Diálogos das Grandezas do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão

 

Fonte:

ABREU, Capistrano de. Diálogos das grandezas do Brasil. Salvador : Progresso, 1956.

 

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DIÁLOGOS DAS GRANDEZAS DO BRASIL

Ambrósio Fernandes Brandão

 

 

 

Introdução

 

 

Os esforços até agora tentados para levantar o anonimato dos Diálogos das Grandezas do Brasil têm sido perdidos. Para que aventar novas hipóteses? Antes tomar do livro e penetrar em sua intimidade, se podermos.

 

Os diálogos são em número de seis. O autor nunca passou do cabo de Santo Agostinho para o Sul; devem, pois, ter sido escritos em uma das capitanias ao Norte do cabo. Destas apenas duas diz êle explicitamente ter visitado, e pelas abundantes informações mostra conhecer diretamente: Pernambuco e Paraíba, - Tamaracá ficava a meio caminho e devia ser-lhe familiar.

 

Há probabilidades a favor da Paraíba ser o lugar em que os Diálogos foram compostos.

 

Entre estas podem enumerar-se primeiramente as numerosas referências a ela feitas, o modo desenvolvido por que é tratada: pouco mais de três páginas tratam de Pernambuco; menos de quatro tratam da Bahia, ao passo que quase cinco cabem à Paraíba. À Paraíba atribui-se o terceiro lugar entre suas irmãs e aproveita-se qualquer pretexto para salientá-la: o administrador eclesiástico, prelado quase igual aos bispos nos poderes, é da Paraíba, esta, por conseguinte, a cabeça espiritual das capitanias do Norte, a começar de Pernambuco; na organização judiciária proposta para substituir a Relação da Bahia, um corregedor com amplos poderes deve residir na Paraíba, por ser cidade real, e a êle serem subordinadas tôdas as justiças desde Pernambuco até Maranhão e Pará. Essa preferência pela Paraíba não indica que à Paraíba o autor estava prêso por laços muito particulares? Uma frase escrita incidentemente legitima a resposta pela afirmativa. “Vos hei de contar, diz um dos interlocutores, uma graça ou história que sucedeu há poucos dias nêste Estado sôbre o achar o ambar. Certo homem ia a pescar para a parte da Capitania do Rio Grande em uma enseada que aí faz a costa...” A menos que não se provasse que o autor escrevia no Ceará, o que está fora da questão, para a parte da Capitania do Rio Grande, só se podia escrever na outra Capitania contígua, isto é, na Paraíba.

 

Se a Capitania em que os Diálogos foram escritos tão vagamente se designa que apenas probabilidades se podem apurar a favor de uma, não é mais precisa a indicação do lugar em que a cêna passa. O primeiro diálogo põe certa tarde, ex-abrupto, dois indivíduos já conhecidos entre si em nossa presença: Alviano: e Brandonio:. Em frente à casa do último trava-se a conversa. Estiveram sentados? discorriam peripatéticamente? Nada se pode concluir. A conversa prolonga-se; sendo tarde, marcou-se o outro dia e lugar em que a prática terminou para a contígua. O mesmo se fêz das outras vêzes. Entre o terceiro e o quarto dia falhou Brandonio: a conversação reproduzida nos Diálogos das Grandezas do Brasil durou, portanto, sete dias, com um de descanso.

 

Quem eram Alviano: e Brandonio:? Por que foram escolhidos êstes nomes? Conterão algum anagrama? Nem uma resposta se pôde formular. Parecem antes personagens simbólicos: um representa o reinól vindo de pouco, impressionado apenas pela falta de comodidades da terra; o segundo é a povoador, que desde 1583, veio para o Brasil, e, com as interrupções de várias viagens além-mar, ainda aqui estava em 1618, data da composição do livro. Tão abstratos são os personagens, que às vêzes saem dos lábios de um palavras que melhor condiriam nos do outro.

 

A conversação irrompe sem preparo à vista de uma lanugem de monguba, passa aos motivos por que a terra é descurada, e após vários incidentes termina com a descrição sumária das diversas capitanias, desde o rio Amazonas até São Vicente; tal o objeto do primeiro diálogo. O segundo começa por uma discussão mais erudita que interessante sôbre a zona tórrida e sua inabitabilidade afirmada pelos antigos filósofos, desmentida pela experiência; explica por que apesar de negros e americanos morarem nas mesmas latitudes aqueles têm a pele negra e o cabelo carapinhado, ao contrário dêstes, cuja epiderme é baça e cuja cabeleira é lisa; explora a origem dos americanos, exalta as excelências do clima, enumera as poucas moléstias vigentes do Brasil. O terceiro estuda as quatro fontes de riquezas do Brasil: lavoura de açúcar, mercância em geral, o trato do páu-brasil em particular, os algodões e madeiras. O quarto expõe a riqueza que se pode angariar com o comércio de mantimentos, fala do mel, do vinho, do azeite, da tinta contida nas árvores indígenas e descreve ligeiros quadros da vida vegetal. O quinto enumera os animais, subordinados aos três elementos em que vivem: ar, água e terra; do elemento mais alevantado, do fôgo não trata, diz Brandonio:, “porque de todo o tenho por estéril, que a salamandra que se diz criar nêle entendo ser fabulosa, porque quando as houvera, nas fornalhas dos engenhos de fazer açúcares do Brasil, que sempre ardem em fôgo vivo, se deverão de achar”. O último diálogo refere no principio os costumes dos Portuguêses, porém a maior parte é consagrada à descrição dos índios, com que termina a obra.

 

Antes de ir para o Velho Mundo, de onde só voltou passados quase três séculos, teria o livro do senhor de engenho paraibano sido aproveitado dêste lado do Atlântico? Em outros termos: teria servido de fonte a alguns dos escritores que trataram dos mesmos assuntos? Frei Vicente do Salvador em sua História, terminada a 20 de Dezembro de 1627, umas vêzes parece refutá-lo, outra reproduzi-lo com mais ou menos liberdade; como, porém, ao livro do escritor franciscano faltam muitos capítulos, exatamente os que tratam de entradas ao sertão da Paraíba e Pernambuco, de que nosso autor fêz parte, a questão por ora não pode ser decidida.

 

***

 

No entender de Varnhagen, o autor dos Diálogos era brasileiro, e funda sua convicção em achar neste escrito mais de uma vez nosso Brasil. De fato assim é, e também se encontra nossa Espanha, nosso Portugal, o que deixa bem patente a pouca fôrça dêste argumento sutil, O autor era português; a leitura cuidadosa o atesta a cada passo e o próprio Brandonio: o confirma explicitamente, Interrogado por que não secundou as experiências de plantação de trigo, responde: “Porque se me comunica também o mal da negligência dos naturais da terra”. Se fosse natural da terra, a resposta seria dada nestes termos?

 

Era português e do Sul de Portugal, ou pelo menos lá passara muito tempo, Só assim se explica a importância que atribui a “alguma restinga de terra que então (no tempo das navegações cartaginesas) continuava com uma ilhota situada na costa do Algarve, a que chamamos de Pecegueiro, na qual paragem por costumarem a continuar os atuns que por ali passam a desovar dentro no estreito, se tomam muitos hoje em dia”. Teria reparado em coisas tão somenos um simples viajante?

 

Era homem de instrução: conhecia o latim, a língua literária e científica da época e lêra os livros representativos da ciência coéva: Aristóteles, Dioscorides, Vatablo, Juntino; sabia a história, a geografia, a produção de Portugal e de suas colônias, e dispunha de inteligência extremamente clara, cuja fôrça se manifesta na precisão com que trata dos objetos, como por exemplo a pólvora, o açúcar, a farinha de mandioca, o papel; no modo por que subordina os fatos mais diversos a categorias simples, como quando reduz os moradores do Brasil a cinco condições de gente, dos modos de adquirir fortuna a seis; distribui a vida animal pelos elementos, desfia a inutilidade do comércio da Índia e dispõe as árvores silvestres em hortas e jardins (fim do Diálogo quarto).

 

Não era um espírito simplesmente contemplativo, ocupava-o o lado prático, a aplicação possível. A larga navegabilidade do Amazonas suscita a idéia de aproveitá-la para as comunicações com o Perú; a existência de aves rapineiras lembra a caça de altenaria; mesmo a secreção mefítica fia jaguatataca antolha-se aproveitável na ordem militar; fazia ou mandava fazer experiências por conta própria, preparou anil para mostrar que a terra podia dar do melhor, fêz examinar em Portugal uma espécie de madeira, que lhe pareceu própria ao preparo da tinta de escrever.

 

Como seus contemporâneos, tinha uma veia de credulidade, fala em palavras fortes de encantamento; avisa que os pajés dos índios não são legítimos feiticeiros; sôbre certos animais e mariscos, adianta afirmações bem singulares; mas era um espírito aberto aos fatos novos; nas últimas páginas ainda apresenta um fato a favor da origem vegetal do ambar, geralmente contestada naquele tempo: a credulidade para êle era o princípio da critica e da sabedoria.

 

Era, finalmente, um escritor colorido, enérgico, veemente, capaz de atingir à eloquência; a frase sai às vêzes retorcida para acompanhar o vibrante da sensação; a fôrça vegetativa do novo mundo sobretudo agitava-o vivamente. Um breve trecho do terceiro diálogo mostrará como êle sabia externar suas emoções:

 

“Certamente, diz Brandonio:, que estimara muito não me meter em semelhante trabalho (tratar das madeiras) pelo muito que há que dizer desta matéria. Porque por tôda parte que ponho os olhos, vejo frondosas árvores, entrabastecidas matas e intrincadas selvas, amenos campos, composto tudo de uma doce e suave primavera; porquanto em todo o decurso do ano gozam as árvores de uma fresca verdura, e tão verdes se mostram no verão como no inverno, sem nunca se despirem de todo de suas folhas, como costumam de fazer em nossa Espanha; antes, tanto que lhe cái uma, lhe nasce imediatamente outra, campeando a vista com formosas paisagens, de modo que as alamedas de alemos e outras semelhantes plantas que em Madrid, Valhadolid e em outras vilas e lugares de Castela se plantam e grangeam com tanta indústria e curiosidade para formosura e recreação dos povos, lhe ficam muito atrás - quase sem comparação uma coisa de outra. Porque aqui as matas e bosques são naturais e não industriosos, acompanhados de tão crescidos arvoredos, que além de suas topadas, frescas folhas defendem aos raios do sol poder visitar o terreno de que gozam, não é bastante uma flecha despedida de um teso arco por galhardo braço a poder sobrepujar a sua alteza. E destas semelhantes plantas há tantas e diversas castas que se embaraçam os olhos na contemplação delas e sòmente se satisfazem com dar graças a Deus de as haver criado daquela sorte. Donde certamente cuido que, se neste Brasil houvera bons arbolários, se poderiam fazer de qualidade a natureza das plantas e árvores muitos volumes de livros maiores que os de Dioscorides, porque gozam e encerram em si grandissimas virtudes e excelências ocultas e enxergase o seu mérito em algumas poucas delas, de que nos aproveitamos”.

 

***

 

Procuremos agora enfeixar os dados dispersos através das Diálogos das Grandezas.

 

Em 1618 os estabelecimentos fundados por Portuguêses começavam no Pará sob o Equador, terminavam adiante de S. Vicente, além do trópico.

 

Entre uma e outra capitania havia grandes espaços devolutos de dezenas de léguas. Para as bandas do sertão na racha da floresta, apontava quase o mar a natureza intemerata. A população total cabia folgadamente em cinco algarismo.

 

Assegura Brandonio: que as três capitanias da Norte poderiam pôr em campo mais de 10.000 homens armados, isto é, deviam contar pelo menos 40.000 almas. Palpável exagêro: em tôdas as capitanias juntas mal passaria desta soma a gente de procedência portuguêsa.

 

A camada intima da população era formada por escravos, filhos da terra e africanos. Aqueles aparecem em menor número, em consequência da população indígena ser pouco densa; os Jesuítas e depois as outras ordens, riais ou menos, a exemplo dêstes, pregaram pela liberdade dos índios tornando precária sua posse; finalmente, a experiência tem demonstrado a superioridade dos africanos para o trabalho. “Nêste Brasil, diz Brandonio:, se há criado um novo Guiné com a grande multidão de escravos vindos de lá que nêle se acham, em tanto que em algumas capitanias há mais dêles que dos naturais da terra, e todos os homens que nêles vivem têm metida quase tôda a sua fortuna em semelhante mercadoria. Todos fazem sua grangearia com escravos de Guiné, que para êsse efeito compram por subido prêço... o de que vivem é somente do que grangeiam com tais escravos...”

 

Acima dêste rebanho, sem terra e sem liberdade, seguiam-se os Portuguêses de nascimento ou de origem, sem terras, porém livres, vaqueiros, feitores, mestres de açúcar, oficiais mecânicos, vivendo de seus salários ou do feitio de obras encomendadas.

 

Vinham depois, já donos de terrenos, os criadores de gado vacum. Seu número era exíguo, exigia a importância de sua classe, o território colonizado limitava-se quase à zona da mata, onde o gado não prospera fácilmente e cumpria defender os canaviais e outras plantações de seus ataques. Medidas defensivas tomaram-se mais tarde, ou já começavam a ser tomadas; mas o desenvolvimento dêste ramo, destinado a assumir tão vastas proporções ainda no decurso daquele século, deve-se sobretudo ao afastamento do gado para longe da ourela litorânea, evitando a mata, procurando os campos, mais tarde certas catingas menos ínvias, separando a lavoura do que com alguma lisonja se poderia chamar indústria criadora.

 

Os lavradores de menor cabedal, ou terras menos ferazes, cultivavam mantimentos: milho, arroz, mandioca. Dos dois primeiros não faziam grande consumo as capitanias, - São Páulo era exceção quanto ao milho. No preparo da mandióca usavam de grande roda movida a mão para reduzí-la à massa, de prensa para enxuga-la e extrair a tapioca; a farinha cozia-se em alguidares ou tachos, - talvez no Rio de Janeiro, onde muito tempo preponderou esta produção e êste comércio, empregassem logo grandes fornos. Com tachos só se podia cozer pouca farinha de cada vez; por isso é natural que a safra não se colhesse tôda numa estação como agora, porém durasse o ano inteiro. No tempo de Pero Magalhães de Gandavo parece que se fazia farinha diàriamente, à maneira de pão hoje em dias nas cidades mais povoadas. O alqueire, duas vêzes e meia maior que o de Portugal, custava trezentos, duzentos e cinquenta reis, às vêzes menos no principio do século XVII. É provável que fossem lavradores dêstes os que plantavam algodão, vendido a 2$000 a arrôba, depois de descaroçado no maquinismo rudimentar das máquinas, encontrado ainda agora no interior e descrito pelos viajantes europeus vindos depois da transmigração da família real; os que mandavam páu-brasil e depois de debastado vendiam-no aos contratadores ao prêço de 700 e 800 réis o quintal; os que do sertão traziam madeira e depois de transformada em caixões vendiam-nos aos fabricantes de açúcar à razão de 450 a 500 réis cada um, ou serrada em pranchões exportavam-na para o Reino. Um lavrador de mantimentos que reunisse todos êsses achêgos podia lucrar tanto como um senhor de engenho de primeira ordem.

 

Engenhos havia movidos por água e por bois; servidos por carros ou barcos; situados à beira-mar ou mais afastados, não muito, porque as dificuldades de comunicações só permitiam arcos de limitados raios; havia-os suficientes para produzir mais de dez mil arrôbas de açúcar e incapazes de dar um têrço desta soma. Imaginemos um engenho esquemático para termo de comparação: do esquema os engenhos existentes divergiam mais ou menos, como é natural. Devia possuir grandes canaviais, lenha abundante e próxima, escravaria numerosa, boiada capaz, aparêlhos diversos, moendas, cobres, formas, casas de purgar, alambique; devia ter pessoal adestrado, pois a matéria prima passava por diversos processos antes de ser entregue ao consumo; daí certa divisão muito imperfeita de trabalho, sobretudo certa divisão de produção. O produto era diretamente remetido para além-mar; de além-mar vinha o pagamento em dinheiro ou em objetos dados em troca e não eram muitos: fazendas finas, bebidas, farinha de trigo, em suma, antes objetos de luxo. Por luxo podiam comprar os mantimentos aos lavradores menos abastados e isto era usual em Pernambuco, tanto que entre os agravos dos pernambucanos contra os holandêses capitulava-se o de por êstes terem sido obrigados a plantar certo número de cóvas de mandioca.

 

Tirando isto, o engenho representa uma economia autónoma; para os escravos tecia-se o pano alí mesmo; a roupa da família era feita no meio dela; a alimentação constava de peixe pescado em jangadas ou, por outro modo, de ostras e mariscos apanhados nas praias e nos mangais, de caça pegada no mato, de aves, cabras, porcos para as bandas do Sul, para as do Norte ovelhas principalmente, criadas em casa: daí a facilidade de agasalhar convivas inesperados, e daí a hospitalidade colonial, tão característica ainda hoje de lugares pouco frequentados. De vacas leiteiras havia currais, poucos, porque não fabricavam queijos nem manteiga; pouco se consumia carne de vaca, pela dificuldade de criar rezes em lugares impróprios à sua propagação, pelos inconvenientes para a lavoura resultantes de sua propagação, que reduziu êste gado ao estritamente necessário ao serviço agrícola. Um trecho de Frei Vicente do Salvador esclarecia melhor a situação geral: “Não notei eu isto tanto, escreve o historiador baiano, quanto o vi notar a um bispo de Tucuman, da ordem de São Domingos, que por algumas destas terras passou para a Côrte. Era grande canonista, homem de bom entendimento e muito rico; notava as coisas e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe e nada lhe traziam, porque não se achava na praça nem no açougue, e se mandava pedir as ditas coisas e outras muitas a casas particulares lhas mandavam. Então o bispo: “Veramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque tôda ela não é República, sendo-a cada casa”. E assim é que estando as casas dos ricos (ainda que seja à custa alheia, pois muitos devem o que têm) providas de todo o necessário, porque têm escravos pescadores e caçadores que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e azeite que compram por junto, nas vilas muitas vêzes se não acha isto de venda”. - (História do Brasil, ps. 16-17, ed. de 1918).

 

Alguns dos senhores de engenho tinham lojas, ou alguns dos mercadores tinham engenhos, - para o caso presente é a mesma coisa; o caractéristico na mercearia eram o comércio de consignação, que continuou ainda depois da independência, o tráfico de mascates que iam pelos lugares afastados, como ainda hoje, levar miudezas; e mais que tudo, as vendas a crédito, ou permutação de gêneros. A vida econômica tinha suas faces: nas transações internacionais ou antes inter-oceânicas era a moéda o tipo a que tudo se referia; nas transações internas dominavam o naturalismo económico, a permuta do gênero contra gênero, ou empréstimo de gêneros, e encontravam-se aqui todos os característicos ou quase que Hildebrand aturou para esta fase de humanidade.

 

 “Quando os diversos haveres são permutados imediatamente à medida da superabundância e da necessidade, existe a circulação natural, e todo povo começa a sua carreira econômica pela carreira naturalista. Dela são particularidades características.

 

1.o - Circulação de haveres, lenta, geralmente localizada, extremamente irregular, por isso muito pouca divisão de trabalho;

 

2.° - Falta de capitais, porque falecem meios para poupar e assim falta o impulso para a formação de capitais;

 

3.° - Completa dependência da natureza, apatia quanto ao futuro, oscilação constante entre a superabundância e a penúria;

 

4.° - Falta a classe de capitalistas; mesmo depois de definidas as diferenças de classe, só ficam em frente uns dos outros como fatores únicos da produção os possuidores do solo e os trabalhadores;

 

5.° - Só a propriedade de terras dá poder e consideração; o trabalhador, que nada possui dela, depende inteiramente do trabalho e fica adstrito à gleba, pela qual tem de prestar serviços forçados e pagar impostas naturalísticos; o Estado remunera o serviço pela concessão de terrenos; forma-se o Estado feudal;

 

6.° - A coação do trabalhador, a improbabilidade de melhorar de condição dificulta todo progresso considerável; por isso vigora a maior estabilidade”.

 

A falta de capitais restringia muita as manifestações da vida coletiva: não havia fontes, nem pontes, nem estradas. As igrejas, as casas do Conselho, as cadeias eram feitas pelo Govêrno, ou com dinheiro vindo de além-mar, ou com impostos cobrados desapiedadamente. Para as casas e concertos de diversas obras não se podiam dispensar os subsídios do erário. Só as Casas de Misericórdia deviam-se exclusivamente ou quase à iniciativa particular, incitada talvez por motivos egoístas mais ainda que por altruísmo. As sédes de capitanias, mesmo as mais prósperas eram lugarejos insignificantes; a gente abastada possuía aí prédios, mas só os ocupava no tempo das festas; lojistas, oficiais, tinham de acumular ofícios para viver com certa folga.

 

Ajunte-se a isto a desafeição pela terra, fácil de compreender se nos transportarmos às condições dos primeiros colonos, abafados pela mata virgem, picados por insetos, envenenados por ofídios, expostos às feras, ameaçados pelos índios, indefesos contra os piratas, que começaram a acudir apenas souberam de alguma roupa a roubar. Mesmo se sobejassem meios, não havia disposição para meter mãos a obras destinadas aos vindouros; esfolava-se cruamente a terra; tratava-se de ganhar fortuna o mais depressa possível para ir desfruta-la além-mar, onde se encontravam comodidades, abundavam atrativos, a crosta de civilização não se empinava incontrastável e perene. Assegura Pedro de Magalhães que os velhos acostumados ao país daqui não queriam sair mais, é possível; dos moços, a quem não intimidavam a demora e os perigos das largas travessias, de organismos rijos para os caprichos e carrancas da zona temperada, testemunhas contestes afirmam o contrário. Como hoje o português que viveu nesta ao voltar para sua terra ganha o nome de brasileiro, talvez então o mazombo ido para a metrópole torna com os foros de lídimo português, ou reinol, como então se chamava, e isto era mais um incitamento à viagem.

 

Desafeição igual à sentida pela terra nutriam entre si os diversos componentes da população.

 

Examinando superficialmente o povo, discriminavam-se logo três raças irredutíveis, oriunda cada qual de continente diverso entre as quais nada favorecia a medra de sentimentos de benevolência. Tão pouco apropriados a essa floração delicada, antolhavam-se seus descendentes mestiços, mesclados em proporção instável quanto à receita da pele e à dosagem do sangue, medidas naquele tempo, quando o fenômeno estranho e novo em tôda a energia do estado nascente, tendia a observação ao requinte e atiçava os sentidos até exacerba-los, medidas e pesadas com uma precisão de que nem podemos formar idéia remota, botos como ficamos ante o fato consumado desde o berço, indiferentes às peles de qualquer aviação e às dinamisações do seu sangue em qualquer ordinal.

 

Ao lado dêstes fatores dispersivos de natureza etnográfica formavam outros mais de ordem psicológica. Tem sido notado que nas colônias geralmente se distinguem muito as pessoas de raça dominante nascidas na metrópole e as nascidas na dependência. Entre os nossos vizinhos da América latina os filhos de espanhois chamavamse criôlos, nome dado entre nós aos negros aqui nascidos, em Gôa os filhos de Portuguêses chamavam-se castiços; de nossa terra os nomes dos Portuguêses em diferentes pontos dariam matéria a um glossário; naquele tempo eram chamados reinóes, como os filhos de Portuguêses aqui nascidos chamavam-se mazombos. A simples existência do nome dá a entender uma espécie de capitis diminutio (pelo menos a princípio; mais tarde, o padre Antonio Vieira, nascido aliás, no além-mar, em uma carta diz-se mazombo). De ter isto realmente sucedido pode-se apresentar como prova o fato do inglês Knivet, que passou do século XVI ao XVII amargando no cativeiro de Salvador Corrêa de Sá, chamar ao filho dêste, Martim de Sá, de mulato; foi o têrmo de sua língua que mais próprio lhe pareceu para exprimir a fôrça de mazombo.

 

Parece que no Brasil a diferença entre o indígena e o alienígena da mesma raça ainda passou adiante: moleque foi talvez o nome dado pelos africanos a seus Parceiros nascidos no aquém-mar; caboclos eram primitivamente chamados os índios catequizados em aldeias pelos Jesuítas e seus rivais de catequese.

 

Êsse estado centrífugo começou a ceder desde a terceira e quarta decadas do século XVII. Reinóis, mazombos, moleques, caboclos, mulatos, mamalucos, tôdas as denominações se sentiam com tôdas as diferenças que os apartavam irredutivelmente, mais próximos uns dos outros que dos Holandêses, e daí a guerra que de 1624 a 1654 não se interrompeu enquanto o invasor calcou o solo da pátria. O mesmo sentimento de solidariedade foi-se avigorando a ponto de que ao primeiro e segundo decênios do século XVIII o português passou à categoria de inimigo, e rebentaram as guerras dos Mascates entre pernambucanos e dos emboabas entre os páulistas.

 

Antes disto já se efetuara a fundição de Brandonio: quando a respeito da terra assim dizia a Alviano:

 

“Condenso minha pouca memória em vos dizer que isto se remediará quando a gente que houver no Brasil fôr por mais daquela que de presente se há mistér para o grangeamento dos engenhos de fazer açúcares, lavoura e mercearia, porque então os que ficarem sem ocupação de fôrça hão de buscar alguma de novo de que lançar mão, e por esta maneira se farão, uns pescadores, outros pastores, outros hortelões, e exercitarão os demais ofícios, dos que hoje não há nesta terra na quantidade que era necessário houvesse. E com isto assim suceder, logo não haveria falta de nada, e a terra abundaria de tudo o que lhe era necessário, enxergando-se ao vivo a sua grande fertilidade e abundância, com não ter necessidade de coisa nem uma das que se trazem de Portugal; e quando o houvesse fôra de poucas”.

 

***

 

Os esforços até hoje tentados Para levantar o anonimato dos Diálogos das Grandezas do Brasil têm sido perdidos. Para que aventar novas hipóteses? A quem quizer tentar a aventura podem ser indicados dois rastros novos:

 

a) - Diz Brandonio: que em 1583 estava a seu cargo o recebimento dos dízimos de açúcar na capitania de Pernambuco e acrescenta, que era então novo na terra. Entre os contratadores de dízimos da terra conhecemos Bento Dias de Santiago entrou nas guerras de Duarte de Albuquerque Coelho, segundo donatário, feitas depois do embarque de Jorge de Alburqueque em 1565 (Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, os. 198, ed. de 1918). Um alvará de 12 de Fevereiro de 1572 manda levar-lhe em conta certa quantia de dinheiro; outra de 23 de Dezembro de 1575 designa-o como contratador dos dízimas de Pernambuco e Itamaracá. Documentos exitentes por cópia na biblioteca do Instituto Histórico mostram que Bento Dias Santiago arrematou os dízimos de Pernambuco em 1576, 1577, 1578, 1582, 1583, 1584 e 1585. Nos últimos anos arrematou igualmente os da Bahia. No de 1583 obteve uma moratoria de dez dias em seus pagamentos, equivalente aos dez dias suprimidos em Outubro do ano anterior, quando se pôs em vigor o calendário gregoriano.

 

Bento Dias de Santiago, morador em Pernambuco desde 1565 não podia dizer-se novo na terra e está fora de combate; mas um documento de 1582 permite-lhe nomear escrivães para assistir à saida dos açúcares, outro de 1583 fala em seus feitores. O autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil pode ter sido seu feitor ou escrivão: pode ter sido seu parente. Um dos historiadores da guerra pernambucana Diogo Lopes de Santiago, embora caprichosamente Barbosa Machado o considere natural da cidade do Pôrto, o nome está indicando como pertencente à família. Por que dela seria a primeira pessoa amante de escrever?

 

b) - Passemos ao outro rastro.

 

Barcia afirma que o autor dos Diálogos se chamava Brandão, e era vizinho de Pernambuco. Provàvelmente conclui isto da leitura do livro. A conclusão nada tem de repugnante: podia apresentar-se com o nome ligeiramente alatinado, como sem alatinamento aparece Garcia da Orta em seus Colóquios, que o nosso autor conhecia.

 

Os documentos contemporâneos falam em diversas Brandões: o que tem mais probabilidades, ou antes o único a ter probabilidades a seu favor, chamava-se Ambrosio Femandes Brandão, e a respeito dêle encontra-se o seguinte na História de Frei Vicente do Salvador, e em uma sesmaria descoberta pelo meritório Irineu Joffily:

 

Morava em Pernambuco em 1583, e acompanhou Martim Leitão em uma de suas expedições contra os francêses e índios do Paraíba, no pôsto de capitão de mercadores.

 

Antes de 1613 estabeleceu-se na Paraíba, foi por muitas vêzes como capitão de infantaria à guerra contra os gentis Petiguares e Francêses.

 

Antes de 1613 possuia dois engenhos próximos à sede da Capitania chamados Inobi, por outro nome de Santos Cosme e Damião, e o do Meio ou São Gabriel.

 

Em 1613 pediu para fazer outro engenho na ribeira de Gurgaú, uma sesmaria, que de fato lhe foi concedida a 27 de Novembro de 1613.

 

Ignora-se quando faleceu; já não era dos vivos quando os Holandêses tomaram a Paraíba, Os herdeiros de Brandão emigraram; a Companhia das Índias Ocidentais confiscou os três engenhos, vendeu-os a um negociante de Amsterdam chamado Isac de Rasiére, que ao Inobi crismou Amistel, ao de São Gabriel crismou Middelburg, ao de baixo crismou La Rasière.

 

Depois da restauração contra os Holandêses os engenhos dos Brandões caíram nas mãos de João Fernandes Vieira.

 

É, pelo menos, o que assegura um parente de André Vidal de Negreiros, em cujas palavras Varnhagen se louva.

 

J. Capistrano de Abreu.

 

 

 

Aditamento

 

 

Bento Dias de Santiago, o opulento cristão-novo, contratador dos dízimos que pertenciam à fazenda real nas capitanias da Bahia de Todos os Santos, Pernambuco e Itamaracá, obteve por um alvará ou provisão (sem data por incompleta na cópia existente no Instituto Histórico, Conselho Ultramarino - Registros, II, fls. 66v., mas provavelmente de fins de 1582), permissão para nomear escrivães que assistissem à saída dos açúcares; outro alvará, êsse de 25 de Janeiro de 1583, determinou que no Brasil não fossem despachados açúcares sem certidão dos feitores do contratador, seguido de carta régia da mesma data a Manuel Teles Barreto, para que os escrivães das feitorias e alfândegas não passassem despacho de açúcares sem que as partes lhes apresentassem certidão dos ditos feitores de como tinham sido pagos os direitos, ibidem, fls. 77-79.

 

Que Ambrosio Fernandes Brandão foi, como previu Capistrano de Abreu, um dos feitores ou escrivães de Bento Dias de Santiago, - veio confirmar a denunciação do Padre Francisco Pinto Doutel, vigário de São Lourenço, perante a mesa do Santo Ofício, na Bahia, a 8 de Outubro de 1591, em que como tal foi qualificado. Outro foi Nuno Álvares, incluido na mesma denunciação. Eram ambos cristãos-novos, ambos acusados de frequentarem a esnoga de Camaragibe, blásfemos e hereges, que trabalhavam e faziam trabalhar aos domingos e dias santos. Eram, portanto, correligionários, exerciam cargos idênticos e deviam ser amigos.

 

Assim, se Ambrosio Fernandes Brandão é o interlocutor Brandonio:, como está admitido, o inteligente leitor destas linhas será levado a concluir sem maior esfôrço que o outro interlocutor, Alviano:, bem pode ser Nuno Álvares.

 

-       Conf. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil - Denunciações da Bahia, 518-520, São Páulo, Homenagem de Páulo Prado, 1925.

 

R. G. (Rodolpho Garcia)

 

 

 

Diálogo Primeiro

 

 

Alviano: Que bisalho é êsse, Sr. Brandonio:, que estais revovendo dentro nêsse papel? Porque, segundo o considerais com atenção, tenho para mim que deve ser de diamantes ou rubís.

Brandonio: Nenhuma coisa dessas é, sinão uma lanugem que produz aquela árvore fronteira de nós em um fruto que dá do tamanho de um pêcego, que semelha pròpriamente a lã. E porque m’a trouxe agora há pouco a amostrar uma menina, que o achou caída no chão, considerava que se podia aplicar para muitas coisas.

Alviano: Não de menos consideração me parece o modo da árvore que o fruto dela; porque, segundo estou vendo, semelha haver-se produzido do sobrado desta casa, onde deve ter as raízes, pois está tão conjunta a ela.

Brandonio: A umidade de que gozam tôdas as terras do Brasil a faz ser tão frutífera no produzir que infinidade de estacas de diversos páus metidos na terra, cobram e em breve tempo chegam a dar fruto; e esta árvore, que vos parece nascer de dentro desta casa, foi um esteio que se meteu na terra, sôbre o qual, com outras mais, se sustenta êste edifício, que por pender, veio a criar essa árvore, que demonstra estar unida com a parede.

Alviano: Aos que ignorarem êsse segrêdo deve de parecer o modo estranho; mas, contudo, dizei-me: para que efeito imagináveis que se podia aplicar essa lanugem que estáveis considerando?

Brandonio: Parece-me certamente que servira para enchimentos de travesseiros, almofadas, e ainda para colchões, e que também, se fôr fiada, se poderá dela fazer panos, pôsto que chapéus tenho por sem dúvida, que se farão muito bons.

Alviano: Boa graça é essa; pois, quando isso prestara para êsse efeito, não era possível estar tanto tempo escondido sem os homens o haverem experimentado.

Brandonio: Essa razão não conclúi para se deixar de entender que pode muito bem esta lã ou lanugem prestar para o que diga, porque muitas coisas há ainda, assim de frutos como de minerais, por descobrir, que os homens não alcançaram sua propriedade e natureza.

Alviano: Isso entendo eu pelo contrário; porque o mundo é tão velho e os homens tão desejosos de novidades, que tenho para mim que não há nêle coisa por descobrir, nem experiência que se haja de fazer de novo que já não fosse feita.

Brandonio: Enganai-vos nisso sumamente, Sr. Alviano:, porque ainda há muitas coisas por descobrir e segredos não achados que para diante se hão de manifestar.

Alviano: Não me posso persuadir a isso; porque tudo está já tão trilhado, que me parece que todos êsses segrêdos são resolvidos e apalpados dos homens, e sòmente se tem aproveitado dos que acharam ser de proveito que puzeram em uso.

Brandonio: Essa opinião é nova, e como tal engano manifesto; porque quem vos amostrára, há hoje trezentos anos, uma cana de que se faz açúcar, e vos dissera que daquela cana se havia de formar com a indústria humana, um pão de açúcar tão formoso como hoje o vemos, te-lo-eis por causa ridiculosa; e por conseguinte, se vos fosse mostrado pedaço de pano velho de linho, e vos afirmassem que daquele pano se havia de fazer o papel, em que escrevemos, quem duvida que o terieis por zombaria? E da mesma maneira, se vos puzessem diante um pouco de salitre, enxofre e carvão, com vos jurarem que daquêles matemais se havia de compor uma coisa que, chegada ao fôgo, derrubasse muros e fortalezas, e matasse homens de muito longe, não me fica dúvida que, quanto mais vô-lo afirmassem, menos o crerieis; porque haveis de saber que os primeiros inventores das coisas as acharam toscamente com um princípio mal limado, e depois os que lhe sucederam as foram apurando, até as pôrem no estado de perfeição em que hoje as vemos.

