar, entre turbas, solitário,

Isto é ser só, é ser abandonado!

 

 

 

A J. Felix dos Santos

 

SEMPRE o futuro, sempre! e o presente

Nunca! Que seja esta hora em que se existe

De incerteza e de dor sempre a mais triste,

E só farte o desejo de um bem ausente!

 

Ai! Que importa o futuro, se inclemente

Essa hora, em que a esperança nos consiste,

Chega... é presente... e só à dor assiste?...

Assim, qual é a esperança que não mente?

 

Desventura ou delírio?... O que procuro,

Se me foge, é miragem enganosa,

Se me espera, pior, espectro impuro...

 

Assim a vida passa vagarosa:

O presente, a aspirar sempre ao futuro:

O futuro, uma sombra mentirosa.

 

 

 

A. M. C.

 

POR QUE descrês, mulher, do amor, da vida?

Por que esse Hermon transformas em Calvário?

Por que deixas que, aos poucos, do sudário

Te aperte o seio a dobra umedecida?

 

Que visão te fugiu, que assim perdida

Biscas em vão n’este ermo solitário?

Que signo obscuro de cruel fadário

Te faz trazer a fronte ao chão pendida?

 

Nenhum! intacto o bem em ti assiste:

Deus, em penhor, te deu a formosura:

Bênçãos de manda o céu em cada hora.

 

E descrês do viver?... E eu, pobre e triste,

Que só no teu olhar leio a ventura,

Se tu descrês, em que hei-de eu crer agora?

 

 

 

A Alberto Sampaio

 

NÃO me fales de glória: é de outro o altar

Onde queimo piedoso o meu incenso,

E animado de fogo mais intenso,

Da fé mais viva, vou sacrificar.

 

A glória! pois que há n’ela que adorar?

Fumo, que sobre o abismo anda suspenso...

Que vislumbre nos dá do amor imenso?

Esse amor que ventura faz gozar?

 

Há outro mais perfeito, único e eterno,

Farol entre ondas tormentosas firme,

De imoto brilho, poderoso e terno...

 

Só esse hei de buscar, e confundir-me

Na essência do amor puro, sempiterno...

Quero só n1esse fogo consumir-me!

 

 

 

A Germano Meyrelles

 

Só males são reais, só dor existe:

Prazeres só os gera a fantasia:

Em nada, um imaginar, o bem consiste,

Anda o mal em cada hora e instante e dia.

 

Se buscamos o que é, o que devia

Por natureza ser não nos assiste;

Se fiamos n’um bem, que a mente cria,

Que outro remédio há aí senão ser triste?

 

Oh! quem tanto pudera que passasse

A vida em sonhos só, e nada vira...

Mas, no que se não vê, labor perdido!

 

Quem fora tão ditoso que olvidasse...

Mas nem seu mal com ele então dormira,

Que sempre o mal pior é ter nascido!

 

 

 

A um crucifixo

 

Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços

E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente,

O horizonte futuro e viste, em tua mente,

Um alvo ideal banhar esses espaços!

 

Por que morreu sem eco o eco de teus passos,

E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?

Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que descrente

Arrojaras de novo á campa os membros lassos...

 

Agora, como então, nas mesma terra erma,

A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,

Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário...

 

E agora, como então, viras o mundo exangue,

E ouviras perguntar ¾ de que serviu o sangue

Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? ¾

 

 

 

Desesperança

 

VAI-TE na asa negra da desgraça,

Pensamento do amor, sombra d’uma hora,

Que abracei com delírio, vai-te, embora,

Como nuvem que o vento impele... e passa.

 

Que arrojemos de nós quem mais se abraça,

Com mais ânsia, à nossa alma e quem devora!

D’essa alma o sangue, com que mais vigora,

Como amigo comungue à mesma taça!

 

Que seja sonho apenas a esperança,

Enquanto a dor eternamente assiste,

E só engane nunca a desventura!

 

Se em silêncio sofrer fora vingança!...

Envolve-te em ti mesma, ó alma triste,

Talvez sem esperança haja ventura!

 

 

 

Beatrice

 

DEPOIS que dia a dia, aos poucos desmaiando,

Se foi a nuvem d’ouro ideal que eu vira erguida;

Depois que vi descer, baixar no céu da vida

Cada estrela e fiquei nas trevas laborando:

 

Depois que sobre o peito os braços apertando

Achei o vácuo só, e tive a luz sumida

Sem ver já onde olhar, e em todo vi perdida

A flor do meu jardim, que eu mais andei regando:

Retirei os meus pés da senda dos abrolhos,

Virei-me a outro céu, nem ergo já meus olhos

Senão à estrela ideal, que a luz d’amor contém...

 

Não temas pois ¾ Oh, vem! O céu é puro, e calma

E silenciosa a terra, e doce o mar, e a alma...

A alma! não a vês tu? mulher, mulher! oh, vem!

 

 

 

Amor vivo

 

AMAR! mas d’um amor que tenha vida...

Não sejam sempre tímidos arpejos,

Não sejam só delírios e desejos

D’uma doída cabeça escandecida...

 

Amor que viva e brilhe! luz fundida

Que penetre o meu ser ¾ e não só beijos

Dados no ar ¾ delírios e desejos ¾

Mas amor... dos amores que têm vida...

 

Sim, vivo e quente! e já a luz do dia

Não virá dissipá-lo nos meus braços

Como névoa da vaga fantasia...

 

Nem murchará o sol à chama erguida...

Pois que podem os astros dos espaços

Contra uns débeis amores.. se têm vida?

 

 

 

Visita

 

ADORNOU o meu quarto a flor do cardo,

Perfumei-o de almíscar recendente;

Vesti-me com púrpura fulgente,

Ensaiando meus cantos, como um bardo:

 

Ungi as mãos e a face com o nardo

Crescido nos jardins do Oriente,

A receber com pompa, dignamente,

Misteriosa visita a quem aguardo.

 

Mas que filha de reis, que anjo ou que fada

Era essa que assim a mim descia,

Do meu casebre à úmida pousada?...

 

Nem princesas, nem fadas. Era, flor,

Era a tua lembrança que batia

Às portas de ouro e luz do meu amor!

 

PEQUENINA       

 

EU bem sei que te chamam pequenina

E tênue como o véu solto na dança,

Que és no Juízo apenas a criança,

Pouco mais, nos vestidos, que a menina...

 

Que és o regato de água mansa e fina,

A folhinha do til que se balança,

O peito que em correndo logo cansa,

A fronte que ao sofrer logo se inclina...

 

Mas, filha, lá nos montes onde andei,

Tanto me enchi de angústia e de receio

Ouvindo do infinito os fundos ecos,

 

Que não quero imperar nem já ser rei

Senão tendo meus reinos em teu seio

E súditos, criança, em teus bonecos!

 

 

 

A Sulamita

 

Ego dormio, et cor meum vigilat

Cântico dos cânticos

 

QUEM anda lá fora, pela vinha,

Na sombra do luar meio encoberto,

Sutil nos passos e espreitando incerto,

Com brando respirar de criancinha?

 

Um sonho me acordou... não sei que tinha...

Pareceu-me senti-lo aqui tão perto...

Seja alta noite, seja n’um deserto,

Quem ama até em sonhos adivinha...

 

Moças da minha terra, ao meu amado

Correi, dizei-lhe que eu dormia agora,

Mas que pode ir contente e descansado,

 

Pois se tão cedo adormeci, conforme

É meu costume, olhai, dormia embora,

Porque o meu coração é que não dorme...

 

 

 

Sonho Oriental

 

SONHO-ME às vezes rei, n’alguma ilha,

Muito longe, nos mares do Oriente,

Onde a noite é balsâmica e fulgente

E a lua cheia sobre as águas brilha...

 

O aroma da magnólia e da baunilha

Paira no ar diáfano e dormente...

Lambe a orla dos bosques, vagamente,

O mar com finas ondas de escumilha...

 

E enquanto eu na varanda de marfim

Me encosto, absorto n’um cismar sem fim,

Tu, meu amor, divagas ao luar,

 

Do profundo jardim pelas clareiras,

Ou descansas debaixo das palmeiras,

Tendo aos pés um leão familiar.

 

 

 

Quinze anos

 

EU amo a vasta sombra das montanhas,

Que estendem sobre os largos continentes

Os seus braços de rocha negra, ingentes,

Bem como braços colossais de aranhas.

 

D’ali o nosso olhar vê tão estranhas

Cousas, por esse céu! e tão ardentes

Visões, lá n’esse mar de ondas trementes!

E às estrelas, d’ali, vê-as tamanhas!

 

Amo a grandeza misteriosa e vasta...

A grande idéia, como a flor e o viço

Da árvore colossal que nos domina...

 

Mas tu, criança, sê tu boa... e basta:

Sabe amar e sorrir... é pouco isso?

Mas a ti só te quero pequenina!

 

 

 

Idílio

 

QUANDO nós vamos ambos, de mãos dadas,

Colher nos vales lírios e boninas,

E galgamos d’um fôlego as colinas

Dos rócios da noite inda orvalhadas:

 

Ou, vendo o mar, das ermas cumiadas,

Contemplamos as nuvens vespertinas,

Que parecem fantásticas ruínas

Ao longe, no horizonte, amontoadas:

 

Quantas vezes, de súbito, emudeces!

Não sei que luz no teu olhar flutua;

Sinto tremer-te a mão, e empalideces...

 

O vento e o mar murmuram orações.

E a poesia das cousas se insinua

Lenta e amorosa em nossos corações.

 

 

 

Noturno

 

ESPÍRITO que passas, quando o vento

Adormece no mar e surge a lua,

Filho esquivo da noite que flutua,

Tu só entendes o meu tormento...

 

Como um canto longínquo ¾ triste e lento ¾

Que voga e sutilmente se insinua,

Sobre o meu coração, que tumultua,

Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...

 

A ti confio o sonho em que me leva

Um instinto de luz, rompendo a treva,

Buscando, entre visões, o eterno Bem.

 

E tu entendes o meu mal sem nome,

A febre de Ideal, que me consome,

Tu só, Gênio da noite, e mais ninguém!

 

 

 

Sonho

 

SONHEI ¾ nem sempre o sonho é cousa vã ¾

Que um vento me levava arrebatado,

Através d’esse espaço constelado

Onde uma aurora eterna ri louçã...

 

As estrelas, que guardam a manhã,

Ao verem-me passar triste e calado,

Olhavam-me e diziam com cuidado:

Onde está, pobre amigo, a nossa irmã?

 

Mas eu baixava os olhos, receoso

Que traíssem as grandes mágoas, minhas,

E passava furtivo e silencioso,

 

Nem ousava contar-lhes, às estrelas,

Contar às tuas puras irmãzinhas

Quanto és falsa, meu bem, e indigna d’elas!