Alviano: Confesso o que dizeis, mas também não me haveis de negar que essas coisas, de que nos aproveitamos, são criadas e cultivadas com a indústria e diligência dos agricultores e mestres inventores delas, o que não há nessa vossa lanugem que se tira de uma árvore nascida por acaso por êsses campos; porque o trigo, linho e mais legumes, de que os homens se aproveitam para seus mantimentos e uso são cultivados e grangeados, e por isso dão o fruto perfeito; e é tanto assim, que nunca vimos o trigo ou legumes nascer pelos campos de si, sem serem cultivados dos homens.

Brandonio: Quando essa vossa opinião tivera lugar, parece que se devia também conceder que os homens fôssem os criadores dêsses frutos, a que seria tirar a Deus o haver criado tudo, e pelo mesmo caso blasfemia; pois sabemos bem que Deus criou êsse trigo, linho e legumes Pelos campos, e depois a indústria humana os cultivou para se poder melhor aproveitar dêles; porque nem pela Escritura dizer que Noé plantou vinha, se deve de cuidar que êle fosse o criador dela, sinão que tomou o vidonho, donde estava agreste, criado por Deus nos campos, e o pôz em uso de se cultivar; com o qual levou o fruto mais perfeito. E se o trigo e mais legumes não nascem de per si nos campos, é porque lhe falta a semente; e quando alguma cai, de onde se produz, o gado e as aves a trilham e comem; mas, se fôra semeado em parte onde não pudesse ser destruido das alimarias, êle por si produziria da semente que lhe fôsse caindo ao pé, como fazem as demais plantas.

Alviano: Confesso ser isso assim; porque sei muito bem que as coisas tôdas foram produzidas de um princípio, o qual foi a primeira criação que nelas fêz Deus; e pôsto que vemos alguns frutos, que parecem não ser criados neste princípio, como são as limas dôces, laranjas e outras semelhantes, que a indústria humana se fêz produzir por via de enxertos e outros modos que para isso buscaram todavia a causa de onde procedem são daquelas que por Deus foram primeiramente criadas. Mas esta não é a materia, sôbre que começamos nossa prática, sinão de me parecer que essa lanugem, que dizeis achastes semelhante a lã, deve de prestar para pouco; porque, se fôra de efeito, já os nossos passados se aproveitaram dela; nem me confundem os exemplos, que alegastes, da cana de açúcar, papel e pólvora, porque êsses são uns partos que o tempo produz em muitos decursos de anos; e assim me torno a afirmar, como já disse, que melhor fôra ser êsse bisalho de diamantes ou rubis, que são pedras descobertas e tidas por preciosas desde o princípio do mundo.

Brandonio: E quem vos há de negar que isso fôra de mais proveito pela reputação em que o mundo as tem, por serem reluzentes e campearem muito, com alegrarem a vista com sua formosura; porque delas não sei outra excelência, pôsto que nunca me inclinará a ter minha fazenda embaraçada nessa mercadoria; porque, quando assim fôra, a teria por pouco segura.

Alviano: Peregrina opinião é essa vossa por ser encontrada com estilo, que todos os homens de bom entendimento guardam, porque os tais pretendem sempre ter uma parte de sua fazenda em pedraria pela grande estimação em que está tida para com o mundo, e também por ser causa que em qualquer parte, por pequena que seja, se pode esconder e salvar sem ser achada; e assim, para os casos repentinos que sucedem, fica sendo de muita utilidade para quem as possui; porque nela levam cabedal bastante para suas necessidades, segundo o prêço e estimação das pedras.

Brandonio: Tudo isso é verdade, e ainda concedo que as pedras preciosas alegram o coração com sua vista, e para manenconizados é maravilhoso remédio; e da esmeralda se tem por verdadeiro que, se a pessoa que a trouxer cometer algum ato sensual, se quebra por si, tanto ama a castidade. Contudo me torno a afirmar que não quizera ter a minha fazenda embaraçada em semelhante mercadoria; porque imagino que, assim como, havendo sido a esmeralda entre as pedras preciosas a de mais estima, veio a faltar dela, pelas muitas minas que se descobriram nas Índias Ocidentais, donde se tiram em grande cópia; da mesma maneira se podem descobrir tantas minas de rubís e diamantes, que percam de sua reputação e valia, e as pessoas que as tiverem se achem por esta via sem a fazenda que cuidavam que tinham.

Alviano: Não me parece mal essa vossa opinião, porque tenho visto muitas esmeraldas grandes e perfeitas, que se trazem dessas Índias, e agora, em nossos tempos apareceram outras descobertas nêste nosso Brasil pelo Azeredo, que prometeram no princípio muito de si, mas logo mostraram sua fragilidade, por não serem verdadeiramente esmeraldas: do que infiro que ouro, prata e pedras preciosas são sòmente para os castelhanos, e que para êles as reservou Deus; porque habitando nós os Portuguêses a mesma terra que êles habitam, com ficarmos mais orientais (parte onde, conforme a razão devia de haver mais minas), não podemos descobrir nenhuma em tanto tempo há que nosso Brasil é povoado, descobrindo êles cada dia muitas.

Brandonio: Não se pode tirar aos castelhanos serem bons conquistadores e descobridores; porque atravessaram conquistando, desde Cartagena até Chile e Rio da Prata, que é inumerável terra, pela qual foram achando quantidade grande de minas de ouro, prata, cobre, azougue, e outras diversas, de que hoje em dia gozam e se aproveitam; mas nem por isso, se deve de atribuir aos nossos Portuguêses o nome de ruins conquistadores.

Alviano: Como não, se vemos que em tanta tempo que habitam neste Brasil, não se alargaram para o sertão para haverem de povoar nêle dez léguas, contentando-se de, nas fraldas do mar, se ocuparem sòmente em fazer açúcares?

Brandonio: E tendes essa ocupação por pequena? Pois eu a reputo por muito maior que a das minas de ouro e de prata; como alguma hora vo-lo mostrarei provado claramente. Mas, porque não tenhais aos nossos Portuguêses por pouco inclinados a conquistas, abraçando-vos com essa errônea opinião, vos afirmo que, de quantas nações o mundo tem, êles foram os que mais conquistaram; e senão, lançai os olhos por êsse Oriente, onde nossos avós conquistaram ganhando, à custa de seu sangue tantos reinos opulentos, cidades famosas, províncias ricas, fazendo tributários potentíssimos reis ao império lusitano: o que não sucedeu aos castelhanos, porque as conquistas que fizeram nas Índias Ocidentais e Perú foi por entre gente fraca e imbele, que sempre tiveram as mãos atadas para a sua defêsa, por lhe faltarem armas e ânimos com que pudessem fazer resistência, em tanto que quatro castelhanos, mal armados manietaram reis, poderosos de riquezas, e abundantes de gentes no seu próprio reino e dentro em suas cidades e casas, sem os seus naturais vassalos terem ânimo nem indústria para os saberem defender; o que não sucedeu aos nossos Portuguêses no Oriente, porque fizeram suas conquistas entre gentes belicosíssimas, mui bem armadas, assim de cavalo como de pé, que tinham inumeráveis peças de artilharia, e outros bélicos instrumentes de fôgo, que hoje em dia espanta ao mundo ver a grandeza das balas que lançavam, contra as quais não arreceiavam de opor o peito, largando muitos a vida às mãos de sua fúria. Vêde também tantas ilhas, situadas no meio dêsse grande pégo do Oceano, as quais descobriram e povoaram, êsses reinos de Angola e do Congo, ilhas do Cabo Verde e de S. Tomé, esta grande terra do Brasil; de modo que aos nossos portuguêeses se pode, com razão, atribuir (nas muitas conquistas que fizeram por mar-e terra) o verdadeiro nome de Hércules e de Argonautas.

Alviano: Quem há que possa duvidar disso? Mas o que digo é que neste Brasil fazem curta a conquista, podendo-a fazer muito larga.

Brandonio: É verdade que não se tem estendido muito para o sertão; mas, para isso, haveis de saber que todos os conquistadores, que até hoje descobriram de novo as terras que nos são patentes lançaram mão, e se inclinaram trabalhando naquele exercício de que primeiramente tiraram proveito; de onde vejo que os nossos Portuguêses que povoaram as ilhas dos Açôres, pelos primeiros se haverem lançado em agricultura do trigo, até o presente permanecem nela; os castelhanos, que povoaram as ilhas de Canárias, deram em plantar vinhas, e o mesmo exercício guardam até hoje em dia, e os que povoaram as ilhas do Cabo Verde tiveram proveito da comutação de negros, e com isso vivem e no reino da Angola, da conquista que também fazem dêles, nessa permanecem; na ilha de S. Thomé deram em lavrar açúcar muito negro, com êle continuam até o presente, e tendo aparêlho para o fazer melhor, não se querem ocupar nisso. Os que povoaram as índias Ocidentais, uns se ocuparam na pescaria das Pérolas, outros em fazer anil, outros em ajuntar cochonilha, outros na cria de gados, outros em lavrarem minas, e todos naquele primeiro exercício, em que se exercitaram nêsse permaneceram. nêsse nosso Brasil os seus primeiros povoadores deram em lavrar açúcares; Dois que muito que os de mais os fossem imitando, conforme o costume geral do Mundo, que tenho apontado? E êste é o respeito por onde no Brasil seus moradores se ocupam somente na lavoura das canas de açúcar, podendo se ocupar em outras muitas coisas.

Alviano: Não imagino eu isso nêsse modo: mas antes tenho por sem dúvida, que o lançarem-se no Brasil sòmente seus moradores, a fazer açúcares é por não acharem a terra capaz de mais benefícios: porque eu a tenho pela mais ruim do mundo, onde seus habitadores passam a vida em continua moléstia, sem terem quietação, e sobretudo  faltos de mantimentos regalados, que em outras partes costuma haver.

Brandonio: Certamente que tenho paixão de vos ver tão desarrazoado nessa opinião; e porque não fiqueis com ela, nem com um êrro tão crasso, quero-vos mostrar o contrário do que imaginais. E para o poder fazer como convém, é necessário que me digais se o ser o Brasil ruim terra, é por defeito da mesma terra, ou de seus moradores?

Alviano: Que culpa se pode atribuir aos moradores pela maldade da terra, pois está claro não poderem êles suprir sua falta nem fazerem abundante a sua esterilidade.

Brandonio: Por maneira que me dizeis que à terra se deve atribuir êsse nome que lhe quereis dar de ruim?

Alviano: Assim o digo.

Brandonio: Pois assim vos enganais: porque a terra é disposta para se haver de fazer nela tôdas as agriculturas do mundo pela sua muita fertilidade, excelente clima, bons céus, disposição do seu temperamento, salutíferos ares, e outros mil atributos que se lhe ajuntam.

Alviano: Quando os tivera, creio eu que em tanto tempo, quanto há que é povoada de gente portuguêsa, já tiveram descobertos êsses segrêdos, que até agora não acharam pelos não haver.

Brandonio: Já me há de ser fôrçado fazer-vos retratar dessa erronia em que estais. Não vêdes vós que o Brasil produz tanta quantidade de carnes domésticas e selváticas, que abunda de tantas aves mansas, que se criam em casa, de tôda sorte, e outras infinitas, que se acham pelos campos; tão grande abundância de pescado excelentíssimo, e de diferentes castas e nomes; tantos mariscos e caranguejos que se colhem e tomam à custa de pouco trabalho; tanto leite que se tira dos gados; tanto mel que se acha nas árvores agrestes; ovos sem conta, frutas maravilhosas, cultivadas com pouco trabalho, e outras sem nenhum que os campos e matos dão liberalmente; tanto legume de diversas castas, tanto mantimento de mandioca e arroz, com outras infinidades de coisas salutíferas e de muito nutrimento para a natureza humana, que ainda espero de vo-las relatar mais em particular. Pois à terra que abunda de tôdas estas cousas como se lhe pode atribuir falta delas? Porque certamente que não vejo eu nenhuma província ou reino, dos que há na Europa, Ásia ou África, que seja tão abundante de tôdas elas, pois sabemos bem que, se tem umas lhe faltam outras; e assim errais sumamente na opinião que tendes.

Alviano: Pois de que nasce haver tanta carestia de tôdas essas coisas, se me dizeis que abunda de tôdas elas?

Brandonio: É culpa, negligência e pouca indústria de seus moradores, porque deveis de saber que êste estado do Brasil todo, em geral, se forma de cinco condições de gente, a saber: marítima, que trata de suas navegações, e vem aos portos das capitanias dêste Estado com suas náus e caravelas, carregadas de fazendas que trazem por seu frete, onde descarregam e adubam suas náus, e as tornam a carregar, fazendo outra vez viagem com carga de açúcares, páu do Brasil e algodões para o reino, e de gente desta condição se acha, em qualquer tempo do ano, muita pelos portos das capitanias. A segunda condição de gente são mercadores, que trazem do reino as suas mercadorias a vender a esta terra, e comutar por açúcares, do que tiram muito proveito; e daqui nasce haver muita gente desta qualidade nela com suas lojas de mercadorias abertas, tendo correspondência com outros mercadores do reino, que lh’as mandam; como o intento dêstes é fazerem-se sòmente ricos pela mercância, não tratam do aumento da terra, antes pretendem de a esfolarem tudo quanto podem. A terceira condição de gente são oficiais mecânicos de que há muitos no Brasil de tôdas as artes, os quais procuram exercitar, fazendo seu proveito nelas, sem se lembrarem por nenhum modo do bem comum. A quarta condição de gente é de homens que servem a outros por soldada que lhe dão, ocupando-se em encaixamento de açúcares, feitorizar canaviais de engenhos e criarem gados, com nome de vaqueiros, servirem de carreiros e acompanhar seus amos; e de semelhante gente há muita por todo êste Estado, que não tem nenhum cuidado do bem geral.

 

A quinta condição é daquêles que tratam da lavoura, e estes tais se dividem ainda em duas espécies: a uma dos que são mais ricos, têm engenhos com títulos de senhores dêles, nome que lhes concede Sua Magestade em suas cartas e provisões, e os demais têm partidas de canas; a outra, cujas fôrças não abrangem a tanto, se ocupam em lavrar mantimentos legumes. E todos, assim uns como outros, fazem suas lavouras e grangearias com escravos de Guiné, que para êsse efeito compram por subido prêço; e como o do que vivem é somente do que grangeam com os tais escravos, não lhes sofre o ânimo ocupar a nenhum dêles em cousa que não seja tocante à lavoura, que professam de maneira que têm por muito tempo perdido o que gastam em plantar uma árvore, que lhes haja de dar fruto em dois ou três anos, por lhes parecer que é muita a demora: porque se ajunta a isto o cuidar cada um dêles que logo em breve tempo se hão de embarcar para o reino, e que lá hão de ir morrer, e não basta a desenganá-los desta opinião mil dificuldades que, a olhos imprevistos, lhe impedem podê-la fazer. Por maneira que êste pressupôsto que têm todos em geral de se haverem de ir para o reino, com a cobiça de fazerem mais quatro pães de açúcar, quatro cóvas de mantimento, não há homem em todo êste Estado que procure nem se disponha a plantar árvores frutíferas, nem fazer as benfeitorias acerca das plantas, que se fazem em Portugal, e por conseguinte se não dispõem a fazerem criações de gados e outras; e se algum o faz, é em muito pequena quantidade, e tão pouca que a gasta tôda consigo mesmo e com a sua família. E daqui nasce haver carestia e falta destas coisas, e o não vermos no Brasil quintas, pomares e jardins, tanques de água, grandes edifícios, como na nossa Espanha, não porque a terra deixe de ser disposta pára estas coisas; donde concluo que a falta é de seus moradores, que não querem usar delas.

Alviano: O ser novo ainda neste Estado me faz ignorar dessas grandezas, que me afirmais poder nêle haver, e para que fique melhor inteirado delas a me poder retratar da minha opinião, vos peço que me digais como ou de que maneira pode haver tôdas essas coisas que tendes dito ser o Brasil capaz de produzir? E assim do seu sítio, bom céu, bondade de astros, e outras coisas de que o tendes feito abundante.

Brandonio: Esta província do Brasil é conhecida no mundo com o nome de América, que com mais razão houvera de ser pela terra de Santa Cruz, por ser assim chamada primeiramente de Pedralvares Cabral, que a descobriu em tal dia, na segunda armada que El-rei D. Manuel, de gloriosa memória, mandava à Índia, e acaso topou com esta grande terra não vista nem conhecida até então no mundo, e por lhe parecer o descobrimento notável despediu logo uma caravela ao Reino com as novas do que achara, e sôbre isso me disse um fidalgo velho, bem conhecido em Portugal, algumas coisas de muita consideração.

Alviano: E que é o que vos disse êsse fidalgo?

Brandonio: Dizia-me êle que ouvira dizer a seu pai, como coisa indubitável que a nova de tão grande descobrimento foi festejada muito do magnânimo rei e que um astrólogo, que naquele tempo no nosso Portugal havia de muito nome, por êsse respeito alevantara uma figura, fazendo computação do tempo e hora em que se descobriu esta terra por Pedralvares Cabral, e outrossim do tempo e hora em que teve El-Rei aviso de seu descobrimento, e que achára que a terra novamente descoberta havia de ser uma opulenta província, refúgio e abrigo da gente portuguesa, pôsto que a isto não devemos dar crédito, são sinais da grandeza em que cada dia se vai pondo.

Alviano: Não permita Deus que padeça a nação portuguesa tantos danos que venha o Brasil a ser o seu refúgio e amparo; mas dizei-me se Pedralvares Cabral pôs a esta província nome de terra de Santa Cruz, que razão há para nestes próximos tempos se chamar Brasil, estando tanto esquecido o nome que lhe foi pôsto?

Brandonio: Não o está para com Sua Magestade e os senhores dos conselhos; pois, nas provisões e cartas que passam quando tratam dêste Estado lhe chamam a terra de Santa Cruz do Brasil, e êste nome Brasil se lhe ajuntou por respeito de um páu chamado dêsse nome, que dá uma tinta vermelha, estimado por tôda a Europa, e que só desta província se leva para lá.

Alviano: Pois dizei-me agora da grandeza, com que já me tendes ameaçado, desta província chamado Brasil ou terra de Santa Cruz.

Brandonio: Tem seu principio esta terra, a respeito do que está hoje em dia povoado dos Portuguêses, do Rio das Amazonas, por outro nome chamado o Pará, que está situado no meio da linha equinocial até a capitania de São Vicente, que é a última das da parte do Sul da dita linha, e entre esta primeira povoação e a última de S. Vicente há muitas terras fertilíssimas, povoações, notáveis rios, famosos portos e baías capacíssimas de se recolherem nêles e nelas grandes armadas.

Alviano: Pois dizei-me de cada uma em particular.

Brandonio: O Pará ou Rio das Amazonas, que é nos tempos presentes a primeira terra do nosso descobrimento a respeito das mais que temos povoadas para a parte do Sul, está situada, como tenho dito, na linha equinocinal, onde não temos, até o presente, (por ser novamente povoada) mais que uma pequena fortaleza guardada de poucos e mal providos soldados. Tem de boca mais de oitenta léguas, e no recôncavo dêste seio de tanta larguesa há inumeráveis ilhas, umas grandes e outras pequenas, abastecidas de muitos arvoredos, com sítios excelentíssimos para se poderem fazer nelas grandes povoações, e tôdas estão cercadas de água doce; porque tôda a que ocupa êste grande recôncavo é desta qualidade. A terra firme pelo rio a dentro é fertilíssima, acompanhada de muito bons ares, e por êsse respeito nada doentia; tem muitas excelentes madeiras, capazes para grandes fábricas, muito mantimento de ordinário da terra, muita caça agreste, de que abundam todos os seus campos, muito peixe, que se pesca com pouco trabalho, sadio e saboroso, e de diferentes castas, muito marisco e até o presente (pelo pouco tempo que há que é povoada) não se há feito pelos nossos nenhum benefício na terra; a qual habita gentío de cabelo corredio e côr baça, e que usa da mesma língua de que usam os demais do Brasil.

Alviano: Sabeis porventura de onde trás seu principio tão grande rio?

Brandonio: Os naturais da terra querem que o tenha de uma lagoa, que dizem estar no meio do sertão, de onde afirmam nascerem os demais rios reais e caudalosos, que sabemos por tôda esta costa do Brasil; fortalecem sua razão com mostrarem que na mesma conjunção, em que uns crescem, o fazem os outros, pôsto que o tempo esteja sereno e concertado naquela parte da costa de onde desembocam; mas eu não presuado a meter este rio do Pará (de que tratamos) na conta dos demais para haver de crescer com êles, pelo que tenho ouvido contar a um Peruleiro, homem nobre e rico, e não pouco ciente.

Alviano: E que é o que haveis ouvido a êsse Peruleiro?

Brandonio: No ano de oitenta e seis veio a Pernambuco este homem de que trato, o qual me relatou que havendo-lhe sucedido a um irmão seu, na cidade de Lima, um negócio pesado, pelo qual o vice-rei trabalhava sumamente de o haver às mãos para efeito de fazer nele um exemplar castigo, lhe foi necessário ausentar-se; e por ser buscado por tôdas as partes, temeu que, se caminhasse por longo da costa, pudesse ser achado, e querendo desviar-se dêste temor, se meteu pelo sertão a dentro com outros dois companheiros que o quizeram acompanhar, e tendo andado, segundo seu, parecer, cêrca de cinquenta léguas, encontrara um rio o qual, pôsto que dali tomava principio, no modo do seu canal lhe parecêra que devia de ser caudaloso, ajuntando-se a isto o ver que suas aguas caminhavam contra o Oriente, veio a cuidar que por ventura viria a desembocar desta outra parte, na costa do Brasil, para onde êle desejava sumamente passar; pelo que, provendo-se de alguns mantimentos, que lhe deram as índios que à roda habitavam, a troco do resgate, e havendo dêles mais alguns anzóis, em uma canôa que no próprio rio achou, com os dois companheiros que o seguiam, se metera nela, navegando sempre pela corrente abaixo, por onde de cada vez se ia o rio mais alargando e fazendo o seu canal mais profundo, até que topou com uma cachoeira, por onde as águas se despenhavam, de muito alto, por entre grandes penedos, de modo que para haverem de passar por êles, lhe foi necessário tirar a canôa às costas pela margem do rio até descerem dos penedios; que dali coisa de 150 léguas mais abaixo, segundo sua estimação, acharam também outra cachoeira, que passaram da mesma maneira; de onde navegaram sempre, sem terem outro impedimento, até desembocarem neste rio, de que tratamos, das Amazonas; de onde por ser verão, na mesma canôa, ao longo da costa, passaram às índias, levando por mantimento do muito peixe que sempre pescavam, e alguma água que ajuntavam em cabaços.

Alviano: Se isso passa dessa maneira, podera Sua Magestade forrar muito gasto com navegar a sua prata por êsse rio abaixo.

Brandonio: Assim o afirmava o Peruleiro, dizendo que seu irmão notára, com muita curiosidade que, fazendo-se duas povoações nas duas cachoeiras, que pelo rio acima havia, não tão sòmente podia Sua Magestade navegar por êle abaixo a sua prata, mas ainda os mercadores levariam as suas mercadorias para o Perú pelo mesmo rio acima, com forrarem tão grande gasto quando fazem com elas pelo comprido caminho por onde as levam.

Alviano: E as cachoeiras que dizeis haver nêsse rio, não dariam impedimento a essa navegação?

Brandonio: Para isso dizia êle que era necessário que Sua Magestade mandasse lavrar três equipações de barcos, uns que levassem a fazenda e trouxessem a prata e mais coisas da foz do rio até a primeira cachoeira, e outros que a levassem e trouxessem da mesma maneira, da primeira até a segunda; e outros dali até donde o rio toma princípio; porque, como as partes, nas quais se havia de fazer as tais mutações, estivessem povoadas, seria facil o pôr-se em uso.

Alviano: Se isso passa na forma que êsse Peruleiro vo-lo relatou tenho para mim que não devem de passar muitos anos sem se tratar dessa navegação, com grande utilidade dos mercadores e moradores do Perú. E adiante dêsse rio das Amazonas ou Pará, para a parte do Sul, qual é a primeira povoação?

Brandonio: Segue-se logo o Maranhão, rio famoso, que está situado em dois graus da parte Sul da linha equinocial, o qual el-Rei D. João de gloriosa memória, mandava povoar com uma armada que para êsse efeito ordenou, que, por ruins sucessos e algumas desordens (depois de terem tomado terra) se perdeu, sem se conseguir o efeito para que fôra ordenada; e agora últimamente, em nossos dias, o governador que foi dêste Estado, Gaspar de Souza, tendo notícia verdadeira que se fortificavam e apoderavam franceses daquele grande rio por ordem de Sua Magestade, no ano de 615, ordenou uma armada de que foi capitão Jerônimo de Albuquerque, o qual, com felicíssimo sucesso tomou terra onde, em uma batalha que deu aos Franceses já fortificados nela como o seu governador Monsieur de Reverdere, os venceu e debelou, lançando fora do rio e do sítio de sua fortificação com morte de muitos, ficando a conquista pelos nossos; que hoje está povoada e fortificada por êles, e metida debaixo do império de Sua Magestade, com se tirar por êste modo aos franceses um porto capacíssimo, que tinha naquele rio para seus comércios e abrigo das náus de corsários que vinham de França, todos os amos, a roubar por esta costa do Brasil.

Alviano: Esta terra do Maranhão, que dizeis estar já povoado dos nossos, além da utilidade que segue a êste Estado do Brasil com sua povoação, por não terem nele os corsários abrigo de onde possam reparar as suas náus, tem por ventura outras utilidades Para seus moradores, como tem as demais capitanias dêste Estado?

Brandonio: Até agora as não sabemos, por haver tão pouco tempo que é povoada; mas dá de si grandes esperanças de haver de ir em muito aumento para diante; porque os nossos, de presente tem feito a sua povoação em uma ilha que está à boca da barra, de vinte léguas de largo e de outros tantas de comprido, que, por ser sítio capaz de ser fortificado, e aonde os Franceses o estavam, por se poder dali impedir a entrada da barra, assentaram nele: mas pelo rio acima, que é grandíssimo, na terra firme, se tem descoberto muitas terras fertilíssimas para poderem ser povoadas, com se fazerem muitos engenhos de fazer açúcares, e lavrar mantimento em grande quantidade e nêles se acham tantas madeiras, tão boas e de tanta grandeza, que causam espanto; pelo que me não fica dúvida de se fazer pai-a adiante, naquela nova povoação, um comércio de muita importância.

Alviano: E de que mantimentos usam os moradores que assistem nessa nova conquista para sua sustentação?

Brandonio: Dos mesmos de que se servem os demais moradores dêste Estado, porque se produzem ali em grande cópia; e sobretudo  abunda de muitos e bons pescados, que se tomam com muito pouco trabalho.

Alviano: E de que modo se toma êsse pescado, que dizeis não custar trabalho o haver-se de pescar?

Brandonio: Mandam duas ou três canôas, ou as que querem, de noite, que se vão atravessar no largo do rio, em certo tempo do ano, se põem inclinadas com a borda pendente contra aquela parte donde a maré vem enchendo, e basta para o fazerem assentarem-se os índios, que vão nelas, no bordo que pretendem que se incline; e em outros tempos a arrumam contra a vasante da mesma maneira; e estando assim inclinadas por espaço de duas horas, sem mais outro beneficio, se enchem de peixe excelentíssimo, que por si salta nelas; e como tem recolhido por esta via todo o que lhes é necessário, encaminham para a terra, donde se reparte entre todos os moradores.

Alviano: Se com tanta facilidade se faz a pescaria nêsse rio, abundantes devem estar seus moradores de pescado, e, se da mesma maneira podessem haver as carnes, poderiam dizer que estavam na idade dourada, da qual fabulavam os poetas que manavam rios de mel e de manteiga.

Brandonio: Quando nisso estivera o haverem de gozar dessa idade, também vos poderia afirmar que gozam de carnes excelentes à vida com a mesma facilidade,

Alviano: E de que modo?

Brandonio: Mandam algumas canôas pelo rio acima, e nelas homens exercitados para o efeito que levam consigo farpões, e em certas paragens, por recôncavos que o rio vai fazendo, em braços e lagoas, que forma pela terra a dentro, acham grande quantidade de peixes, a que chamam bois, maiores muito do que aquêles de que tomam o nome, de uma proporção e figura estranha, que estão nas tais partes juntos, como em viveiro, e ali os matam às farpoadas fàcilmente; porque se deixam achar sem serem buscados, por andarem sôbre a água. E estes peixes-bois não têm nenhuma diferença (comida de qualquer modo que seja) de carne de vaca; antes é tão semelhante a ela que vi já muitas pessoas que a comeram por tal, e depois com se lhe dizer e afirmar que era peixe a que comeram, o não quizeram crer. Assim que êstes peixes-bois, que se tomam por esta via em grande quantidade podem servir aos moradores do Maranhão, na falta que padecem de carnes, pôsto que para adiante virão a gozar de muita, por ser a terra assás disposta para criação de gados; além de que se acha pelos campos e matos muita caça de animais agrestes, gostosos de comer e de muito nutrimento.

Alviano: Pelo que me dizeis do Maranhão novamente povoado, entendo que virá a ser para adiante uma capitania (como chamam às demais do Brasil) de muita importância; pelo que, deixando-a de parte, vos peço que me digais do sítio, qualidade das demais povoações, que se vão continuando pela costa adiante para a parte do Sul.

Brandonio: A outra povoação que segue, pôsto que pequena de moradores e sitio, se chama Jaguaribe, está situada em quatro gráus da parte do Sul da linha equinocial, a qual não promete para adiante muita grandeza, por a terra de seus derredores não servir para mais que para mantimentos; pôsto que a sua costa é fertilíssima de ambre gris, muito esmerado, que costuma sair dela, em certos tempos do ano, em grandes pedaços, donde se colhe e se vende a mercadores e outras pessoas, que o levam e mandam para o reino; o qual é, lá, muito estimado, por ser êle de si perfeito e alvíssimo.

Alviano: Se o ambre sái fora do mar nessa paragem, em muita quantidade não deixará de ir essa povoação em aumento, por que a riqueza dêle suprirá a pobreza da esterilidade da terra.

Brandonio: Os capitães passados do Rio Grande tiravam muito proveito de o mandarem resgatar com o gentío, antes da costa estar povoada, e agora, com o estar, cessaram de o fazer; e por isso fica sendo o triênio de sua capitania de pouca importância, a qual está conjunta a esta de Jaguaribe.

Alviano: Pois dizei-me dela.

Brandonio: A capitania do Rio Grande, que foi povoada e fortificada, por mandado de Sua Magestade, por Manuel Mascarenhas Homem, capitão que era de Pernambuco, e por Feliciano Coelho de Carvalho, capitão que era da Paraíba, no ano de 1597, está situada a seis graus da parte do Sul, tem na boca da barra uma fortaleza muito bem provida, assim de soldados pagados da fazenda de Sua Magestade, como de artilharia, com a qual se defende a entrada dos piratas franceses naquele porto, onde costumavam a ir espalmar as suas náus, e a prover-se de água e mantimentos, e ainda a carregar de páu Brasil, que compravam ao gentío da terra a trôco de resgate. Assiste nesta capitania um capitão de Sua Magestade a qual se provê de três em três anos.

 

Não há nela engenhos de fazer açúcares mais de um até êste ano de 1618, por a terra ser mais disposta para pastos de gado, dos quais abunda em muita quantidade até entrar na capitania da Paraíba que lhe está conjunta.

Alviano: Deixemos logo êsse Rio Grande por estéril, e passemo-nos à capitania da Paraíba; porque já a vi gabar de muito boa e fértil, e juntamente me afirmaram que custara muito dinheiro à fazenda de Sua Magestade, e aos moradores de Pernambuco não pequeno trabalho e despêsa, a sua conquista e povoação.

Brandonio: A capitania da Paraíba está situada em sete graus e meio da parte do Sul; mete-se entre ela e a de Tamaracá o Cabo Branco, bem conhecido dos navegantes.

 

Esta capitania é de Sua Magestade por se haver povoado à custa de sua fazenda e da mesma maneira o são as demais para a parte do Norte, de que até agora tratamos. A Paraíba, por ser fertilíssima e lavrar muitos açúcares nos engenhos, em que se fazem, que no seu distrito estão situados não poucos em número, ocupa o terceiro lugar em grandeza e riqueza das demais capitanias dêste Estado; porque, tirada a capitania de Pernambuco, que com muita razão tem o primeiro lugar de tôdas, e logo a da Bahia, a quem se dá o segundo lugar, pôsto que seja cabeça de tôda a província do Brasil, por assistir nela o Governador Geral, Bispo e Casa da Relação, logo esta capitania da Paraíba ocupa o terceiro lugar; porque dá ela rendimento à fazenda de Sua Magestade nos dízimas, que se pagam da colheita de suas novidades de açúcar, gado, mandioca, e, mais legumes, em cada um ano, passante de doze mil cruzados; e êstes afora o que lhe montam nas alfândegas do Reino os açúcares que nelas entram levados nesta capitania, que são em muita quantidade. - E tenho por sem dúvida, que, se não estivera tão conjunta com a capitania de Pernambuco, que já se houvera aumentado no seu crescimento, com se haver começado a povoar por poucos e pobres moradores, pôsto que mui valorosos soldados, do ano de 1586 a esta parte; por que, no mesmo ano, me lembra haver visto o sítio onde está situada a cidade agora cheia de casas de pedras e cal e tintos templos, cobertos de matos.

Alviano: E que dano é o que faz a capitania de Pernambuco a estoutra com sua vizinhança? - por que eu tenho para mim que antes lhe devia ser de proveito, por se poderem seus moradores prover com facilidade dela de todo o necessário pela sua vizinhança.

Brandonio: Antes isso é causa de não haver sido ela em mais crescimento: porque, como tem Pernambuco tão chegado os seus moradores se costumam a prover dela das coisas de que têm necessidade, fazendo levar, para êsse efeito, muitos açúcares que comutam pelo que compram, com o que engrandecem de cada vez mais a capitania de Pernambuco, e diminuem na sua. E a razão é porque deixam vir as náus a ela, que viriam, se os seus moradores esperassem por elas para se haverem de prover do que lhes fosse necessário, para êsse efeito reservarem os seus açúcares, tendo-os prestes para com êles se carregarem as ditas náus; mas, como estão já providos de Pernambuco, onde têm despendido os seus açúcares, as náus que vêm ao seu porto não podem dar a saida que quizeram às fazendas que trazem, nem menos carregarem com a brevidade que lhes era necessária e por êste respeito vêm poucas, sendo a capitania capaz de carregar em cada um ano vinte náus.

Alviano: Êsse inconveniente podera Sua Magestade remediar com facilidade, mandando que se não navegassem dessa capitania açúcares para a de Pernambuco, e com isso ficará atalhado êsse dano.

Brandonio: Assim o tem mandado; mas o descúido dos capitães, pouco cuidado e menos curiosidade dos do governo da terra em o fazerem cumprir, ajuntando-se a isso a muita facilidade com que os governadores gerais dispensam o contrário, desbarata tudo, de maneira que só deixa de levar açúcares para Pernambuco aquêle que não tem.

Alviano: Não devera de ser assim; porque sendo essa capitania da Paraíba de Sua Magestade, tinham obrigação seus vassalos e ministros de trabalharem para aumentar, e não procurar de engrandecer a capitania de Pernambuco, que é de senhorio; por êsse modo, com dano tão notável de estoutra de seu Rei, que lhe tem custado tanta despêsa a povoação dela.

Brandonio: Sim, custou com muitos capitães e armadas, que para o efeito de sua conquista mandou ao Reino; com presídio de Castelhanos, que assistiram na guarda de suas fortalezas; o que nunca vimos nas demais conquistas que se fizeram por todo êste Estado.

Alviano: E qual é a razão por que meteu Sua Magestade mais cabedal na povoação e conquista desta capitania da Paraíba que costumava meter nas demais?

Brandonio: Foi por respeito do seu bom porto, no qual costumavam os piratas franceses ir a reparar suas náus, e ainda a carregar de páu do Brasil, que comutavam por resgate com o gentío Petiguar, e com êle e mais prezas que tomavam pela costa, tornavam a fazer sua navegação para França em notável prejuízo de todo o Estado do Brasil; e tudo se atalhou com Sua Magestade se fazer senhor do seu porto e barra que, por ser com muita fôrça defendida dos Piratas franceses confederados com o gentío Petiguar, senhor de todo o sertão, belicosíssimo e inclinado a guerras, custou muito trabalho e despêsa fazê-los reduzir à nossa amizade, e desviá-los da que tinham com os franceses, sendo fôrçado aos nossos, para se haver de conseguir êste efeito, fazerem muitas entradas com mão armada, pelo sertão a dentro, principalmente a uma serra, que chamam de Copaoba, onde estava o gentío junto em muita quantidade, por ser fertilíssimo, e como tal se afirma dela produzira muito trigo, vinho, e outras frutas de nossa Espanha.

Alviano: Qual é a razão por que se não aproveitam os nossos dessa serra, que dizeis ser tão abundante?

Brandonio: Não o fizeram até agora, por estar um pouco desviada para o sertão e o gentío que nela habitava andar desinquieto; mas já agora tem mandado Sua Magestade que se povoe, elegendo para efeito da dita povoação Duarte Gomes da Silveira, com título de capitão-mar da mesma serra, onde assistem já, na doutrina dos índios, religiosos da ordem do patriarca S. Bento, com muito fruto de suas almas, e a um homem amigo meu de crédito ouvi afirmar, com outros mais, haver-se achado, nos tempos atrasados, na mesma serra, uma novidade e estranheza que me causou espanto.

Alviano: Pois não me encubrais o que vos disse êsse homem haver achado nessa serra.

Brandonio: Relatou-me por coisa verdadeira que, andando Feliciano Coêlho de Carvalho, capitão-mor que foi da dita capitania pela mesma serra, fazendo guerra ao gentío Petiguar, aos 29 dias do mês de dezembro do ano de 1598, se achara junto a um rio chamado Arasoagipe, que, por ir então sêco, demonstrava sòmente alguns poços de água, que o calor do verão não tinha ainda gastado, e que alguns soldados, que foram por êle abaixo, toparam nas suas fraldas, com uma cova, da banda do poente, composta de três pedras, que estavam conjuntas umas com outras, capaz de se poderem recolher dentro quinze homens; a qual cova tinha de alto, para a banda do nascente, de sete a oito palmos, e da banda do poente, trêze até quatorze palmos; e ali por tôda a redondeza que fazia na face da pedra se achavam umas molduras, que demonstravam, na sua composição, serem feitas artificialmente. Primeiramente à banda do poente desta cova, na face mais alta dela, estavam cinquenta mossas tôdas conjuntas, que tomavam princípio debaixo para cima de um tamanho, que semelhavam, no modo com que estavam arrumadas o em que se pinta por retablos o rozario de Nossa Senhora; e no cabo destas mossas se formava uma moldura de rosa desta maneira: . E é de advertir que os mais dos caracteres, que se demonstravam nesta cova, se arrumavam da banda do poente, aonde da parte direita das cinquenta mossas, em um cotovelo que a pedra fazia, se demonstravam outras trinta e seis mossas, como as demais; das quais nove delas corriam do comprido para cima, e as outras tomavam através contra a mão esquerda, em cima delas tôdas estava outra rosa, como a primeira que tenho pintada: e logo, um pouco mais abaixo, estava outra semelhante rosa, e junto dela um sinal que parecia caveira de defunto, e logo, contra a mão esquerda, se formavam doze mossas semelhantes às demais e no alto delas, que era conjunto às cinquenta primeira, pareciam uns sinais ao modo de caveiras, e da banda direita do cotovelo estava uma cruz e logo, para a banda esquerda, na face da pedra, se demonstravam, em seis partes, cinquenta mossas. Em uma das partes estavam uma rosa mal clara, porque parecia estar gastada de tempo, e logo adiante estavam outras nove mossas semelhantes à primeiras, e, por tôda a redondeza da cova se viam pintadas outras seis rosas, e na pedra, que se assentava em meio das duas, estavam vinte e cinco sinais ou caracteres que abaixo debuxarei, divididos em três partes, com mais três rosas, que os acompanhavam. O que de tudo era mais de consideração, era o estar entre duas pedras muito grandes, uma que botava a borda sôbre as outras arcadamente, com estarem tão juntas, que por nenhuma parte davam lugar a se poder meter por elas o braço. E na pedra de mais baixo da cova pareciam doze mossas da própria maneira das que temos mostrado, e no meio delas se formava um circulo redondo desta qualidade . Com mais uma rosa, pintada perfeitamente; e é de notar que tôdas as rosas eram de uma mesma maneira, exceto uma que tinha doze folhas com a do meio. E pela redondeza desta cova estavam as molduras que tenho dito, ou caracteres que se formavam na maneira seguinte :

 

 

Êstes caractéres todos nos deram debuxados na forma que aqui vô-los demonstro.

 

Alviano: Certamente que imagino, pelo que noto dêsses sinais que me amostrais, que devem de ser caractéres figurativos de coisas vindouras, que nós não entendemos porque não me posso persuadir que a natureza esculpisse de por si êsses pontos, rosas e demais coisas, sem intervir a indústria humana. E pois não podemos entender semelhante segrêdo, deixai-as assim debuxadas para outros melhores entendimentos, e passemo-nos a tratar do mais que há que dizer da capitania da Paraíba.

Brandonio: Governa-se por um capitão-mor que de três em três anos é provido por Sua Magestade, tem na boca da barra uma fortaleza provida de soldados pagos de sua fazenda, com seu capitão. Não está bem fortificada por culpa dos governadores gerais, que se descuidam de o mandarem fazer. A cidade que está situada pelo rio acima ao longo dêle, pôsto que pequena, todavia é povoada de muitas casas, tôdas de pedra e cal; e já nobrecida de três religiões que nela assistem, com seus conventos, a saber: o da ordem do patriarca S. Bento, e os religiosos de Nossa Senhora do Carmo, com os do Serafico padre S. Francisco, da província capucha de Santo Antonio, que tem um convento suntuoso, o melhor dos daquela ordem de todo o Estado do Brasil; no espiritual é esta capitania da Paraíba cabeça das demais, da parte do Norte, de Pernambuco adiante; por quanto se intitula o prelado Administrador da Paraíba. É capaz a capitania de lançar de si todos os anos vinte náus cai-regadas de açúcares: parte, para a banda do Sul, com a capitania de Tamaracá.

Alviano: Pois dizei-me dela.

Brandonio: Está situada a capitania de Tamaracá em altura de oito gráus, da banda do Sul da linha Equinocial, dela é hoje senhor, por Sua Magestade, o conde de Monsanto: tem a povoação em uma ilha conjunta no seu porto e barra, chamada Tamaracá, da qual toma o nome tôda a capitania, que contém em si muito boas terras, pelas quais há engenhos de fazer açúcares, que pagam pensão ao senhorio, a que não fazem os moradores que são das capitanias de Sua Magestade; porque estas pensões lhe importam muito, juntamente com a redízima, que se lhe deve por suas doações, de todo rendimento que a fazenda de Sua Magestade colhe dela. No antigo teve cinquenta léguas de costa, nas quais entrava o distrito da Paraíba, de que Sua Magestade a desmembrou, por haver povoado à sua custa: parte com a capitania de Pernambuco, entre as quais estão metidos marcos, que dividem as suas terras.

Alviano: Passemo-nos à capitania de Pernambuco, porque desejo sumamente ouvir tratar dela em particular, pela muita fama que tem adquirido no mundo de grande, rica e abundante de tudo.

Brandonio: Essa capitania é tal que se antecipa a sua riqueza e abundância à fama que dela dão os que a viram pelo olho: é de senhorio, porque de presente é capitão e governador dela, por Sua Magestade, Duarte de Albuquerque Coelho, a quem importam as pensões, redízima e outros direitos que dela colhe, em cada ano, ao redor de vinte mil cruzados, importando os seus dízimas, alfândega, páu do Brasil, no estado em que está hoje, à fazenda de Sua Magestade perto de cem mil cruzados; isto afora os açúcares que se navegam e entram nas alfândegas da Reino, onde pagam os dízimos devidos nelas. Está situada em oito gráus e dois têrços da parte do Sul da linha equinocial. Chama-se a principal vila do seu distrito, aonde concorre e sé ajunta todo o comércio, Olinda nome que lhe deram seus primeiros Povoadores, depois que descobriram de um alto, onde está situada, a formosa vista que campêia a qual pela exagerarem por tal disseram Olinda. Está esta vila situada em uma enseada, da qual saem duas pontas ao mar; de unta delas se forma o cabo tão conhecido no mundo por Santo Agostinho, e a outra se chama a ponta de Jesus, por nêle estar situado um formoso templo dos padres da companhia, chamado do mesmo nome. Contém em si tôda a capitania cinquenta léguas de costa, que toma princípio de onde parte com a ilha de Tamaracá até o rio S. Francisco; e dentro nelas há infinitos engenhos de fazer açúcares, muitas lavouras de mantimentos de tôda a sorte, criações sem conta de gado vacum, cabras, ovelhas, porcos, muitas aves de bolateria e outra,s domésticas, diversos gêneros de frutas, tudo em tanta copia que causa maravilha a quem o contempla e com curiosidade o nota. Dentro da vila de Olinda habitam inumeráveis mercadores com suas lojas abertas, colmadas de mercadorias de muito prêço, de tôda a sorte, em tanta quantidade que semelha uma Lisboa pequena. A barra do seu porto é excelentíssima, guardada de duas fortalezas bem providas de artilharia e soldados, que as defendem; os navios estão surtos da banda de dentro, seguríssimos de qualquer tempo que se levante, pôsto que muito furioso, porque tem para sua defêsa grandíssimos arrecifes, onde o mar quebra. Sempre se acham nêle ancorados, em qualquer tempo do ano, mais de trinta navios; porque lança de si, em cada ano, passante de cento e vinte carregados de açúcares, páu Brasil e algodões. A vila é assás grande, povoada de muitos e bons edifícios e famosos templos, porque nela há o dos padres da Companhia de Jesus, o dos padres de S. Francisco, da ordem capucha da província de Santo Antonio, o mosteiro dos carmelitas, e o mosteiro de S. Bento com religiosos da mesma ordem; em todos êstes mosteiros assistem padres de muita doutrina, letras e virtudes. De pouco tempo a esta parte a dividiu sua santidade, com mais as capitanias de Tamaracá, Paraíba e Rio Grande, do bispado da Bahia de Todos os Santos, criando nelas novamente por administrador Antonio Teixeira Cabral, prelado mui consumado nas letras e virtudes, com título de administrador da Paraíba. Acha-se mais na vila um recolhimento para mulheres nobres com nome de mosteiro de freiras, pôsto que até o presente vivem sem regra. É capaz tôda a capitania de Pernambuco de pôr em campo seis mil homens armados com oitocentos de cavalos; porque tôda a gente nobre são por extremo bons cavaleiros, e, por se prezarem muita disso, costumam a ter seus cavalos bem ajaezados e paramentados. Os padres da companhia têm escolas públicas, aonde ensinam a ler e escrever e latinidade, e pelos mais mosteiros se leem as artes e teologia, donde saem consumados teólogos. Pela terra a dentro, pôsto que seus moradores se não alarguem muito pelo sertão, há muitas coisas que notar por grandes, assim de rios caudalosíssimos, árvores de suma grandeza, alagoas e outras coisas; e a mim me lembra no ano de mil e quinhentos e noventa e um, vindo de seguir uns inimigos Petiguares, em cujo alcance fui com a gente armada, por haverem dado um assalto na mata do Brasil, aonde mataram alguns homens brancos, encontrar com uma cova, a que o gentío da terra dava o nome de camucy, muito digna de consideração.

Alviano: Pois dizei-me o que vistes nessa cova.

Brandonio: Cheguei a par dela de noite, aonde me aposentei com a gente que me seguia, por me convidar a fazê-lo um rio, que por ali corria de frigidíssima água; depois de estarmos aposentados, mostraram os índios grandíssimo pavor de se avizinharem à boca da cova, e crescendo de cada vez mais êste receio, o qual passava ainda nos mamelucos filhos de brancos, dizendo que indubitavelmente morreria logo todo aquele que ouzasse entrar pela cova a dentro, e tão arraigado estava êste temor nêles que fui não poderoso a lh’o tirar, com lhes pedir que não arreceiassem de chegar à cova porque lhes afirmava que era graça e disparate mui grande o cuidarem que os poderia matar; o que vendo que aproveitava pouco com todos êles, desejei ver a causa de tanto receio, e querendo por em efeito êste desejo, com dois soldados que me quizeram acompanhar, levando outros tantos brandões acesos, entrei pela boca da cova, achando grande resistência nos morcegos de que estava povoada, que, espantados na claridade, vinham saindo para fora, com nos darem grandes porradas no encontro que conosco faziam; contudo passamos adiante, caminhando pela cova a dentro, que se alargava em algumas partes, e em outras se tornava a estreitar, até que topamos com um pequeno ribeiro, que por debaixo corria de frigidissima água, o qual passado, se alargava mais a cova, fazendo um reconcavo, pelo qual (oh! coisa estranha!) estavam arrumados inumeráveis alguidares, que, por serem muitos, me não arremeço a querer-lhe sinalar número, que cada um dêles tinha em si a ossada de defunto inteira com a caveira em cima, porque parece haver servido aquela cova de mortuário antigo do gentío; e do que mais me maravilhei foi afirmarem-me os índios, pôsto que eu não o experimentei, que muitas pessoas brancas haviam já entrado naquela cova, e que, quebrando alguns alguidares daqueles, e tornando a entrar outro dia, nela os achavam inteiros e sãos e com a ossada dentro.

Alviano: Isto tenho eu por fábula, pôsto que o modo da cova me parece estranho, e folgara de saber se pelos seus arredores se demonstravam alguns vestígios de povoações que por ali houvesse havido, antigos; porque então creríamos haver-se trazido delas essas ossadas a sepultar naquele lugar por êsse modo; mas não os havendo, parece grande curiosidade trazerem-se de longe para efeito de os meterem ali dentro.

Brandonio: Ao redor da cova não havia sinão grandes matas, que, no modo de sua composição e grandeza, davam indício de serem criadas logo depois do diluvio universal.

Alviano: Assás de grandezas me tendes relatado dessa capitania de Pernambuco, das quais não me espanto, pelo muita que já o vi engrandecer; e, para que levemos a costa enfiada, dizei-me que povoação lhe fica mais vizinha para a parte do Sul?

Brandonio: Segue-se-lhe logo a povoação e fortaleza de Sergipe del-Rei, situada em 11 gráus, coisa pequena, e só abundante de gado, que naquela parte se cria em grande cópia. É capitania de Sua Magestade, onde tem uma fortaleza e capitão com soldados, que defendem o porto dos piratas, vedando-lhes o fazer suas aguadas e prover-se do necessário, como costumavam fazer antes de ali haver fortaleza vizinha com a capitania da Bahia, cabeça de todo êste Estado do Brasil.

Alviano: Pois dizei-me das grandezas dessa capitania, que não devem ser pequenas, pois a fêz Sua Magestade cabeça de um Estado tão grande.

Brandonio: A capitania da Bahia está situada em 13 gráus da banda do Sul da linha equinocial.

 

É de Sua Magestade, e como tal cabeça do Estado do Brasil, por ser séde aonde reside o governador geral; porque ali lhe manda Sua Magestade ter o seu assento, pôsto que, de poucos anos a esta parte, se há defraudado êste mandato em grande maneira; porque se contentam mais os governadores de assistirem na capitania de Pernambuco, ou seja por tirarem dela mais proveito ou por estarem mais Perto do Reino que disso não saberei dar a causa certa. Também é a Bahia séde da cadeira episcopal, aonde assiste o bispo na sua sé com cônegos, clerisia e mais dignidades, pagados todos da fazenda de Sua Magestade do rendimento dos dízimos; e da mesma maneira assiste na cidade, que toma o nome de Bahia de Todos os Santos, a Relação, com muitos desembargadores, chanceler-mor, juiz dos feitos del-Rei e da fazenda, com seu provedor-mor, e provedor-mor dos defuntos, os quais determinam e decidem as causas de todo o Estado do Brasil, com alçada em bens móveis até 3.000 cruzados; porque passando da dita conta dão apelação para a Relação da cidade de Lisboa. Todos êstes desembargadores e mais oficiais da casa são pagos de seus salários da fazenda de Sua Magestade.

Alviano: Tenho ouvido a muitos homens experimentados nas coisas do Brasil que essa Relação, que assiste na cidade da Bahia, dá mais Perda ao Estado do que causa proveito a seus moradores.

Brandonio: Verdade é que a Relação da Bahia se podera muito bem escusar, e dessa opinião fui eu sempre, e assim o signifiquei por muitas vêzes ao bispo de Coimbra, D. Afonso de Castelbranco, sendo governador de Portugal; porque, além de fazer essa casa muita despêsa à fazenda de Sua Magestade, podendo reservar o dinheiro que com ela gasta para outras cousas mais úteis para seu serviço, ela não corresponde com aquele efeito que se imaginou fizesse com a sua assistência no Brasil; e o engano nasceu de que, como os moradores de todo este Estado se achavam molestados e agravados das insolências de que usavam os ouvidores gerais, que antes da casa tinham a administração da justiça em sua mão, por se livrarem de tão pesada carga, concorreram a Sua Magestade, pedindo-lhe que lhes mandasse uma casa de Relação ao Brasil que assentasse na Bahia de Todos os Santos, na forma que estava assentada no Estado da Índia, na cidade de Gôa; no que se enganaram porque poderam reduzir a justiça em melhor forma. E pelo não considerarem então bem, se acham agora envoltos no dano presente.

Alviano: Folgára de saber qual é o dano que causa a Relação que assiste na Bahia aos moradores do Estado; porque creio que, se Sua Magestade entendera que não lhe era de proveito, escusara de despender tanto dinheiro, como despende em sustentá-la.

Brandonio: O dano é êste; todos os moradores dêste Estado, como nas capitanias onde moram são liados uns com outros por parentesco ou amizade, nunca levam seus preitos tanto ao cabo, que lhes seja necessário concorrerem por fim com a apelação dêles à Relação da Bahia; porque, antes disso, se metem amigos e parentes e por meio, que os compõem e concertam; de maneira que põem fim às suas causas, e daqui nascem ir poucas por apelação à Bahia, e essas que vão lhe fôra de mais utilidade a todos os moradores do Brasil seguirem-nas para o Reino. Porque a mim me aconteceu já (não uma, senão muitas vêzes) mandar alguns papéis a despachar à Bahia, e no mesmo tempo que os mandava para lá, mandar outros semelhantes para o Reino, e virem-me os do Reino muito antecipados dos da Bahia; porque, como tôda essa costa se navega por monções, sucede encontrar-se com alguma contrária, o que dilata muito o despacho dos negócios. De mais que não há nenhum morador em todo êste Estado, tão desamparado, que não tenha no Reino algum parente ou amigo, a quem possa mandar seus papéis dirigidos por apelação, e mandando juntamente com êles um caixão de açúcar, basta para a sua despêsa; o que não acontece na Bahia, porque nem todos têm lá parentes ou conhecidos, e, em falta dos tais, lhes fica sendo forçoso haverem de seguir pessoalmente suas causas com muita despêsa que fazem na jornada, sendo-lhes necessário levarem para isso dinheiro de contado, que custa muito a ajuntar-se no Brasil, o que não sucede, como tenho dito, nos papéis que se mandam ao Reino, porque basta encomendarem-se a parentes ou amigos e para sua despêsa um caixão de açúcar; pelo que tenho considerado que devera Sua Magestade (neste negócio de justiça) tomar outro meio mais útil, e que redundara em comum benefício do Estado.

Alviano: E que meio é êsse que poderá Sua Magestade tomar?

Brandonio: Tirando e extinguindo de tôda a casa da Relação da Bahia, podia em seu lugar criar no Estado três corregedores com título de comarca, da maneira que os há no Reino, e com a mesma alçada; e quando se lhe acrescentassem mais alguma quantidade, não o teria por desacertado. Destes corregedores havia de mandar que assistisse um na Paraíba, por ser cidade real, o qual conhecesse, por apelação e agravo, de todos os feitos que viessem a êle dante os juizes e ouvidores da capitania de Pernambuco e seus distritos, e da capitania de Tamaracá, e da mesma capitania da Paraíba e da capitania do Rio Grande e das mais povoações do Maranhão e Pará, enquanto Sua Magestade não dá outra ordem no seu govêrno. O outro corregedor dos três havia de assistir na cidade da Bahia de Todos os Santos, conhecendo, por apelação e agravo, dos feitos que a êle viessem dante os juizes e ouvidores de Sergipe del-Rei, da mesma Bahia e das capitanias de Boipeva, Ilhéus e Pôrto Seguro com seus contornos. O terceiro corregedor da comarca havia de assistir no Rio de Janeiro, e tomar da mesma maneira conhecimento, por apelação ou agravo, de tôdas as causas que a êle viessem dante os juizes e ouvidores da capitania do Espírito Santo, do mesmo Rio de Janeiro e capitania de S. Vicente, vila de S. Páulo e seus contornos. E dos tais corregedores havia de haver apelação e agravo nas quantias que não coubessem em sua alçada para a Relação da cidade de Lisboa, com terem expresso regimento que cada um dêles, nas capitanias de seus distrito, não pudessem entrar mais que por correição, que nela gastaria sòmente trinta dias, e passante êles não seriam obedecidos, por se atalhar com isto a muitos inconvenientes que se seguiriam do contrário, ficando remediadas grandes opressões que os moradores dêste Estado de presente padecem.

Alviano: Folgarei que me digais quais são essas opressões.

Brandonio: São muitas e grandes. Por qualquer negócio, pôsto que leve, em que uma pessoa é pronunciada pela justiça à prisão, lhe é necessário concorrer à Bahia por carta de seguro; porque se lhe não pode passar senão lá, o que lhe custa muito enfadamento, tempo e despêsa, com o, no entretanto, haver de andar homisiado. De mais que de qualquer incidente que se agrave do julgador convém seguir-se o agravo à Bahia, com muito descomodo e despêsa da parte agravante, e enquanto demora em ir e tornar, que é muito tempo, o julgador vai correndo com a causa por diante, em muito prejuízo dos litigantes, o que não sucederia quando tivessem o corregedor da comarca vizinha, porque, pela vizinhança das capitanias de seu distrito, podia-se concorrer a êle com muita brevidade e pouca despêsa. Mas não sei no que nos havemos metido desviando-nos de nossa prática, pois tratamos de coisas que não estão em nossa mão o remediá-las.

Alviano: Não vos pese de as haver tratado, porque pode suceder que esta nossa prática passe ainda à mão de pessoa, que a possa manifestar aos senhores do conselho de Sua Magestade, para que lhe dêm o remédio conveniente.

Brandonio: Queira Deus que assim seja. E assim deixando esta materia de parte, me passo a tratar das demais grandezas da Bahia de Todos os Santos, da qual, o porto e barra é uma obra grandíssima, capaz de recolher dentro de si inumeráveis náus, pôrto que de muito porte, e por ser coisa tão grande se recolhem dentro muitas baleias nas quais fazem Biscainhos, que para o efeito ali residem, grande matança para haverem de tirar delas azeite, que lavram em quantidade donde se leva para as demais capitanias do Estado a vender. O seu recôncavo é assás largo, no qual há muitas ilhas e rios, que nela desembocam entre enseadas e esternos, pela borda dos quais, ao redor dêste grande recôncavo, estão muitos engenhos de fazer açúcares, os quais se servem de grandes barcas para carregamento da cana e lenha, por lerem os demais dêstes engenhos ou quase todos a serventia por mar, por lhe ficar assim mais facilitada para o meneio do açúcar. A cidade está situada em um alto medianamente grande, guardada de três fortalezas postas em sítios acomodados Para sua defensão; tem a sua sé com dignidades, cleresia e cônegos, aonde reside o bispo, com mais quatro. Mosteiros de religiosos, a saber: o dos Padres da Companhia de Jesus e os da Ordem de S. Bento, os Carmelitas e as Capuchos da província de Santo Antonio. Importa o rendimento dos dízimas ao redor de sessenta mil cruzados em cada um ano; é povoada de gente nobre e rica; tem o princípio do seu distrito do rio de S. Francisco, e chega até à capitania de Ilhéus.

Alviano: Passemo-nos a tratar das demais capitanias e povoações.

Brandonio: Adiante da capitania da Bahia, a primeira povoação, que está nas fraldas do mar é Boipeva. É de pequeno comércio; é de senhorio; por quanto esta povoação com os Ilhéus é de Francisco de Sá de Menezes, senhorio de ambas por Sua Magestade.

Alviano: Pois dizei-me dos Ilhéus.

Brandonio: A capitania dos Ilhéus está situada em 13 gráus da parte do Sul da linha equinocial; é de presente, coisa pouca e de pequeno rendimento, pôsto que a terra do seu distrito é fertilíssima, capaz de se poder nela fazer muitos engenhos de açúcar, o que impede haver efeito de muitas correrias que nela faz o gentío chamado Aimoré com dano notável dos moradores; e dela se tem esperança haver de dar muito de si para adiante, pelo seu bom sítio e qualidade do seu terreno.

Alviano: Assim o ouvi já dizer e afirmar a muitas pessoas que me gabaram muito a fertilidade de suas terras. E, pois não há mais que dizer desta capitania, passemo-nos a de Pôrto Seguro que está conjunta.

Brandonio: Essa capitania de Pôrto Seguro está situada em 16 gráus e meio da banda do Sul. É do duque de Aveiro, que dela é senhor por Sua Magestade; tem poucos engenhos de fazer açúcares, e por êsse respeito colhe Sua Magestade pequeno rendimento nos dízimos dela, e por conseguinte o senhorio nas suas redízimas e pensões; porque o mesmo gentío aimoré, que disse, molestava a capitania dos Ilhéus, faz de ordinário também grande dano nesta; e por isso não vai no crescimento que poderá ir por ter boníssimas terras e capacíssimo sítio para tudo. Acaba os seus limites para a parte da capitania do Espírito Santo.

Alviano: Pois dizei-me desta capitania.

Brandonio: A capitania do Espírito Santo está situada em 20 gráus da banda do Sul da equinocial. É de senhorio, e de presente se intitula capitão dela, por Sua Magestade, Francisco de Aguiar Coutinho; contém em si alguns engenhos de fazer açúcares; é terra larga e abundante de mantimentos, de muito bálsamo, de que seus moradores se aproveitam, lavrando com êle contas e outros brincos, que mandam para a Espanha, onde são estimados por serem cheirosos.

 

Desta capitania foi Marcos de Azeredo ao descobrimento das minas de esmeraldas, que havia fama haver no sertão; com efeito chegou a elas, e trouxe grande cópia de pedras que no princípio se tiveram por perfeitas, mas depois se acharam faltas de muitas qualidades que deviam ter para serem verdadeiras esmeraldas.

Alviano: Foi pouco venturoso êsse descobridor em perderem essas pedras a primeira estimação, porque sem isso não ficaram sendo para êle tesouro. E assim passemos avante, correndo pela demais costa, porque já sei que tem também essa capitania do Espírito Santo mosteiros de Religiosos que a enobrecem.

Brandonio: Adiante da capitania do Espírito Santo, para a parte do Sul, está a do Rio de Janeiro, nome que lhe foi pôsto por se descobrir noutro tal dia, a qual está situada em 23 gráus. É de Sua Magestade, onde tem uma galharda fortaleza bem abastecida de artilharia, munições, e soldados e um capitão pôsto por êle de três em três anos; tem uma cidade, pôsto que pequena, bem situada, a qual é de presente de grande comércio; porque vem a ela muitas embarcações do Rio da Prata, que trazem riqueza muita em patacas, que comutam por fazenda, que ali compram; donde tornam a fazer viagem para o mesmo rio. Também neste Rio de Janeiro tomam porto as náus que navegam do Reino para Angola, onde carregam de farinha da terra, de que abunda tôda esta capitania em grande quantidade e dali a levam para Angola, onde se vende por subido prêço. Tem alguns engenhos em que se lavram açúcares, e êstes anos passados foi cabeça de govêrno e séde do governador: porquanto apartou Sua Magestade, governando o Brasil D. Diogo de Menezes, três capitanias, a saber: a do Espírito Santo, e esta do Rio de Janeiro e a de S. Vicente, e as incorporou em um novo govêrno, de que fêz governador D. Francisco de Sousa, a título de descobrir as minas de ouro de S. Vicente, de que vinha feito Marquês, quando se conseguisse perfeito descobrimento delas. E com sua morte se atalharam estas esperanças, que não eram pequenas. Assiste mais na dita capitania, para o tocante ao espiritual, um administrador; que tem à sua conta a administração da mesma capitania e da do Espírito Santo e de S. Vicente, isento da jurisdição do Bispo; o qual sòmente por apelação pode conhecer das coisas que ante êle se tratam. Tem Mosteiros de Religiosos, como as demais capitanias que as enobrecem grandemente.

Alviano: Fico já bem inteirado das coisas dessa capitania do Rio de Janeiro, pelo que delas tendes referido, e assim podemos passar a tratar da de S. Vicente, que cuido que é a que lhe está mais conjunta.

Brandonio: A capitania de S. Vicente é a última das que temos povoado nesta grande costa do Brasil. Está situada em 24 graus da parte do Sul do Equinocial; é de senhorio, e dela foi capitão e governador, por doação régia, Lopo de Sousa, e por sua morte lhe sucedeu D. Francisco de Faro. Tem duas vilas, uma que está situada ao longo do porto, que toma o nome de S. Vicente, e outra mais para a sertão, chamada de S. Páulo; e lavram-se nesta capitania poucos açúcares, mas é muito abundante de carnes e de muitas frutas de nossa Espanha, que se produzem nela com facilidade, principalrnente marmelos de que se fazem muitas marmeladas, que dali se leva para todo o Estado do Brasil; e agora com as minas de ouro, que nêle se descobriram se vai aumentando, e houveram já de estar muito, se os seus moradores ou os nossos Portuguêses fossem mais curiosos de lavrarem minas do que são; porque eu vi grão de ouro, tirado de suas minas, como a natureza o criou, que tinha de pêso sete mil réis.

Alviano: Não deve ser pobre a mina que tão grande grão cria em si com ser de lavagem, como essas o são; e passando isso assim, não sei que razão haja para se não fazer muito cabedal delas.

Brandonio: A pobreza dos moradores, que habitam no distrito da capitania, sem se ajuntar também a isso pouca indústria, é causa de se não colher de suas minas muito ouro. E os que as poderão lavrar, com levarem à dita capitania fábrica de escravos e mais cousas para o efeito necessárias, o não querem fazer. E por êste respeito estão essas minas quase desertas; pôsto que tenho para mim que também deve de ser causa disso haver-se começado a lavrar por onde se houveram de acabar, porque o primeiro que se devia de fazer, antes de se bolir nelas, depois de estarem certos que eram de proveitos, houvera de ser plantarem-se muitos mantimentos ao redor do sítio onde elas estão, e como os houvesse em abundância, tratar-se da lavoura das minas; mas isto se fêz pelo contrário, porque, sem terem mantimentos, entenderam em tirar o ouro, e como as minas estão muito pelo sertão, os que vão levam de carreto o mantimento necessário, e como se lhe acaba, tornam-se, e deixam a lavoura, que tinham começada. E esta cuido que é a verdadeira causa de darem as ditas minas pouco de si.

Alviano: Pois eu tenho para mim que para o diante hão de vir a ser essas minas de muita importância. E, pois temos chegado à última capitania da parte do Sul, das que estão povoadas de Portuguêses, dizei-me quanto espaço há de costa por tôdas estas povoações de que haveis tratado?

Brandonio: Desde o Pará ou rio das Amazonas, que está situado na linha equinocial, até à capitania de S. Vicente, há de costa quase setecentas léguas, e de Norte a sul, contado por rumo direto, quatrocentas e vinte léguas; terra bastantíssima para se poder situar nela grandes reinos e impérios. A costa corre por algumas partes do Norte a Sul, por outras de Noroeste Sueste e de Leste Oeste; e o que mais espanta é ver que tôda esta grande costa, assim no sertão como nas fraldas do mar, tem excelentíssimo céu e goza de muito bons ares, sendo muito sadia e disposta para a conservação da natureza humana,

Alviano: Isso entendo eu pelo contrário; porque, se os antigos não se enganaram, é zona que foi julgada por inhabitável por muito quente; e por êste respeito os moradores da costa de Guiné e da mais costa oposta a esta do Brasil gozam de ruins ares, que causam muitas doenças nelas. E se isto é verdade, não vejo causa por onde os que habitam o Brasil, estando no mesmo paralelo e debaixo do mesmo zenith, possam gozar de bons ares e céus, faltando tudo isto à outra que lhe corresponde.

Brandonio: Isto vai já sendo tarde, e a dúvida que agora me moveis é dificultosa de soltar: pelo que me parecia acertado que reservássemos a sua prática para o dia de amanhã, que neste mesmo lugar vos esperarei para tratar dessa matéria, que não deve de ser pouco curiosa.

Alviano: Assim seja, e eu terei cuidado de acudir com tempo.

 

 

 

Diálogo Segundo

 

 

Alviano: Parece-me que um mesmo cuidado devia de ser o que nos trás a ambos a êste lugar num mesmo ponto; porque de mim vos confesso que me não deixou tôda esta noite repousar a prática, que deixamos ontem imperfeita com a dúvida que pus.

Brandonio: Para que levemos enfiado o que havemos de dizer, tornai a repetir essa dúvida.

Alviano: Duvidei poder ser esta terra do Brasil de tão bom temperamento, como apontáveis, por razão da maior parte de sua costa cair naquela tórrida zona, tão arreceiada dos antigos por muito quente, em tanto que a faziam inhabitável. E de terra que não podia ser habitada por seu ruim temperamento, fez-me grande dúvida o dizerdes-me que era tão sadia para a natureza humana.