 

 

 

Amaritudo

 

Só por ti astro ainda e sempre oculto,

Sombra do Amor e sonho da Verdade,

Divago eu pelo mundo e em ansiedade

Meu próprio coração em mim sepulto.

 

De templo em templo, em vão, levo o meu culto,

Levo as flores d’uma íntima piedade.

Vejo os votos da minha mocidade

Receberem somente escárnio e insulto.

 

À beira do caminho me assentei...

Escutarei passar o agreste vento,

Exclamando: assim passe quanto amei!

 

Oh minh’alma, que creste na virtude!

O que será velhice e desalento,

Se isto se chama aurora e juventude?

 

 

 

Abnegação

 

CHOVAM lírios e rosas no teu colo!

Chovam hinos de glória na tua alma!

Hinos de glória e adoração e calma,

Meu amor, minha pomba e meu consolo!

 

Dê-te estrelas o céu, flores o solo,

Cantos e aroma o ar e sombra a palma,

E quando surge a lua e o mar se acalma,

Sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!

 

E nem sequer te lembres de que eu choro...

Esquece até, esquece, que te adoro...

E ao passares por mim, sem que me olhes,

 

Possam das minhas lágrimas cruéis

Nascer sob os teu pés flores fiéis,

Que pises distraída ou rindo esfolhes!

 

 

 

A.M.C.

 

NÃO busco n’esta vida glória ou fama:

Das turbas que me importa o vão ruído?

Hoje, deus... e amanhã, já esquecido

Como esquece o clarão de extinta chama!

 

Foco incerto, que a luz já mal derrama,

Tal é essa ventura: eco perdido,

Quanto mais se chamou, mais escondido

Ficou inerte e mudo à voz que o chama.

 

D’essa coroa é cada flor um engano,

É miragem em nuvem ilusória,

É mote vão de fabuloso arcano.

 

Mas coroa-me tu; na fronte inglória

Cinge-me tu o louro soberano...

Verás, verás então se amo essa glória!

 

 

 

Ad Amicos

 

EM vão lutamos. Como névoa baça,

A incerteza das cousas nos envolve.

Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,

Nas suas próprias redes se embaraça.

 

O pensamento, que mil planos traça,

É vapor que se esvai e se dissolve;

E a vontade ambiciosa, que resolve,

Como onda entre rochedos se espedaça.

 

Filhos do Amor, nossa alma é como um hino

À luz, à liberdade, ao bem fecundo,

Prece e clamor d’um pressentir divino;

 

Mas n’um deserto só, árido e fundo,

Ecoam nossas vozes, que o Destino

Paira mudo e impassível sobre o mundo.

 

 

 

Aparição

 

UM dia, meu amor, (e talvez cedo,

Que já sinto estalar-me o coração!)

Recordarás com dor e compaixão

As ternas juras que te fiz a medo...

 

Então, da casta alcova no segredo,

Da lamparina ao trêmulo clarão,

Ante ti surgirei, espectro vão,

Larva fugida ao sepulcral degredo...

E tu, meu anjo ao ver-me, entre gemidos

E aflitos ais, estenderás os braços

Tentando segurar-te aos meus vestidos...

 

¾ “Ouve! espera!” ¾ Mas eu, sem te escutar,

Fugirei, como um sonho, aos teus abraços

E como fumo sumir-me-ei no ar!

 

 

 

Acordando

 

EM sonho, às vezes, se o sonhar quebranta

Este meu vão sofrer, esta agonia,

Como sobe cantando a cotovia,

Para o céu a minh’alma sobe e canta.

 

Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,

Que ao mundo traz piedosa mais um dia...

Canta o enlevo das cousas, a alegria

Que as penetra de amor e as alevanta...

 

Mas, de repente, um vento úmido e frio

Sopra sobre o meu sonho: um calafrio

Me acorda. ¾ A noite é negra e muda: a dor

 

Cá vela, como d’antes, ao meu lado..

Os meus cantos de luz, anjo adorado,

São sonho só, e sonho o meu amor!

 

 

 

Mãe...

 

MÃE ¾ que adormente este viver dorido.

E me vele esta noite de tal frio,

E com as mãos piedosas até o fio

Do meu pobre existir, meio partido...

 

Que me leve consigo, adormecido,

Ao passar pelo sítio mais sombrio...

Me banhe e lave a alma lá no rio

Da clara luz do seu olhar querido...

 

Eu dava o meu orgulho de homem ¾ dava

Minha estéril ciência, sem receio,

E em débil criancinha me tornava,

 

Descuidada, feliz, dócil também,

Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,

Se tu fosses, querida, a minha mãe!

 

 

 

Na capela

 

NA capela, perdida entre a folhagem,

O Cristo lá no fundo agonizava...

Oh! como intimamente se casava

Com minha dor a dor d’aquela imagem!

 

Filhos ambos do amor, igual miragem

Nos roçou pela fronte, que escaldava...

Igual traição, que o afeto mascarava,

Nos deu suplício às mãos da vilanagem...

 

E agora, ali, enquanto da floresta

A sombra se infiltrava lenta e mesta,

Vencidos ambos, mártires do Fado,

 

Fitávamo-nos mudos ¾ dor igual! ¾

Nem, dos dois, saberei dizer-vos qual

Mais pálido, mais triste e mais cansado...

 

 

 

Velut Umbra

 

FUMO e cismo. Os castelos do horizonte

Erguem-se, à tarde, e crescem, de mil cores,

E ora espalham no céu vivos ardores,

Ora fumam, vulcões de estranho monte...

 

Depois, que formas vagas vêm defronte,

Que parecem sonhar loucos amores?

Almas que vão, por entre luz e horrores,

Passando a barca d’esse aéreo Aqueronte...

 

Apago o meu charuto quando apagas

Teu facho, oh sol... ficamos todos sós...

É n’esta solidão que me consumo!

 

Oh nuvens do Ocidente, oh cousas vagas,

Bem vos entendo a cor, pois, como a vós,

Beleza e altura se me vão em fumo!

 

 

 

Mea Culpa

 

NÃO duvido que o mundo no seu eixo

Gire suspenso e volva em harmonia;

Que o homem suba e vá da noite ao dia,

E o homem vá subindo inseto e seixo.

Não chamo a Deus tirano, nem me queixo,

Nem chamo ao céu da vida noite fria:

Não chamo à existência hora sombria;

Acaso, à ordem; nem à lei desleixo.

 

A Natureza é minha mãe ainda...

É minha mãe... Ah, se eu à face linda

Não sei sorrir; se estou desesperado;

 

Se nada há que me aquela esta frieza;

Se estou cheio de fel e de tristeza...

É de crer que só eu seja o culpado!

 

 

 

O Palácio da ventura         

 

SONHO que sou um cavaleiro andante.

Por desertos, por sóis, por noite escura,

Paladino do amor, busco anelante

O palácio encantado da Ventura!

 

Mas já desmaio, exausto e vacilante,

Quebrada a espada já, tora a armadura...

 E eis que súbito o avisto, fulgurante

Na sua pompa e aérea formosura!

 

Com grandes golpes bato à porta e brado:

Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...

Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais!

 

Abrem-se as portas d’ouro, com fragor...

Mas dentro encontro só, cheio de dor,

Silêncio e escuridão ¾ e nada mais!

 

 

 

Jura

 

PELAS rugas da fronte que medita...

Pelo olhar que interroga ¾ e não vê nada...

Pela miséria e pela mão gelada

Que apaga a estrela que nossa alma fita...

 

Pelo estertor da chama que crepita

No último arranco d’uma luz minguada...

Pelo grito feroz da abandonada

Que num momento de amante fez maldita...

 

Por quanto há de fatal, por quanto há misto

De sombra e de pavor sob uma lousa...

Oh pomba meiga, pomba da esperança!

 

Eu te juro, menina, tenho visto

Cousas terríveis ¾ mas jamais vi cousa

Mais feroz do que um riso de criança!

 

 

 

Ideal

 

AQUELA, que eu adoro, não é feita

De lírios nem de rosas purpurinas,

Não tem as formas lânguidas, divinas

Da antiga Vênus de cintura estreita...

 

Não é a Circe, cuja mão suspeita

Compõe filtros mortais entre ruínas,

Nem a Amazona, que se agarra às crinas

D’um corcel e combate satisfeita...

 

A mim mesmo pergunto, e não atino

Com o nome que dê a essa visão,

Que ora amostra ora esconde o meu destino...

 

É como uma miragem que entrevejo,

Ideal, que nasceu da solidão,

Nuvem, sonho impalpável do Desejo...

 

 

 

Enquanto outros combatem

 

EMPUNHASSE eu a espada dos valentes!

Impelisse-me a ação, embriagado,

Por esses campos onde a Morte e o Fado

Dão a lei aos reis trêmulos e às gentes!

 

Respirariam meus pulmões contentes

O ar de fogo do circo ensangüentado...

Ou caíra radioso, amortalhado

Na fulva luz dos gládios reluzentes!

 

Já não veria dissipar-se a aurora

De meus inúteis anos, sem uma hora

Viver mais que de sonhos e ansiedade!

 

Já não veria em minhas mãos piedosas

Desfolhar-se, uma a uma, as tristes rosas

D’esta pálida e estéril mocidade!

 

 

 

Despodency

 

DEIXÁ-LA ir, a ave, a quem roubaram

Ninho e filhos e tudo, sem piedade...

Que a leve o ar sem fim da soledade

Onde as asas partidas a levaram...

 

Deixá-la ir a vela, que arrojaram

Os tufões pelo mar, na escuridade,

Quando a noite surgiu da imensidade,

Quando os ventos do Sul se levantaram...

 

Deixá-la ir, a alma lastimosa,

Que perdeu a fé e paz e confiança,

À morte queda, à morte silenciosa...

 

Deixá-la ir, a nota desprendida

D’um canto extremo... e a última esperança...

E a vida... e o amor... deixá-la ir, a vida!

 

 

 

Das unnennbare

 

OH quimera, que passas embalada

Na onda  dos meus sonhos dolorosos,

E roças co’os vestidos vaporosos

A minha fronte pálida e cansada!

 

Leva-te o ar da noite sossegada...

Pergunto em vão, com olhos ansiosos,

Que nome é que te dão os venturosos

No teu país, misteriosa fada!

 

Mas que destino o meu! e que luz baça

A d’esta aurora, igual à do sol posto,

Quando só nuvem lívida esvoaça!

 

Que nem a noite uma ilusão consinta!

Que só de longe e em sonhos te pressinta...

E nem em sonhos possa ver-te o rosto!

 

 

 

Metempsychose

 

ARDENTES filhas do prazer, dizei-me!

Vossos sonhos quais são, depois da orgia?

Acaso nunca a imagem fugidia

Do que fostes, em vós se agita e freme?

 

N’outra vida e outra esfera, aonde geme

Outro vento, e se acende um outro dia,

Que corpo tínheis? que matéria fria

Vossa alma incendiou, com fogo estreme?