Brandonio: Verdade é que a tórrida zona onde cái grande parte desta costa do Brasil, foi julgada dos antigos por inhabitável pelo muito calor que imaginavam devia haver nela, da qual hoje já temos experimentado o contrário; porque a achamos tão temperada e conforme para a natureza humana, que bem se puderam largar as outras duas temperadas pelas incomodidades das injúrias, que nelas faz a mudança dos tempos a seus habitadores, causa de tantas enfermidades e buscar esta por ser habitação tão acomodada, que a temperânça do calor e frio anda tão regulada que não vemos nunca alterar mais num tempo, que noutro.

Alviano: Pois haveis de dar logo licença para que creia que os filósofos antigos, como então havia no mundo falta de homens que houvessem apalpado e trilhado com os pés estas partes, então ocultas e agora já há anos patentes, filosofaram aquelas coisas fantásticas que conceberam nas idéias, as quais vendiam em seus escritos por verdadeiras e indubitáveis, e por tais foram recebidas, enquanto a experiência, que hoje temos tomado delas, não mostrou ser tudo ao revez do que êles afirmaram.

Brandonio: Verdade é que Ptolomeu, Lucano, Averoe com outros filósofos afirmaram ser a tórrida zona inhabitável, pôsto que Pedro Paduense, Alberto Magno e Avicena, pelo contrário, tiveram que era habitável; mas os primeiros, pôsto que erraram em dizerem absolutamente que a tórrida zona era tôda inhabitável, por se encerrar do meio que há do trópico de Cancro ao de Capricórnio, todavia tomaram fundamento de tão aparentes razões e causas que, com estarmos hoje vendo e experimentando o contrário do que êles afirmaram, caso que muitos o têm por duvidoso.

Alviano: Não sei eu que dúvida possa haver em coisa tão certa e tão trilhada de todos.

Brandonio: Não digo que há; mais afirmo que as razões que davam os passados eram tão aparentes, que ainda hoje, com se saber o contrário delas, têm muita fôrça para todos aqueles que as examinaram com curiosidade, porque já sabemos que o sol não alonga dos trópicos, e que cada um dêles está desviado da Equinocial 24 gráus pouco mais ou menos, que vem a ser do princípio de um trópico ao outro 48°: êste é o caminho que faz o sol em o decurso de um ano, com passar duas vêzes pela chamada tórrida zona; pelo que, sendo isto assim, no que não há dúvida, não se podia cuidar que a houvesse, para que parte, que continuamente era acompanhada e visitada de raios retos do sol, deixasse de ser por extremo cálida; mormente tendo-se já experimentado que as zonas temperadas, com não estarem tão próximas a êle, nem serem visitadas dos seus raios retos duas vêzes no ano, eram tão cálidas no verão, que davam muita moléstia aos seus habitadores, com o seu grande calor; pois, sendo isto assim, no que não há dúvida, que mal fizeram os antigos, ou em que erraram em haverem afirmado que esta parte tão continuada dos raios do sol fosse em extremo cálida, e como tal incapaz de ser habitada?

Alviano: Pois em que estava o segrêdo dêsses filósofos haverem errado?

Brandonio: Em nenhuma outra coisa senão que, como lhes faltava a experiência desta zona, ignoraram os ventos frescos que nela de ordinário cursam, exceto em pequeno espaço da costa, e que chamamos de Guiné; os quais são poderosos para resfriarem os ares; de maneira que causam um temperamento tão singular, para a humana natureza, que tenho por sem dúvida, ser esta zona mais sadia e temperada que as mais; porque o calor, que nela causa o sol de dia, é temperado com a umidade da noite; e também porque Saturno e Diana, planêtas por qualidade frios, fazem nestas partes mais influência, por se comunicarem nelas por linhas mais retas. E assim, o afirma Juntino, sôbre a declaração da esfera de Sacro Bosco; e Avicena não se desvia de entender que é muito temperada para a habitação humana. E é tanto isto assim, que não faltam autores que querem afirmar estar nesta parte situado o paraíso terreal, e fortificam sua razão com dizerem que a Equinocial partia o dia pelo meio, com partir os trezentos e sessenta e cinco círculos a que chamamos do dia, deixando para cada uma das partes cento e oitenta e dois e meio, donde vem a ser forçado que os dias sejam iguais das noites. Pelo que os habitantes desta zona alcançam haver com a vista qualquer estrêla que nasça ou se ponha em qualquer dos polos. E também, porque passa o sol por este clima duas vêzes no ano, afirmaram causar o tempo nela dois invernos e dois verões, no que também se enganaram; pois sabemos não haver mais de um, porque quando o sol se alonga para a parte do Norte da linha, sucede o inverno para a parte do Sul; e, quando torna a passar o sol para a mesma parte, causa-se o verão; porque parece que a Equinocial lhe fica servindo para divisão do tempo. E assim vêm a ter os habitantes desta zona cinco sombras no ano; porque, quando o sol está no ponto do Equinócio, no sair dêle, faz a sombra contra o Poente, e à tarde contra o Levante, e ao meio dia debaixo dos pés; e, quando o mesmo sol anda nos signos setentrionais, faz, pelo oposto, a sombra para a parte do Austro.

Alviano: Conforme a isso, poderei cuidar que de tal maneira erraram os antigos em dizer que esta zona era inhabitável, que foi o seu êrro tanto conforme à razão que ainda hoje, com termos experimentado o contrário do que afirmaram, os devemos desculpar, pelo êrro não ser outro senão o da experiência que lhes faltava desta costa, que nós pelo miúdo trilhamos nestes próximos tempos; com que não poderam ter noticia dos ventos, que de ordinário cursam por tôda ela, bastantes até resfriar os ares, que, por natureza, deviam ser calidíssimos. Mas parece-me que haveis dito que a Equinocial fica servindo de divisão dos polos do mundo, pelo que, conforme a isso, se ela divide uma coisa da outra, de fôrça deve ter algum corpo com a qual possa fazer a tal divisão, o que nós não vemos.

Brandonio: Não disse que a Equinocial dividia os polos do mundo, porque tivesse corpo para fazer a tal divisão, senão disse que mostrava que os dividia; porque a Equinocial não é outra coisa senão um círculo imaginado dos astrólogos na oitava esfera, que a aparta em duas metades iguais, e igualmente se aparta de ambos os polos do mundo, Norte e Sul. Chama-se Equinocial, porque quando o sol passa por ela que é duas vêzes no ano, no principio de Aries a vinte e um de março, e no principio de Libra a vinte e três de setembro, se fazem os equinocios, que não é outra coisa senão ficarem os dias artificiais iguais com as noites; e isto se deve de entender sòmente onde há variedade nos dias de vinte e quatro horas; porque aquelas terras, que estão diretamente debaixo dos polos, têm os dias de seis meses e as noites de outros tantos. Também se chama esta linha equinocial igualadora do dia e da noite, porque, por tôda a parte por onde passa, faz que sejam os dias iguais; da mesma maneira parte o primeiro movimento porque o movimento, conforme dizem os filósofos, se deve de divida (sic) a divisão do móbil; pelo que se imaginou esta linha equinocial para efeito de, na esfera material, se poder compassar e regular os movimentos dos orbes celestes. E assim esta linha vem a dividir pelo meio a chamada tórrida zona, que está situada entre os dois trópicos, com o que vem a ter de largura quase oitocentas e vinte quatro léguas, das quais a metade, que são quatrocentas e doze, ficam para a parte do trópico de Cancro, e a outra metade para o de Capricórnio. E para a banda de Leste corre por tôda esta zona a costa africana de Guiné, povoada de gente preta, e para estoutra parte de Oeste, fica a costa das Índias, e esta do Brasil, povoada de gente baça.

Alviano: Já ouvi tratar a alguns homens doutos da ocasião que havia para nessa africana costa chamada de Guiné e de Etiópia, todos seus moradores, naturais da terra, serem de côr preta e cabelo retorcida, não se achando semelhante côr nem cabelo em nenhuma das outras gentes que habitam pela redondeza do mundo; e pôsto que da causa davam algumas razões, vos confesso que me não satisfizeram por me parecerem pouco aparentes.

Brandonio: E que razões são as que ouvistes dar para se haver de provar a estranheza que essa gente tem na côr e cabelo diferente de tôda outra? Diziam que a quentura do sol que de ordinário visita esta zona duas vêzes no ano com raios retos, era causa da diferença da côr e cabelo nesta gente; mas contra isto há tanto que dizer que, por nenhum modo me posso persuadir a cuidar que dai nasça a causa; outros também afirmavam que as influências dos céus, que se ajuntavam com a qualidade particular da terra, era a verdadeira causa, pôsto que a mim me não parece; e entre êstes achei outros que diziam que alguns homens, depois do universal dilúvio das águas deviam de ter semelhante côr e cabelo, ou por qualidade ou natureza, e dêles se comunicaria aos filhos e netos, que são os que habitam pela costa africana; mas de tôdas estas razões, que ouvi dar a êstes homens reputados por doutos, vos afirmo que nenhuma me satisfez, pelo que estimarei saber a opinião que tendes sôbre esta matéria.

Brandonio: Não cuido que nos desviamos de nossa prática (que é tratar sòmente das grandezas do Brasil) com nos meter em dar definição à matéria que tendes proposta; porquanto neste Brasil se há criado um novo Guiné com a grande multidão de escravos vindos dela que nêle se acham; em tanto que, em algumas capitanias, há mais dêles que dos naturais da terra, e todos os homens que nele vivem tem metida quase tôda sua fazenda em semelhante mercadoria. Pelo que, havendo no Brasil tanta gente desta côr preta e cabelo retorcido, não nos desviamos de nossa prática em tratar dela.

Alviano: Assim é, mas antes convinha que se não passasse isto em silêncio, pois todos os moradores do Brasil vivem, tratam e trabalham com esta gente vinda de Guiné; pelo que podeis dar principio ao que desejo saber, que eu vos fico que não descontenta a ninguém semelhante proposta, quando lhe demos a definição tal qual convém.

Brandonio: Quanto a se dizer que de alguns Pais que fossem pretos se devia de produzir êste inumerável gentío de côr preta e cabelo retorcido, o tenho por cousa ridiculosa, porque, se êsses primeiros pais era forçado que fossem filhos de Adão, e depois descendentes de Noé, no que não pode haver dúvida, mal podiam tomar a côr e cabelo, que não herdaram dêles; pois não vimos até hoje no mundo que de pais brancos se produzissem filhos negros.

Alviano: O contrário tenho eu já ouvido, lido e ainda visto por próprios olhos, que muitos pais brancos produziram filhos negros; como se conta da outra matrona que, estando com seu esposo no ato venereo, ao tempo de conceber, tendo pôsto os olhos na figura de um negro que ante êles estava pintado em um pano de armar, pôde tanto aquela imaginação do que via presente, que o filho que concebeu daquele ajuntamento saiu negro, como se fosse engendrado de pais que o fossem; e outros casos semelhantes tenho lido haver sucedido no mundo. E há poucos anos que no reino de Angola uma negra pariu de um negro, seu marido, dois filhos de um ventre, um dêles da côr de seus pais, que era negra, e o outro tão alvo e louro, como se fôra nascido em Alemanha, e filho de alemão. E ainda vi por próprios olhos neste Brasil, na vila de Olinda, no ano de seiscentos (1600), u’a menina, filha de pai e mãe naturais da própria terra, que são de côr baça, tão alva e loura quanto a natureza a podia fazer; pôsto que tinha as carnes tão brandas e macias que bastava lançarem-na a dormir sôbre uma esteira para se levantar dela com chagas pelo corpo, a qual soube depois haver vivido pouco.

Brandonio: Verdade é que de pais brancos nasceram muitas vezes filhos negros, e por conseguinte de pais negras filhos brancos; mas não haverá nenhum que o houvesse visto, nem achado escrito, que os filhos dêsses que nasceram negros ou brancos o fossem da mesma maneira os seus descendentes; porque se a natureza por algum incidente nos tais mudou a côr, nunca teve tanta fôrça que pudesse prevalecer com ela de geração em geração; mas antes, imediatamente, os filhos daquelas que nasceram pretos ou brancos, tornam logo a cobrar a natural côr dos avós, na qual para o diante perseveram os mais filhos que vão engendrando; pelo que, dado que os primeiros pais gerassem alguns filhos negros, por algum incidente, como tenho dito, pois êles de necessidade haviam de ser descendentes de Adão, e depois de Noé, que foram de côr branca, logo os seus filhos e netos haviam de tornar a cobrar a côr branca dos avós; pelo que não se deve fazer caso de tal opinião.

Alviano: Poderemos logo cuidar que as influências dos céus, juntas com a qualidade da terra, hajam produzido o tal efeito?

Brandonio: Também tenho isso por falso; por que as influências dos céus, juntas à qualidade da terra, poderão ter fôrça para que a parte, onde dominam seja mais ou menos sadia para a habitação humana, e também para haver de causar poucas ou muitas enfermidades; mas que, absolutamente tenham fôrça para haverem de mudar a côr, que era branca por natureza em negra, não é possível, nem tal se pode imaginar.

Alviano: Pois não há dúvida de haver causa pela qual este inumerável gentío que habita pela costa, a que chamamos de Guiné, tenha a côr preta e cabelo retorcido, e, se a sabeis, vos peço m’a digais.

Brandonio: A mais verdadeira causa que se pode dar dessa côr e cabelo é o efeito que a sol produz, visitando duas vezes no ano com raios retos os moradores dessa costa africana, e por êstes raios do sol ferirem retamente naquela parte faz mais impressão nos seus moradores do que nas outras, onde se comunicam ao soslaio e oblíquos: e assim esta é a causa verdadeira da côr negra e cabelo retorcido, que vemos em tôdas os moradores daquela costa.

Alviano: Isso que agora dizeis entendo certamente que vai mais desencaminhado de tudo o que temos apontado; porque, se os raios do sol causam na tal parte a mudança da côr e cabelo, se seguiria que os nossos Portuguêses, que há muitos anos habitam por elas, teriam a mesma côr, e, por conseguinte, os negros que são levados dessa costa para a Espanha e outras partes do mundo, onde há muitos anos que residem, haviam de ter, pelo oposto, mudada a côr negra em branca, principalmente os filhos dos tais que lá nascem, o que não vemos, mas antes os negros, que lá residem, tão negros são êles e seus filhos, como os outros que núnca sairam da sua terra. E por conseguinte, os Portuguêses, que nela de muitos anos habitam e seus filhos, não deixam de ser brancos; pelo que parece não causarem os raios do sol o efeito que tendes apontado.

Brandonio: Não se tornarem os negros nascidos em Guiné, depois de transpostos na nossa Espanha, brancos não é argumento bastante para confundir o que temos dito; porque, em tão poucos anos, como há que se costuma levar à Espanha, não era possível mudarem a côr, que tantos séculos dêles adquiriram seus avós, habitantes naquela zona; demais que, se a geração dos negros, que lá vivem, fosse continuada em os mesmos que, juntamente, foram levados daquelas partes, propagando-se entre os filhos, netos, e bisnetos, descendentes dos mesmas, tenho por sem dúvida, que já houveram mostrado a côr menos negra; mas isto passa pelo contrário, porque os filhos daqueles que primeiramente foram levados tornam a ter ajuntamento com as mulheres ou homens que novamente são trazidos; e por esta maneira toma de cada vez nêles a se ir refrescando a côr negra adquirida de seus avós em tanta decurso de tempo. E, é tanto isto assim, que os nossos Portuguêses, que habitam por tôda aquela costa, que houvessem sido por qualidade e natureza alvos e louros, mostram em breve tempo, a côr mais baça, em tanto que Por ela é conhecido na nossa Lusitânia qualquer homem que houvesse andado pela casta de Guiné, sòmente pela côr que levam demudada no rosto; os filhos dos tais nascidos em Guiné, vão logo tomando a côr mais baça, e pelo conseguinte os netas; pelo que se, em decurso de pouco mais de cem anos que os Portuguêses cursam aquela navegação, se mostra tanta mudança na côr naqueles que a frequentam, que maravilha é terem os daquela costa a côr negra, em tantos séculos de anos que nela habitam?

Alviano: Por maneira que todavia quereis afirmar que os raios do sol sejam causa da côr que nessa gente vemos?

Brandonio: Não tão sòmente afirmo que os raios do sol sejam a causa de tal côr, mas também quero dizer até de terem os cabelos retorcidos; porque haveis de saber que, depois do dilúvio universal das águas começaram os filhos e netos de Noé a se dividirem pela redondeza da terra, como assentar cada um dêles vivenda na parte ou região que mais lhe contentava; donde os descendentes do perverso Cham e seu filho Chanão vieram a povoar pela costa africana nesta chamada tórrida zona, que, por acharem tão temperada e acomodada para habitação humana assentaram nela vivenda pelos lugares marítimos; porquanto aqueles primeiros povoadores sempre buscaram o mar para haverem de viver às fraldas dêle, pelas muitas comodidades que disso se lhe seguiam. E assim, havendo sido povoada aquela costa destas gentes de tantos séculos de anos a esta parte, que muito é que os raios do sol, dos quais são visitados duas vêzes no ano retamente, andando-lhe sempre vizinho, lhes tornasse a côr branca, que primeiramente tinham herdado de seus pais e avós nesta negra, que agora lhes vemos; pois é certo que qualquer coisa, se fôr queimada, pôsto que branca, se torna preta e da mesma maneira digo que o mesmo sol foi e é a causa de terem o cabelo retorcido, pois temos bem experimentado que qualquer cabelo, que fôr chegado ao calor do fôgo, se frange logo e faz-se retorcido. Pois sendo isto assim, no que não há dúvida, não deve de fazer espanto que os cabelos daquelas gentes crestadas por tanto espaço de tempo aos raios do sol, se tornassem encrespados; pelo que tenho por sem dúvida, que a côr preta e cabelo retorcido, que vemos nos naturais daquela costa, os raios do sol foram poderosos para obrarem nêles o tal efeito.

Alviano: Quando isso houvera lugar na forma que o tendes proposto, o mesmo efeito, que dizeis que o sol causa nesses moradores da costa africana, houvera de causar em todos os mais habitantes do mesmo paralelo, e debaixo do mesmo zenith, o que vemos pelo contrário, pois, no mais, dentro do coração desta tórrida zona, por onde atravessa a linha equinocial estão as Índias Ocidentais, e esta grande costa do Brasil, que assim uma como a outra, é povoada de gente de côr baça, e quando os raios do sol houvessem sido os que obraram o efeito nessa outra gente, que tendes dito, também o devia de causar nesta outra; pois vivem debaixo do mesmo paralelo, o que vemos que sucede pelo contrário.

Brandonio: Bem haveis duvidado, assim vos confesso que devera de suceder, se não houvesse duas cousas principais que o estorvam, nas quais fortifico as minhas razões; e assim digo que todos os habitantes por esta costa do Brasil e Índias teriam a mesma côr preta e cabelo retorcido, que têm os outros que habitam a costa oposta da África, senão foram os ventos frescos com que tôda esta costa é lavada de ordinário; com os quais se resfriam os ares e terra, de maneira que não deixam lugar pára que o sol com seus raios obre nela o efeito que faz na outra de Guiné.

Alviano: Por essa maneira deveis de querer que cuide que pela costa de Guiné não cursam ventos, e que se cursam são tão poucos, que não bastam para resfriarem os ares e terras, como fazem neste Brasil; e eu sei, por m’o haverem dito pessoas dignas de fé, que, em muitas partes da casta africana, costumam a cursar ventos frescas.

Brandonio: É verdade que muita parte desta costa não carece de ventos, mas êsses todos se lhe comunicam por cima da terra; porque, como os ventos mais ordinários desta zona são Lestes, aos que habitamos esta casta do Brasil vêm da parte do mar, sendo, por êsse respeita, frigidíssimos e frescos, e aos da costa de Guiné vêm por cima da terra; e assim trazem consigo os ruins vapores e calor da mesma terra de onde nasce serem aquelas partes tão doentias e de tão ruim habitação para aquêles que as frequentam, sendo, pela oposto a do Brasil muito sadia e acomodada para a natureza humana, do que é a verdadeira causa os ventos frescos que de ordinário da parte do mar nela cursam. E experimentamos ser isto assim com os terrais que de madrugada costumam a ventar, os quais por tôda esta g1.ande costa americana, são mui prejudiciais para a saúde dos homens, que, por êsse respeito, costumam a fazer suas casas de habitação em forma que não estejam sujeitos a êles, e disto é só a causa de então ventarem da parte da terra; pelo que não há dúvida de ser esta uma das razões para os moradores e naturais do Brasil terem a côr baça, e não preta, como têm os de Guiné.

Alviano: Aprovo a definição, e a tenho por mui aparente; mas, para ficar melhor inteirado nesta matéria, vos peço que me digais a segunda razão, em que me dissestes fortificáveis a vossa.

Brandonio: A outra razão é que os moradores desta costa do Brasil não são tão antigos na povoação dela como são os negros da oposta costa de Guiné, dos quais sabemos, por escrituras autênticas que, depois de os filhos de Cham, donde descendem, virem a povoar aquelas partes, sempre continuaram até o dia de hoje na mesma habitação e terra, sem haver sucedido acidente nem coisa alguma, que os apartasse dela; antes sempre foram continuando a sua propagação, juntando-se com as mulheres de sua mesma nação, há tantos séculos de anos, o que não aconteceu aos moradores dêste Brasil; porque são gentes adventícias a êle muito depois, e por esta razão, e a que já tenho dada, dos ventos frescos que por tôda esta costa cursam da parte do mar, se livram seus moradores de terem também côr preta e cabelo retorcido.

Alviano: E que razão me podeis dar para que êstes moradores do Brasil e Índias sejam mais modernos na habitação das mesmas terras que os da costa da África?

Brandonio: Desses moradores da costa africana nos consta, por escrituras dignas de fé, do antiquíssimo tempo que há que vieram assentar vivenda por aquelas partes e das gentes desta costa do Brasil não temos notícia, de que se possa fazer caso do tempo que começaram a fazer sua povoação; porque, sendo todos êles, como são, filhos de Adão, e depois descendentes de Noé, dos quais sabemos que concorreram a habitar e a povoar as três partes do mundo, a saber: Ásia, África, Europa, não se sabe que caminho hajam trazido os primeiros, que vieram povoar estas grandes incógnitas terras do Brasil e Índias, não sabidas nem conhecidas das gentes em tantos séculos de anos, porque não temos rasto nenhum pelas escrituras, pelo qual possamos inferir se vieram por mar, se por terra, nem ainda hoje em dia, com estar já tanto descoberto, se pode rastejar pela parte por onde podiam passar a estoutro novo mundo.

Alviano: Alembra-me haver lido em Aristóteles no livro que escreveu das coisas ocultas que se acham na natureza, que os Fenicianos, desgarrando acaso pelo mar oceano em uma embarcação, navegaram quatro dias sem verem terra, ao cabo dos quais aportaram a uma terra oculta, que sempre estava em continuo movimento das águas do mar que a cobriam e descobriam, deixando em seco grande cópia de atúns, maiores que os ordinários e neste mesmo livro diz o próprio autor que uns mercadores Cartaginêses da ilha de Cales, têrmo e limite das colunas de Hércules, ao cabo de muitos dias de navegação, toparam com algumas ilhas, muito distantes da terra firme, nas quais não acharam nenhuns moradores por não serem habitadas, pôsto que abundantes de tôdas as coisas necessárias para a vida humana, e estas ilhas tenho eu para mim, sem dúvida nenhuma que devem ser aquelas que estão adjacentes; pois tanto tempo gastava na navegação à costa das Índias, que delas, depois de serem povoadas, se pastaram seus moradores a habitar esta tão grande incógnita terra firme, donde tiveram origem os seus primeiros povoadores. Também tenho ouvido que um Velpócio Américo, natural de Cártago, navegando com uma embarcação pelo mar oceano, impelido de ventos rijos que lhe não deixaram tomar terra, veio a aportar a esta grande costa do Brasil, que do seu nome se chamou América; pelo que não sinto coisa por onde possa deixar de cuidar que de algumas daquelas gentes tomasse princípio a povoação dêste novo mundo.

Brandonio: Verdade é que Aristóteles trata disso no livro referido; mas êsses Fenicianos, que afirma haverem achado essa ilha que se cobria e descobria das águas deixando muitos atúns em sêco, e que gastaram quatro dias de navegação até topar com ela, creio por, sem dúvida, que devia do ser alguma restinga de terra, que então continuava com uma ilheta situada na costa do Algarve, a que chamamos do Pesegueiro, na qual paragem, por costumarem a continuar os atúns que por ali passam a desovar dentro do Estreito, se tomam muitos hoje em dia, e o cobrir-se e descobrir-se das águas devia ser causa o fluxo e refluxo da maré, donde a continuação de tormentas e terremotos de tantos anos removeu para o fundo das águas a tal restinga de terra, como em muitas outras partes tem feito, deixando sòmente descoberta a ilha chamada do Pesegueiro, por ser terra mais alta, e como os Fenícios, que então ali aportaram, vinham do estreito de Gilbraltar, bem necessário lhes era êsses quatro dias de navegação para aportarem àquela parte, principalmente sendo então tão pouco experimentados nas coisas do mar.

Alviano: Não me soa mal isso, e assim entendo não haver passado dessa ilha a navegação dos Fenícios; mas que me dizeis da outra dos Cartaginenses em que gastaram tantos dias?

Brandonio: Essas ilhas que relata Aristóteles haverem descoberto os Cartaginenses, abundantes das coisas necessárias para a vida humana, não são outras senão as ilhas das Canárias, que estavam povoadas, antes de serem descobertas pelos Castelhanos, de gentes a que chamam Guanches, que deviam de ser descendentes daqueles primeiros Cartaginenses, que as descobriram; e os dias que diz Aristóteles haverem gastado na navegação antes de chegarem a elas, não eram muitos para gentes tão pouco exercitadas na arte da navegação, como êles eram então; pois não há dúvida que, temerosos dos ventos e mares, fariam a navegação mais comprida, com não largarem tanta vela quanto era necessária, e a tomarem de noite, por não toparem, com a escuridade dela, em alguns baixos onde se perdessem: pelo que não me fica dúvida nenhuma para deixar de cuidar serem êstes Cartaginenses os que deram princípio a se povoarem tôdas as ilhas chamadas das Canárias.

Alviano: E que me dizeis do Américo que se afirma haver aportado na costa do Brasil, e que dêle tomou nome tôda esta província de se chamar América?

Brandonio: Nenhuma certeza há a que hajamos de dar crédito, pela qual nos conste que êsse Américo, quando seja verdade o que dêle se escreve, houvesse aportado mais na costa do Brasil que na da África; porque, como faltavam aos antigos os instrumentos, com que hoje navegamos, pelos quais temos conhecimento da altura e paragem em que nos achamos, podia muito bem êsse Américo aportar em qualquer parte da costa africana, sem saberem que era a mesma donde sairam; e como ignoraram isto os modernos, depois da descoberta da terra de Santa Cruz do Brasil por Pedralvares Cabral, quizeram cuidar que ela devia de ser a que se dizia que o outro descobriu, e por isso lhe deram o tal nome; e é tanto assim poder ignorar o Américo da paragem em que estava, que em nossos tempos, há poucos anos, partindo um navio do Rio de Janeiro para Angola, depois de muitos dias de navegação,descobriram terra, e cuidando ser a de Angola, para onde iam, entraram pela barra dentro da Paraíba, que é nesta mesma costa do Brasil.

Alviano: E como é possível que se pudessem enganar esses navegantes tão crassamente?

Brandonio: Depois de haverem navegado muitos dias por sua direita derrota, devia de dar o navio em que iam alguma volta, e ao outro dia, vendo a prôa inclinada para o Oéste, foram correndo por êle, cuidando que era Léste, sem repararem donde nascia ou se punha o sol, e assim cuidando que estavam em Angola, se acharam no Brasil, na barra da Paraíba, que está na mesma altura.

Alviano: Dessa maneira não foi muito que errasse o Amérieo; pois êsses outros erraram em tempo que havia já tanto conhecimento de navegar; mas, para darmos definição à nossa prática, vos peço que me digais a opinião que tendes da povoação dêste mundo.

Brandonio: Já que me quereis tirar a terreiro sôbre essa matéria, que eu estimava muito não me meter nela, há-me de ser forçado tomar o salto mais de trás, para me poder melhor declarar. Querendo o santo profeta Rei David mostrar-se grato às muitas mercês e favores, que de Deus tinha recebido, pretendia edificar-lhe um célebre, suntuoso e grande templo, no qual seu santo nome fosse engrandecido e louvado das gentes, ao que lhe foi ponto interdito pelo mesmo Senhor, por respeito de ter as mãos sanguinárias dos muitos inimigos que havia morto nas guerras, que teve pelo decurso do tempo de seu reinado, ou ou pode ser que bem bastasse a ser reputado por sanguinário para com Deus a indina morte que fêz dar a Urias, transportado no indino amor de Bersabê; vendo, pois, David o impedimento que lhe era pôsto por Deus, com o qual não podia levar avante o que tanto desejava, se deu a ajuntar materiais para a obra do tempo, os quais deixou a seu filho Salomão com lhe encarregar o cuidado de lhe dar princípio e cabo, já que o êle não pudera fazer. O sábio rei que também herdara do pai o mesmo desejo, se resolveu para poder ajuntar muito ouro, prata, marfim e ébano, que sabia ser necessário, e ainda o principal nervo e sustância da obra, para haver de por na grandeza que êle queria, de fazer uma liga de cantato com Hiram, rei de Tiro; para haverem de mandar: todos os anos de Asiogaber, pôrto situado no mar Roxo, uma frota de náus que, desembocando o mesmo estreito, fossem buscar as coisas que pretendiam à região de Tharsis; o que, depois de se pôr em efeito, se continuou com esta navegação muito espaço de tempo, declarando a Escritura que estas náus, iam ao pôrto de Ofir, donde traziam quantidade grande de ouro, prata, ébano, marfim, e alguns papagaios e bugios, demorando na viagem, de ida e volta, três anos. Pois passando isto assim, no que não há dúvida, é de saber agora adonde estava êste Ofir de que a Escritura trata, na região de Tharsis. E, pois, êste nome Tharsis no frasis grêgo significa África, na tal costa devia de estar o pôrto de Ofir; pelo que Vatablo Parasiense errou sumamente em dizer que o Ofir era uma ilha situada no mar do Sul da costa do Perú descoberta por Cristovão Colombo, chamada Espanhola.

Alviano: Não sofro haver homem que ousasse escrever tão grande êrro; pois não era possível que gente ainda tão pouco experta na arte da navegação fossem buscar as ilhas de Maluco, para dali, pelo mar chamado do Sul, ir em demanda dessa ilha, que diz Vatablo; pois era navegação não sabida no mundo antes dos Espanhóis a haverem descoberto; e, se fizessem a sua derrota por estoutros mares lhes era forçado haverem de passar o cabo de Boa Esperança, e dali atravessar pelo estreito de Magalhães, o que tenho por coisa impossível; pois vemos nestes próximos tempos, com termos tão apalpado êste estreito, que já se sabe não o ser senão que mostra sê-lo pelo ajuntamento de muitas ilhas que ali se acham da outra parte do Sul dela, de maravilha pode ser bem navegado, como se experimentou na armada de Diôgo Flôres de Valdez, e outras, que da boca dêle tornaram a arribar por causa dos tempos tormentosos, que naquela paragem de ordinário cursam.

Brandonio: Por essa maneira nem por uma parte nem por outra podiam fazer semelhante navegação, e eu me confirmo com êsse mesmo parecer; pelo que devemos de buscar na costa africana algum lugar em que se achem as coisas que esta armada levava, que era ouro, prata, marfim, páu preto e alguns papagaios, de que a Escritura trata. Este Ofir querem muitos que seja a região a que hoje chamamos Sofala, descoberta pelos nossos Portuguêses.

Alviano: Nem essa razão me satisfaz, porquanto o reino de Sofala está tão vizinho do Mar Rôxo e do seu Estreito, que se pode fazer sua navegação de uma parte a outra em menos de trinta dias; e assim não conclui o dizer-se que, em viagem de tão pouca demora, se detivesse essa armada de Salomão tanto tempo, nem menos se pode cuidar que demorasse todo êsse tempo, depois de estar no porto; para coisas tão manuais e tão fáceis de contratar, era grande a demora, e assim vos convém buscar outro pôrto de mais comprida navegação na costa africana.

Brandonio: O pôrto que esta armada demandava tenho por sem dúvida, e desta mesma opinião são muitos homens doutos, ser a costa a que hoje os nossos chamam de Mina, aonde está situada a cidade de S. Jorge; porque, para navegarem para a tal costa, convinha dobrar-se a Cabo de Boa Esperança, e assim em tão comprida viagem lhes era necessário, àqueles navegantes, gastarem tanto tempo quanto a Escritura afirma que gastaram na ida e vinda, por serem pouco exercitados na arte de navegar, e na tal parte se acham em abundância as coisas de que aquela armada tornava carregada; pelo que me tenho persuadido, por assim também o estarem muitos homens doutos, que a Mina era o verdadeiro Ofir, a que estas gentes navegavam. Pois, passando isto assim, quem duvida que algumas das náus da tal armada, que de fôrça, à tornada, às águas e tempos a deviam de chegar ao Cabo a que chamamos de Santo Agostinho, desse à costa nesta terra do Brasil, e que da gente que dela se salvasse tivesse origem a povoação de tão grande mundo?

Alviano: Antes tenho, para mim, que esta povoação teve princípio dos Chinas, que pelo mar da costa do Perú chamado do Sul vieram aportar a esta grande terra de qualquer maneira que fosse, pois sabemos por coisa indubitável que os Chinas são muito antigos na navegação, e que dêles esteve povoada a maior parte das Índias Orientais, e de que se acham muitos vestígios, donde se tornaram a recolher aos seus reinos e províncias, por entenderem assim se conservariam melhor.

Brandonio: Não duvido de haverem sido os Chinas muito antigos no navegar, e que pode muito bem ser que dêles tivesse princípio a costa do Perú, e que a ela podiam muito bem vir a aportar pelo mar do Sul, pôsto que não se acha rasto nem na fala, nem nos costumes nem em outra coisa alguma de haverem procedido as gentes daquelas partes dos Chinas, e quando procedessem dêles, não se pode cuidar que êste gentío do Brasil tivesse o mesmo princípio, porque se desencontram em grande maneira assim na fala, costumes e mais ações do gentío do Perú, o qual é fraquíssimo por natureza e pouco inclinado a guerras, e os desta outra costa, belicosíssimos e que vivem de guerras e correrias, e faz bastante prova disto não se haverem nunca comunicado o gentío desta costa do Brasil com os da costa do Perú, nem há noticia que em nenhum tempo o hajam feito; e assim o experimentaram os castelhanos, quando descobriram aquelas partes, porque para se haver de passar do Brasil ao Perú se antepõem de permeio mil dificuldades de grandes desertos e espêssas matas, altíssimas serras e sobretudo  pouca ou nenhuma água, por êsse motivo até o dia de hoje não houve pessoa, nem dos naturais nem dos nossos, que ousasse atravessar tão grande terra.

Alviano: Não me desagrada a definição que tendes dado a uma coisa e outra; mas não me posso persuadir que tão bárbaro gentío, como é o que habita por tôda esta costa do Brasil, traga a sua origem da gente israelita, porque, se a trouxeram, de fôrça se lhes havia de comunicar alguma polícia de seus pais e avós, o que nós não vemos nêles.