 

Vós fostes nas florestas bravas feras,

Arrastando, leoas ou panteras,

De dentadas de amor um corpo exangue...

 

Mordei pois esta carne palpitante,

Feras feitas de gaze flutuante,

Lobas! leoas! sim, bebei meu sangue!

 

 

 

Uma amiga

 

AQUELES, que eu amei, não sei que vento

Os dispersou no mundo, que os não vejo...

Estendo os braços e nas trevas beijo

Visões que à noite evoca o sentimento...

 

Outros me causam mais cruel tormento

Que a saudade dos mortos... que eu invejo...

Passam por mim, mas como que têm pejo

Da minha soledade e abatimento!

 

D’aquela primavera venturosa

Não resta uma flor só, uma só rosa...

Tudo o vento varreu, queimou o gelo!

 

Tu só foste fiel ¾ tu, como d’antes,

Inda volves teus olhos radiantes...

Para ver o meu mal... e escarnecê-lo!

 

 

 

A uma mulher

 

PARA tristezas, para dor nasceste.

Podia a sorte pôr-te o berço estreito

N’algum palácio e ao pé de régio leito,

Em vez d’este areal onde cresceste:

 

Podia abrir-te as flores ¾ com que veste

As ricas e as felizes ¾ n’esse peito;

Fazer-te... o que a Fortuna há sempre feito...

Terias sempre a sorte que tiveste!

 

Tinhas de ser assim... Teus olhos fitos,

Que não são d’este mundo e onde eu leio

Uns mistérios tão tristes e infinitos,

Tia voz rara e esse ar vago e esquecido,

Tudo me diz a mim, e assim o creio,

Que para isto só tinhas nascido!

 

 

 

Voz do outono

 

OUVE tu, meu cansado coração,

O que diz a voz da Natureza:

¾ “Mais te valera, nu e sem defesa,

Ter nascido em aspérrima soidão,

 

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão

Frio e cruel da mais cruel devesa,

Do que embalar-te a Fada da Beleza,

Como embalou, no berço da Ilusão!

 

Mais valera à tua alma visionária

Silenciosa e triste ter passado

Por entre o mundo hostil e a turba vária,

 

(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)

com ódio e raiva e dor... que ter sonhado

os sonhos ideais que tu sonhaste!” ¾

 

 

 

Sepultura romântica

 

ALI, onde o mar quebra, n’um cachão

Rugidor e monótono, e os ventos

Erguem pelo areal os seus lamentos,

Ali se há-de enterrar meu coração.

 

Queimem-mo os sóis da adusta solidão

Na fornalha do estio, em dias lentos;

Depois, no inverno, os sopros violentos

Lhe revolvam em torno o árido chão...

 

Até que se desfaça e, já tornado

Em impalpável pó, seja levado

Nos turbilhões que o vento levantar...

 

Com suas lutas, seu cansado anseio,

Seu louco amor, dissolva-se no seio

D’esse infecundo, d’esse amargo mar!

 

 

 

A Idéia

 

I

 

POIS que os deuses antigos e os antigos

Divinos sonhos por esse ar se somem,

E à luz do altar da fé, em Templo ou Dólmem,

A apagaram os ventos inimigos;

 

Pois que o Sinai se enubula e os seus pascigos,

Secos à míngua de água, se consomem,

E os profetas d’outrora todos dormem

Esquecidos, em terra sem abrigo;

 

Pois que o céu se fechou e já não desce

Na escada de Jacó ( na de Jesus!)

Um só anjo, que aceite a nossa prece;

 

É que o lírio da Fé já não renasce:

Deus tapou com a mão a sua luz

E ante os homens velou a sua face!

 

II

 

PÁLIDO Cristo, oh condutor divino!

A custo agora a tua mão tão doce

Incerta nos conduz, como se fosse

Teu grande coração perdendo o tino...

 

A palavra sagrada do Destino

Na boca dos oráculos secou-se:

A luz da sarça ardente dissipou-se

Ante os olhos do vago peregrino!

 

Ante os olhos dos homens ¾ porque o mundo

Desprendido rolou das mãos de Deus,

Como uma cruz das mãos d’um moribundo!

 

Porque já se não lê seu nome escrito

Entre os astros... e os astros, como ateus,

Já não querem mais lei que o infinito.

 

III

 

FORÇA é pois ir buscar outro caminho!

Lançar o arco de outra nova ponte

Por onde a alma passe ¾ e um alto monte

Aonde se abra à luz o nosso ninho.

 

Se nos negam aqui o pão e o vinho,

Avante! é largo, imenso esse horizonte...

Não, não se fecha o mundo!  e além, defronte,

E em toda a parte há luz, vida e carinho!

 

Avante! os mortos ficarão sepultos...

Mas os vivos que sigam, sacudindo

Como o pó da estrada os velhos cultos!

 

Doce e brando era o seio de Jesus...

Que importa? Havemos de passar, seguindo,

Se além do seio d’ele houver mais luz!

 

IV

 

CONQUISTA pois sozinho o teu futuro,

Já que os celestes guias te hão deixado,

Sobre uma terra ignota abandonado,

Homem ¾ proscrito rei ¾ mendigo escuro!

 

Se não tens que esperar do céu (tão puro,

Mas tão cruel!) e o coração magoado

Sentes já de ilusões desenganado,

Das ilusões do antigo amor perjuro;

 

Ergue-te, então, na majestade estóica

D’uma vontade solitária e altiva,

N’um esforço supremo de alma heróica!

 

Faz um templo dos muros da cadeia,

Prendendo a imensidade eterna e viva

No círculo de luz da tua Idéia!

 

V

 

MAS  a Idéia quem é? quem foi que a viu,

Jamais, a essa encoberta peregrina?

Quem lhe beijou a sua mão divina?

Com seu olhar de amor quem se vestiu?

 

Pálida imagem, que a água de algum rio,

Refletindo, levou... incerta e fina

Luz, que mal bruxuleia pequenina...

Nuvem, que trouxe o ar, e o ar sumiu...

 

Estendei, estendei-lhe os vossos braços,

Magros da febre d’um sonhar profundo,

Vós todos que a seguis n’esses espaços!

 

E entanto, oh alma triste, alma chorosa,

Tu não tens outra amante em todo o mundo

Mais que essa fria virgem desdenhosa!

 

VI

 

OUTRA amante não há! não há na vida

Sombra a cobrir melhor nossa cabeça,

Nem bálsamo mais doce, que adormeça

Em nós a antiga, a secular ferida!

 

Quer fuja esquiva, ou se ofereça erguida,

Como quem sabe mar e amar confessa,

Quer nas nuvens se esconda ou apareça,

Será sempre ela a esposa prometida!

 

Nossos desejos para ti, oh fria,

Se erguem, bem como os braços do proscrito

Para as bandas da pátria, noite e dia.

 

Podes fugir... nossa alma, delirante,

Seguir-te-á através do infinito,

Até voltar contigo, triunfante!

 

VII

 

OH! o noivado bárbaro! o noivado

Sublime! aonde os céus, os céus ingentes,

Serão leito de amor, tendo pendentes

Os astros por dossel e cortinado!

 

As bodas do Desejo, embriagado

De ventura afinal! visões ferventes

De quem nos braços vai de ideais ardentes

Por espaços sem termo arrebatado!

 

Lá, por onde se perde a fantasia

No sonho da beleza; lá, aonde

A noite tem mais luz que o nosso dia;

 

Lá, no seio da eterna claridade,

Aonde Deus à humana voz responde;

É que te havemos de abraçar, Verdade!

 

VIII

 

LÁ! Mas aonde é lá! aonde? ¾ Espera,

Coração indomado! o céu, que anseia

A alma fiel, o céu, o céu da Idéia,

Em vão o buscas n’essa imensa esfera!

 

O espaço é mudo: a imensidade austera

Debalde noite e dia se incendeia...

Em nenhum astro, em nenhum sol se alteia

A rosa ideal da eterna primavera!

 

O Paraíso e o templo da Verdade,

Oh mundos, astros, sóis, constelações!

Nenhum de vós o tem na imensidade...

 

A Idéia, o summo Bem, o Verbo, a Essência

Só se revela aos homens e às nações

No céu incorrutível da Consciência!

 

 

 

A um crucifixo

 

Lendo, passados 12 anos, o soneto da parte 1ª que tem o mesmo título

 

NÃO se perdeu teu sangue generoso,

Nem padeceste em vão, quem quer que foste,

Plebeu antigo, que amarrado ao poste

Morreste como vil e faccioso.

 

D’esse sangue maldito e ignominioso

Surgiu armada uma invencível hoste...

Paz aos homens e guerra aos deuses! ¾ pôs-te

Em vão sobre um altar o vulgo ocioso...

 

Do pobre que protesta foste a imagem:

Um povo em ti começa, um homem novo:

De ti data essa trágica linhagem.

 

Por isso nós, a Plebe, ao pensar n’isto,

Lembraremos, herdeiros d’esse povo,

Que entre nossos avós se conta Cristo.

 

 

 

Diálogo

 

 A CRUZ dizia à terra onde assentava,

Ao vale obscuro, ao monte áspero e mudo:

¾ Que és tu, abismo e jaula, aonde tudo

Vive na dor e em luta cega e brava?

 

Sempre em trabalho, condenada escrava,

Que fazes tu de grande e bom, contudo?

Resignada, és só lodo informe e rudo;

Revoltosa, és só fogo e hórrida lava...

 

Mas a mim não há alta e livre serra

Que me possa igualar!... amor, firmeza

Sou eu só: sou a paz, tu és a guerra!

 

Sou o espírito, a luz!... tu és tristeza,

Oh lodo escuro e vil! ¾ Porém a terra

Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza!

 

 

 

Mais luz!

(A Guilherme de Azevedo)

 

AMEM a noite os magros crapulosos,

E os que sonham com virgens impossíveis,

E os que se inclinam, mudos e impassíveis,

À borda dos abismos silenciosos...

 

Tu, lua, com teus raios vaporosos,

Cobre-os, tapa-os e torna-os insensíveis,

Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis,

Como aos longos cuidados dolorosos!

 

Eu amarei a santa madrugada,

E o meio-dia, em vida refervendo,

E a tarde rumorosa e repousada.

 

Viva e trabalhe em plena luz: depois,

Seja-me dado ainda ver, morrendo,

O claro sol, amigo dos heróis!

 

 

 

Tese e antítese

 

I

 

JÁ não sei o que vale a nova idéia,

Quando a vejo nas ruas desgrenhada,

Torva no aspecto, à luz da barricada,

Como bacante após lúbrica ceia...

 

Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;

Respira fumo e fogo embriagada:

A deusa de alma vasta e sossegada

Ei-la presa das fúrias de Medéia!

 

Um século irritado e truculento

Chama à epilepsia pensamento,

Verbo ao estampido de pelouro e obus...