Brandonio: Confesso que os primeiros pais deveram de mostrar e ensinar a seus filhos e netos o uso das artes e polícia que tinham; mas essa como havia de ser ensinada sòmente de palavra, não podia passar à memória de tão comprida geração, em gentes a que lhe faltaram logo as escrituras e o mais necessário para a conservação das artes e polícia, em terras tão remotas e incógnitas, como eram as que habitavam e assim com a continuação do tempo se lhe havia de ir varrendo da memória o que seus avós lhe tinham amostrado, como ficarem do estado em que de presente os conhecemos. Mas, contudo, ainda hoje em dia se acha entre êles muitas palavras e nomes pronunciados na língua hebréia e da mesma maneira, costumes como é tomarem suas sobrinhas por suas verdadeiras mulheres, que nem uma coisa nem outra fariam se os não houvessem aprendido de quem os sabia. E com tôda a sua barbaridade têm conhecimento das estrêlas dos céus de que nós temos noticia, pôsto que lhes aplicassem nomes diferentes, pelo que tenho por sem dúvida, descenderem estes moradores naturais do Brasil daqueles israelitas que navegaram primeiro pelos seus mares.

Alviano: Não disputemos mais sôbre essa matéria, porque com ela nos havemos desviado muito de nossa prática, que era havermos de tratar dos bons céus, ares e qualidade de que goza a terra do Brasil.

Brandonio: Não cuido eu que nos havemos desviado muito dessa matéria, porque quanto dissemos foi neccssáro para voltarmos à dúvida do obstáculo que lhe podia fazer a tôda esta costa do brasiliense, ao seu bom temperamento o estar situada no coração da zona tórrida julgada dos antigos inhabitàvel por calorosa, a qual pelo contrário temos já experimentado ser mais acomodada para a habitação da natureza humana, para o que, quando não tiveramos outra prova, bastara a que nos dá o mesmo gentío da terra, que com andarem descobertos e trazerem as carnes despidas aos raios do sol e à fúria dos ventos e cortados das águas, não tendo outra coisa por abrigo de dia ou de noite senão um pequeno fôgo, a cujo calor se aquentam, fazendo tão grande excesso no comer e beber desordenado, como de ordinário fazem, todavia prevalecem gozando de perfeita saúde, com serem acompanhados de robustos membros e grandes fôrças, o que não pudera suceder, se os bons ares e temperamento da terra não lhes dessem grande ajuda e nutrimento.

Alviano: Não haverá quem a isso ponha dúvida, por que, passando eu os dias passados por suas aldeias dêste gentío, vi alguns homens que no seu aspeto me parecem de idade muito comprida.

Brandonio: Acham-se muitos índios por tôda esta costa do Brasil, que têm de idade, mais de cem anos, e eu conheço alguns dêstes, aos quais lhes não falta dente na bôca, e gozam ainda de suas perfeitas fôrças, com terem três e quatro mulheres, as quais conhecem carnalmente, e me afirmaram não haverem sido em todo o decurso da sua vida doentes; e assim geralmente todo êste gentío é muito bem disposto, do que tudo é causa os bons céus e bom temperamento da terra.

Alviano: Vi levar algum gentío dêste natural da terra a nosso Portugal, aonde se logram mal e morrem apressados os mais dêles e sempre ignorei a causa disso.

Brandonio: O não se dar bem o gentío dêste Brasil em Portugal corrobora a minha razão do bom temperamento dêle; porque, como vão de terra tão sadia e de tão bons ares para essa outra que lhes fica inferior em tanta quantidade não sofre a natureza acostumada a tão excelente habitação e temperamento, como é a terra do Brasil, de onde os levam, padecer as injúrias que o tempo com seus calores e frias causa na nossa Espanha, e por isso não se podem lograr nela, e vêm a perder a vida brevemente, o que não sucede ao gentío que se leva para lá do reino de Angola e de todo Guiné, que, como vão de terra doentia e de ruim habitação, se contenta a sua natureza de gozar do clima de nossa Espanha que lhe sobrepuja em tôdas as qualidades de mais sadia e isto mesmo sucede ao gentío que se lá leva das Índias Orientais; mas no Brasil se acha isto ao revez, porque tôda gente de qualquer nação que seja prevalece nêle com saúde perfeita, e os que vêm doentes cobram melhoria em breve tempo. E a razão é o serem estas terras do Brasil mais sadias e de melhor temperamento que tôdas as demais.

Alviano: Pois tinha crido que a causa do gentío não prevalecer em Espanha não era outra senão o irem de clima quente para o frio, o qual os corta logo e põe no extremo da vida.

Brandonio: De terra muito mais quente vai o gentío de Guiné e da ilha de S. Tome, e todavia prevalecem em Espanha, sem ser parte o frio de lhes fazer dano, como vão também os mais que se trazem da Índia, e assim não é essa a causa senão a que tenho dito.

Alviano: Dou-me por concluído, porque ali de fôrça há de ser de mau temperamento, como o são tôdas as demais partes por onde ela passa.

Brandonio: Também vos enganais, porquanto são de tal temperamento as terras do Brasil por onde passa a linha equinocial, como as demais que estão muito desviadas dela, e temos isto muito clara experiência no Pará novamente povoado, por outro nome chamado o Rio das Amazonas, cujo pôrto, sítio e povoação atravessa essa linha de meio a meio, e nem por isso deixa de ser mesmo temperada e sadia, e de maravilhosa habitação para a natureza humana, porque tem tão bom céu e goza de tão bons ares tôda a terra do Brasil, que nenhuma das cousas que costumam fazer dano por outras regiões o fazem nela, nem cobram fôrças para o poderem fazer.

Alviano: O ser ainda reinol e vindo de pouco a esta terra me faz inorar em muitas coisas que aos antigos nela são patentes, e por isso não vos maravilheis se vos perguntar algumas já muito notórias, porque a mim o não são pelo respeito que tenho dito; e assim não vejo razão pela qual careça êste Estado do Brasil de enfermidades, como tendes apontado, havendo-as em tôdas as demais partes do mundo em tanta quantidade e neste lugar aonde estamos, no pouco tempo que nele resido, tenho ouvido queixar a muitos homens de particulares enfermidades que padecem.

Brandonio: Eu não disse absolutamente que no Brasil não havia doenças, porque isso seria querer encontrar a verdade; mas o que quiz dizer é que as doenças, que há neles, são tão leves e fáceis de curar, que quase se não podem reputar por tais, e senão vêde quanto gentío habita por tôda esta costa, o qual, com viver tão brutalmente, fazendo tanto excesso no comer e beber em suas borracheiras, que só em uma noite das muitas que gastam nelas era bastante para matar a mil homens, contudo a êles lhes não faz dano, e vivem sãos e bem dispostos. Verdade é que algumas vêzes lhes sobrevém algumas febres de pouca consideração, da qual saram com facilidade, sòmente com se lavarem no mais vizinho rio que encontram.

Alviano: Bom modo de curar é êsse, porque, se estando eu tão enfêrmo, metesse um só pé dentro dágua seria bastante para chegar ao último da vida.

Brandonio: Pois a êles o meterem-se dentro dágua serve de medicina, e, quando lhes dói a cabeça, com rasparem os cabelos, ficam sãos, e também sucede terem algumas câmaras, para as quais aplicam alguns medicamentos ao seu modo, com os quais se curam delas. Também adoecem muitas vêzes de um mal a que chamam do bicho, que é o mais ordinário da terra, o qual não é outra coisa senão uma fogagem que se cria dentro do sesso bastante para relaxar os membros em grande maneira, com febre e dor de cabeça, o que se cura fàcilmente sòmente com se lavar aquela parte três ou quatro vezes com água morna; e quando se lhe não acode com esse medicamento tão fácil, basta aquela fogagem para vir a corromper todo o sesso com morte do enfermo, como eu já vi suceder a muitos.

Alviano: De semelhante doença não ousei nunca tratar em Espanha nem em outra parte, pelo que cuido que só deve de haver neste Estado.

Brandonio: Antes cuido que é generalíssima por todo o mundo, e que dela morre multidão grande de gente, sem os médicos atinarem com ela, porque em Portugal a dois outros enfêrmos, que estavam muitas vêzes sangrados, e os físicos determinaram de os consumir ainda com mais sangrias, aconselhei o haverem-se de curar com água morna, porque podia bem ser que fossem doentes do bicho, os quais, seguindo meu conselho, cobraram perfeita saúde.

Alviano: Pois que meio há para o homem poder vir em conhecimento se está doente desse bicho ou não?

Brandonio: Muito fácil é o que se costuma fazer nesta terra: tomam um pequeno de tabaco, por outro nome herva santa, em falta de outra herva a que chamam payémanioba, e pisada com sumo de limão, metem uma pequena quantidade dela no sesso do enfêrmo, e, se está doente do bicho, lhe causa grande ardor, e pelo contrário não tem nenhum ou quase nada; e esta herva pisada com o sumo de limão cura também grandemente a mesma enfermidade.

Alviano: Folgo de me haverdes advertido de semelhante segrêdo, porque a qualquer repiquete que me sobrevenha de febre e de dor de cabêça, sou aos pés juntos com a experiência da mesinha: e se êste gentío não padece mais doenças que as que tendes referido pode-se reputar por livre delas.

Brandonio: Sim, padecem; porque também são molestados de sarâmpo e bexigas, de que morre grande quantidade de gente. Mas estas doenças, principalmente as bexigas, são estrangeiras, que se lhes costuma comunicar, vindas do reino de Congo e de Arda pelos negros que de lá se trazem, com fazerem grandíssima matança, assim no gentío natural da terra como no de Guiné, e no ano de 616 e 617 ficaram muitos homens neste Estado do Brasil de ricos pobres pela grande mortandade que tiveram de escravos. E a graça é que êste mal das bexigas não se comunica senão ao gentío natural da terra, e no de Guiné, e nas pessoas que são filhos de brancos, e do gentío a que chamam mamalucos, e ainda a todos aqueles nascidos na própria terra, pôsto que de pais e mães brancos; mas aos que vieram de Portugal e foram lá gerados, sendo Portuguêses ou de outra nação das de Europa, por nenhum modo se lhes comunica o mal, ainda que a duas outras pessoas vi também morrer dêle; mas uma andorinha não faz verão entre tão grande multidão, como morre dos outros.

Alviano: Brava consolação é essa, que deve de causar algum oculto segrêdo, que nós não conhecemos, e folgarei de saber que modo se tem na cura dessa enfermidade de bexigas.

Brandonio: Nem os meios experimentados na terra nem os médicos que nela residem até o presente acharam método nem regra, pela qual se deva de curar semelhante enfermidade; porquanto, dando sempre com febre ardente se mandam sangrar ao enfermo, morre, e, se o não mandam sangrar, também morre; e pelo oposito, se o sangram vive, e se o não sangram também vive. Verdade é que os que adoecem de uma espécie de bexigas, a que chamam pele de lixa, por fazer a pele do enfêrmo semelhante à daquele peixe, quase que nenhum escapa, porque se lhe despe a pele do corpo, como se fosse queimada ao fôgo com o deixar todo em carne viva; e eu sei enfêrmo, ao qual se lhe caiu a pele de uma perna tôda inteira, ficando fora dela, como meia calça, e desta maneira morre muita gente, sem se poder achar remédio preservativo para tão grande mal, com ser doença que se comunica de uns a outros, como se fôra peste.

Alviano: Não tenho eu essas bexigas, na forma que dizeis que se comunicam e matam, por menos prejudicial que a peste, a qual também deve de haver neste Estado.

Brandonio: Antes não, porque os seus ares são tão delgados e os céus tão benignos que não consentem haver em tôda esta costa do Brasil êsse mal pernicioso de peste, como o costuma haver por tôda a Europa, Ásia e África; porquanto na memória dos homens não há lembrança que semelhante enfermidade se achasse nunca nestas partes, antes o seu clima é tanto contra ela, que, vindo muitas pessoas do nosso Portugal no tempo que nele havia febre, iscadas e ainda doentes do mesmo, em passando a linha equinocial para esta parte do Sul, logo convalecessem, e os ruins ares que trazia o navio se desfazem e consomem, e, quando fica algum rasto dêle, totalmente se extingue e acaba em o navio tomando terra nesta costa, que não pode ser melhor temperamento da terra.

Alviano: Assás prova é essa do bom céu de que goza êste novo mundo, pois doença tão contagiosa por outras partes nele se diminuem e abrandam logo.

Brandonio: Assim é que o bom temperamento da terra dá causa a tôdas essas maravilhas, pelo que, tirando as doenças que tenho relatadas, não sei outras senão algumas postemas e chagas, de que saram os enfermos com facilidade, aplicando-lhe os medicamentos ordinários, e também com folhas e sumos de hervas que conhecem, sem nunca chegarem a ter necessidade de cirurgiões, barbeiros nem sangrias.

Alviano: Não são tão fáceis de curar semelhantes postemas e chagas em Portugal, porque se consome muito tempo na cura delas.

Brandonio: Pois neste Brasil se curam com a facilidade que tenho dito, e para isso vos direi o que vi por próprios olhos, que não ousava de afirmar em parte onde me faltassem os testemunhos, que aqui tenho: um negro de Guiné, meu escravo, chamado Gonçalo, se lhe cerrou de todo as vias ordinárias que temos para fazer camara e ourinas, e se lhe abriu pelo umbigo um buraco, por onde por muitos dias fêz semelhante exercício, o qual se lhe tornou também a cerrar de per si com se lhe abrir outro igual buraco na ilharga direita, pelo qual obrou tambem suas necessidades mais de seis meses, ao cabo dos quais, sem nenhuma cura, nem medicamento, tornou a sarar, abrindo-se-lhe de novo as vias ordinárias, pelas quais foi purgando, como de antes, com ter perfeita saúde e viver muitos dias.

Alviano: Cousa extranha me contais nisso, e com muita razão vos temeis de o relatar senão nessa parte, onde vos ofereceis a acreditar o dito com testemunhas, que para isso nunca haverá outras de mais fôrças que o dizerdes vós; mas folgarei de saber com que se purgam os enfermos nesta terra.

Brandonio: Com medicamentos purgativos que vêm do reino, e se vendem em boticas, de que sempre está a terra bem provida, pôsto que também se acham nelas excelentes purgas de que o mais da gente usa como é a batata, já também muito estimada em Portugal, e uns pinhões que se colhem de umas árvores de que os campos estão povoados.

Alviano: Dêsses pinhões tenho ouvido dizer mil males, e afirmar dêles ser purga muito trabalhosa pelos muitos e grandes vômitos que causam.

Brandonio: Dêsse modo passava, mas já hoje por se tomarem de diferente modo não causam êsses acidentes e vômitos, que dantes faziam.

Alviano: Folgarei de saber o modo que se guarda de presente no tomar êsses pinhões.

Brandonio: Muitas pessoas usam dêles com, depois de esbrugados, lhes tirarem uma pelinha que tem de fora, e juntamente outra do meio, para o que é necessário ser aberto, e logo o tornar a juntar, e o encerram dentro em uma fruta que chamam goiaba, e em falta em outra que chamam araçá e os põe a assar juntamente com as frutas sôbre o borralho, e como está assada tiram dela, porque com o calor do fôgo largam dentro na fruta a malinidade que tinham, e, botada a fruta fora, pisam os pinhões em um gral com um pouco de açúcar branco, no qual se incorporam e depois de tudo incorporado fazem um pequeno bolinho, que se torna a assar sôbre um testo nas brasas, ficando do modo de massa-pão, como se advertir que se há de fazer sòmente de cinco pinhões a purga, que o enfermo há de tomar uma hora ante manhã, e com ela obra maravilhosamente até se lhe dar o caldo de galinha que lhe restringe as camaras.

Alviano: Bem fácil é êsse modo de purga, e sempre folgarei, quando me seja necessário, de me aproveitar dêle.

Brandonio: Também sucede neste Brasil, assim aos nossos Portuguêses, como aos naturais da terra, dar-lhes um acidente de camaras e a revesar que lhes dura por espaço de 24 horas pouco mais ou menos, e pôsto que na Índia semelhante doença, a que chamamos mordexin, é mortal, aqui o não é, porque, passado o termo do acidente sem mais medicamento fica o enfermo são.

Alviano: E quando sucede ser êste gentío ferido nas guerras, a que me tendes dito que são muito inclinados, que modo têm na cura de tais feridas?

Brandonio: Proveu a natureza com lhes dar um azeite que se tira de uma árvore chamada copaúba, da qual toma o azeite o nome, e com êle curam as feridas por ser de tão maravilhosa virtude, que em breve tempo saram delas, e quando a tal ferida é penetrante por ser dada com flecha, e o pequeno buraco dela lhes não dá lugar a se poderem servir do azeite, tomam por remédio fazerem uma cova no chão, dentro na qual lançam brasas envoltas em fôgo, pondo em cima de tal cova uma taboinha com um buraco pequeno no meio, sôbre o qual acomodam o lugar da ferida, com se lançar para o efeito o enfermo em terra, e ali com o calor do fôgo que se lhe comunica pelo buraco despede a ferida de si todo o sangue podre e malinidade que tinha, e corrobora-se a carne de maneira que, sem mais outro beneficio, fica o enfermo são.

Alviano: Também tenho ouvido gabar muito em Portugal para feridas um balsamo que se lá leva das Capitanias do Sul.

Brandonio: Êsse balsamo é excelente remédio para elas, mas não se acha senão nas Capitanias, donde o levam, que são as do Sul, e as da parte do Norte carecem dêle, e por isso se servem do azeite que tenho dito.

Alviano: A um meu vizinho tenho visto queixar muitas vêzes de uma chaga que tem em um pé, de que não pode sarar.

Brandonio: Tôdas as pessoas que neste Brasil têm chagas ou feridas na cabeça saram com muita facilidade delas, e as dos pés e pernas são mais dilatadas e ajuda a serem más de curar o pouco regimento que os enfermos costumam a ter.

Alviano: E os nossos Portuguêses que habitam por estas partes usam do próprio remédio dêsse azeite de copaúba e bálsamo?

Brandonio: Sim, usam porque têm experimentado ser excelente remédio para feridas; mas nas mais enfermidades guardam na cura delas diferente estilo, porque se curam com médicos, barbeiros e cirurgiões Portuguêses.

Alviano: E que doenças são as mais gerais para com os Portugueses?

Brandonio: Os Portuguêses depois que vêm do Reino os costuma apalpar a terra com uma febre e frio de pouca importância, porque com duas ou três sangrias saram delas, e quanto mais se dilatam em serem apalpados do clima, se lhe comunica a mesma febre e frio com mais fôrça, mas de modo que nunca chega a ser doença de consideração. Também os antigos da terra são visitados das mesmas maleitas, terçães e ainda quartães, as quais prevalecem em uns mais e em outros menos, segundo a natureza e compleição de cada um; mas morre muito pouca gente de semelhante enfermidade, a qual se cura pelos médicos com purgas e sangrias.

Alviano: Com tôda essa boa qualidade da terra, tenho visto muitos homens nela faltos de narizes e com remendos pelo rosto, e outros meio entrevados; claro indício de haverem sido tocados do humor boubático, a qual enfermidade tenho para mim que domina desta parte com grande excesso.

Brandonio: Verdade é que pelo calor da terra se comunica êsse mal a muitos homens mal regidos e dados a mulheres, mas cura-se com muita facilidade, porque com uma pequena de salsaparrilha, precedendo o regimento necessário no tomar delas, cobram os enfermos perfeita saúde, e também a alcançam com fazerem exercício de andar e outras coisas que provoquem o corpo a suor, e quando em alguns predomina o mal com mais fôrça o azougue a extingue e o consome de todo, o qual no Brasil se toma com facilidade e pouco risco; e êsses homens que dizeis haverdes visto com deformidades no rosto, o seu pouco regimento foi disso causa, porque, se o tiveram, cobravam saúde, como os mais.

Alviano: Contudo isso eu tenho para mim que se não desviaram da verdade os Espanhois em afirmar que êste mal se comunicou a Europa destas partes.

Brandonio: Isso não querem consentir os índios, mas antes afirmam que nunca o conheceram antes dos Portuguêses virem a povoar êste novo mundo, e que por êles se lhe comunicou.

Alviano: Não disputemos isso, pois nos importa pouco, que o que sei é que, quer o mal tivesse princípio destas partes ou de outras, é muito pernicioso para os tocados dêle. Também me dizem que neste vosso Brasil se acham uns bichos que se metem pelos pés, com os quais me fizeram grandes medos em Portugal.

Brandonio: Com bem pouca razão vo-las fizeram, porque dêsses bichos muitas pessoas tomam por recreação o entrarem-lhes nos pés para serem tiradas, por uma gostosa comichão que nêles fazem.

Alviano: E de que feição são êsses bichos?

Brandonio: Muito mais pequenos em quantidade que as pulgas do nosso Portugal, enquanto andam pela terra; na que é arisca se dão melhor, e dêles entram pelo pé, onde vão crescendo, e, quando há descuido em se tirarem, vêm a se fazer tamanhos, como uma camarinha e a mesma côr, mas, em entrando no pé, com a comichão que causam logo dão sinal de sua entrada, donde se tiram com um alfinete ou uma ponta de faca com muita facilidade e pouca moléstia, e pode-se sofrer a descomodidade dêstes bichos, pôsto que muitas pessoas o que não têm por tal, pela falta que há na terra das mais imundícias que nos molestam em Portugal.

Alviano: E que imundícias são essas de que dizeis que carece a terra?

Brandonio: De piolhos que não permanecem nela por nenhum caso, e pelo conseguinte pulgas e percevejos que os não há.

Alviano: Só por gozar da falta dessas cousas podia homem largar Portugal, onde tanta moléstia dão e vir-se a viver no Brasil.

Brandonio: Parece que a qualidade da terra desbarata a vida de semelhantes bichos, de modo que não podem prevalecer nela.

Alviano: Pois eu não acho esta terra tão quente que baste parafazer semelhante excesso.

Brandonio: O calor temperado dela é o que o faz, porque, pôsto que tenhamos muitas vêzes o sol sôbre a cabeça, todavia causa pouco ou nenhum dano a seus habitadores; porque os ares frescos, que de ordinário cursam resfriam os seus raios, de maneira que causam um temperadíssimo calor, de modo que, com os homens andarem pouco enroupados, nem os raios do sol os escaldam, nem os ventos os traspassam. Verdade é que a lua se tem por menos sadia, e como tal se guardam dela, mas isto não em tanta quantidade, que conhecidamente impeça aos que se põem ao luar.

Alviano: Já tenho experimentado êsse bom temperamento, e o tenho pelo melhor que possa ser, pois, assim na fôrça do verão como do inverno, sempre a terra tem uma mesma temperança, em fórma que a mesma roupa de verão serve para o inverno, sem ser necessário dobrá-la.

Brandonio: Assim passa, e ainda tenho notado outra coisa assás extranha, a qual é que não há lembrança na memória dos homens de que haja havido em algum tempo tremor de terra nesta província, como de ordinário costuma de haver na nossa Espanha.

Alviano: Não é cousa essa de pequena consideração, de onde tenho para mim que a terra dêste Brasil deve ser tôda sólida e maciça, sem ter cavernas, furnas ou lapas por baixo, onde se possa recolher o ar que costuma causar êsses tremores; e também pode ser que disto proceda o seu bom temperamento de que me tendes dito tanto e assim folgara que nos passassemos a tratar de sua riqueza e fertilidade.

Brandonio: Isto é já tarde e a matéria cumprida, veio que me parece acertado reservamo-la para amanhã, que neste lugar vos espero.

Alviano: Assim seja, porque não quero ir em nada contra vosso gôsto.

 

 

 

Diálogo Terceiro

 

 

Brandonio: Por não ser notado de negligente há já pedaço que vos espero, gozando desta viração que corre aqui da parte do mar assás frêsca.

Alviano: A importunação de uma visita me fêz cair na falta de haver tardado; mas contudo as horas são apropriadas para darmos principio à nossa prática, que é o havermos de tratar da riqueza, fertilidade e abundância dêste Brasil, e assim vos peço me digais destas cousas as que souberdes, porque me tendes disposto para vos ouvir com atenção.

Brandonio: São tão grandes as riquezas dêste novo mundo e da mesma maneira sua fertilidade e abundância, que não sei por qual das cousas comece primeiramente; mas, pois tôdas elas são de muita consideração, farei uma salada na melhor forma que souber, para que fiquem claras e dêm gôsto. Pelo que, começando, digo que as riquezas do Brasil consistem em seis cousas, com as quais seus povoadores se fazem ricos, que são estas: a primeira a lavoura do açúcar, a segunda a mercância, a terceira ao páu a que chamam do Brasil, a quarta os algodões e madeiras, a quinta a lavoura de mantimentos, a sexta e última a criação de gados. De tôdas estas cousas o principal nervo e substância da riqueza da terra é a lavoura dos açúcares.

Alviano: Não deve de ser de muita consideração a riqueza que consiste sòmente de fazer açúcares, pois vemos que da nossa Índia Oriental se enriquecem seus mercadores de tantas e diversas cousas, como são grande quantidade de drogas prestantíssimas, roupas muito finas, ouro, prata, pérolas, diamantes, rubis, e topásios, almiscar, ambar, sedas, anil e outras mercadorias, de que as náus vêm de lá todos os anos colmadas para a Espanha.

Brandonio: Verdade é que tôdas essas cousas e outras mais se trazem dessas partes; mas contudo me esforço a provar que, com se não tirar do Brasil senão sòmente açúcares, é mais rico e dá mais rendimento para a fazenda de Sua Magestade de que são tôdas essas Índias Orientais.

Alviano: A muito vos arrojais, e certamente que parece desvario o quererdes pôr semelhante cousa em prática, pois o poder-se provar está tão longe, como a terra dos céus, e assim vos peço não queirais que vos ouça ninguém semelhante proposta, porque será julgada geralmente por ridiculosa.

Brandonio: Não me sei desdizer do que tenho dito com tôdas essas carrancas que me ides fazendo, antes entendo provar o que digo mui claramente, como já outra vez o fiz no Reino diante dos senhores governadores no ano de 97; porque vós não me haveis de negar que todos os anos vão do Reino para a Índia três, quatro e algumas vêzes cinco náus, que dela tornam carregadas de mercadorias.

Alviano: Assim passa.

Brandonio: Também não duvidareis que cada uma destas náus faz de despêsa à fazenda de Sua Magestade até posta à vela, feita de novo, ao redor de quarenta mil cruzados.

Alviano: Nem isso nego.

Brandonio: E da mesma maneira que manda nelas em cada ano Sua Magestade, de cabedal em reales de oito e de quatro para se haver de comprar a pimenta na Índia, ao redor de duzentos mil cruzados.

Alviano: E muitas vêzes mais,

Brandonio: E outrossim que paga de soldo aos soldados, gente do mar, que se assentam para ir à Índia, e de moradia a seus criados, mercês a fidalgos e outras pessoas particulares, muito grande quantidade de dinheiro.

Alviano: Não há dúvida nisso.

Brandonio: Também deveis de saber que cada náu dessas, depois de vir da Índia a salvamento, carregada de fazendas, importa a Sua Magestade, afóra a pimenta que trás, de quarenta e cinco para cinquenta contos de reis e por tantos se arrendam publicamente a pessoas que as tomam por contrato, e dêste dinheiro se abate ainda muito, de que Sua Magestade se não aproveita, em descontos que se fazem na casa da Índia, e isto com muitas vêzes não chegarem a salvamento ao Reino mais de uma ou duas náus.

Alviano: Dêsse modo passa; mas além dêsse dinheiro, por que Sua Magestade manda arrendar cada uma dessas náus, como tendes dito, se arrecadam por seus ministros os fretes das ditas náus para sua fazenda, que devem de importar em grande pedaço.

Brandonio: Os fretes de cada náu não importam à fazenda de Sua Magestade mais que ao redor de três contos de réis, e em tantos os arrendou um amigo meu no ano de seiscentos e um, e dêstes três contos se fazem tantos descontos de lugares que o Viso rei dá na Índia a particulares, que quase se vem a consumir tudo nisso e noutras cousas, donde sucede vir Sua Magestade a embolsar mui pouco dinheiro dêstes fretes.

Alviano: Pois como é possível que umas náus de tão grande porte dêm tão pouco de frete?

Brandonio: É disso causa os muitos lugares que Sua Magestade nelas dá, porque o capitão tela sua câmara, despensa e outros lugares que sempre para os tais estão deputados, e da mesma maneira o piloto, mestre, contra-mestre, guardião, marinheiro, que todos têm lugares assinalados, de modo que até o menino grumete e pagem não carecem dêle, em forma que nos lugares, que por esta ordem se distribuem e liberdades concedidas por Sua Magestade, se ocupa tôda a praça, onde se podia meter fazenda nas náus que pagassem frete, donde nasce o pouco rendimento que delas tem sua fazenda.

Alviano: Estou já bem nessa causa, mas não nessa longa computação que ides fazendo.

Brandonio: Faço-a para provar minha tenção que o Brasil é mais rico e dá mais proveito à fazenda de Sua Magestade, que tôda a Índia; porque não me haveis de negar que para as náus, que dela vêm, virem carregadas de fazendas que trazem, se desentranha todo êsse Oriente com se ajuntar a pimenta do Malabar, a canela de Ceilão, cravo de Maluco, massa e nós moscada da Banda, almiscre, benjoim, porcelana e sedas da China, roupas e anil de Cambaia e Bengala, pedraria do Balaguate e Bisnaga e Ceilão; por maneira que é necessário que se ajuntem tôdas estas cousas de tôdas estas partes para as náus que vêm para o Reino poderem vir carregadas, e se se não ajuntassem não viriam.

Alviano: Isso é cousa clara que todos sabem.

Brandonio: Pois o Brasil, e não todo êle, senão três capitanias, que são a de Pernambuco, a de Tamaracá e a da Paraíba, que ocupam pouco mais ou menos; no que delas está povoado, cinquenta ou sessenta léguas de costa, as quais habitam seus moradores, com se não alargarem para o sertão dez léguas, e sòmente neste espaço de terra, sem adjutorio de nação estrangeira, nem de outra parte, lavram e tiram os portugueses das entranhas dela, à custa de seu trabalho e indústria, tanto açúcar que basta para carregar, todos os anos, cento e trinta ou cento e quarenta náus, de que muitas delas são de grandíssimo porte, sem Sua Magestade gastar de sua fazenda para a fábrica e sustentação de tudo isto um só vintém, a qual carga de açúcares se leva ao Reino e se mete nas alfândegas dêle, onde pagam os direitos devidos a Sua Magestade, e se esta carga que estas náus levam se houvesse de carregar em outras da grandeza das da Índia, não bastariam 20 semelhantes a elas para a poderem alojar.

Alviano: Pôsto que não posso negar o passar isso dêsse modo, todavia é de muito menos importância, para a fazenda de Sua Magestade, o direito que se lhe paga dos açúcares de aquele que arrecada das fazendas e drogas que vêm da Índia.

Brandonio: Enganai-vos, porque nestas náus que carregam nas três capitanias da parte do Norte que tenho dito, sem tratar das demais do Sul, devem de ir passando de quinhentas mil arrobas de açúcares, dos quais quero que sejam cem mil arrobas de açúcar, a que chamam panelas. Todos êstes açúcares pagam de direito na alfândega de Lisboa, o branco e o mascavado a duzentos e cinquenta réis a arroba, e as panelas a cento e cinquenta réis a arroba, isto afora o consulado, de que feita a soma vem a importar à fazenda de Sua Magestade mais de trezentos mil cruzados, sem êle gastar nem despender na sustentação do Estado um só real de sua casa, porquanto o rendimento dos dízimos, que se colhem na própria terra, basta para sua sustentação. Ora, fazei a êste respeito computação do que lhe rendem as mais capitanias do Sul, nas quais entra a Bahia de Todos os Santos, cabeça de todo êste Estado, e depois desta feita formai uma conta de deve e há de haver como de mercador, e de uma parte pondo o que Sua Magestade gasta em cada um ano com as náus que manda à Índia, soldos da gente de guerra e marítima, moradias de seus criados, mercês feitas a particulares, juntamente com o cabedal que manda para a compra de pimenta, e de outra parte o que ela lhe rende, e juntamente o prêço por que arrenda os direitos das náus que de lá vêm, e notar bem o que houver de avanço para o igualardes com o rendimento que colhe do Brasil das três capitanias referidas tão sòmente, e vereis conquanto excesso sobrepuja ao da Índia, e assim não hei mister mais prova para corroborar minha verdade.

Alviano: Parece muito êsse rendimento, que quereis aplicar ao Brasil, porque nem todos os açúcares pagam êsse direito por em cheio, pois sabemos que muitos não pagam nenhum, por gozarem da liberdade que Sua Magestade tem concedido às pessoas que novamente fazem engenhos.

Brandonio: Assim passa; mas essa liberdade, que Sua Magestade concede aos engenhos feitos de novo, não dura mais que por tempo de dez anos, e passados êles perece, e pôsto que contudo sempre pagam menos direitos os senhores de engenhos e lavradores que carregam seus açúcares Por sua conta, são poucos os que fazem. E não vai a dizer nisso cousa de consideração, e para semelhante quebra deixei de contar de indústria na soma que acima fiz o rendimento do páu Brasil, que se leva dêste Estado das mesmas três capitanias para o Reino, que importa mais de quarenta mil cruzados por ano, que os ministros de Sua Magestade cobram no Reino dos contratadores dêle, e assim o rendimento das alfândegas do Estado, direitos que se pagam dos algodões e madeiras nas alfândegas do Reino, que importam em grandíssimo pedaço, descompensada uma cousa de outra achareis que mais é o rendimento destas cousas que a diminuição da liberdade que apontastes.

Alviano: Em verdade que tão persuadido estava em cuidar o contrário disso que tendes provado e mostrado claramente que ainda agora me está titubiando o entendimento por me parecer sonho o que vos tenho ouvido; mas contudo o que eu sei é que tenho visto em Portugal muitas casas grandíssimas e homens de muita renda grangeada e adquirida com dinheiro, que adquiriram e ganharam na Índia, e não acho nenhum, e, se alguns, são poucos que tenham lá semelhantes casas e rendas com o dinheiro que levassem do Brasil.

Brandonio: Isso é maior indício de sua riqueza, porque os homens da Índia, quando de lá vêm para o Reino trazem consigo tôda quanta fazenda tinham, porque não há nenhum que tenha lá bens de raiz e se os têm são de pouca consideração; e como todo o seu cabedal está empregado em cousas manuais embarcam-nas consigo, e do prêço por que as vendem no Reino compram essas rendas e fazem essas casas; mas os moradores do Brasil tôda a sua fazenda têm metida em bens de raiz, não é possível serem levados para o Reino, e quando algum para lá vai os deixa na própria terra, e dêsses deveis de conhecer muitos em Portugal, e assim não lhes é possível deixarem cá tanta fazenda e comprarem lá outra, contentando-se mais de a terem no Brasil pelo grande rendimento que colhem dela. E, para concluirmos, nesta terra achareis muitos homens que têm a cinquenta, cento e ainda duzentos mil cruzados de fazenda, e na Índia muitos Poucos dêstes, e, se os que vivem no Brasil, fossem mais curiosos, de maiores cousas poderiam lançar mão para se fazerem ricos e Sua Magestade colher mais rendimento dêle.

Alviano: Folgarei em extremo que me digais que cousas são essas que prometeis poderem dar tanto de si.