 

Mas a idéia é n’um mundo inalterável,

N’um cristalino céu, que vive estável...

Tu, pensamento, não és fogo, és luz!

 

II

 

N’UM céu intemerato e cristalino

Pode habitar talvez um Deus distante,

Vendo passar em sonho cambiante

O Ser, como espetáculo divino.

 

Mas o homem, na terra onde o destino

O lançou, vive e agita-se incessante:

Enche o ar da terra o seu pulmão possante,,,

Cá da terra blasfema ou ergue um hino...

 

A idéia encarna em peitos que palpitam:

O seu pulsar são chamas que crepitam,

Paixões ardentes como vivos sóis!

 

Combatei pois na terra árida e bruta,

Té que a revolva o remoinhar da luta,

Té que a fecunde o sangue dos heróis!

 

 

 

Justitia Mater

 

NAS florestas solenes há o culto

Da eterna, íntima força primitiva:

Na serra, o grito audaz da alma cativa,

Do coração, em seu combate inulto:

 

No espaço constelado passa o vulto

De inominado Alguém, que os sóis aviva:

No mar ouve-se a voz grave e aflitiva

D’um Deus que luta, poderoso e inculto.

 

Mas nas negras cidades, onde solta

Se ergue, de sangue madida, a revolta,

Como incêndio que um vento bravo atiça,

 

Há mais alta missão, mais alta glória:

O combater, à grande luz da História,

Os combates eternos da Justiça!

 

 

 

Palavras d´um certo morto

 

HÁ mil anos, e mais, que aqui estou morto,

Posto sobre um rochedo à chuva e ao vento:

Não há como eu espectro macilento,

Nem mais disforme que eu nenhum aborto...

 

Só o espírito vive: vela absorto

N’um fixo, inexorável pensamento:

“Morto, enterrado em vida!” o meu tormento

É isto só... do resto não me importo...

 

Que vivi sei-o bem... mas foi um dia,

Um dia só ¾ no outro, a Idolatria

Deu-me um altar e um culto... ai! adoraram-me,

 

Como se eu fosse alguém! como se a Vida

Pudesse ser alguém! ¾ logo em seguida

Disseram que era um Deus... e amortalharam-me!

 

 

 

A um poeta

Surge et ambula

 

TU, que dormes, espírito sereno,

Posto à sombra dos cedros seculares,

Como um levita à sombra dos altares,

Longe da luta e do fragor terreno,

 

Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,

Afugentou as larvas tumulares...

Para surgir do seio d’esses mares,

Um mundo novo espera só um aceno...

 

Escuta! é a grande voz das multidões!

São teus irmãos, que se erguem! são canções...

Mas de guerra... e são vozes de rebate!

 

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,

E dos raios de luz do sonho puro,

Sonhador, faz espada de combate!

 

 

 

Hino à razão

 

RAZÃO, irmã do Amor e da Justiça,

Mais uma vez escuta a minha prece.

É a voz d’um coração que te apetece,

D’uma alma livre, só a ti submissa.

 

Por ti é que a poeira movediça

De astros e sóis e mundos permanece;

E é por ti que a virtude prevalece,

E a flor do heroísmo medra e viça.

 

Por ti, na arena trágica, as noções

Buscam a liberdade, entre clarões;

E os que olham o futuro e cismam, mudos,

 

Por ti, podem sofrer e não se abatem,

Mãe de filhos robusto, que combatem

Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

 

 

 

Homo

 

NENHUM de vós certo me conhece,

Astros do espaço, ramos do arvoredo,

Nenhum adivinhou o meu segredo,

Nenhum interpretou a minha prece...

 

Ninguém sabe quem sou... e mais, parece

Que há dez mil anos já, neste degredo,

Me vê passar o mar, vê-me o rochedo

E me contempla a aurora que alvorece...

 

Sou um parto da Terra monstruoso;

Do húmus primitivo e tenebroso

Geração casual, sem pai nem mãe...

 

Misto infeliz de trevas e de brilho,

Sou talvez Satanás; ¾ talvez um filho

Bastardo de Jeová; ¾ talvez ninguém!

 

 

 

Disputa em família

Dixit insipiens in corde suo: non est Deus

 

I

 

SAI das nuvens, levanta a fronte e escuta

O que dizem teus filho rebelados,

Velho Jeová de longa barba hirsuta,

Solitário em teus Céus acastelados:

 

¾ Cessou o império enfim da força bruta!

Não sofreremos mais, emancipados,

O tirano, de mão tenaz e astuta,

Que mil anos nos trouxe arrebanhados!

 

“Enquanto tu dormias impassível,

topamos no caminho a liberdade

Que nos sorriu com gesto indefinível...

 

“Já provamos os frutos da verdade...

Ó Deus grande, ó Deus forte, ó Deus terrível,

Não passas d’uma vã banalidade! ¾

 

II

 

Mas o velho tirano solitário,

De coração austero e endurecido,

Que um dia, de enjoado ou distraído,

Deixou matar seu filho no Calvário,

 

Sorriu com rir estranho, ouvindo o vário

Tumultuoso coro e alarido

Do povo insipiente, que atrevido,

Erguia a voz em grita ao seu sacrário:

 

¾ Vanitas vanitatum! (disse). É certo

Que o homem vão medita mil mudanças,

Sem achar mais do que o erro e desacerto.

 

“Muito antes de nascerem vossos pais

D’um barro vil, ridículas crianças,

Sabia eu tudo isso... e muito mais! ¾

 

 

 

Mors Liberatrix

(A Bulhão Pato)

 

NA tua mão, sombrio cavaleiro,

Cavaleiro vestido de armas pretas,

Brilha uma espada feita de cometas,

Que rasga a escuridão, como um luzeiro,

 

Caminhas no teu curso aventureiro,

Todo envolto na noite que projetas...

Só o gládio de luz com fulvas betas

Emerge do sinistro nevoeiro.

 

¾ “Se esta espada que empunho é coruscante,

(Responde o negro cavaleiro-andante)

É porque esta é a espada da Verdade,

 

Firo mas salvo... Prostro e desbarato,

Mas consolo... Subverto, mas resgato...

E, sendo a Morte, sou a liberdade.”

 

 

 

O Inconsciente

 

O ESPECTRO familiar que anda comigo,

Sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto,

Que umas vezes encaro com desgosto

E outras muitas ansioso espreito e sigo,

 

É um espectro mudo, grave, antigo,

Que parece a conversas mal disposto...

Ante esse vulto, ascético e composto

Mil vezes abro a boca... e nada digo.

 

Só uma vez ousei interrogá-lo:

“Quem és (lhe perguntei com grande abalo)

fantasma a quem odeio e a quem amo?”

 

¾ “Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos,

Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos...

Mas eu por mim não sei como me chamo...”

 

 

 

Mors-amor

(A Luiz de Magalhães)

 

ESSE negro corcel, cujas passadas

Escuto em sonhos, quando a sombra desce,

E, passando a galope, me aparece

Da noite nas fantásticas estradas,

 

D’onde vem ele? Que regiões sagradas

E terríveis cruzou, que assim parece

Tenebrosos e sublime, e lhe estremece

Não sei que horror nas crinas agitadas?

 

Um cavaleiro de expressão potente,

Formidável, mas plácido, no porte,

Vestido de armadura reluzente,

 

Cavalga a fera estranha sem temor,

E o corcel negro diz: “Eu sou a Morte!”

Responde o cavaleiro: “Eu sou o Amor!”

 

 

 

Estoicismo

(A Manuel Duarte de Almeida)

 

TU que não crês, nem amas, nem esperas.

Espírito de eterna negação,

Teu hálito gelou-me o coração

E destroçou-me da alma as primaveras...

 

Atravessando regiões austeras,

Cheias de noite e cava escuridão,

Como n’um sonho mau, só ouço um não,

Que eternamente ecoa entre as esferas...

 

¾ Por que suspiras, por que te lamentas,

Covarde coração? Debalde intentas

Opor à Sorte a queixa do egoísmo...

 

Deixa aos tímidos, deixa aos sonhadores

A esperança vã, seus vãos-fulgores...

Sabe tu encarar sereno o abismo!

 

 

 

Anima mea

 

ESTAVA a Morte ali, em pé, adiante,

Sim, diante de mim, como serpente

Que dormisse na estrada e de repente

Se erguesse sob os pés do caminhante.

 

Era de ver a fúnevre bacante!

Que torvo olhar! que gesto de demente!

E eu disse-lhe: “Que buscas, impudente,

Loba faminta, pelo mundo errante?”

 

¾ “Não temas, respondeu (e uma ironia

Sinistramente estranha, atroz e calma,

Lhe torceu cruelmente a boca fria).

 

Eu não busco o teu corpo... Era um troféu

Glorioso de mais... Busco a tua alma.” ¾

Respondi-lhe! “A minha alma já morreu?”

 

 

 

Divina comédia

(Ao Dr. José Falcão)

 

ERGUENDO os braços para o céu distante

E apostrofando os deuses invisíveis,

Os homens clamam: ¾ “Deuses impassíveis,

A quem serve o destino triunfante,

 

Por que é que nos criastes?! Incessante

Corre o tempo é só gera, inextinguíveis,

Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,

N’um turbilhão cruel e delirante...

 

Pois não era melhor na paz clemente

Do nada e do que ainda não existe,

Ter ficado a dormir eternamente?

 

Por que é que para a dor nos evocastes?”

Mas os deuses, com voz inda mais triste,

Dizem: ¾ “Homens! por que é que nos criastes?”

 

 

 

Espiritualismo

 

I

 

COMO um vento de morte e de ruína,

A Dúvida soprou sobre o Universo.

Fez-se noite de súbito, imerso

O mundo em densa e álgida neblina.

 

Nem astro já reluz, nem ave trina,

Nem flor sorri no seu aéreo berço.

Um veneno sutil, vago, disperso,

Empeçonhou a criação divina.

 

E, no meio da noite monstruosa,

Do silêncio glacial, que paria e estende

O seu sudário, d’onde a morte pende,

 

Só uma flor humilde, misteriosa,

Como um vago protesto da existência,

Desabroxa no fundo da Consciência.

 

II

 

DORME entre os gelos, flor imaculada!

Luta, pedindo um último clarão

Aos sóis que ruem imensidão,

Arrastando uma auréola apagada...

 

Em vão! Do abismo a boca escancarada

Chama por ti na gélida amplidão...

Sobe do poço eterno, em turbilhão,

A treva primitiva conglobada...

 

Tu morrerás também. Um ai supremo,

Na noite universal que envolve o mundo,

Há de ecoar, e teu perfume extremo

 

No vácuo eterno se esvairá disperso

Como o alento final d’um moribundo,

Como o último suspiro do Universo.

 

 

 

O Convertido

(A Gonçalves Crespo)

 

ENTRE os filhos d’um século maldito

Tomei também lugar na ímpia mesa,

Onde, sob o folgar, geme a tristeza

D’uma ânsia impotente de infinito.