Brandonio: Pouco disse em dizer que podia ainda êste Brasil ser mais rico e dar mais rendimento para a fazenda de Sua Magestade, se êsse senhor e os de seu conselho quizerem pôr os olhos nele, porque se os pusessem, fôra também bastante o Brasil a fazer com que os Holandezes e mais estrangeiros que navegavam para a Índia cessem de suas navegações e comércios, sem Sua Magestade dispender nisso um real nem se arrancar contra êles espada.

Alviano: Se isso não fôr obrado por encantamento, pelas vias ordinárias não sei como possa ser.

Brandonio: Sem encantamento se poderá dar à execução, quando Sua Magestade e os senhores do seu conselho se quizerem dispôr a isso.

Alviano: Pois dizei-me o modo.

Brandonio: Notório é que os Holandezes não armam para a Índia à custa dos Estados, antes os mercadores o fazem à sua própria custa e despêsa, aprestando as náus que para lá navegam, de que o cabedal para a fábrica delas e mercadorias que hão de levar se ajuntam por muitas pessoas que nelas se interessam, metendo uns mais e outros menos, segundo o muito ou pouco dinheiro com que se acham, de que se faz livro, no qual por partidas se declara com quanto cada entrou, e feita a viagem, tornando a náu a salvamento, se vende a fazenda e do monte-mór se tiram os gastos, e do que resta se faz conta de a quantos por cento houve de ganho. E tantos fazem bons a cada um dos armadores, com se lhe tomar o cabedal que meteram acrescentado naquela conta.

Alviano: Assim passa, porque um grande amigo meu, que assistiu em Frandes muitos dias, me afirmou que dêste modo se fazem; mas isso que simpatia tem para o Brasil poder impedir o comércio a essas gentes?

Brandonio: Muito grande porque já sabemos que a principal mercadoria e de mais porte, que essas náus vão buscar à Índia, é a pimenta, porque o cravo, massa, noz, porcelanas, beijoim e cousas semelhantes que também trazem são acessórias, e não servem para o nervo de sua mercância; porque muito pouca de cada uma destas basta para fartar tôdas estas partes do Norte, atento que êstes estrangeiros não podem trazer canela, roupas, nem anil, por não se acharem na parte onde eles comerciam com os Indios. Assim que pimenta é a que querem, e pimenta a que vão buscar, e de pimenta tiram o proveito que têm da sua navegação.

Alviano: Pois que é quereis dizer nisso?

Brandonio: Digo que devia fazer Sua Magestade o que fêz el-rei D. Manuel de gloriosa memória, para impedir o trato da pimenta que se trazia por terra à Veneza por via do Cairo, donde se passava e vendia por tôda a Europa.

Alviano: Que é o que fêz el-rei?

Brandonio: Depois de descoberta a navegação da Índia, querendo que a pimenta só corresse por mãos de Portuguêses, com se navegar dela sòmente em suas náus para Europa, pretendeu cerrar de todo aquele comércio em Veneza, o que fêz desta maneira: mandou pessoas confidentes que fossem àquela cidade, para que se informassem com tôda a verdade do custo que fazia um quintal de pimenta pôsto nela, e porquanto se devia vender para tirarem ganho os que nela comerciavam por aquela via, e, depois de bem informado disto, mandou a Frandes feitores Portuguêses, para que lhe vendessem a sua pimenta que para lá mandava por prêço que se por êle se vendesse a que vinha à Veneza, ficassem perdendo muito dinheiro os mercadores que nela contratavam, e desta maneira todos os que haviam mister ter pimenta concorriam a comprar a de el-rei, por se vender mais barato, e como por semelhante prêço não podiam dar os Venezianos a sua sem muito dano pelo custo que lhe fazia, cessaram de seu comércio.

Alviano: Acabai já de vos desembuçar.

Brandonio: Digo que tôda a terra dêste Brasil é tão caroável de dar pimenta que, de por si sem benefício algum, nasce grande quantidade dela pelos campos de diferentes castas, mas não daquela que vem da Índia, que deixa de dar por não se achar na terra semelhante semente, e, quando a houvesse, daria daquela sorte pimenta sem número.

Alviano: Não duvido disso, porque já sei bem que a terra é mui disposta para produzir pimenta, em tanto que os pássaros que a comem, indo a extercar a outra parte, ainda que seja sôbre troncos de árvores, ali nasce; mas é necessário que vos acabeis de declarar nêsses argumentos que ides tomando.

Brandonio: Foi-me necessário propô-los para haver de vir a dizer o que pretendo, e é que Sua Magestade devia de mandar uma caravela à Índia, para que sòmente lhe trouxesse de lá muita semente de pimenta em pipas ou em outra parte, onde mais acomodada viesse, e que a tal caravela passasse pelo Brasil, onde a fosse entregando nas capitanias de Sua Magestade aos capitões-mores que a repartissem pelos moradores, obrigando-os a que a plantassem e beneficiassem, e desta maneira se colheria do Brasil mais pimenta do que se colhe na costa do Malabar.

Alviano: E a que trazem as náus da Índia de ordinário não servirá também para efeito de se plantar?

Brandonio: Não, porque essa, segundo se diz, é passada pela decoada e não pode nascer; e assim, como neste Brasil houvesse muita pimenta, lhe ficara custando a Sua Magestade pouco ou -nenhum trabalho e menos despêsa transpô-las em Portugal, donde à imitação de el-rei D. Manuel a poderia mandar vender por prêço que ficassem os Holandêses perdendo muito dinheiro, se vendessem a sua que vão buscar à Índia. A êsse respeito e por esta maneira, como a essas gentes se lhe não seguisse proveito de seu comércio, não tinham para que continuar com semelhante navegação, e se acabaria sem despêsa nem sangue porfia, que tanto tem custado a Portugal, e Sua Magestade, mandando vender a sua pimenta mais barato, perdia pouco, se não ganhasse dinheiro, pelo menos custa que lhe havia de fazer em a levar para o reino, e o menos prêço por que a havia de comprar no Brasil.

Alviano: Tendes proposto isso com tão aparentes razões, que não haverá quem duvide de haver de ser assim, antes me maravilhe como vos não embarcais para o reino a dar êsse alvitre a Sua Magestade, pois tanta utilidade se deve de seguir dêle para todo o Estado da Índia.

Brandonio: Já o pratiquei com um ministro que tinha grande lugar em sua fazenda, e com lhe parecer a traça maravilhosa, me respondeu que estava já tão introduzido em Portugal o modo da navegação da pimenta, que custaria muito trabalho o querer-se tratar agora de remover noutro modo; e assim como entendi ser aquilo mal velho no nosso Portugal que não leva remédio, desisti da minha prática, e da mesma maneira o farei agora, deixando a cargo aos que lhe toca remediar semelhante necessidade, se o quizerem fazer.

Alviano: Dizeis bem, que é êrro querer emendar o mundo as que têm tão pequena parte nêle, como cada um de nós, e assim tornemos à nossa prática que, se me não lembra mal, deve ser sôbre o haverdes de mostrar as riquezas do Brasil, de que a principal tendes afirmado ser a lavoura dos açúcares.

Brandonio: Assim passa, porque o açúcar é a principal cousa com que todo êste Brasil se enobrece e faz rico, e na lavra dêle se tem guardado até o presente esta ordem: os capitães-mores, que são sesmeiros por Sua Magestade, cada um na capitania de sua jurisdição, repartiram e repartem ainda agora as terras com os moradores, dando a cada um dêles aquela quantidade a que as suas fôrças e possibilidades são bastantes a grangear, e as pessoas a quem se dão semelhantes terras, quando elas são capazes para se fabricarem nela engenhos de fazer açúcares, os fabricam, tendo cabedal para o poderem fazer, e quando lhes falta, as vendem a pessoas que os possam fabricar por ser necessário muitas fôrças e cabedal para os haverem de pôr em perfeição, porque um engenho dos de água, como até agora se costumava de fazer, e ainda dos que chamam trapiches que moem com bois, fazem de despêsa, feito e fabricado, ao redor de dez mil cruzados pouco mais ou menos.

Alviano: Parece-me que quereis dizer que há mais modos de engenhos para fazer açúcares que os de água e trapiches que moem com bois.

Brandonio: Isso quero dizer; porque os de água se alevantam ao longo de rios caudalosos, e ainda fazem grandes tanques para reprêsa dela, para assim poderem moer com mais fôrça d’água, e nestes tais engenhos, depois de a cana de açúcar moida entre dois grandes eixos que fazem mover uma roda, em que fere a água com fôrça, se expreme o bagaço que dali sái debaixo de uns grandes páus, a que chamam gangorras, que fazem apertar com fôrça de bois, onde larga e lança de si o tal bagaço todo o sumo que a cana tinha, o qual se ajunta em um tanque, e dali o lançam em grandes caldeiras de cobre, onde se limpa, coze e apura à fôrça de fôgo, que por debaixo lhe dão em umas fornalhas, sôbre que estão assentadas, sendo necessário para êste açúcar se limpar e fortificar melhor, lançar-lhe dentro decoada que se faz de cinza. E outros engenhos se fazem sem água, e êstes são os trapiches, que disse, os quais moem a cana por uma invenção de rodas que alevantam para o efeito tirada de bois e no mais de fazer o açúcar se guarda a mesma ordem que tenho dito. Mas agora novamente se há introduzido uma nova invenção de moenda, a que chamam palitos, para a qual convém menos fábrica, e também se ajudam para moenda dêles de água e de bois, e tem-se esta invenção por tão boa que tenho para mim, que se extinguirão e acabarão de todo os engenhos antigos, e sòmente se servirão desta nova traça.

Alviano: Tôda cousa que se faz com menos trabalho e despêsa se deve de estimar muito, e pois nesse modo dos palitos se alcança isto, não duvido que todos pretendam usar dêles; mas folgarei de saber a ordem que há para se fazer um pão de açúcar tão alvo e formoso como se leva a Portugal e aqui o vimos.

Brandonio: A ordem é esta: depois do açúcar limpo e melado nas caldeiras, se passa umas tachas também de cobre, aonde à fôrça de fôgo o fazem pôr no ponto necessário para haver de coalhar e criar corpo, e dali se lança em umas formas de barro, dentro nas quais se encorpora e endurece, e depois de estar frio o levam a uma casa multo grande, que só para êsse efeito se prepara, a que dão o nome de casa de purgar e, nela sôbre taboado que está furado se assentam as tais formas, com lhes abrirem um buraco que tem por baixo, por onde vão purgando o mel sôbre correntes do mesmo taboado, que para o efeito lhe põem por baixo, e o mel que por essa maneira vai caindo das formas se ajunta todo em um tanque grande, do qual se faz depois o retame, e ainda outro modo de açúcares, e que chamam batidos e como as formas estão despedidas de todo o mel lhe lançam em cima birro desfeito e água, o qual é bastante para dar ao açúcar a brancura que nêle vemos.

Alviano: E como é possível que o barro, que, por razão o devia sujar e fazer preto, o embranqueça, é para mim um segrêdo dificultoso de entender.

Brandonio: Nem o entenderam muitos anos os primeiros que lavraram açúcares, porque do modo que primeiramente o faziam dêsse o gastavam, até que uma galinha aclarou êste segrêdo, a qual acaso voando com os pés cheios de barro úmido, se pôs sôbre uma forma cheia de açúcar, e naquela parte onde ficou estampada a pegada se fêz tudo o circuito branco, donde se veio a entender o segrêdo e virtude que tinha o barro para embranquecer, e se pôs em uso.

Alviano: Não foi má mestra a galinha para mostrar por êsse modo a cura da negridão do açúcar, pois há tanta diferença na valia do alvo ao negro, e assim, se a engenho fizer muita quantidade do bom não deixará de dar proveito ao senhor dêle.

Brandonio: Nos engenhos de fazer açúcares há muita diferença dos bons aos maus; porque aqueles que gozam de três cousas, quando seus senhores têm fábrica bastante, são sumamente bons, as quais três cousas consistem em ter muitas terras e boas para a planta dos canaviais, água bastante que não falte para a moenda e lenha em grandes matas também em quantidade, de modo que nem a cana nem a lenha fique distante do engenho, antes tão acomodada que se acarrete uma cousa e outra com facilidade, e quando os tais engenhos são desta qualidade não lhe faltando, como tenho dito, a fábrica necessária, costumam a fazer em cada ano a seis, sete, oito e ainda a dez mil arrobas de açúcar macho, e fora os meles, que são retames e batidos, que sempre chegam ao redor de três mil arrobas; quando se sabe aproveitar êste açúcar, costuma a ser um muito bom e outro somenos, e algum sumamente máu, segundo os mestres que a fazem são bons ou ruins, e os outros engenhos de menos porte costumam a fazer a cinco e a quatro, e ainda a três mil arrobas de açúcar, e os tais são de pouco proveito para seu dono.

Alviano: E que fábrica é necessário que tenha um dêsses engenhos que costumam fazer muito açúcar?

Brandonio: É necessário que tenha 50 peças de escravos de serviço bons, 15 ou 20 juntas de bois com seus carros necessários aparelhados, cobres bastantes e bem concertados, oficiais bons, muita lenha, formaria, grande quantidade de dinheiro, além de serem muito liberais em darem a particulares dádivas de muita importância. E eu vi já afirmar a homens mui experimentados na corte de Madrid que se não traja melhor nela do que se trajam no Brasil os senhores de engenhos, suas mulheres e filhas, e outros homens afazendados e mercadores. E para prova disto quero dar sòmente uma assás bastante, a qual é que na capitania de Pernambuco há uma casa de misericórdia, a qual faz de despêsa em cada ano na obrigação dela treze e quatorze mil cruzados pouco mais ou menos; êstes são todos dados de esmolas pelos moradores da mesma capitania, com não ter a casa de renda cousa que seja de consideração, e é tanto isto assim que os provedores, que sucedem para serviço dela em cada um ano, gastam de sua bolsa mais de três mil cruzados, e as demais capitanias tôdas têm misericórdias, nas quais se gasta também muito dinheiro; mas esta de Pernambuco se faz com mais excesso.

Alviano: Não é pequeno argumento êsse para por êle se poder considerar a muita riqueza do Brasil; e pois tendes dito o que basta da primeira condição delas, que quizestes atribuir a tôda a província, passemos à segunda que quereis que seja a mercância.

Brandonio: Muitos homens têm adquirido grande quantidade de dinheiro amoedado e de fazenda no Brasil pela mercância, pôsto que os que mais se avantajam nela são os mercadores que vêm do reino para êsse efeito, os quais comerciam por dois modos, de que um dêles é que vêm de ida por vinda, e assim depois de venderem as suas mercadorias fazem o seu emprêgo em açúcares, algodões e ainda ambar muito bem e gris, e se tornam para o reino nas mesmas náus, em que vieram ou noutras. O segundo modo de mercadores são os que estão assistentes na terra com loja aberta, colmadas de mercadorias de muito prêço, como são tôda sorte de louçaria, sêdas riquísimas, panos finíssimos, brocados maravilhosos, que tudo se gasta em grande copia na terra, com deixar grande proveito aos mercadores que os vendem.

Alviano: E êstes mercadores, que estão assistentes na terra com suas lojas abertas, mandam por ventura vir essas fazendas do reino, ou as compram a outras pessoas que de lá as trazem?

Brandonio: Muito as mandam vir do reino, mas a maior parte dêles as compram a outros que as trazem de lá, com lhe darem a quarenta e a cinquenta por cento de avanço a respeito do prêço, por que as compraram, segundo a sorte e a qualidade das mercadorias, ou a falta ou abundância que há delas na terra, e ainda dêstes mercadores se formam outros de menos porte.

Alviano: E de que condição são êstes?

Brandonio: Há muitas pessoas que vivem sòmente com se fazerem riquíssimas com comprarem estas fazendas aos mercadores assistentes nas vilas ou cidades, e as tomarem a levar a vender pelos engenhos e fazendas, que estão dali distantes, com ganharem muitas vêzes nelas a mais de cento por cento. E eu vi na capitania de Pernambuco a certo mercador fazer um negócio, pôsto que o modo dêle não aprovo, pelo ter por ilícito, o qual foi comprar para pagar de presente uma partida de peças de escravos de Guiné por quantidade de dinheiro e logo no mesma instante, sem lhe entrarem os tais escravos em poder, os tornou a vender a um lavrador fiados por certo tempo que não chegava a um ano, com mais de 85 por cento de avanço.

Alviano: A isso chamam, onde eu nasci, em bom português, onzena; e contudo é causa estranha o haver-se de ganhar tanto dinheiro na própria terra de uma mão para a outra, sem intervir nenhum risco.

Brandonio: Pois assim passa. É tanto isto assim, que desta sorte de mercadores, e dos que têm suas lojas abertas, há muitos que têm grossas fazendas de engenho e lavoura na própria terra, e estão nela assistentes e alguns casados.

Alviano: Não têm pequena habilidade os que se sabem conservar dêsse modo na terra alheia.

Brandonio: Haveis de saber que o Brasil é praça do mundo, se não fazemos agravo a algum reino ou cidade em lhe darmos tal nome; e juntamente academia pública, onde se aprende com muita facilidade tôda a polícia, bom modo de falar, honrados tenros de cortezia, saber bem negociar, e outros atributos desta qualidade.

Alviano: Antes isso devia de ser pelo contrário; pois sabemos que o Brasil se povoou primeiramente por degredados e gente de mau viver, e pelo conseguinte pouco política; pois bastava carecerem de nobreza para lhes faltar a polícia.

Brandonio: Nisso não há dúvida. Mas deveis de saber que êsses povoadores, que primeiramente vieram a povoar o Brasil, a poucos lanços, pela largueza da terra deram em ser ricos, e com a riqueza foram largando de si a ruim natureza, de que as necessidades e pobrezas que padeciam no Reino os faziam usar. E os filhos dos tais, já entronisados com a mesma riqueza e govêrno da terra despiram a pele velha, como cobra, usando em tudo de honradíssimos termos, com se ajuntar a isto o haverem vindo depois a êste Estado muitos homens nobilíssimos e fidalgos, os quais casaram nêle, e se liaram em parentesco com os da terra, em forma que se há feito entre todos uma mistura de sangue assás nobre. E então, como nêste Brasil concorrem de tôdas as partes diversas condições de gente a comerciar, e êste comércio o tratam com os naturais da terra, que geralmente são dotados de muita habilidade, ou por natureza do clima ou do bom céu, de que gozam, tomam dos estrangeiros tudo o que acham bom, de que fazem excelente conserva para a seu tempo usarem dela,

Alviano: Saber imitar e furtar as habilidades àqueles, que as têm boas, é tomar a clava das mãos a Hércules.

Brandonio: Assim o fazem os do Brasil, em tanto que os filhos de Lisboa e as das mais partes do Reino vêm a aprender a êle os bons termos, com os quais se fazem diferentes na polícia, que dantes lhes faltava. Mas parece-me que havemos cortado já muito do fio de nossa prática, que era de tratarmos do proveito que a mercância dá neste Brasil aos que dela usam.

Alviano: Nem estoutra breve em que nas distraímos deve de desagradar aos que a ouvirem, principalmente aos Brasilienses; mas, deixando-a de parte, resta que me digais, se no Brasil há mais comércio que para o Reino?

Brandonio: Sim, há; parque se faz muito grande para Angola e para o Rio da Prata. A Angola se mandam náus com muitas fazendas, que de lá tomam carregadas de escravos, por que se comutam, deixando grande proveito aos que nisto negociam; e ainda as náus, que para lá navegam em direção do Reino, aportam na capitania do Rio de Janeiro, aonde carregam de farinhas, mantimento da terra, por ali se achar mais barata, a qual levam a vender à Angola a troco de escravos e de marfim que de lá trazem em muita quantidade.

Alviano: Isso é quanto ao tocante à Angola; mas para o Rio da Prata folgarei que me digais que modo de negócios se faz.

Brandonio: Do Rio da Prata costumam a navegar muitos peruleiros em caravelas, e caravelas de pouco porte, onde trazem soma grande de patacas de quatro e de oito reais, e assim prata lavrada e por lavrar, em pinhas e em postas, ouro em pó e em grão, e outro lavrado em cadeias, os quais aportam com estas cousas no Rio de Janeiro, Bahia de Todos os Santos e Pernambuco, e comutam as tais cousas por fazendas das sortes que lhes são necessárias, deixando tôda a prata e ouro que trouxeram na terra, donde tornam carregados das tais fazendas a fazer outra vez viagem para o Rio da Prata.

 

E ainda os moradores assistentes na terra se interessam também nesta navegação com não pequena utilidade, e dos tais peruleiros se deixam também ficar alguns na terra, que dão o seu dinheiro por letra, ou compram açúcares, ou o levam consigo para Portugal.

Alviano: Não é mau o comércio de que se colhe por fruto ouro e prata; mas tôda essa mercância, de que tendes tratado, de que se tira tanto proveito, parece que se vem a resumir em mão dos estrangeiros, e dos tais é o proveito, e não dos naturais da terra.

Brandonio: Assim passa pela maior parte; porque os naturais da terra se ocupam no grangeamento dos seus engenhos e no beneficio de suas lavouras, sem quererem tratar de mercâncias, pôsto que alguns o fazem, contentando-se sòmente de navegar os seus açúcares para o Reino, e mandar de lá vir o provimento que lhes é necessário para suas fazendas, deixando, no de mais, a porta aberta aos mercadores que exercitam seu negócio com grande utilidade; em tanto que, por excelência, contarei uma cousa como testemunha de vista.

 

No ano de 92 veio um mercador de pouco porte com uma caravela a Pernambuco, em direitura do Algarve, carregada de alguns vinhos de Alvor, pouco azeite, quantidade de passas e figos, com mais outras cousas que de lá se costuma trazer, em que meteu de cabedal setecentos e trinta mil réis, por conta de carregação, que eu vi. Esse homem esteve seis meses na terra, nos quais vendeu sua fazenda a dinheiro de contada, e fêz dela perto de sete mil cruzados, que empregou em açúcar branco excelente, comprado a seiscentos e cinquenta reis a arroba, nos quais açúcares, pela barateza por que os comprou, devia de dobrar outra vez o dinheiro no Reino.

Alviano: Terra, donde tanto proveito tiram os que nela negoceiam, confesso que não pode deixar de ser muito rica.

Brandonio: Sabeis em quanto é rica que só com uma cousa vos representarei sua riqueza, a qual é que há um homem nobre particular neste Brasil, morador na capitania da Paraíba, o qual, com não possuir mais de um só engenho de fazer açúcar, ousou prometer a tôdas as pessoas que fizessem casas na cidade, que então de novo se fabricava, sendo de pedra e cal de sobrado a vinte mil réis por cada morada de casas, e a dez mil réis, se fossem terreas; e assim o cumpriu por muito tempo, com se haverem alevantado muitas moradas, sem disso se lhe conseguir algum proveito mais do desejo que tinha de ver aumentar a cidade. E tratou mais (com sair com isso) de fazer a casa de Santa Misericórdia da própria cidade, cousa de grandíssimo custo pela grandeza e nobreza do edifício do templo, que tem já quase acabado; e assim, com êste exemplo, me quero passar a tratar da terceira cousa, com que os moradores dêste Estado se fazem ricos, com tirarem dela muito proveito, que é o páu do Brasil.

Alviano: Assim vos peço que o façais.

Brandonio: O páu do Brasil, de que toma nome tôda esta província, como já disse, larga de si uma tinta vermelha, excelente para tingir panos de lã e sêda, e se fazer dela outras pinturas e curiosidades; o qual, pôsto que se acha por todo êste Estado, o mais perfeito e de maior valia é o que se tira das capitanias de Pernambuco, Tamaracá e Paraíba, porque sobrepuja, com muito excesso de bondade, aos mais páu desta qualidade, que se dá pelas mais partes. E assim sòmente do que se tira nas três capitanias referidas se faz caso, e se leva para o Reino, aonde se vende a quatro, e às vêzes a cinco mil reis o quintal, segundo a falta ou abundância que há dele.

Alviano: Pois, dizei-me de que modo tiram os moradores dêste Brasil proveito de semelhante páu e quanto importa à fazenda de Sua Magestade?

Brandonio: O páu do Brasil é droga sua, e como tal defêso; de modo que ninguém pode tratar nêle senão o mesmo Rei ou os que tiverem licença sua por contrato. Antigamente era licito negociarem todos nêle, com pagarem à fazenda de Sua Magestade um cruzado por quintal de saída; mas por se entender que se usava mal desta ordem que estava dada, se revogou para que corresse o negócio por contrato, como hoje em dia corre, e se paga de arrendamento por êle, no Reino, à fazenda de Sua Magestade, quarenta mil cruzados pouca mais ou menos, com declaração que os contratadores não poderão tirar em cada um ano dêste Estado, especialmente das capitanias que tenho apontado, mais de dez mil quintais de páu; e, quando um ano tirassem menos, o poderão perfazer no outro.

Alviano: Não entendia que o páu do Brasil era coisa de tanto rendimento para a fazenda de Sua Magestade, sem na sustentação dêle gastar um só real, gastando muitos cruzados na Índia por adquirir as demais drogas.

Brandonio: Todo o Brasil rende para a fazenda de Sua Majestade sem nenhuma despêsa, que é o que mais se deve de estimar.

Alviano: E os moradores, que proveito tiram dêsse páu?

Brandonio: O modo é êste: vão-no buscar doze, quinze, e ainda vinte léguas distante da capitania de Pernambuco, aonde há o maior concurso dêle; porque se não se pode achar mais perto pelo muito que é buscado, e ali, entre grandes matas, o acham, o qual tem uma folha miúda e alguns espinhos pelo tronco; e êstes homens ocupados neste exercício, levam consigo para a feitura do páu muitos escravos de Guiné e da terra, que, a golpes de machado, derribam a árvore, à qual depois de estar no chão, lhe tiram todo o branco; porque no âmago dêle está o Brasil, e por êste modo uma árvore de muita grossura vem a dar o páu, que a não tem maior de uma perna; o qual, depois de limpo se ajunta em rumas, donde vão acarretando em carros por pousos, até o porem nos passos, para que os batéis possam vir a tomar.

Alviano: Não deve de dar pequeno trabalho o fazer êsse páu por êsse modo; e se o proveito não é muito ficará sendo cara a mercância.

Brandonio: Sim, dá grande proveito; porque há muitos homens dêstes que fazem brasil, que colhem em cada um ano a mil e a dois mil quintais dêle, que todos acarretam com seus bois; e depois de pôsto no passo o vendem por prêço de sete e oito tostões o quintal, e às vêzes mais, no que vêm a grangear grande cópia de dinheiro, e por êste modo se tem feito muitos homens ricos.

Alviano: Se isso passa dessa maneira, poderemos dizer que dá Deus aos moradores do Brasil ouro e prata pelos campos, e que de coisa, que êles não plantaram, nem grangearam, colhem fruto.

Brandonio: Sabeis quanto é assim, que ainda vos poderei afirmar que se acham outras coisas de mais importância, sem lhes custar nenhum trabalho nem indústria.

Alviano: E de que modo pode suceder isso?

Brandonio: Dêste: que muitos homens se fazem ricos neste Brasil com soma de ambar, que acham pelas praias, uns em muita, e outros em menos quantidade; em tanto que houve certo morador que achou tanta cópia dêle, que a muita quantidade lhe fêz duvidar o poder ser o que tinha achado ambar, e o reputou por breu ou pez, e como til se pôs a brear com êle uma barca, que tinha posta em estaleiro para o efeito, e continuou com a obra até que alguns compadres seus, que o viram ocupado nela, o desenganaram do êrro que fazia, e, com ter já gastado grande quantidade de ambar, ainda se ficou com muito.

Alviano: Isto parece dos contos do Trancoso e, como tal, não me persuado a dar-lhe crédito.

Brandonio: Não é senão pura verdade, e passou da maneira que o tenho relatado. E porque não mendiguemos semelhantes acontecimentos por casas alheias, vos contarei um que me sucedeu, e se duvidades dêle, em tempo me acho de poder verificar minha verdade com testemunhas dignas de fé. E o caso é êste: estando eu no ano de oitenta e três assistente na capitania de Pernambuco, na vila de alinda, ao tempo de partir uma frota para o Reino, que me trazia assás ocupado com o haver de escrever para lá, chegou um criado meu, a quem trazia ocupado no recebimento dos dízimos dos açúcares, que então estavam a meu cargo, chamado por nome o Comilão, e em grande segrêdo, depois de nos metermos ambos em uma câmara, me disse que, indo a buscar o dia antecedente um pouco de peixe a uma rêde que pescava no rio do Extremo, achara na praia grande quantidade de certa coisa, que logo me mostrou, com me meter na mão uma bola daquilo que dizia haver achado, a qual pesaria, segundo minha estimação, de seis para sete arrateis, e que do semelhante era tanta a quantidade a que estava na praia, junto d’água, que gastaram êle e dois negros, que consigo levava, mais de três horas em o acarretarem em uma forma, que fôra de açúcar, e dois cabaços, até porem tudo desviado da praia e caminho entre alguns mangues, e que êle junto fazia um arresoado monte. Eu era então novo na terra, e não havia ainda visto nela nenhum ambar, pôsto que em Portugal me passára pela mão algum; mas, como era ambar gris, que vem da Índia, dava maravilhoso cheiro com ser branco, e pelo contrário aquilo, que me o mancêbo dizia haver achado, era uma coisa negra viscosa, que tinha o cheiro de azeite de peixe, e por êsse respeito cobrei tanto asco de o ter nas mãos, que lancei a bola pela janela fora entre umas ramas crescidas, ficando-me sòmente entre os dedos um pequeno papel em que o apertara, coisa de três para quatro onças, as quais acaso, por me despojar delas, lancei dentro na gaveta de um escritório que tinha aberto. E despedi o mancebo com lhe dizer que não tinham para que fazer caso daquilo, que dizia haver achado, porque devia de ser alguma imundicie que sái à praia. Com isto se foi o pobre descuidado do muito que se lhe ia de entre as mãos. Passaram-se três anos, dentro dos quais veio a esta terra do Reino um parente meu de muita obrigação, o qual querendo fazer volta outra vez para lá, me foi necessário dar-lhe um papel de importância, para que o levasse consigo, o qual não achava, e por êsse respeito o busquei por tôdas as gavetas do escritório muito de espaço, e em uma delas fui dar com o papel envolto naquela coisa que ali tinha lançado. E, como o tempo tinha já gastado o ruim cheiro de azeite de peixe e cobrado outro muito bom, mostrou claramente ser ambar, e de se achar ali, estive confuso por me não alembrar quando ou de que maneira o havia metido naquela gaveta, ou donde me viera; todavia, examinando bem a memória, vim a cair no que havia precedido com não pequeno pesar. E imagiando poder ainda dar remédio ao que já o não tinha, mandei chamar logo o descobridor, que então era casado, e dando-lhe conta do que passava, faltou pouco para se enforcar; todavia nos pusemos a cavalo, indo a parte onde êle achara o ambar, com a qual êle já mal atinava, e por fim não achamos coisa nenhuma, com cair na conta de que os carangueijos, aves, e mais imundicies o deveriam ter comido.

Alviano: Todavia esse foi estranho caso, e bem digno de se sentir a perda de tão grande haver, que não crêra haver passado desse modo, senão afirmasseis com tantas veras; mas êsse ambar como podia ser preto? porque tenho para mim que todo é branco e pardo.

Brandonio: Nêste nosso Brasil há dois modos de ambar: um é branco e gris, que se acha na costa de Jaguaribe, o qual por ser tal se vende a onça dêle a quatro mil reis e às vêzes por mais; o outro é negro, que se acha desde Pernambuco até a Bahia, pôsto que também sai do branco; mas o preto vale de três para quatro cruzados a onça.

Alviano: Tão sentido estou do que me cantastes haver-vos sucedido, que não quero ouvir falar mais em ambar; e assim nos passemos a tratar da quarta condição da riqueza do Brasil, pela ordem que as levais enfiadas.

Brandonio: Todavia, antes de começar a tratar o que me perguntais, vos hei de contar uma graça ou história que sucedeu, há poucos dias, neste Estado sôbre o achar do ambar. Certo homem ia a pescar para a parte da capitania do Rio Grande, em uma enseada que ali faz a costa, e querendo se meter em uma jangada para o efeito, lhe faltava uma pedra de que pudesse fazer fateixa, e lançando os olhos pela praia viu uma, que, ao seu parecer, teve por acomodada para isso, e, tomando-a, atou nela o cabo, e se meteu na jangada para ir fazer sua pescaria; e estando já na parte que queria, porque o vento fazia desgarrar a jangada do pôrto, lançou a sua fateixa ao mar, a qual, como se fôra de cortiça, andava sôbre água; e, vendo que lhe não aproveitava a diligência que tinha feito com aquela fateixa, pois nadava, tornou para terra ao tempo que chegava à praia um seu amigo, também para haver de pescar com outra jangada, e dando-lhe conta do que lhe havia sucedido com aquela pedra que nadava, o outro, que devia ser mais trefego, lhe disse que não tomasse por isso pena, porquanto êle se achava indisposto, e não determinava de pescar, que ali tinha a sua fateixa de que se podia servir. Aceitou-lhe o outro o oferecimento, e com ela se foi à sua pescaria, deixando a pedra nadadora nas mãos do que novamente chegára, que logo conheceu ser ambar, e tomando às costas se recolheu e fêz-se invisível com ela, aproveitando-se de sua valia, porque pesava quase uma arroba.

Alviano: Não foi máu lanço êsse; e pôsto que a riqueza se estrebuxe pelos homens por venturas, se é lícito poder-se dizer assim, para tôda esta coisa de haver, principalmente para o achar do ambar se requer grandíssima; e, porque ainda estou maguado do que me cantastes, vos peço que tomeis ao fio da vossa narração.

Brandonio: Parece-me que disse que o quarto modo, que havia no Brasil, para se fazerem ricos seus moradores eram os algodões e madeiras; pelo que tratarei primeiro dos algodões, que já foram tidas em mais reputação, e deram mais proveito aos que nêle tratavam do que de presente dão.

Alviano: E qual é a causa disso?

Brandonio: Haver muito em Veneza e em outras partes, com que se abate o que levam do Brasil; pôsto que a terra é tão carcável de o produzir, que em qualquer parte se colhe grande quantidade de algodão. Planta-se de semente, e em breve tempo leva fruto, o qual se colhe depois de estar maduro e de vez, e tirado do cocúlo, aonde se cria, o põem em rimas, e dêste modo se chama algodão sujo,o que se aparta da semente é o limpo. E para se haver de apartar dela usam de uma invenção de dois eixos, que andam à roda, e passado por êles o algodão larga uma parte, que é a por onde se mete a semente, e pela outra vai lançando por entre os eixos o algodão, que se costumava a vender na terra a dois mil reis a arroba, com deixar muito proveito aos que o lavram, pelo pouco custo que na lavoura dêle faziam e no reino se vendia a quatro mil reis a arroba, mas já agora, pelo respeito que disse, se vende tanto em uma parte como em outra por muito menos prêço.

Alviano: E de que modo se leva êsse algodão para o Reino?

Brandonio: Levam-no dentro em grandes sacos, que para êsse efeito fazem de angeo, onde se mete muito bem socado, de modo que a saca fica dura e têsa; e, como está apertado, não importa que o levem para o Reino sôbre a coberta dos navios, porque a chuva lhe não faz dano. E com isto me parece que tenho dito o que basta dos algodoes, dos quais também neste Brasil se faz muito bom pano de serviço.