 

Como os outros, cuspi no altar avito

Um rir feito de fel e de impureza...

Mas, um dia, abalou-se-me a firmeza,

Deu-me rebate o coração contrito!

 

Erma, cheia de tédio e de quebranto,

Rompendo os diques ao represo pranto,

Virou-se para Deus minha alma triste!

 

Amortalhei na fé o pensamento,

E achei a paz na inércia e esquecimento...

Só me falta saber se Deus existe!

 

 

 

Espectros

 

ESPECTROS que velais, enquanto a custo

Adormeço um momento, e que inclinados

Sobre os meus sonos curtos e cansados

Me encheis as noites de agonia e susto!...

 

De que me vale a mim ser puro e justo,

E entre combates sempre renovados

Disputar dia a dia à mão dos Fados

Uma parcela do saber augusto,

 

Se a minh’alma há de ver, sobre si fitos,

Sempre esses olhos trágicos, malditos!

Se até dormindo, com angústia imensa,

 

Bem os sinto verter sobre o meu leito,

Uma a uma verter sobre o meu peito

As lágrimas geladas da descrença!

 

 

 

À virgem santíssima

(Cheia de graça, Mãe de Misericórdia)

 

N’UM sonho todo feito de incerteza,

De noturna e indizível ansiedade,

É que eu vi teu olhar de piedade

E (mais que piedade) de tristeza...

 

Não era o vulgar brilho da beleza,

Nem o ardor banal da mocidade,

Era outra luz, era outra suavidade

Que até nem sei se as há na natureza...

 

Um místico sofrer... uma ventura

Feita só do perdão, só da ternura

E da paz da nossa hora derradeira...

 

Ó visão, visão triste e piedosa!

Fita-me assim calada, assim chorosa...

E deixa-me sonhar a vida inteira!

 

 

 

Nox

(A Fernando Leal)

 

NOITE, vão para ti meus pensamentos,

Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,

Tanto estéril lutar, tanta agonia,

E inúteis tantos ásperos tormentos...

 

Tu, ao menos, abafa os lamentos,

Que se exalam da trágica enxovia...

O eterno Mal, que ruge e desvaria,

Em ti descansa e esquece, alguns momentos...

 

Oh! antes tu também adormecesses

Por uma vez, e eterna, inalterável,

Caindo sobre o mundo, te esquecesses,

 

E ele, o mundo, sem mais lutar nem ver,

Dormisse no teu seio inviolável,

Noite sem-termo, noite do Não-ser!

 

 

 

Em viagem

 

PELO caminho estreito, aonde a custo

Se encontra uma só flor, ou ave, ou fonte,

Mas só bruta aridez de áspero monte

E os sóis e a febre do areal adusto,

 

Pelo caminho estreito entrei sem susto

E sem susto encarei, vendo-os defronte,

Fantasmas que surgiam do horizonte

A acometer meu coração robusto...

 

Quem sois vós, peregrinos singulares?

Dor, Tédio, Desenganos e Pesares...

Atrás d’eles a Morte espreita ainda...

 

Conheço-vos. Meus guias derradeiros

Sereis vós. Silenciosos companheiros

Bem-vindos, pois, e tu, Morte, bem-vinda!

 

 

 

Quia Aeternus

(A Joaquim de Araújo)

 

NÃO morreste, por mais que o brade a gente

Uma orgulhosa e vã filosofia...

Não se sacode assim tão facilmente

O jugo da divina tirania!

 

Clamam em vão, e esse triunfo ingente

Com que Razão ¾ coitada! ¾ se inebria,

É nova forma, apenas, mais pungente,

Da tua eterna, trágica ironia.

 

Não, não morreste, espectro! o Pensamento

Como d’antes te encara, e és o tormento

De quantos sobre os livros desfalecem.

 

E os que folgam na orgia ímpia e devassa

Ai! quantas vezes, ao erguer a taça,

Param, e estremecendo, empalidecem!

 

 

 

No turbilhão

(A Jayme Batalha Reis)

 

No meu sonho desfilam as visões,

Espectros dos meus próprios pensamentos,

Como um bando levado pelos ventos,

Arrebatado em vastos turbilhões...

 

N’uma espiral, de estranhas contorções,

E d’onde saem gritos e lamentos,

Vejo-os passar, em grupos nevoentos,

Distingo-lhes, a espaços, as feições...

 

Fantasmas de mim mesmo e da minha alma,

Que me fitais com formidável calma,

Levados na onda turva do escarcéu,

 

Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?

Quem sois, visões misérrimas e atrozes?

Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!...

 

 

 

Ignotus

(A Salomão Sáragga)

 

ONDE te escondes? Eis que em vão clamamos,

Suspirando e erguendo as mãos em vão!

Já a voz enrouquece o coração

Está cansado ¾ e desesperamos...

 

Por céu, por mar e terras procuramos

O Espírito que enche a solidão,

E só a própria voz na imensidão

Fatigada nos volve... e não te achamos!

 

Céus e terra, clamai, aonde? aonde? ¾

Mas o espírito antigo só responde,

Em tom de grande tédio e pesar:

 

¾ Não vos queixeis, ó filhos da ansiedade,

Que eu mesmo, desde toda a eternidade,

Também me busco a mim... sem me encontrar!

 

 

 

No circo

(A João de Deus)

 

MUITO longe d’aqui, nem eu sei quando,

Nem onde era esse mundo, em que eu vivia...

Mas tão longe... que até dizer podia

Que enquanto lá andei, andei sonhando...

 

Porque era tudo ali aéreo e brando,

E lúcida a existência amanhecia...

E eu... leve como a luz... até que um dia

Um vento me tomou, e vim rolando...

 

Caí e achei-me, de repente, envolto

Em luta bestial, na arena fera,

Onde um bruto furor bramia solto.

 

Senti um monstro em mim nascer n’essa hora,

E achei-me de improviso feito fera...

¾ É assim que rujo entre leões agora!

 

 

 

Nirvana

(A Guerra Junqueiro)

 

PARA além do Universo luminoso,

Cheio de formas, de rumor, de lida,

De forças, de desejo e de vida,

Abre-se como um vácuo tenebroso.

 

A onda d’esse mar tumultuoso

Vem ali expirar, esmaecida...

N’uma imobilidade indefinida

Termina ali o ser, inerte, ocioso...

 

E quando o pensamento, assim absorto,

Emerge a custo d’esse mundo morto

E torna a olhar as cousas naturais,

 

À bela luz da vida, ampla, infinita,

Só vê com tédio, em tudo quanto fita,

A ilusão e o vazio universais.

 

 

 

Consulta

(A Alberto Sampaio)

 

CHAMEI em volta do meu frio leito

As memórias melhores de outra idade,

Formas vagas, que às noites, com piedade,

Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito...

 

E disse-lhes: ¾ No mundo imenso e estreito

Valia a pena, acaso, em ansiedade

Ter nascido? dizei-m’o com verdade,

Pobres memórias que eu ao seio estreito...

Mas elas perturbaram-se ¾ coitadas!

E empalideceram. Contristadas.

Ainda a mais feliz, a mais serena...

 

E cada uma d’elas, lentamente.

Com um sorriso mórbido, pungente,

Me respondeu: ¾ Não, não valia a pena!

 

 

 

Visão

(A J. M. Eça de Queirós)

 

EU vi o Amor ¾ mas nos seus olhos baços

Nada sorria já: só o fixo e lento

Morava agora ali um pensamento

De dor sem trégua e de íntimos cansaços.

 

Pairava, como espectro, nos espaços,

Todo envolto n’um ninho pardacento...

Na atitude convulsa do tormento,

Torcia e retorcia os magros braços...

 

E arrancava das asas destroçadas

A uma e uma as penas maculadas,

Soltando a espaços um soluço fundo,

 

Soluço de ódio e raiva impenitentes...

E do fantasma as lágrimas ardentes

Caíam lentamente sobre o mundo!

 

 

 

Transcendentalismo

(A J.P. Oliveira Martins)

 

JÁ sossega, depois de tanta luta,

Já me descansa em paz o coração.

Caí na conta, enfim, de quanto é vão

O bem que ao Mundo e à Sorte se disputa.

 

Penetrando, com fronte não enxuta,

No sacrário do templo da Ilusão,

Só encontrei, com dor e confusão,

Trevas e pó, uma matéria bruta...

 

Não é no vasto mundo ¾ por imenso

Que ele pareça à nossa mocidade ¾

Que a alma sacia o seu desejo intenso...

 

Na esfera do invisível, do intangível,

Sobre desertos, vácuo, soledade,

Voa e paira o espírito impassível!

 

 

 

Evolução

(A Santos Valente)

 

FUI rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,

Tronco ou ramo na incógnita floresta...

Onda, espumei, quebrando-me na aresta

Do granito, antiqüíssimo inimigo...

 

Rugi, fera talvez, buscando abrigo

Na caverna que ensombra urze e giesta;

Ou, monstro primitivo, ergui a testa

No limoso paul, glauco pascigo...

 

Hoje sou homem ¾ e na sombra enorme

Vejo, a meus pés, a escada multiforme,

Que desce, em espirais, na imensidade...

 

Interrogo o infinito e às vezes choro...

Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro

E aspiro unicamente à liberdade.

 

 

 

Elogio da morte

 

Morrer é ser iniciado

Antologia grega

 

I

 

ALTAS horas da noite, o Inconsciente

Sacode-me com força, e acordo em susto.

Como se o esmagasse de repente,

Assim me pára o coração robusto.

 

Não que de larvas me povoe a mente

Esse vácuo noturno, mudo e augusto,

Ou forceje a razão por que afugente

Algum remorso, com que encara a custo...

 

Nem fantasmas noturnos visionários,

Nem desfilar de espectros mortuários,

Nem dentro em mim terror de Deus ou Sorte..

 

Nada! o fundo d’um poço, úmido e morno,

Um muro de silêncio e trva em torno,

E ao longe os passos sepulcrais da Morte.

 

II

 

NA floresta dos sonhos, dia a dia,

Se interna meu dorido pensamento.

Nas regiões do vago esquecimento

Me conduz, passo a passo, a fantasia.

 

Atravesso, no escuro, a névoa fria

D’um mundo estranho, que povoa o vento,

E meu queixoso e incerto sentimento

Só das visões da noite se confia.

 

Que místicos desejos me enlouquecem?

Do Nirvana os abismos aparecem

A meus olhos, na muda imensidade!

 

N’esta viagem pelo ermo espaço,

Só busco o teu encontro e o teu abraço,

Morte! irmã do Amor e da Verdade!

 

III

 

EU não sei quem tu és ¾ mas não procuro

(Tal é a minha confiança) devassá-lo.

Basta sentir-te ao pé de mim, no escuro,

Entre as formas da noite com quem falo.

 

Através de silêncio frio e obscuro

Teus passos vou seguindo, e, sem abalo,

No cairel dos abismos do Futuro

Me inclino à tua voz, para sondá-lo.

 

Por ti me engolfo no noturno mundo

Das visões da região inominada.

A ver se fixo o teu olhar profundo...

 

Fixá-lo, compreendê-lo, basta uma hora,

Funérea Beatriz de mão gelada...

Mas única Beatriz consoladora!

 

IV

 

LONGO tempo ignorei (mas que cegueira

Me trazia este espírito enublado!)

Quem fosses tu que andavas a meu lado,

Noite e dia, impassível companheira...

 

Muitas vezes é certo, na canseira,

No tédio extremo d’um viver magoado,

Para ti levantei o olhar turbado,

Invocando-te, amiga verdadeira...

 

Mas não te amava então nem conhecia:

Meu pensamento inerte nada lia

Sobre essa muda fronte, austera e calma.

 

Luz íntima, afinal alumiou-me...

Filha do mesmo pai, já sei teu nome,

Morte, irmã coeterna da minha alma!

 

V

 

QUE nome te darei, austera imagem,

Que avisto já n’um ângulo da estrada,

Quando me desmaiava a alma prostada

Do cansaço e do tédio da viagem?

 

Eu teus olhos vê a turba uma voragem,

Cobre o rosto e recua apavorada...

Mas eu confio em ti, sombra velada,

E cuido perceber tua linguagem...

 

Mais claros vejo, a cada passo, escritos,

Filha da noite, os lemas do Ideal,

Nos teus olhos profundos sempre fitos...

 

Dormirei no teu seio inalterável,

Na comunhão da paz universal,

Morte libertadora e inviolável!

 

VI

 

SÓ quem teme o Não-ser é que se assusta

Com teu vasto silêncio mortuário,

Noite sem fim, espaço solitário,

Noite da Morte, tenebrosa e augusta...

 

Eu não: minh’alma humilde mas robusta

Entra crente em teu átrio funerário:

Para os mais és um vácuo cinerário,

A mim sorri-me a tua face adusta.

 

A mim seduz-me a paz santa e inefável

E o silêncio sem-par do Inalterável,

Que envolve o eterno amor no eterno luto.

 

Talvez seja pecado procurar-te,

Mas não sonhar contigo e adorar-te,

Não-ser, que és o Ser único absoluto.

 

 

 

Contemplação

(A Francisco Machado de Faria Maia)

 

SONHO de olhos aberto, caminhando

Não entre as formas e a aparência

Mas vendo a face imóvel das essências,

Entre idéias e espíritos pairando...

 

Que é o mundo ante mim? fumo ondeando,

Visões sem ser, fragmentos de existências...

Uma névoa de enganos e impotências...

Sobre vácuo insondável rastejando...

 

E d’entre a névoa e a sombra universais

Só me chega um murmúrio, feito de ais...

É a queixa, o profundíssimo gemido

 

Das cousas, que procuram cegamente

Na sua noite e dolorosamente

Outra luz, outro fim só pressentido...

 

 

 

Com os mortos

 

Os que amei, onde estão? idos, dispersos,

Arrastados no giro dos tufões,

Levados, como em sonho, entre visões,

Na fuga, no ruir dos universos...

 

E eu mesmo, com os pés também imersos

Na corrente e à mercê dos turbilhões,

Só vejo espuma lívida, em cachões,

E entre ela, aqui e eali, vultos submersos...

 

Mas se paro um momento, se consigo

Fechar os olhos, sinto-os a meu lado

De novo, esses que amei; vivem comigo,

 

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,

Juntos no antigo amor, amor sagrado,

Na comunhão ideal do eterno Bem.

 

 

 

Oceano Nox

(A A. de Azevedo Castello Branco)

 

JUNTO do mar, que erguia gravemente

A trágica voz rouca, enquanto o vento

Passava como o vôo d’um pensamento

Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,

Olhando o céu pesado e nevoento,

E interroguei, cismando, esse lamento

Que saía das cousas, vagamente...

 

Que inquieto desejo vos tortura,

Seres elementares, força obscura?

Em volta de que idéia gravitais?

 

Mas na imensa extensão, onde se esconde

O Inconsciente-imortal, só me responde

Um bramido, um queixume, e nada mais...

 

 

 

Comunhão

(Ao sr. João Lobo de Moura)

 

REPRIMIREI meu pranto!... Considera

Quantos, minh’alma, antes de nós vagaram,

Quantos as mãos incertas levantaram

Sob este mesmo céu de luz austera!...

 

¾ Luz morta! amarga a própria primavera! ¾

Mas seus pacientes corações lutaram,

Crentes só por instinto, e se apoiaram

Na obscura e heróica fé, que os retempera...

 

E sou eu mais do que eles? igual fado

Me prende à lei de ignotas multidões. ¾

Seguirei meu caminho confiado,

 

Entre esses vultos mudos, mas amigos,

Na humilde fé de obscuras gerações,

Na comunhão dos nossos pais antigos.

 

 

 

Solemnia Verba 

 

DISSE ao meu coração: Olha por quantos

Caminhos vãos andamos! Considera

Agora, d’esta altura fria e austera,

Os ermos que regaram nossos prantos...

 

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!

E noite, onde foi luz de primavera!

Olha a teus pés o mundo e desespera,

Semeador de sombras e quebrantos!

 

Porém o coração, feito valente

Na escola da tortura repetida,

E no uso do penar tornado crente,

 

Respondeu: D’esta altura vejo o Amor!

Viver não foi em vão, se é isto a vida,

Nem foi demais o desengano e a dor.

 

 

 

O que diz a morte

 

“DEIXAI-OS vir a mim, os que lidaram;

Deixai-os vir a mim, os que padecem;

E os que cheios de mágoa e tédio encaram

As próprias obras vãs, de que escarnecem...

 

Em mim, os Sofrimentos que não saram,

Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem.

As torrentes da Dor, que nunca param,

Como n’um mar, em mim desaparecem.” ¾

 

Assim a morte diz. Verbo velado,

Silencioso intérprete sagrado

Das cousas invisíveis, muda e fria,

 

É, na sua mudez, mais retumbante

Que o clamoroso mar; mais rutilante,

Nas sua noite, do que a luz do dia.

 

 

 

Na mão de Deus

(A Exma. Sra. D. Victoria de O. M.)

 

NA mão de Deus, na sua mão direita,

Descansou afinal meu coração.

Do palácio encantado da Olusão

Desci a passo e passo a escada estreita.

 

Como as flores mortais, com que se enfeita

A ignorância infantil, despojo vão,

Depus do Ideal e da Paixão

A forma transitória e imperfeita.

 

Como criança, em lôbrega jornada,

Que a mãe leva no colo agasalhada

E atravessa, sorrindo vagamente,

 

Selvas, mares, areias do deserto...

Dorme o teu sono, coração liberto,

Dorme na mão de Deus eternamente!

 

 

 

Lacrimae Rerum

(A Tommazzo Cannizzarro)

 

NOITE, irmã da Razão da Morte,

Quantas vezes tenho eu interrogado

Teu verbo, teu oráculo sagrado,

Confidente e intérprete da Sorte!

 

Aonde vão teus sóis, como corte

De almas inquietas, que conduz o Fado?

E o homem por que vaga desolado

E em vão busca a certeza, que o conforte?

 

Mas, na pompa de imenso funeral,

Muda, a noite, sinistra e triunfal,

Passa volvendo as horas vagarosas...

 

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;

E, perdido n’um sonho imenso, escuto

O suspiro das cousas tenebrosas...

 

 

 

Redenção

(A Exma. Sra. D. celeste C. B. R.)

 

I

 

VOZES do mar, das árvores, do vento!

Quando às vezes, n’um sonho doloroso,

Me embala o vosso canto poderoso,

Eu julgo igual ao meu vosso tormento...

 

Verbo crepuscular e íntimo alento

Das cousas mudas; salmo misterioso;

Não será tu, queixume vaporoso,

O suspiro do mundo e o seu lamento?

 

Um espírito habita a imensidade:

Uma ânsia cruel de liberdade

Agita e abala as formas fugitivas.

 

E eu compreendo a vossa língua estranha,

Vozes do mar, da selva, da montanha...

Almas irmãs da minha, almas cativas!...

 

II

 

NÃO choreis, ventos, árvores e mares,

Coro antigo de vozes rumorosas,

Das vozes primitivas, dolorosas

Como um pranto de larvas tumulares...

 

Da sombra das visões crepusculares

Rompendo, um dia, surgireis radiosas,

D’esse sonho e essas ânsias afrontosas,

Que exprimem vossas queixas singulares...

 

Almas no limbo ainda da existência,

Acordareis um dia na Consciência,

E pairando, já puro pensamento,

 

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,

Cair desfeitas, como um sonho vão...

E acabará por fim vosso tormento.

 

 

 

Voz interior

(A João de Deus)

 

EMBEBIDO n’um sonho doloroso,

Que atravessam fantásticos clarões,

Tropeçando n’um povo de visões,

Se agita meu pensar tumultuoso...

 

Com um bramir de mar tempestuoso

Que até aos céus arroja os seus cachões,

Através d’uma luz de exalações,

Rodeia-me o Universo monstruoso...

 

Um ai sem-termo, um trágico gemido

Ecoa sem cessar ao meu ouvido,

Com horrível, monótono vaivém...

 

Só no meu coração, que sondo e meço,

Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,

Em segredo protesta e afirma o Bem!

 

 

 

Luta

 

Fluxo e refluxo eterno...

João de Deus

 

DORME a noite encostada nas colinas.

Como um sonho de paz e esquecimento

Desponta a lua. Adormeceu o vento,

Adormeceram vales e campinas...

 

Mas a mim, cheia de atrações divinas,

Dá-me a noite rebate ao pensamento.

Sinto em volta de mim, tropel nevoento,

Os destinos e as Almas peregrinas!

 

Insondável problema!... Apavorado

Recua o pensamento!... E já prostrado

E estúpido à força de fadiga,

 

Fito inconsciente as sombras visionárias,

Enquanto pelas praias solitárias

Ecoa, ó mar, a tua voz antiga.

 

 

 

Logos

(Ao sr. D. Nicolas Salmeron)

 

TU, que eu não vejo, e estás ao pé de mim

E, o que é mais, dentro de mim ¾ que me rodeias

Com um nimbo de afetos e de idéias,

Que são o meu princípio, meio e fim...

 

Que estranho ser és tu (se és ser) que assim

Me arrebatas contigo e me passeias

Em regiões inominadas, cheias

De encanto e de pavor... de não e sim...

 

És um reflexo apenas da minha alma,

E em vez de te encarar com fronte calma

Sobressalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te...

 

Falo-te, calas... calo, e vens atento...

És um pai, um irmão, e é um tormento

Ter-te a meu lado... és um tirano, e adoro-te!