Alviano: Pois passemos a tratar das madeiras, que deve de ser coisa de mais importância.

Brandonio: Certamente que estimara muito não me meter em semelhante trabalho, pelo muito que há que dizer acêrca dessa matéria; porque por cada parte que ponho os olhos, vejo frondosas árvores, entrebastecidas matas e intrincadas selvas, amenos campos, composto tudo de uma doce e suave primavera; porquanto, em todo o decurso do ano, gozam as árvores de uma fresca verdura, e tão verdes se mostram no verão como no inverno, sem nunca se despirem de todo de suas folhas, como costumam de fazer na nossa Espanha; antes, tanto que lhe cái uma, lhe nasce imediatamente outra, campeando a vista com formosas paisagens, de modo que as alamedas de alemos e outras semelhantes plantas, que em Madrid, Valhadolid e em outras vilas e lugares de Castela se plantam e grangeam com tanta indústria e curiosidade, para formosura e recreação dos povos, lhes ficam muito atrás e quase sem comparação uma coisa da outra; porque aqui as matas, e bosques são naturais, e não industriosos, acompanhados de tão crescidos arvoredos, que, além de suas tapadas frescas folhas defenderem aos raios do sol poder visitar o terreno de que gozam, não é bastante uma flecha despedida de um têso arco, por galhardo braço, a poder sobrepujar a sua alteza; e destas semelhantes plantas e árvores há tantas e diversas castas que se embaraçam os olhos na contemplação delas, e sòmente se satisfazem com dar graças a Deus de as haver criado daquela sorte. Donde certamente cuido que se neste Brasil houvera bons arbolários, se poderiam fazer da qualidade e natureza das plantas e árvores muitos volumes de livros maiores que os de Dioscorides; porque gozam e encerram em si grandíssimas virtudes e excelências ocultas, e enxerga-se o seu muito em algum pouco delas, de que nos aproveitamos,

Alviano: Por essa maneira temos no Brasil outros novos campos de Tesalia; porque tendes encarecido os seus com tão eficazes palavras, representando neles tantas grandezas e excelências, que me vem desejo me transformar em um agreste pastor, sòmente para poder gozar de tanta frescura.

Brandonio: Não vos fôra mal, quando assim o fizesseis, porque em tudo quanto tenho dito fico certo a perder de vista para o muito que podera dizer.

Alviano: Confesso que êsses campos terão essa amenidade que representais, mas nunca ouvi dizer que as plantas, que por êles se produzem, gozem de tantas virtudes medicinais de que os fazeis abundantes.

Brandonio: Não me quero distrair em mostrar a verdade do que diga em contrário dessa vossa opinião; porque seda meter-me em matéria de que a saída fôra dificultosa. Só vos direi dois exemplos, que experimentei e vi por próprios olhos, pelos quais ficareis entendendo o mais que pudera relatar; dos quais o primeiro é que, tendo eu, em minha casa, uma mulatinha de pouca idade, que nela me nasceu, a quem queria muito pela haver criado, um escravo meu, com ânimo diabólico, estimulado de a menina me descobrir um furto, que êle havia feito, lhe deu peçonha, de tal sorte que em muito breve espaço inchou tôda com uma côr denegrida, e, com apressado resfôlego, escumava pela boca, os dentes cerrados, e olhos em alvo, mostrando nisto e em outras coisas todos os sinais de morte. Vendo eu a menina em tal estado, além de ficar pezaroso em extremo, imaginei, com firme pressuposto, ser o acidente causado por peçonha, e que o autor de lh’a dar devia de ser o próprio escravo, que lhe havia dado, porque tinha entre os tais nome de feiticeiro e arbolàrio, Pelo que fiz lançar mão dêle, afirmando-lhe que não teria mais vida que enquanto a menina gozava dela, porque sabia de certo haver-lhe êle dado peçonha, com lhe dizer mais, e ainda mostrar que o queria fazer, que o havia de passar por entre os eixos do engenho; por tanto que procurasse com brevidade dar remédio ao mal que tinha feito. Pôde tanto o temor destas ameaças com êle, que se obrigou a curar a enfêrma, à condição que lhe havia de dar licença para poder ir ao mato buscar algumas ervas para o efeito. Consenti no que me pedia, mas com o mandar aljavado com outro escravo ladino dos da terra, a quem encomendei em segrêdo que notasse bem a herva que colhia para depois a ficar conhecendo; mas o outro foi tão matreiro que, por se guardar disso, colheu muitas e diversas hervas, entre as quais o fêz a de que tinha necessidade; em forma que o outro aliavado, que com êle ia, não pôde atinar que herva era a de que se havia de aproveitar. Tornaram ambos aonde eu os esperava, e o arbolario trazia já a herva desfeita entre as mãos e mastigada com os dentes; e em chegando, não fêz mais do que ir-se à atossigada e lançar-lhe o sumo dela por dentro da boca, que lhe abriu com uma colher, e juntamente pelos ouvidos e narizes, fazendo mais esfregação com ela nos pulsos e juntas do corpo, - ó cousa maravilhosa! que no mesmo instante abriu a menina os olhos e boca, e após isso, purgando grandemente por baixo e por riba, se lhe começou a desinchar o corpo, e dentro de um dia esteve sã como dantes. E eu estranhamente magoado de não poder conhecer a herva, porque nunca pude acabar com o escravo, nem por ameaças nem por dádivas que lhe prometi, que m’a amostrasse: sòmente em pequeno pedaço dela, que lhe tomei dentre as mãos, enxerguei que era uma herva cabeluda.

Alviano: Houvera-o eu de obrigar com tormentos, porque antídoto tão preservativo e de tanta virtude era bem que fôra conhecido do mundo.

Brandonio: Nada bastou com o escravo. O outro exemplo é que um escravo dos de Angola, de pouca importância, vi tomar com as mãos muitas cobras peçonhentíssimas, e ajunta-las consigo, as quais, pôsto que o mordiam por muitas partes, lhe não faziam as tais mordeduras dano; sendo assim que, em outras pessoas, as de semelhantes cobras matavam em vinte e quatro horas. Deu-me maravilha o sucesso, e imaginei que devia de ser aquilo obra de palavras ou fôrça de encantamento; mas todavia me desenganei que nem uma cousa nem outra era, porque, grangeando eu a vontade do negro com dádivas, me veio a mostrar umas raízes e outra herva, dizendo-me que tôda pessoa que trouxesse untadas as juntas do surto daquela raiz, depois de bem mastigada na boca, podia com muita seguridade tomar nas mãos quantas cobras quisesse, sem temor de que a sua mordedura lhe fizesse dano por muito peçonhenta que a cobra fosse; e assim o experimentei, e fiz experimentar, e se experimenta ainda até o dia de hoje entre os meus escravos. A herva que mais me deu era para se haver de curar com ela aos que fossem mordidos de qualquer cobra, sem o preservativo o que tenho dito; porque untado e bem esfregado com ela e com o seu sumo, o lugar da mordedura, com outras diligências que o escravo fazia de esfregações, sarava, como sararam infinidades de homens mordidos de semelhantes bichas peçonhentíssimas com tanta facilidade como se foram mordidos de uma abelha. E porque êste negro é morto, alguns escravos meus usam da mesma herva com grande utilidade.

Alviano: Pois haveis-me de fazer mercê de mandar a êsses vossos escravos que me dêm uma pequena dessa raiz e herva que as quero trazer sempre comigo para o que suceder; mas folgarei de saber se a virtude da raiz e herva se extende a mais que a ser antídoto contra a peçonha da cobra.

Brandonio: Não o tenho ainda experimentado por negligência minha; mas, assim como há neste Brasil semelhantes preservativos contra a peçonha, também há muitas árvores e plantas que a dão finíssima, de que os negros de Guiné se aproveitam com matarem de ordinário muitos dos seus semelhantes com ela.

Alviano: E quem mostrou a êsses escravos o segrêdo dessa peçonha?

Brandonio: De sua terra vieram mestres dela, e nesta fazem muito mal aos moradores com lhe matarem seus escravos. Mas parece-me que nos imos desviando de nossa prática, que era havermos de tratar do modo que os habitantes dêste Brasil se fazem ricos pela madeira, o que sucede com lavrarem e serrarem muita, assim para se fazerem caixas, em que encaixam os açúcares, como muitos e bons champrões que se levam para o Reino, e outras excelentes madeiras para casas e obras primas de escritórios, bofetes, leitos e outras semelhantes.

Alviano: E os próprios moradores são por ventura os que lavram e serram essas madeiras?

Brandonio: Não, porque a gente do Brasil é mais afidalgada do que imaginais; antes a fazem serrar por seus escravos, e há homem que faz serrar em cada ano mil e dois mil caixões de açúcar, que vendem aos senhores de engenho, lavradores e mercadores, a quatrocentos e cinquenta e a quinhentos reis cada um, segundo a falta ou abundância que há dêles; e nisto se vê a grande quantidade de madeiras que há neste Estado que com haver tanto tempo que é povoado, fazendo-se todos os anos nêle tão grande número de taboado para caixões, não cessam as matas de terem madeiras para outros muitos, e nunca faltarão nêles.

Alviano: E de que páus se lavram essas madeiras para caixões?

Brandonio: Os caixões se fazem de páu mole, como são mongubas, buraremas, Visgueiro, páu de gamela, camaçaris e um páu que chamam de alho, e outro branco; e dos tais há diversas castas, porque para caixões se busca sempre madeira mole, por ser mais fácil de serrar.

Alviano: E para champrões que dizeis se levam para o Reino, madeiras para casa e outras obras, de que sorte delas usam?

Brandonio: De muitas excelentes, as melhores que há no mundo. E há tanta quantidade das tais que não haverá homem que as possa conhecer, nem saber-lhes o nome para as haver de nomear, de vinte partes a uma, ainda que o tal fôsse carpinteiro, cujo oficio não seja outro que cortá-las nas matas.

Alviano: Todavia, folgarei que me digais a qualidade de algumas.

Brandonio: Por vos fazer a vontade me esforçarei a dizer algumas, das poucas a que sei o nome. E assim digo que as madeiras, de que tenho noticia, e me alembra a qualidade delas, são estas: assabengitas, que é um páu amarelo, que lança de si a mesma tinta, muito rijo; jataúba vermelho, de formosa côr; piqueá, muito rijo e de côr amarela; outro páu, que chamam amarelo, excelente para tabuado; jataúba, de côr douarada; massaranduba e cabaraíba, ambos de côr roxa, maravilhosos para obra prima, principalmente para cadeiras; jacarandá, tão estimado em nossa Espanha para leitos e outras obras; condurú, páu de grande fortaleza, do qual se fazem bons champrões; sapopira, de que se faz também o mesmo, e muitos carros, e também liames para navios; camaçarim, apropriado para taboado; outro páu chamodo d’arco, porque se fazem dêle de muita fortaleza e rigidão; zabucai, também muito estimado para eixos de engenhos e estearia; canafistula de côr parda; camará, rigidissimo, e por êsse respeito assás estimado; páu-ferro, que lhe deram êste nome por ser igual a êle na fortaleza; outro páu chamado santo, tão estimado e conhecido por tôda a parte; buraquihi, assás proveitoso; angelim, de que se faz tanto cabedal nas Índias Orientais, e o incorrupto cedro, louvado na Escritura; e assim burapiroca, louro, dos quais se aproveitam para armações de casas; buraem, de que se faz taboado para navios, quase incorrupto; corpaúba, de uma côr preta excelente; orendeuba, de uma galharda côr vermelha; e assim guoanadim, que se produzem por alagadiços e mangues, que se não dão senão pelo salgado. Outro páu, chamado quiri, que corta pelo ferro por ser mais duro que êle, cujo branco de fora pode suprir a falta do marfim em qualquer obra, e o âmago de dentro demonstra as águas e côres de um jaspe muito formoso; e da mesma maneira é outro páu, que vem de Jaguaribe. Estes poucos me ocorreram à memória entre os muitos de que pudera fazer menção, os quais são todos das capitanias da parte do Norte do cabo de Santo Agostinho; porque das do Sul tenho pouca notícia, por não haver andado por aquelas partes.

Alviano: Os dias passados vi nas mãos de um homem ancião um páu da grossura de uma manilha, que lhe servia de bordão; parecendo-me que era grande, e, como tal, devia de ser pesado para o efeito, o tomei e achei tão leve, que quase o não senti nas mãos; porque o era mais do que pudera ser uma meada de estopa.

Brandonio: Êsse páu ou, para melhor dizer, cana se forma de um junco grosso, chamado tabúa, do qual se fazem esteiras; e quando é muito velho dá semelhante cana. Também fia outro páu que chamam de jangada, porque se fazem as tais dêle para andarem pelo mar, o qual é também levíssimo, por êsse respeito fazem dêle os páus dos andores, em que andam as mulheres, da maneira que adiante direi.

Alviano: Não sei eu em que parte do mundo se poderão achar tantas e tão boas madeiras, como são as que tendes referido; e maravilho-me como Sua Magestade se não aproveita delas para fábrica de náus e galeões, as quais podéra lavrar a estas partes.

Brandonio: Estando eu no Reino, no ano de seiscentos e sete, se quis informar de mim o Conde Meirinho-mór, veador da fazenda de Sua Magestade, de duas cousas: uma se poderia mandar lavrar navios neste Estado, e a outra se haveria comodidade nêle para se fazerem piques, porque, dizia, lhe custava trabalho manda-los vir de fora do Reino; ao que lhe respondi que não havia modo como se pudessem alevantar neste Estado embarcações de importância, porquanto as madeiras estavam já mui desviadas, pelos engenhos haverem consumido as de perto, e que assim custaria muita despêsa a acarretá-las à borda d’água; demais que seria dificultoso poder-se ter os oficiais necessários para a obra obrigados a ela, porque, pôsto que os mandassem do Reino à soldada, logo se haviam de ausentar pela terra, de modo que não poderiam ser achados. Mas já hoje estou de diferente opinião; porque com a nova povoação do Maranhão e Pará, que é o rio das Amazonas, poderá Sua Magestade mandar fabricar naquelas partes muitas embarcações, onde se acham grande quantidade de madeiras à borda d’água, da qual se podem aproveitar a pouco custo. E os oficiais, que para o efeito mandar do Reino, não se poderão ausentar, por não haver ainda, em aquelas partes, fazendas nem povoações pela terra a dentro, por onde se possam espalhar.

Alviano: Não é mau alvitre êsse para Sua Magestade lançar mão dêle; porque creio que logo o deve de mandar pôr em execução. E dos piques que respondestes a êsse ministro?

Brandonio: Disse-lhe que se podiam fazer muitos e mui bons de um páu que havia na terra chamado páu d’astea, pelas fazer boas; e ainda, para que experimentasse a verdade do que lhe dizia, me obriguei a lhe mandar desta terra, para onde então estava de caminho, alguns piques lavrados, o que cumpri na forma que lh’o prometera, tanto que a ela cheguei, sem ter mais sôbre a matéria resposta.

Alviano: Estou maravilhado de vos ouvir nomear tanta diversidade de madeiras, que, pelos nomes diferentes que lhes dais, entendo que devem de ser tôdas de aderentes feições e qualidade.

Brandonio: Sim, são: em tanto que se parecem raramente, nem na folha nem no tronco, uma árvore com a outra. E não quero deixar em silêncio duas cousas que vi de muita consideração, ambas na capitania da Paraíba; das quais uma delas foi um páu de gamela de muita grossura, que estava ôco por dentro, mas contudo não seco, porque tinha a sua rama verde e perfeita, e dentro dêste páu nascia outro de mangue, de grossura de sete palmos por roda, o qual penetrava, com o seu tronco inteiro metido pelo outro, por dentro de sua concavidade até responder com a rama, que era assás grande, pelo mais alto, justamente com a da outra árvore; porque nascida tão baralhada, que demonstrava ser tôda uma, e sòmente no modo das folhas se conhecia a diferença; assim que as duas árvores se formavam de duas raízes, e de dois troncos diferentes, estando uma dentro na outra. E a outra é haver visto, na serra da Copaoba, uma árvore de suma grandeza, cavalgada sôbre um alto penedo, que estava alevantado da terra mais de doze palmos, e as raízes da árvore, por uma parte e outra, a vinham buscar, donde tomavam o nutrimento para o seu tronco e rama, sem poder acabar de entender o modo como semelhante planta podia nascer sôbre aquele penedo cavalgada, sem ter por meio terra, em que se sustentasse.

Alviano: Tendes-me contado tantas maravilhas, que não tenho essa por estranha, pôsto que é assás. Mas, pois haveis falado em mangues, dizei-me se é verdade que tem as raizes de cima para baixo; porque sou tão descuidado que ainda não olhei para isso.

Brandonio: Os mangues nascem nos alagados entre rios que estão sujeitos aos fluxos e refluxos da maré, e os mais dêles sôbre vasa, dos quais há ai duas castas, um vermelho e outro branco: o vermelho é mais rijo, e dá-se melhor na vasa, o outro branco é páu mole, e nasce um pouco mais desviado do salgado e em terra mais fixa; e todos botam as raizes de cima para baixo, mas em mais quantidade o vermelho. E com isto ponhamos por hoje termo à nossa prática, porque vos confesso de mim que não estou para mais.

Alviano: Nunca sairei do que levardes gôsto, mas à condição que nos tornemos a ajuntar amanhã nestas partes, às horas costumadas, para prosseguirmos avante com o que nos resta por dizer.

 

 

 

Diálogo Quarto

 

 

Alviano: Ontem vos estive esperando tôda a tarde dêste mêsmo ponto, e por faltardes dêle me tornei a recolher mais cêdo do que imaginava.

Brandonio: Certa ocasião foi causa de não poder cumprir com o que vos tinha prometido; mas, si se vai dizer a verdade, quis fazer pé atrás para poder dar melhor salto sôbre o que hoje havemos de tratar; porque a matéria é tão fecunda que requer muito estudo pára se prosseguir, que do seu processo seu debuxarão mais ao vivo as riquezas e grandezas do Brasil, supondo que as mais das coisas de que pretendo tratar são das capitanias da parte do Norte, porque das do Sul sei pouco por respeito de, como já disse outra vez, não haver andado por aquelas partes. Mas das que tenho entre mãos para haver de tratar, há tanto que dizer que não sei por onde comece.

Alviano: Dizei tudo a vulto, como melhor puderdes, em forma que deis cumprimento ao que pretendeis, que é mostrar claramente as riquezas dêste Estado.

Brandonio: Sem grandes colóquios as pudera eu mostrar numa só coisa, a qual, é, e não o tenhais por graça, que me esforçarei a provar, que, se as três capitanias, que são a de Pernambuco, a de Itamaracá e a da Paraíba, quando foram tôdas de um senhor livre e isento na jurisdição e vassalagem, lhe haviam de render, em cada um ano, mais de um conto de ouro.

Alviano: Todo o reino de Portugal estou em dizer que não rende tanto à Sua Magestade, e vós quereis pôr em prática que essas três capitanias hajam de render tantos cruzados!

Brandonio: Não são isto quimeras, nem fantásticos fingimentos, antes verdades que logo vos determino mostrar a certeza delas, como já tenho mostrado outras semelhantes. E assim me torno a reformar que, se as três capitanias forem de senhor livre, há de colher delas de rendimento, em cada ano, o que tenho dito; porque já vos mostrei, por conta, de como importavam os açúcares, que se navegavam sòmente destas três capitanias para o Reino, para a fazenda de Sua Magestade, nos direitos que pagam às alfândegas, mais de trezentos mil cruzados, e tantos havia de colher o senhor livre dos mesmos direitos por saída, quando deixasse navegar os tais açúcares, cada um para parte donde os quizesse levar; sessenta e tantos mil cruzados mais o dízimo delas; dez ou doze mil das pensões, que se pagam aos senhorios e capitães, se haviam de pagar a êle, pois o ficava sendo, e outrossim quarenta mil cruzados, que importam o rendimento do páu Brasil, e da mesma maneira o que haviam de pagar de direitos por entrada, à razão de 21 (?) por cento, as fazendas e mercadorias que viessem, e se navegassem de tôdas as partes para as ditas três capitanias, que, conforme a minha estimação deviam de importar ao redor de cento e cinquenta mil cruzados. E tudo isto é coisa que está já sabida, no que não pode haver dúvida; e o que ainda se não sabe, nem experimentou, de que pode colher também muito rendimento, é a saber: pimenta da Índia, que pode fazer plantar e colher pelo modo que tenho dito, e outra diversidade de castas, que há dela, excelentes e assás estimadas dos estrangeiros; quantidade grande de malagueta, a qual se dá e colhe pelos matos silvestres, sem beneficio nenhum, em abundância; gengibre; que prole mandar cultivar por a terra ser muito caroável de o dar, o qual, navegado para Frandres e outras terras de estrangeiros, deixará muito-proveito; infinidade de anil que pode mandar lavrar, porque a erva de que se faz (a qual na Índia e Índias se planta e grangêia com cuidado e diligência) aqui nasce pelos campos em tanta quantidade, sem nenhum beneficio, que se pode lavrar dela grande sorna de semelhante droga. Por maneira que tôdas estas coisas postas em uso, e juntas com as que já estão postas, devem de dar de rendimento ao tal senhor, quando o fôsse no modo que tenho dito, muito mais do milhão de ouro de que vos maravilhastes.

Alviano: Não duvido que, quando essas coisas viessem a lume, poderia suceder desse modo; mas, enquanto não estão em uso, não temos para que fazer caso delas, e assim vos peço que nos passemos à nossa prática de que cuido que a de presente deve ser de corno se fazem os moradores dêste Estado ricos pela lavoura.

Brandonio: Assim o farei, pôsto que tinha para dar resposta muito concludente a essa vossa dúvida. E vindo ao que nos importa, para havermos de levar enfiado o que temos para dizer acêrca da lavoura, convém que comecemos primeiramente pelos mantimentos.

Alviano: Assim me parece ser razão que o façais, porque dêles tem princípio todo o modo de lavoura, e por êles se exercita com tanto cuidado e diligência.

Brandonio: Os mantimentos, de que se sustentam os moradores do Brasil, brancos, índios e escravos de Guiné, são diversos, uns sumamente bons, e outros não tanto; dos quais os principais e melhores são três, e dêstes ocupa o primeiro lugar a mandioca, que é a raiz de um páu, que se planta de estaca, o qual, em tempo de um ano, está em perfeição de se poder comer; e, por êste mantimento se fazer de raiz de páu, lhe chamam em Portugal farinha de páu.

Alviano: Assim é: quando querem vituperar o Brasil, a principal coisa que lhe opõem de mau é dizerem que nele se come farinha de páu.

Brandonio: Pois essa farinha é um excelente mantimento, e tal que se lhe pode atribuir mèritamente o segundo lugar depois do trigo, com exceder a todos os demais mantimentos, de que se aproveita a mundo.

Alviano: Pois dizei-me o modo que se guarda para se haver de pôr êsse mantimento em perfeição de se poder usar dêle?

Brandonio: Faz-se desta maneira: depois de estar assasonada, se tira aquela raiz debaixo da terra, que é da grossura de um braço, e às vêzes mais comprida, a qual, depois de limpa da casca de fora, a ralam em uma roda que para isso têm feita, forrados os seus extremos de cobre, a modo de raio, e depois lhe espremem todo o sumo muito bem em uma prensa, que para o efeito se faz; e assim como tiram mandioca da prensa, a vão pondo de parte feita em umas bolas, das quais a desfazem para a cozerem em uns fornos, que para isso se lavram de barro, a modo de tachas, com fôgo brando, e dêste modo fica feita a farinha; mas para ser boa lhe hão de lançar tapioca, quanto mais lhe dansam, tanto melhor dá a farinha, das quais a feita por êste modo se chama farinha de guerra, que dura grande espaço de tempo sem corrução e a levam para comer no mar.

Alviano: E que cousa é essa tapioca, que dizeis se lança nela?

Brandonio: Compõe-se da água ou sumo que se espreme da mesma mandioca; porque depois de junta em um vaso, cria pó por baixo, a modo de farinha de Alemtejo, muito alva, e lançada a água que está por cima fora dela, fica a que se chama tapioca, que é o que disse que se mistura com a farinha. E para mantéos engomados e outras cousas semelhantes é muito melhor que a goma que se faz em Portugal; mas há nisto uma cousa notável, que aquela água ou sumo, que se lança do vaso, depois de se tirar a tapioca, é peçonha finíssima, a qual tôda pessoa ou alimaria, que a come ou bebe, morre sem remédio, e ainda depois de lançada na terra se forma daquela umidade uns bichos que, se os tomarem sêcos e os fizerem em pó, fica sendo o mais fino e apurado veneno de todos quantos se podem imaginar.

Alviano: Não tenho eu por muito sadio o mantimento, donde tão grande veneno se forma.

Brandonio: Pois também vos direi mais que também a raiz, antes de se lhe fazer o benefício que tenho dito, é veneno e mata a quem a come, exceto uma sorte de semelhante raiz a que chamam macacheira; porque esta tal se come assada ou cozida, com ter o sabor das castanhas da nossa terra; e contudo a de outra sorte, pôsto que é tão peçonhenta, preparada como tenho dito, fica sendo mantimento assás sadio e muito acomodado para a natureza humana, e não se sabe haver nunca feito mal a ninguém por nenhuma via.

Alviano: Pois se a sorte dessa mandioca é peçonhenta, como tendes dito, e a outra não, porque se não usa antes da que o não é?

Brandonio: Não o fazem, porque, como a que não faz dano se pode comer sem benefício, furtam muito dela por ser mantimento que sempre está no campo, e vão tirar dêle quando o querem comer; e assim fica sujeita aos ladrões, os quais se inclinam a furtarem daquela de que se aproveitam logo sem benefício. E ainda, além do modo que tenho dito, há outro, com o qual se faz esta farinha mais regalada, de que usa a gente nobre e mimosa, por ser de muito bom gôsto.

Alviano: Pois dizei-me o modo como isso se faz.

Brandonio: Tomam a mandioca depois de colhida e lançam-na de molho em água corrente, porque é melhor, até apodrecer, e podre a despem da casca, e a desfazem entre as mãos; e, desfeita, a põem a coser no forno, que já disse, e como está cozida a comem assim fresca; e quanto mais quente melhor, com ficar de tanto gôsto que muitas pessoas rejeitam pão alvo muito bom por ela. Também se faz da mandioca, depois de ralada em fresco, umas como obreias, a que chamam beijús, e por outro nome tapioca, das quais se servem na mesa em lugar de pão, e duram muitos dias.

Alviano: Ides transformando essa mandioca em tantos modos, que ficará tendo mais côres que um sardão.

Brandonio: Pois ainda se fazem mais transformações dela, a qual é que depois da mandioca estar podre n’água, pelo modo que tenho mostrado, porque a que está desta maneira se chama mandioca puba, lhe tiram a casca, e a põem no fumeiro, donde, depois de estar curada e sêca, se chama carimá, e se faz dela uma excelente farinha, de que se fazem umas papas em caldo de galinha e de peixe, e também com açúcar; as quais são de maravilhoso gôsto e de muito nutrimento, e também as aplicam para mantimento de enfermos com muita vitalidade dos tais, e a êste semelhante manjar dão por nome mingáu.

Alviano: Pois dizei-me por que prêço se vende um alqueire de farinha ordinária e quanta quantidade dela é necessária para sustentação de um homem?

Brandonio: Os alqueires destas capitanias são maiores que os do Reino duas vêzes e meia, em forma que um alqueire dos de cá responde por dois e meio dos de Portugal; um alqueire dos semelhantes é bastante para sustentar a um homem por espaço de um mês, e vale a duzentos e cinquenta reis e a trezentos, e às vêzes é mais barata, segunda a falta ou abundância que há dela.

Alviano: Já que tendes dado o primeiro lugar de bondade entre os mantimentos do Brasil à mandioca, dizei-me agora qual é o segundo de que seus moradores se aproveitam?

Brandonio: O mantimento que ocupa o segundo lugar (pôsto que em muitas partes do mundo se tem pela primeiro) é o arroz, que nesta província se produz em muita abundância à custa de pouco trabalho; mas os seus moradores, por respeito da mandioca, de que já tenho tratado, plantam muito pouco, porque reputam quase por fruta e não mantimento, por acharem a farinha de mais sustância.

Alviano: Pois não devera de ser assim, que o arroz é excelente, e por ser tal se sustenta dêle a maior parte da Ásia.

Brandonio: Assim passa, mas os moradores desta terra aproveitam mais da mandioca, com lhe custar mais trabalho o uso dela; porque o arroz se produz com facilidade por qualquer parte, e nas terras alagadas, que não servem para outra cousa, se dá melhor. Verdade é que, por se não transpor, como se faz na Índia, não amadurece todo junto, e por êsse respeito dá trabalho a sua colheita; mas por outra parte a facilita, com se deixar colher dois e três anos, e dar outras novidades; porque o rastolho que fica quando não é trilhado e destruído das alimarias, na entrada do mais próximo inverno torna outra vez a reverdecer de novo e a levar fruto perfeito.

Alviano: Passemo-nos agora a tratar do terceiro modo de mantimento, de que haveis dito se fazia caro por ser bom.

Brandonio: Êste terceiro é o milho de massaroca, que em nosso Portugal, chamam zaburro e nas Índias Ocidentais maïs, e entre os índios naturais da terra abatî: é mantimento mui proveitoso para sustentação dos escravos de Guiné e índios, porque, se come assado e cozido e também em bolos, os quais são muito gostosos, enquanto estão quentes, que se fazem dêle, depois de feito em farinha; e para sustentação de cavalos é mantimento de grande importância, e para criação de aves.

Alviano: Pelo menos nas Índias se tem por tal, e se usa geralmente dêle.

Brandonio: Pois nesta terra se dá à custa de pouco trabalho, antes com muita facilidade, em tanto que em cada um ano se colhem duas novidades dêle.

Alviano: Não sei como isso vossa ser, se não queireis atribuir a esta província dois invernos.

Brandonio: Não há senão um sòmente, como já tenho dito, mas as duas novidades se colhem dêste modo: com as primeiras águas, que chovem na entrada de fevereiro pouco mais ou menos, que é o princípio do inverno se planta, e, quando vem no mês de maia, se colhe, porque já então está perfeito, e logo o tornam a semear na própria terra, e segunda vez leva fruto, que se colhe por agasto.

Alviano: Fertilíssima deve ser a terra que dá duas novidades no ano.

Brandonio: É tanto que ainda de alguns frutos dá três, como adiante direi, E estas são as três sortes de mantimentos principais de que se usa no Brasil.

Alviano: Não vos vejo fazer menção do trigo, centeio e cevada, nem milho, mantimentos tão estimados na nossa Espanha e por tôda a Europa, e assim em geral na mór parte do mundo, pelo que me parece que os não deve de produzir a terra.

Brandonio: Por não me envergonhar a mim e aos demais moradares dêste Estado, desviava-me de mover prática sôbre esse mantimentos, os quais não produz a terra, não por culpa sua, senão pela pouca curiosidade e menos indústria dos que a habitam; porque eu semeei já por duas ou três vêzes na capitania de Pernambuco trigo, do qual a verdadeira sementeira deve ser por São Pedro, fim de junho, pouco mais ou menos, porque o tal tempo corresponde, na qualidade, com o da sementeira de Portugal; do qual trigo deixei crescer uma parte dêle na forma que fôra semeado, e a segunda parte lhe meti a fouce para que tornasse atrás, e a terceira seguei da mesma maneira duas vêzes; todo êste trigo veio à perfeição, pôsto que o que foi segado deu melhores espigas, do qual colhi verto de um alqueire dêle, por a semente não ser para mais; e cada um grão filhava de maneira que correspondia com cinco e seis espigas. Verdade seja que algumas delas eram faulhentas, mas o trabalho desta sementeira está em que o trigo não amadurece todo junto, antes quando umas espigas estão de todo perfeitas, outras estão em leite e algumas começam de botar pendão; pelo que foi necessário segarem-se as espigas gradas e maduras, com deixar ficar as outras, o que dá muito trabalho.

Alviano: E para se haver de emendar essa falta se usaria de alguma indústria?

Brandonio: Entendo que sim; porque no ano de mil e quinhentos e noventa e nove em Portugal, tratando eu da matéria com um fidalgo velho Asturiano, me veio a dizer que na terra aonde vivia estava uma grande varzea, da qual nunca se aproveitaram por dar o trigo da mesma maneira, respeito de sua muita fertilidade; mas de poucos anos a esta parte usaram de um excelente remédio, com o qual dava já trigo perfeito, com grandar todo junto, para se poder segar; o qual remédio era que, depois do trigo semeado e sair da terra quase um palmo, lhe tornavam a meter o arado de novo, para que se arrancasse e espedaçasse assim em a terra amainando de sua furta, e por esta maneira vinha a levar a novidade igualmente como o demais trigo; pelo que depois de eu tomar a esta, quis fazer a experiência do que o Asturiano medisse, com transpôr uns grãos de trigo que semeei em terra fértil, a qual foi tomando o fruto todo por um, e da mesma maneira começava a grandar; mas não chegou à perfeição, porque um anoiteceu todo comido dos pássaros.

Alviano: Pois, porque não tornaste a secundar com a experiência?

Brandonio: Porque se me comunica também o mal da negligência dos naturais da terra; mas o que acêrca disto entendo é que, se fôr plantado o trigo nas campinas, que é terra arisca, dará fruto perfeito, sem mais outra diligência; pôsto que o não experimentei, porque as que fiz até agora tôdas foram em terras de varzea de massapês, fertilíssimas, aonde vicejava o trigo muito, o que não deve de fazer nas campinas por ser terra fraca.

Alviano: Em verdade que tenho paixão de ver a pouca curiosidade dos habitantes desta província, pois se lhe não alevantam os espíritos para fazerem experiência de cousa tão importante, e de que tanta utilidade se seguirá a todos. Mas que me dizeis da cevada, centeio e milho?

Brandonio: Do centeio e cevada não tenho ainda feito experiência, mas do milho sim, o qual se dá melhor e em mais quantidade do que se dá em Portugal; mas não se usa dêle, porque a gente da terra se contenta sòmente com aquilo que os passados deixaram em uso, sem quererem anadir outras novidades de novo, ainda que entendam claramente que se lhes há de conseguir do uso delas muita utilidade, de maneira que se vem a mostrar nisto serem todos padrastos do Brasil, com lhes ser êle madre, assás benigna.

Alviano: Não sei que diga a tanto descuido e negligência, senão que são todos ingratos a Deus, em não se saberem aproveitar dos benefícios que lhe faz e promete neste Estado; pôsto que também creio haver de vir ainda para o futuro quem lance mão dêles. Mas parece-me que haveis dito que, além dos três mantimentos, cuja qualidade e natureza tendes referido, havia ainda outros.