 

 

 

Poesias

 

Os Cativos

 

Encostados às grades da prisão,

Olham o céu os pálidos cativos.

Já com raios oblíquos, fugitivos,

Despede o sol um último clarão.

 

Entre sombras, ao longe, vagamente,

Morrem as vozes na extensão saudosa.

Cai do espaço, pesada, silenciosa,

A tristeza das cousas, lentamente.

E os cativos suspiram. Bando de aves

Passam velozes, passam apressados,

Como absortos em íntimos cuidados,

Como absortos em pensamentos graves.

 

E dizem os cativos: Na amplidão

Jamais se extingue a eterna claridade...

A ave tem o vôo e a liberdade...

O homem tem os muros da prisão!

 

Aonde ides? qual é vossa jornada?

À luz? à aurora? à imensidade? aonde?

¾ Porém o bando passa e mal responde:

À noite, à escuridão, ao abismo, ao nada! ¾

 

E os cativos suspiram. Surge o vento,

Surge e perpassa esquivo e inquieto,

Como quem traz algum pesar secreto,

Como quem sofre e cala algum tormento...

 

E dizem os cativos: Que tristezas,

Que segredos antigos, que desditas,

Caminheiro de estradas infinitas,

Te levam a gemer pelas devesas?

 

Tu que procuras? que visão sagrada

Te acena da soidão onde se esconde?

¾ Porém o vento passa e só responde:

a noite, a escuridão, o abismo, o nada! ¾

 

e os cativos suspiram novamente.

Como antigos pesares mal extintos,

Como vagos desejos indistintos,

Surgem do escuro os astros, lentamente...

 

E fitam-se, em silêncio indecifrável,

Contemplam-se de longe, misteriosos,

Como quem tem segredos dolorosos,

Como quem ama e vive inconsolável...

 

E dizem os cativos: Que problemas

Eternos, primitivos vos atraem?

Que luz fitais no centro d’onde saem

A flux, em jorro, as intuições supremas?

 

Por que esperais? n’essa amplidão sagrada

Que soluções esplêndidas se escondem?

¾ Porém os astros tristes só respondem:

a noite, a escuridão, o abismo, o nada! ¾

 

assim a noite passa. Rumorosos

sussurram os pinhais meditativos.

Encostados às grades, os cativos

Olham o céu e choram silenciosos.

 

 

 

Os Vencidos

 

Três cavaleiros seguem lentamente

Por uma estrada erma e pedregosa.

Geme o vento na selva rumorosa,

Cai a noite do céu, pesadamente.

 

Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas,

Têm os corcéis poentos e abatidos,

Em desalinho trazem os vestidos,

Das feridas lhes cai o sangue, em gotas.

 

A derrota, traiçoeira e pavorosa,

As frontes lhes curvou, com mão potente.

No horizonte escuro do poente

Destaca-se uma mancha sanguinosa.

 

E o primeiro dos três, erguendo os braços,

Diz n’um soluço: “Amei e fui amado!

Levou-me uma visão, arrebatado,

Como em carro de luz, pelos espaços!

 

Com largo vôo, penetrei na esfera

Onde vivem as almas que se adoram,

Livre, contente e bom, como os que moram

Entre os astros na eterna primavera.

 

Por que irrompe no azul do puro amor

O sopro do desejo pestilente?

Ai do que um dia recebeu de frente

O seu hálito rude e queimador!

 

A flor rubra e olorosa da paixão

Abre lânguida ao raio matutino,

Mas seu profundo cálix purpurino

Só ressuma veneno e podridão.

 

Irmãos, amei ¾ amei e fui amado...

Por isso vago incerto e fugitivo,

E corre lentamente um sangue esquivo

Em gotas, de meu peito alanceado.”

 

Responde-lhe o segundo cavaleiro,

Com sorriso de trágica amargura:

“Amei os homens e sonhei ventura,

Pela injustiça heróica, ao mundo inteiro.

 

Pelo direito, ergui a voz ardente

No meio das revoltas homicidas:

Caminhando entre raças oprimidas,

Fil-as surgir, como um clarim fremente.

 

Quando há de vir o dia da justiça?

Quando há de vir o dia do resgate?

Traiu-me o gládio em meio do combate

E semeei na areia movediça!

 

As nações, com sorriso bestial,

Abrem, sem ler, o livro do futuro.

O povo dorme em paz no seu monturo,

Como um leito de púrpura real.

 

Irmãos, amei os homens e contente

Por eles combati, com mente justa...

Por isso morro à míngua e a areia adusta

Bebe agora meu sangue, ingloriamente.”

 

Diz então o terceiro cavaleiro:

“Amei a Deus e em Deus pus alma e tudo.

Fiz do seu nome fortaleza e escudo

No combate do mundo traiçoeiro.

 

Invoquei-o nas horas afrontosas

Em que o mal e o pecado dão assalto,

Procurei-o, com ânsia e sobressalto,

Sondando mil ciências duvidosas.

 

Que vento de ruína bate os muros

Do templo eterno, o templo sacrossanto?

Rolam, desabam, com fragor e espanto,

Os astros pelo céu, frios e escuros!

 

Vacila o sol e os santos desesperam...

Tédio ressuma a luz dos dias vãos...

Ai dos que juntam com fervor as mãos!

Ai dos que crêem! ai dos que inda esperam!

 

Irmãos, amei a Deus, com fé profunda...

Por isso vago sem conforto e incerto,

Arrastando entre as urzes do deserto

Um corpo exangue e uma alma moribunda.”

 

E os três, unindo a voz n’um ai supremo,

E deixando pender as mãos cansadas

Sobre as armas inúteis e quebradas,

N’um gesto inerte de abandono extremo,

 

Sumiram-se na sombra duvidosa

Da montanha calada e formidável,

Sumiram-se na selva impenetrável

E no palor da noite silenciosa.

 

 

 

Entre Sombras

 

Vem às vezes sentar-se ao pé de mim

¾ A noite desce, desfolhando as rosas ¾

vem ter comigo, às horas duvidosas,

uma visão, com asas de cetim...

 

Pousa de leve a delicada mão

Recende aroma a noite sossegada ¾

Pousa a mão compassiva e perfumada

Sobre o meu dolorido coração...

 

E diz-me essa visão compadecida

¾ Há suspiros no espaço vaporoso ¾

Diz-me: Por que é que choras silencioso?

Por que é tão erma e triste a tua vida?

 

Vem comigo! Embalado nos meus braços

¾ Na noite funda há um silêncio santo ¾

N’um sonho feito só de luz e encanto

Transporás a dormir esses espaços...

 

Porque eu habito a região distante

¾ A noite exala uma doçura infinda ¾

onde ainda se crê e se ama ainda,

onde uma aurora igual brilha constante...

 

Hábito ali, e tu virás comigo

¾ Palpita a noite n’um clarão que ofusca ¾

porque eu venho de longe, em tua busca,

trazer-te paz e alívio, pobre amigo...

 

Assim me fala essa visão noturna

¾ No vago espaço há vozes dolorosas ¾

são as suas palavras carinhosas

Água correndo em cristalina urna...

 

Mas eu escuto-a imóvel, sonolento

¾ A noite verte um desconsolo imenso ¾

sinto nos membros como um chumbo denso,

e mudo e tenebroso o pensamento...

 

fito-a, n’um pasmo doloroso absorto

¾ A noite é erma como campa enorme ¾

fito-a com olhos turvos de quem dorme

E respondo: Bem sabes que estou morto!

 

 

 

Hino da manhã

 

Tu, casta e alegre luz da madrugada,

Sobre, cresce no céu, pura e vibrante,

E enche de força o coração triunfante

Dos que ainda esperam, luz imaculada!

 

Mas a mim pões-me tu tristeza imensa

No desolado coração. Mais quero

A noite negra, irmã do desespero,

A noite solitária, imóvel, densa,

 

O vácuo mudo, onde astro não palpita,

Nem ave canta, nem sussurra o vento,

E adormece o próprio pensamento,

Do que a luz matinal... a luz bendita!

 

Porque a noite é a imagem do Não-Ser,

Imagem do repouso inalterável

E do esquecimento inviolável,

Que anseia o mundo, farto de sofrer...

 

Porque nas trevas sonda, fixo e absorto,

O nada universal o pensamento,

E despreza o viver e o seu tormento,

E olvida, como quem está já morto...

 

E, interrogando intrépido o Destino,

Como réu o renega e o condena,

E virando-se, fita em paz serena

O vácuo augusto, plácido e divino...

 

Porque a noite é a imagem da Verdade,

Que está além das cousas transitórias,

Das paixões e das formas ilus´rorias,

Onde somente há dor e falsidade...

 

Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,

De que és símbolo tu? do eterno engano,

Que envolve o mundo e o coração humano

Em rede de mil malhas, misteriosa!

 

Símbolo, sim, da universal traição,

D’uma promessa sempre renovada

E sempre e eternamente perjurada,

Tu, mãe da Vida e mãe da Ilusão...

 

Outros estendam para ti as mãos,

Suplicantes, com fé, com esperança...

Ponham outros seu bem, sua confiança

Nas promessas e a luz dos dias vãos...

 

Eu não! Ao ver-te, penso: Que agonia

E que tortura ainda não provada

Hoje me ensinará esta alvorada?

E digo: Por que nasce mais um dia?

 

Antes tu nunca fosses, luz formosa!

Antes nunca existisses! e o Universo

Fitasse inerte e eternamente imerso

Do possível na névoa duvidosa!

 

O que trazes ao mundo em cada aurora?

O sentimento só, só a consciência

D’uma eterna, incurável impotência,

Do insaciável desejo, que o devora!

 

De que são feitos os mais belos dias?

De combates, de queixas, de terrores!

De que são feitos? de ilusões, de dores,

De misérias, de mágoas, de agonias!

 

O sol, inexorável semeador,

Sem jamais se cansar, percorre o espaço,

E em borbotões lhe jorram do regaço

As sementes inúmeras da Dor!

 

Oh! como cresce, sob a luz ardente,

A seara maldita! como freme

Sob os ventos da vida e comog eme

N’um sussurro monótono e plangente!

 

E cresce a alastra, em ondas voluptuosas,

Em ondas de cruel fecundidade,

Com a força e a sutil tenacidade

Invencível das plantas venenosas!

 

De podridões antigas se alimenta,

Da antiga podridão do chão fatal...

Uma fragrância mórbida, mortal

Lhe resuma d seiva peçonhenta...

 

E é esse aroma lânguido e profundo,

Feito de seduções vagas, magnéticas,

Do ardor carnal e de atrações poéticas,

É esse aroma que envenena o mundo!

 

Como um clarim soando pelos montes,

A aurora acorda, plácida e inflexível,

As misérias da terra: e a hoste horrível,

Enchendo de clamor os hoizontes,

 

Torva, cega, colérica, faminta,

Surge mais uma vez e arma-se à pressa

Para o bruto combate, que não cessa,

Onde é vencida sempre e nunca extinta!

 

Quantos erguem n’esta hora, com esforço,

Para a luz matinal as armas novas,

Pedindo a luta e as formidáveis provas,

Alegres e cruéis e sem remorso,

 

Que esta tarde há de ver, no duro chão

Caídos e sangrentos, vomitando

Contra o céu, como sangue miserando,

Uma extrema e impotente imprecação!

 

Quantos também, de pé, mas esquecidos,

Há de a noite encontrar, sós e encostados,

A algum marco, chorando aniquilados

As lágrimas caladas dos vencidos!

 

E por quê? para quê? Para que os chamas,

Serena luz, ó luz inexorável,

À vida incerta e à luta inexpiável,

Com as falsas visões, com que os inflamas?

 

Para serem o brinco d’um só dia

Na mão indiferente do Destino...

Clarão de fogo-fátuo repentino,

Cruzando entre o nascer e a agonia...

 

Para serem, no páramo enfadonho,

À luz de astros malignos e enganosos,

Como um bando de espectros lastimosos,

Como sobras correndo atrás d’um sonho...

 

Oh! não! luz gloriosa e triunfante!

Sacode embora o encanto e as seduções,

Sobre mim, do teu mando de ilusões:

A meus olhos, és triste e  vacilante...

 

A meus olhos, és baça e lutuosa

E amarga ao coração, ó luz do dia,

Como tocha esquecida que alumia

Vagamente uma cripta monstruosa...

 

Surges em vão, e em vão, por toda a parte,

Me envolves, me penetras, com amor...

Causas-me espanto a mim, causas-me horror,

E não te posso amar ¾ não quero amar-te!

 

Símbolo da Mentira universal,

Da aparência das cousas fugitivas,

Que esconde, nas moventes perspectivas,

Sob o eterno sorriso o eterno Mal;

 

Símbolo da Ilusão, que do infinito

Fez surgir o Universo, já marcado

Para a dor, para o mal, para o pecado,

Símbolo da existência, sê maldito!

 

 

 

A fada negra

 

Uma velha de olhar agudo e frio,

De olhos sem cor, de lábios glaciais,

Tomou-me nos seus braços sepulcrais,

Tomou-me sobre o seio ermo e vazio,

 

E beijou-me em silêncio, longamente,

Longamente me uniu à face fria...

Oh! como a minha alma se estorcia

Sob os seus beijos, dolorosamente!

 

Onde os lábios pousou, a carne logo

Mirrou-se e encaneceu-se-me o cabelo,

Meus ossos confrangeram-se. O gelo

Do seu bafo secava mais que o fogo.

 

Com seu olhar sem cor, que me fitava,

A Fada negra me coalhou o sangue.

Dentro em meu coração inerte e exangue

Um silêncio de morte se engolfava.

 

E volvendo em redor olhos absortos,

O mundo pareceu-me uma visão,

Um grande mar de névoa, de ilusão,

E a luz do sol como um luar de mortos...

 

Como o espectro d’um mundo já defunto,

Um farrapo de mundo, nevoento,

Ruína aérea que sacode o vento,

Sem cor, sem consistência, sem conjunto...

 

E quanto adora quem adora o mundo,

Brilho e ventura, esperar, sorrir,

Eu vi tudo oscilar, pender, cair,

Inerte e já da cor d’um moribundo.

 

Dentro em meu coração, n’esse momento,

Fez-se um buraco enorme ¾ e n’esse abismo

Senti ruir não sei que cataclismo,

Como um universal desabamento...

 

Razão! velha de olhar agudo e cru

E de hálito mortal mais do que a peste!

Pelo beijo de gelo que me deste,

Fada negra, bendita sejas tu!

 

Bendita sejas tu pela agonia

E o luto funeral d’aquela hora

Em que vi baquear quanto se adora,

Vi de que noite é feita a luz do dia!

 

Pelo pranto e as torturas benfazejas

Do desengano... pela paz austera

D’um morto coração, que nada espera,

Nem deseja também... bendita sejas!

 

 

 

Prosa

 

Resposta a um pedido duma senhora

 

                onzela, que pedes ao bardo do Senhor? não sabes, que no portal do templo pendurei a harpa minha a Deus sagrada? não vês, que só devo vibrar-lhe as cordas, para entoar em honra d’Ele hinos festivais, ou fúnebres cânticos?

                Mas quem não cairá fascinado ante os encantos duma mocidade pura, ante o mago talismã da virtude? podia eu desobedecer à virgem que me faz pensar no céu, porque recorda aos filhos da terra os anjos que vivem lá?

                Em árida encosta de alta, fragosa serra nasceste qual camélia: os róseos, úmidos dedos de matinal aurora, arrociaram-te a corola de meigo pranto: o Sol, erguendo a fronte coroada de áurea luz em berço purpurino, alumia ridente os escalvados píncaros da Estrela, e compraz-se em beijar e aquecer com seus doces raios tuas pétalas mimosas.

                Fresca e formosa, como a rosa, que do Japão nos veio, viçaste e cresceste: e os tufões violentos, e as rajadas frias do nordeste deram-te novo brilho. Virgem do Senhor, escuta um conselho. Nos ruidosos festins das salas, hão-de dizer-te enganosas falas.

                Lá onde o amor é cálculo hão-de cercar-te férvidas homenagens: hão-de louvaros encantos, os mimos, as graças mil, que, para adornar-te, em ti pródiga esparziu a natureza, hão-de chamar-te rainha, porque tens da beleza o condão, que enfeitiça o coração: não creias; que de lábios à mentira afeitos jamais saiu verdade. Ímpia turba de cortesãos, eivados de paixões danosas, para quem a vida é de torpezas teia urdida, há-de dizer-te, que quer erigir-te altares, e adorar-te, como fiel, prostado no pó do templo, adora a hóstia sacrossanta, que foi deposta em sacrário augusto. Hão-de dizer-te, que te viram nas trevas e no martírio de existir, como cauta atribulado em mar iroso vê no cerrado horizonte cintilar radiante estrela, que o guia a almo porto, onde acha abrigo; que te amam, como viajeiro sequioso em areal abrasado ama o verdejante oásis, onde há fresca linfa que lhe apaga a sede, e lhe avigora as forças; não os creias; que vis escravos se fingem agora, para serem depois altivos senhores; é essa a linguagem falsa, donde destila o acre veneno, que a lisonja, qual víbora entre flores, tentará verter em teu coração, vaso imaculado, onde florescem as nobres aspirações, e os bons afetos, como em ara santa ardem tênues grãos de fragrante incenso. Não confies na beleza: vês a florinha, que esmalta ameno prado? de manhã rica de cores, e recendente de perfumes, brilha e parece deleitar-se ao sentir-se acariciada por branda viração: no fim da tarde estorce-se agonizante na haste açoutada por ardente suão; e morre queimada, e jaz morta no chão. A grinalda entretecida de rosas é linda hoje; mas há-de cair-te desfolhada da fronte, ao roçar da asa inflexível do tempo. A beleza é meteoro, que fulgura inflamado um instante na amplidão do espaço, para cair logo apagado; é luz que lampeja um minuto, qual relâmpago veloz; é arbusto, que viridente medra um dia no vale, secando alfim tombado pela fúria do vendaval. Crê sempre em Deus, como o náufrago aterrado crê na última tábua, que lhe ficou do baixel partido contra as vagas. Tem esperança nele como o viajante, transviado em noite tormentosa, espera abraçar a esposa querida, e beijar os tenros filhos.

                Ama-o, como o infante ama a mãe carinhosa, que o aperta ao seio, e lhe depõe na face ferventes ósculos. Anjo errante na terra, lembra-te do céu, donde vieste, como em lôbrego e escuro cárcere se lembra o infeliz cativo de ver ainda o brilho do firmamento e o azul do mar, a relva, que tapeta as campinas, e a verdura, que veste as colinas.

                Anela por ele, como o pobre desterrado anseia em longes e estranhas terras por descansar no regaço da pátria amada. Que a virtude seja o leme, que te encaminhe no pego da vida, de escolhos semeado; que ela seja a égide, que te proteja no batalhar renhido, que hás-de travar com o mundo; que seja brônzea coluna, a que te encostes, quando vacilares na luta; que ela seja o cetro, com que reines aqui; que ela te sirva de flamejante espada, com que conquistes a mansão, onde o Senhor tem o sólio seu: é tua agora, não a deixes cair da mão: aperta-a e brande-a bem, que ganharás a coroa entrelaçada de viçosos louros, que lá do Empíreo te mostram legiões de arcanjos. Que às ilusões risonhas, que ora te afagam a fantasia, se não sigam nunca amargos desenganos, que pungem a alma.

                Que os formosos sonhos, que te enebriam a mente, prometendo-te a felicidade lá em vago futuro, não terminem em acordar desconfortado e triste.

                Que o teu rosto puro e límpido, como céu sem nuvens em dia de florente primavera, não seja ferido pelo raio do infortúnio; que os sorrisos que ora o iluminam e aformoseiam, se não troquem por lágrimas, que o escaldem e crestem, como lava, que rebenta do coração a estalar, por entrar lá angústia suprema. Que no caminho da vida, que vês hoje recamada de flores, que admiras, não cresçam nunca espinhos, que te magoem; que teus lábios não provem amargoso absinto na ebúrnea taça, que te sabe agora a mel suave. Não sonhes, virgem casta. Depois dum belo dia enfeitado de galas e enriquecido de primores, custa muito ver chegar tenebrosa noite, em que medonha tempestade faz ouvir seus longos e temerosos bramidos. Pensa bem. O mundo não é tal, como ele se reflete no espelho da tua alma. Santo, inefável gozo será para mim aspirar cá de longe o ardor balsâmico, e ouvir as harmonias divinas, que saírem do teu santuário.

                Que os seus umbrais só cruze quem for digno.

                Cá de longe me curvarei reverente ante a inocência, que é dele a mais esplêndida decoração. Cá de longe ajoelharei, rendendo sincero culto às tuas virtudes, como, ante urna de cristal, onde está relíquia veneranda, ajoelha fervoroso peregrino.

                Da tua vida o livro só encerra ainda páginas brancas. Não poder eu gravar lá uma só palavra ¾ a felicidade! Abraçado na flor dos anos à cruz de Cristo, nobre pendão, por que jurei combater, pedirei a Deus, que vele pelo anjo, que criou: prece íntima, ardente, saída do peito aquecido pelo fogo de juvenilidade será a minha; e levada nas asas da fé, subirá da terra, e chegará aos pés de seu trono. Nos momentos saudosos, em que o teu nome me acudir à memória, acordarei com ele os ecos da minha solidão, e grato consolo será para mim fazer sentidos votos pela felicidade da virgem do Senhor.

 

 

 

FIM