Brandonio: Sim, há, os quais aproveitam para o tempo de esterilidade, pôsto raramente sucede havê-la nesta terra; os quais são êstes: o primeiro a raiz do caravatá, que se dá pelos campos sem nenhum benefício, da qual se faz farinha de boa sustentação; o segundo é folhas de mandioca cosidas, a que chamam maniçoba, as quais são também excelentes para tempo de fome, e ainda sem ela a usam muitas pessoas por mantimento; o terceiro é o fruto de uma árvore grande, a que chamam comari (?), o qual serve também de mantimento; o quarto uns coquinhos que pelo nome da terra se chamam aquês. Êstes tais se colhem dos pequenos coqueiros, em que se dão em cachos depois de maduros, e se espreme dêles uma substância doce e gostosa, que se lhe tira dentre a casca, esprimidos com as mãos dentro na água e de tudo junto, sendo cosido ao fôgo, se formam umas papas que comem, e com elas juntamente os coquinhos, que estão dentro no caroço, depois de esbrugado e partido; e dêste mantimento se sustenta grande parte do gentío da terra e dos negros de Guiné. O quinto é a raiz de um cipó, a que chamam macuna, a qual desfazem em farinha, que comem depois de cosida.

Alviano: Dizeis que êsses mantimentos, que tendes referido, servem para tempo de necessidade, de fome, e eu não sei como isso possa ser, porque, quando a esterilidade é geral, abrange a tôdas as sementeiras, frutos e plantas.

Brandonio: Verdade é que em Espanha sucede isso dessa maneira, mas aqui no Brasil não; porque tôdas estas cousas nascem pelos campos sem beneficio nenhum, com serem agrestes e sempre, de qualquer maneira que a tempo curse, se acham por êles em abundância.

Alviano: Por essa maneira não se deve de arreceiar a fome neste Estado.

Brandonio: Quando a haja, nunca perece por causa dela gente, porque usam de semelhantes remédios, e com isso passemos avante, ainda que vos confesso que se me representam ante os olhos tantas cousas sôbre que haver de tratar, que receio de me meter em tão grande labirinto; mas já que tenho tomado à minha conta o haver de dizer das grandezas do Brasil, irei mostrando primeiramente a grande fertilidade de seus campos, e depois formarei uma fresca horta abundante de diversidades de cousas, e logo irei ordenando um pomar abastecido de diversas árvores e com excelentes pomos, e da mesma maneira um jardim povoado de flores e boninas sem conto. E então julgareis se se pode dar ao Brasil nome de ruim terra, como de principio lhe quisestes chamar.

Alviano: Já vejo que me enganava, e para que de todo me acabe de desenganar, vos peço que me leveis essa ordem, porque me parece maravilhosa.

Brandonio: Quero dar o primeiro lugar dos legumes desta terra às favas, porque são por extremo boas, e na grandeza e gôsto muito melhores que as de Portugal; mas a planta é diferente, assim na folha, como ao modo dela, porque a de cá trepa como hera, colhem-se verdes e sêcas, e de ambas as maneiras são excelentes.

Alviano: Não se devem de dar na terra de Portugal, pois se não usa delas.

Brandonio: Sim, dão; mas os moradores dêste Brasil querem se aproveitar antes de estoutras, por serem naturais dêle e se grangearem com menos trabalho, com darem mais rendimento no fruto. O outro legume também muito bom são feijões, como os nossos de Portugal, que se dão em grande quantidade dos quais também usam em verde e depois de sêcos. Também se colhem na terra muitas ervilhas, das quais se aproveitam do modo que o fazem em Portugal e da mesma maneira há outros feijões de diferente feição, que se chamam gandús, os quais vieram aqui de Angola, e se dão em árvores, não muito grandes, com serem de excelente gôsto e reputados por maravilhoso legume.

Alviano: Nunca ouvi que se dessem feijões em árvores.

Brandonio: Pois êstes são de diferente casta, e por isso produzem nelas. E da mesma maneira se acham outros feijões, que nascem em bainhas, chamados sapotaja. Também há um modo de milho, semelhante ao que chamam naxenim na Índia, antes entendo que é o próprio; o qual se trouxe de Angola, que os escravos chamam massa gergelim, se produz de tão boamente que de pequena sementeira dêle se apanha grande colheita. Outra sorte de legume há a que chamam amendoim, que são de feição de bolotas, e dentro de cada coculo tem dois pinhões maravilhosos na substância e gôsto, comem-se assados e cozidos e também crús, sem nenhum benefício. E outro chamado passendo, a modo de cana, que se tem por legume. É da mesma maneira há uma raiz que se colhe debaixo da terra, chamada tamotarana, assás gostosa. E pelo conseguinte outra a que dão o nome tajoba; e outra chamada taiá, que tôdas são raízes de muita sustância.

Alviano: Ides formando tantos legumes, que já cuido que lhes ficam os que se acham em Espanha inferiores.

Brandonio: Pois tenho muito que dizer dêles, porque há uns como abóboras, a que no Reino chamam de Guiné, e antes cuido serem as próprias, de duas sortes, das quais a uma se chama geremú, e a outra geremú pacova, que servem de mantimento, do qual se sustenta muita gente, por ser de grande sustância, e se come assado e cosido, e quando se lhe ajunta azeite e vinagre, pode fazer postoleta na mesa dos grandes, para os quais se compõem também em açúcar, com serem muito estimados, e conservam-se muitos dias sem apodrecerem.

Alviano: Também em Portugal se guarda essa abóbora, a que dais o nome de geremú, muito tempo sem corrução.

Brandonio: Pois aqui no Brasil se dão muito melhores. Também há muitas abóbaras, a que chamam de cabaço, de suma grandeza, e outras mais pequenas, que se comem. E das grandes vi algumas que levavam dentro em si dois alqueires e meio de farinha, que são cinco de Portugal.

Alviano: Onde há semelhantes cabaças, podem-se escusar sacos, porque alojam mais dentro em si.

Brandonio: Pois assim passa: e se quiserdes vê-los vô-los amostrarei, porque vos não fique escrúpulo. Também se produzem na terra muitas e excelentes batatas, muito melhores das que se levam a Portugal, de que se fazem bocados, dôces maravilhosos e batatadas em panelas, como marmelada, e também se comem assadas e cosidas. Da mesma maneira se produzem muitos e bons inhames e outra casta dêles chamados carás, que são da mesma espécie, mas muito maiores; e todos êstes legumes, que o são na realidade da verdade, se guardam em casa, aonde duram muitos dias livres de podridão, e sobretudo o mais excelente legume de todos são umas castanhas que chamam de cajú, muito gostosas de comer e de muito nutrimento, que se conservam longo tempo, e se comem assadas, e da mesma maneira se servem delas para tudo em lugar de amendoas.

Alviano: Tendes nomeado tantos e tão diversos modos de legumes, que é necessário uma cartilha para se poder estudar o nome dêles; mas folgara de saber por que se não aproveitam também de grãos, chicharos, lentilhas, tremosos de nosso Portugal, de que cuido deve de ser a causa não os produzir a terra.

Brandonio: Sim, produz, porque eu semeei semelhantes legumes, pôsto que em pequena quantidade e deram fruto. E de se não usar dêles, não sei dar outra causa senão à geral enfermidade do Brasil, que já tenho apontado.

Alviano: Quanto mais me dizeis disso, tanto vou concebendo da terra melhor opinião, e de seus moradores muito má,

Brandonio: Dizei quanto quiserdes sôbre essa matéria, porque tenho a culpa geral por tão grande, que cometeria êrro quem os quisesse defender; mas já que íamos tratando dos frutos, que os campos produzem, quero vos mostrar que são tais êstes brasilienses, que lhe ficam muito atrás os Elíseos tão celebrados dos poetas em seus fingimentos, e da mesma maneira o fabuloso paraíso do torpe Mafamede, do qual põem a felicidade em que corriam por êles rios de mel e de manteiga; porque êstes nossos campos, com serem naturais e não sonhados para se fabricarem na idéia, correspondem gozando daquelas coisas que, com tanto estudo de fingimentos, se representaram; porque nestes nossos campos achareis rios de mel excelentíssimo, e de manteiga maravilhosa, de que se aproveitam seus moradores com pouco trabalho.

Alviano: Não sei como isso possa ser.

Brandonio: Pois crêde-me que assim passa; porque pelas muitas árvores, de que abundam os campos, nas tocas delas criam o seu favo de mel inumeráveis abelhas, e também na terra por buracos dela em tanta quantidade que para se haver de colher não é necessário mais que um machado, com o qual a poucos golpes se fura a árvore, e um vaso para recolher o mel, que de si lança, que é em tanta quantidade que sòmente dêle, sem mais outro mantimento, se sustentam muitas gentes, como adiante, quando tratar dos costumes do gentío, direi. E além do mel que se colhe por esta via, se acha um fruto agreste chamado piqueá a modo de uma laranja, dentro do qual se tira mel maravilhoso, como clarificada, que se come com colher. E estes se podem chamar verdadeiros rios de mel e não os fabulosos e os maometanos; pois se os quereis buscar de manteiga, dar-vos-ei pelos campos quantidade grande dela no muito leite, que por êles se colhe, de vacas, cabras e ovelhas, do qual se compõe maravilhosa manteiga, e da mesma maneira outra muita que se faz dos porcos, dos quais há quantidade grande neste Estado, assim domésticos, como agrestes.

Alviano: Não há quem possa ir contra isso; porque claramente vejo que assim passa e que temos entre as mãos os verdadeiros campos Elíseos fingidos dos poetas.

Brandonio: Não pára aqui, porque outras muitas coisas tenho ainda que vos mostrar neles, das quais a primeira quero seja grande quantidade de vinhos, que se acham pelos seus matos, pôsto que não do nosso de Portugal, que se faz das uvas, e não porque a terra o não daria muito bom, mas por descúido dos que a habitam, como adiante direi; mas de outros que se acham em grande quantidade como é o vinho que se faz das canas de açúcar, que para o gentío da terra e escravos de Guiné é maravilhoso; e outro que se faz do mesmo açúcar com especiaria, a modo de aloxa, que para os brancos é coisa muito regalada. Também se faz vinho de mel de abelhas, misturado com água, de muito gasto e assás proveitoso para a saúde de quem o costuma beber. Outro vinho, de uma fruta chamada cajú, de que abundam os campos, do qual se aproveita muita gente branca; vinho de palma, da sorte que se usa na Cafraria, de que se pode fazer muita quantidade, por abundar a terra de semelhantes plantas; também o vinho que se faz dos coqueiros, da seiva que se tira dêles, tão usado na Índia, do qual os moradores desta terra ainda se não aproveitam pelo costume geral que tenho apontado.

Alviano: Com tantas sortes de vinhos bem se poderam escusar os que trazem das Canárias e ilha da Madeira, principalmente com êsse que dizeis que semelha à aloxa, a que sou muito afeiçoado.

Brandonio: Pois os que apontei se acham em muita abundância. E já que temos tratado dêles, vos quero agora mostrar a muita quantidade de azeites, que se dão pelos campos sem cultura nenhuma: primeiramente se colhe muito bom azeite de comer, e não pouco, do fruto de uma árvore chamada abatiputá, que nasce agreste por êsses campos; e de outra fruta, chamada inhanduroba, do tamanho de um pêssego, que dá dentro umas favas, se faz grande cópia de azeite maravilhoso para se alumiar com ele, com ter outra excelência pouco de estimar, a qual é que os bichos, nem aves por nenhum caso comem ele. Também de uns pinhões, que se chamam de purga, se colhe muito com a mesma propriedade. De muitas fígueiras de inferno, de que a terra abunda, se faz também muito azeite, principalmente de uma sorte delas de diferente casta, que dá umas bolotas do tamanho de avelães, das quais tirado o miolo de dentro, se desfaz tôda em azeite, sem lhe ficar nenhum bagaço; em tanto que, depois de ser pisada, sem mais benefício, pode servir em lugar de sêbo para tôdas as unturas que dêle se quiserem fazer, e para unguentos e cura de chagas se tem por muito bom; e tanta cópia de azeite encerra dentro em si esta frutinha, que enfiada em um páu alumia, como candeia, enquanto lhe dura o nutrimento que é por grande espaço. Também se pode fazer azeite de côco, como se usa na Índia, porque se dão aqui grandemente os coqueiros; mas a manqueira tantas vêzes apontada dos brasilienses lhes impede usarem dêste benefício.

Alviano: Não pode padecer falta de azeite terra que tanta quantidade tem dêle.

Brandonio: Muito bem podera escusar o que vem do Reino, e da mesma maneira outras muitas coisas, como no decurso de nossa prática ireis vendo, das quais a principal fôra o pano de linho e mais sorte de lençaria; porque na própria terra se pudera fazer muito.

Alviano: E de que modo?

Brandonio: Já vos tenho dito do muito algodão que aqui se colhe, pois na Índia se faz dêle tanta sorte de lençaria, porque se não fará também nestas partes, quando seus habitadores se quiserem dispôr a isso? Demais do algodão, se acha pelos campos umas folhas de uma árvore, a que se dá o nome de tucum da qual se tira o fiado assas fino e rijo, e por extremo bom; e dêste é que se faz a pita, tão estimada em Espanha, que vem das Índias, e com se dar nesta terra melhor e em mais quantidade, não se aproveitam dela. Também se acha uma planta agreste, chamada caroatá, que dá grande cópia de linho fino e assás proveitoso; e assim de tôdas estas cousas, que se acham pelo campo, se poderá a lavrar tôda a sorte de lençaria.

Alviano: Pôsto que tudo isso seja muito bom, o nosso linho é cousa excelente e estimado do mundo por tal.

Brandonio: Ninguém poderá encontrar essa verdade, o qual também se produziria nesta província em grande quantidade, de modo que se pudesse levar dêle por mercância para Espanha, principalmente do que chamam canhamo, mas não usam dêle.

Alviano: Pois não devera ser assim, porque o linho, como é causa de tanta importância, em tôda parte se devêra estimar.

Brandonio: Isso é cousa que não leva remédio, como já disse, e para que vejais mais claramente a riqueza da terra, vos quero mostrar, pelos campos, finíssima lã, da qual se poderão aproveitar para panos, dos que se fazem dela, e em forros de vestidos, enchimentos de colchões, travesseiros e almofadas.

Alviano: Pois, se pelos campos pastam as ovelhas e carneiros, quem duvida que dêles se passa tirar essa lã?

Brandonio: Verdade é que êsses carneiros e ovelhas a poderão dar em abundância; mas não é essa sorte de lã de que eu trato, senão de outra diferente espécie, que produz uma árvore chamada monguba, a qual é a lanujem sôbre que havemos começado esta prática, que sem dúvida fará muita bons panos e chapéus. Também há outra árvore a que não sei o nome, que produz um fruto do tamanho de uma pinha, quadrangular dentro no qual se acha um modo de lã, que tenho para mim ser a mesma que na Índia chamam panha, maravilhosa para enchimento de tudo o que é necessário ser cheio para o serviço de cama, e vestidos, e outras cousas. E ainda além desta panha de que abundam os campas, se fazem arrazoados colchões, dos quais se serve muita gente branca, de um junco chamado tabúa, que se cria por terras alagadas, o qual, por ter corpo e bastante grossura, dá bom jázigo com ser muito quente, pois para esteiras há diversidades de castas de juncos, da que se podem fazer muito finas.

Alviano: Já me tendes mostrado por êstes campos americanos mantimentos e legumes bastantes para sustentação de muita gente, e da mesma maneira mel, manteiga, vinhos, azeite, panos de lençaria e outros de lã, camas brandas para se repousar nelas, não espero agora senão que me deis casas para morar.

Brandonio: E que será quando vo-las der?

Alviano: Isso é cousa impossível, se não buscardes Urganda para que va-las fabrique por encantamento.

Brandonio: Pois não tenhais por tal; porque, sem indústria de pedreiros, nem compassos de carpinteiros, nem maço de ferreiros, nem adjutório de oleiros, se alevantam neste Estado muito boas casas, de cousas que se colhem pelo campo.

Alviano: Pois dizei-me o modo, e não me tenhais mais suspenso.

Brandonio: Já vos tenho dito das muitas madeiras que há nesta terra. Estas se mandam cortar por escravos, com as quais se alevantam casas de duas águas; e em lugar de pregos se servem de dois modos de cordas, com que se amarram e seguram as tais madeiras; a uma delas chamadas cipó, e a outra timbó, que são tão boas e tão fortes para o efeito, que se traz por comum adágio que se não houvera cipó, não se pudera povoar o Brasil pelas diversas cousas de que se aproveitam dêle. Esta casa armada por êste modo fica também fácil a cobertura dela; porque dos mesmos campos colhem uma herva a que chamam sapê, que serve em lugar de telha, e tem de bondade ser mais quente que ela; e também de uma árvore como palma, a que chamam pindoba, se faz mui boa cobertura; e nestas casas alevantadas por êste modo vivem nos campos muitos moradores dêste Estado, pôsto que também as há de pedra e cal bem lavradas.

Alviano: Com saber claramente que o que me cantais são verdades puras, todavia me parecem cousas fantásticas pela grandeza delas; mas dissestes que desse cipó e timbó se fazem cordas, folgarei de saber se são boas para fábrica de náus.

Brandonio: Por nenhum caso servem para isso, senão para o que tenho dito e outras cousas semelhantes; mas, para cordoalha de navios se aproveitam da casca de uma árvore chamada envira, da qual se fazem excelentes cordas, rijas e de muita dura. Também se poderão fazer das de carro, como as que se fazem na Índia, por haver nesta terra grande quantidade de coqueiros (e haveria muito maior se plantassem), dos quais se poderia tirar muito cabo para o efeito, e é tanto isto assim que na Paraíba há um coqueiro que os côcos que dá, em vez do âmago que se come dêles, o não tem, antes ocupa todo o concavo do tal côco com caíra, coisa que nunca vi em outra parte; mas não se aproveitam disso. Também da casca de outra árvore chamada zabucai se faz maravilhosa estopa para calafetar navios melhor e de mais dura que a de que se usa. Nasce também pelos campos um modo de rotas, como as da Índia, a que chamam tixarimbó, maravilhosas para se lavrarem delas cestas e açafates. E da mesma maneira canas, a que chamam de Bengala, tão boas como as da Índia. E porque me não esqueça, direi que de duas cousas de que os campos abundam, há uma muita boa, e outra assás péssima, posta que digna de consideração.

Alviano: E quais são essas?

Brandonio: A boa uns palmitos, que se tiram de certas palmeiias grandes e formosas, e de excelente comer, muita melhores que os de Portugal; e há mais uma herva ou planta que chamam viva, a qual, em lhe tocando uma pessoa com a mão, se marchita e toma seca, e assim persevera por um espaço, até que, pouco a pouco, toma a reverdecer, tanto aborrece ser tocada. E pôsto que se trabalhado por se saber a teoria da causa disso, não se há podido até agora alcançar. E a raiz da tal erva é peçonha finíssima, que mata ao que come sem remédio.

Alviano: Cousa maravilhosa e de consideração é essa, com a qual me parece que deveis ter dado fim às muitas quase milagrosas cousas de que haveis afirmado abundarem todos estes campos, pelo que será bom começarmos a tratar de outras.

Brandonio: Não dei, que ainda agora começo; porque também se acha por êles maravilhosas drogas, como são pimentas de muitas sortes e castas, grandes e pequenas, e ainda de outras que são dôces no sabor; gengibre, o qual produz a terra em abundância, quando é semeado, melhor na grandura e tudo mais daquele que se trás da Índia; outro fruto que se apanha de urna árvore chamada envira, de que usam muitas pessoas, e por razão deverão de usar tôdas, por ser excelente droga, a qual usurpa para si o efeito que faz a pimenta, cravo e canela, com tingir como açafrão, causa que não crerá senão quem o experimentar. Também se acha grande soma de malagueta, que agrestemente se produz pelos matos e campos, com haver tempo que se descobriu, e pode ser que fosse eu o primeiro descobridor dela, tão pouca curiosidade mora por estas partes; das quais não se pode desinçar a herva de que se faz o anil, a qual na Índia se planta e grangeia com muito cuidado e diligência, e aqui nasce sela nenhuma indústria, e a pouco trabalho se poderá dela fazer copia grande de anil, e eu o experimentei já, e fiz um pouco tal e tão bom que não podia ter inveja ao que se lavra nas Índias.

Alviano: Drogas são tôdas essas que dariam grande proveito, quando se pusessem em uso, e se navegassem para as partes estrangeiras, principalmente essa de envira, que tanto gabais.

Brandonio: A nada se dispõe a gente desta terra; porque, além das drogas, têm muitas tintas de que se poderão aproveitar. E sem tratar do páu chamado do Brasil, por ser bem conhecido, há outra tinta tão boa como a que êle dá, quando não seja de vantagem, a qual é a que chamam urucú, que dá uma tinta vermelha maravilhosa; e assim uns cachos, que tem uma fruta semelhante a ameixas, que se produzem de umas pacoveiras pequenas, a qual faz uma excelente tinta, de mais transformações que um cameleão, porque se aplica para diferentes côres, e depois de seca dura muito tempo, com conservar sua tinta perfeita. outro páu pardo, a que não sei o nome, que em tudo faz o efeito da gualha, porque, lançado dentro na água em rachas, se se lhe ajunta uma pequena de caparosa, incontinente se tornam o páu e a água tão negros como a tinta. Este páu fiz experimentar no Reino, e acharam os tintureiros ser bom para com êle se dar a primeira tinta, sôbre que se assentam as outras. Também se faz tinta amarela muito boa de um páu chamado tatajuba. E da fruta de uma árvore por nome genipapo se forma tinta preta, o qual fruto, com dar o sumo branco, se qualquer pessoa se untasse com ele, ficaria a parte untada negra, e não se lhe tirará a negridão por espaço de alguns dias, ainda que se lave muitas vêzes.

Alviano: Zombaria pesada ouvi contar haver-se feito em Espanha com essa água lançada na pia d’água benta em uma igreja, em um dia de festa solene donde todos que a tomavam ficavam manchados de preto, com grande confusão principalmente das mulheres, que perseveraram nela até passarem os dias em que se gasta semelhante côr.

Brandonio: Também há outro páu de uma árvore pequena, que se chama araribá, que dá outra tinta excelente em ser vermelha, muito mais fina e subida na côr que a do páu do Brasil, e dela se aproveitam as mulheres para o rosto. Acham-se também mineiras de almagra muito fina, e outro modo dela branca, a que chamam tabatinga, com o que se caiam as casas, suprindo com ela em falta de cal, com ficarem as casas alvíssimas e limpas.

Alviano: E porque se não servem antes da cal?

Brandonio: Muito se faz dela na terra, mas desta tabatinga usam em muitas partes pela terem mais à mão. Da mesma maneira abundam os campos de grande quantidade de gomas de árvores maravilhosas, como é finíssima almecega, e outra do cajueiro, excelente para grudar papéis, e a de outra árvore, da qual se faz tinta amarela, e se servem dela de lacre para cerrar cartas. Por fim são tantas as sortes de gomas que me não atrevo a referi-las; sòmente direi que se colhe muita cera das árvores, onde as abelhas criam o mel, e quantidade grande de anime por maneiras.

Alviano: Dêsse anime vi já aproveitarem-se muitas pessoas para dôr de cabeça com feliz sucesso.

Brandonio: Pois aqui nem para isso se aproveitam dêle, e menos da virtude de muitas raizes e ervas medicinais e proveitosas, assim para purgas, com cura de chagas, havendo por melhores as que vêm de Portugal já corruptas, porque custam dinheiro. Não sei que diga mais senão duas cousas, com as quais quero concluir de andar tanto vagueando pelos campos e matos: que até o sabão para lavagem da roupa se acha nela; e se quiserdes armar aos pássaros, vos darei para isso excelente visco, que produz uma árvore chamada visgueiro. E com isto nos passaremos a formar a horta que temos prometida.

Alviano: Tendes dito tanto dos campos e matos agrestes, que não sei que mais possa esperar dessa horta, a qual, pôsto que por ser cousa cultivada lhe deve de sobrepujar em muita quantidade, não lhe vejo lugar onde a possais meter.

Brandonio: Não faltará algum em que a encaixemos, com não perder do seu prêço a respeito da comparação alheia.

Alviano: Pois alembro-vos que a horta, para ser perfeita, há de ter noras, poços d’água e tanques, com que se regue, e eu sei que no Brasil não os há.

Brandonio: Não se pode dizer que não há a cousa, quando se pôde haver com facilidade; porque também Portugal não foi antes de ser, quero dizer que antes de se fazerem os jardins, tanques d’água, fontes, esguichos, que hoje vemos em tanta quantidade careceu dêles, porque nada se faz de per si; pelo que, se a esta terra lhe faltam de presente tôdas essas cousas, não é a culpa sua, senão dos que lhas não fazem; porque nela há as melhores águas, que tem o mundo, assim de rios caudalosissimos, como de outros mais pequenas, regatos e fontes sem conto, dos quais se podem fazer todos êsses brincos de fontes, tanques, esguinchos a muito pouco custo, e assim não se pode dizer que falta o que há.

Alviano: Tenho ouvido que na capitania da Paraíba, além de as águas serem excelentes, se acham algumas de tanta virtude que os que têm costume de bebê-las, não padecem o mal da dor de pedra, nem de cólica.

Brandonio: Assim passa por muitas experiências, que hão feito e por êste respeito mandam os governadores, bispos e pessoas poderosas levar de semelhante água a Pernambuco para beberem. E porque temos muito que dizer e se vai fazendo tarde, com sabermos que não faltam as águas, comecemos a dar princípio a nossa horta, a qual poderá ter muitas e boas alfaces, grande quantidade de rabãos, infinidades de couves, que se plantam e se colhem a pouco trabalho.

Alviano: Pois, e por que? Há porventura outro modo de planta e de colheita diferente do que se usa em Portugal?

Brandonio: Sim, tem, principalmente as couves, das quais deixam crescer algumas até espigarem e delas vão colhendo dos grelos que lançam em raminhos, os quais metem na terra, e logo prendem e em breve tempo se fazem grandes e formosas couves.

Alviano: Isso deve de ser por não dar nesta terra semente a hortaliça, como já ouvi dizer.

Brandonio: Sim, dá, que é vício mandá-la vir de Portugal, principalmente alfaces que dão infinidade de sementes. Também há de ter a nossa horta chicoreas muito formosas, acelgas, barragens, coentro, hortelã, cheiro, funcho, cominhos, brêdos de diferentes castas e côres; porque tôdas estas cousas se acham em abundância na terra.

Alviano: Não produzem mais sortes de hortaliças as hortas de Espanha!

Brandonio: Também poderá ter rabaças, agriões, beldroegas e uma excelente casta de mostarda, cujas folhas se comem cruas e cosidas, e assim umas folhas largas, a que chamam inhambús, mui boas para comer; porque depois de cozidas, têm um requeimo saboroso; e, da mesma maneira, outra sorte de folha a que chamam tajoba, a modo de couves, grandemente estimadas.

Alviano: Não padecerá fome quem essas cousas tiver.

Brandonio: Assim se dão cenouras, cardos, beringelas, pepinos, balancias, abóboras das ordinárias, tenras e gostosas, e outras mais pequenas, a que chamam tanquira; tabaco, a que dão o nome de herva santa em Portugal, e sobretudo melões sem conto, todos extremadíssimos em bondade; em tanto que de maravilha se pode achar entre eles um que seja ruim, e com tôdas estas cousas em abundância julgar se poderei formar uma boa horta.

Alviano: Antes me maravilho do descuido geral por não se haverem... (formado?) muitas.

Brandonio: Pois não há pessoa que a tenha perfeita, nem que se queira ocupar nelas, que não pode ser mais desgraça; pois se por esta maneira se pode fazer a horta boa, não seria pior o jardim pelas muitas diversidades de flores, das quais se podia povoar e paramentar, que, por serem muitas e várias e na qualidade estranhas, não é possível haver quem possa atinar com elas, nem saber-lhes os nomes; pelo que direi sòmente de algumas, que andam mais em uso, como é a flôr da laranjeira, que se dá em grande abundância; goivos de muitas castas e côres diferentes, cravos amarelos, roxos e brancos, jasmins, madresilvas, balsaminho, a árvore triste, alfavaca, e manjericão, de que os campos estão cheios; outro modo de flor que chamam de camará-açú, e a, digna de estima e consideração, flor de maracujá, pela formosura dela, várias côres de que é composta, raios formosos que lança, com outras particularidades dignas de notar; por fim as flores, que produz a terra naturais dela, são tantas que me não atrevo a meter em tão grande pego, como fôra o querer tratar de tôdas; pois, para se formarem figuras enredadas e outras cousas de brinco, se acham tantos cipós para o efeito maravilhosos, pelo muito que se extendem, que lhes ficam muito atrás as murtas de Portugal.

Alviano: Estou admirado de vos ouvir, porque não pintava eu o Brasil dessa sorte.

Brandonio: Pois, se para ornato desta horta e jardim forem necessárias latadas, vos darei muitas, como é uma que forma boa sombra e aprazível verdura, a qual dá um fruto chamado curuá, do tamanho de uma abóbora das ordinárias, que, depois de colhido e metido alguns dias na caixa, cobra um cheiro tão suave, que basta para espalhar grande fragância dêle por tôda a casa, e assim se conserva muitos dias sem corrupção. Outras latadas se fazem de maracujá, de cuja flor já tratei acima, que dá um fruto do tamanho de uma pinha, mui regalado, cujo miolo que é como o da abóbora, se sorve ou come às colheradas, com dar muito e maravilhoso cheiro, e dêstes tais há quatro castas: uma chamada maracujá-açú, por grande, e o segundo maracujá-peróba, excelente para conserva, a terceira maracujá-mexiras, a quarta maracujá-mirim, por pequena, que tôdas fazem mui boas latadas e dão igual sombra.

Alviano: Parece-me que vos não alembrais das latadas das nossas parreiras, porque nesta terra as tenho visto.

Brandonio: Sim, alembrava; mas de indústria fugia de tratar delas, por não envergonhar tantas vêzes aos moradores dêste Estado, porque deveis de saber que tôda sorte de vindonho se dá nela em grandes maneiras, e sòmente se servem do de parreiras, as quais dão muitas uvas ferrais, e outras brancas maravilhosas, com levarem duas e ainda três vêzes fruto no ano.

Alviano: Isso é cousa impossível,

Brandonio: Pôsto que assim pareça, não o é, porque eu o experimentei muitas vêzes, haverem de dar três vêzes fruto no ano, que, de darem duas, não dá que tratar, por ser isso cousa assás sabida.

Alviano: Pois dizei-me como sucede isso.

Brandonio: De algumas festas que determinavam fazer, podaram as parreiras, tanto que lhes acaba de colher o fruto; por que com isso tornam a meter de novo, e em quatro meses o levam perfeito outra vez; entanto que eu vi alguns homens, que, para haverem de ter uvas nas conjunções de algumas festas que determinavam fazer, podarem as parreiras quatro meses antes, e vieram dar fruto, sem discrepância, para o tempo que pretendiam.

Alviano: Pois, se as uvas se dão com tanta facilidade, e em tão breve tempo, como se não usa delas para vinho?

Brandonio: Por não tratar da causa disso como tenho dito, fugia de me embaraçar nesta matéria; porque de muitas partes dêste Brasil se poderia colher mais vinho que em Portugal, por estarem livres da formiga, que é o que faz dano ao vidonho, principalmente sei eu uma, que há na serra chamada de Copaoba, distante das capitanias de Pernambuco e da Paraíba cousa de quinze até dezoito léguas, que o daria sem conto, por ser terra fresca, fria e sem nenhuma formiga.

Alviano: Tenho lástima de vos ouvir dizer essas cousas, e folgara estar em minha mão o remédio delas.

Brandonio: O tempo deve curar semelhante enfermidade, como costuma. E pois vos tenho já formado as hortas, jardins, latadas com suas fontes, tanques e esguichos, que vos prometi, quero arrumar o pomar, que falta, e com isso daremos fim à prática dêste dia; o qual dividirei em dois modos, não porque assim os haja, senão porque se poderão fazer, quando a curiosidade excitar aos que cá vivemos, os quais nos não sabemos aproveitar do que temos entre as mãos. E assim formarei primeiramente um jardim de árvores de espinho, e depois me passarei ao pomar, com dividir nêle os frutos que já estão em uso de se cultivar daqueles que a negligência tem deixado até agora ser agrestes. Este jardim se poderá fazer povoado de formosas, verdes e copadas laranjeiras, bastecidas de branquíssimas flores, cuja fragância de suave cheiro alevantassem os espíritos dos que as gozassem, colmadas tôdas de touros e aprazíveis laranjas em tanta quantidade que muitas vêzes são mais que as folhas, umas tão dôces que a par delas perde do seu prêço o açúcar e o mel, outras bicais de tão gostoso comer, que não há quem se acabe de fartar delas; também das azedas, que para o que aproveitam são maravilhosas, por levarem muito sumo. Acompanharão êste laranjal crescidos e formosos limoeiros com tanta quantidade de fruto, que causa maravilha poderem-no sustentar; por com êle perseveram todo o ano, em tanto que quando um está em flor, o outro vem crescendo e os demais estão de vez. A êstes limoeiros se ajuntarão grande quantidade de limas dôces com suas bem compostas plantas, excelentes no gôsto e bom sabor, as quais se produzem na terra muito maiores em quantidade, que as que se dão em Portugal; e da mesma maneira outra casta delas, a que chamam zamboa, assás presadas por boas. Logo irão avante formosentando êste jardim grandes limões francêses com o seu amarelo alegríssimo para a vista. Também não carecerá de modernas laranjas, porque se produzem em grande cópia. Rodeará pelos extremos, quase servindo de muro, a espinhosa cidreira, colmada dos belíssimos pomos, maiores que uma botija, tão presados para conservas, as quais por todo o decurso do ano se acham sempre assazonadas.

Alviano: Se isso é assim, e se pode fazer desse modo, confessarei que lhe ficam inferiores os jardins lavrados e cultivados a tanto custa ao nosso Portugal; pois não vejo que lá haja mais castas de fruto de espinho dos que tendes apontado.

Brandonio: Pois ainda estoutros têm um não sei que de verdes e frescos, com que fazem grandes paisagens. E porque o sol se vai já transpondo, me quero passar a tratar do pomar prometido, do qual o primeiro fruto quero que seja os figos, porque sempre fui muito afeiçoado a êles; os quais se dão em tanta quantidade, assim dos brasajotes, como dos brancos e negros, e de outras castas, que os monturos estão abastecidos de semelhantes figueiras, que levam duas vêzes fruto no ano, e carregam em tanta quantidade, que causa espanto. Façamos logo uma rua de romeiras com seu coroado fruto, que encerra dentro em si finíssimos rubis, as quais se produzem grandemente nesta terra. Far-lhe-ão companhia retorcidos marmeleiros com seus cheirosos e dourados pomos, que se dão em abundância por algumas das capitanias dêste Estado. Formarão deleitosa sombra grandes pacovais, cujo fruto se chama do mesmo nome, pôsto que na Índia, pelo contrário, são conhecidos Por figos, uns grandes e outros mais pequenos, de diferentes castas e feições, gostosos no comer e de bom cheiro, dos quais há número infinito. Far-lhe-á companhia um fruto, natural da terra, chamado goiaba, do tamanho de um marcotão, que se dá em árvores medianamente grandes, pegado pelo tronco; logo se irá erguendo, e com suas miúdas folhas, acomodadas para fazer apetitosa salsa, o tamarinho tão medicinal e por tal presado em todo o mundo; pelas partes sombrias, em baixas plantas, à feição de cardos, se mostrarão os gavados e fermosos ananases semelhantes a pinhas, lançando de si suave cheiro, com se lhe comunicar os sabores de tôdas as coisas que melhor o têm. E por aqui tenho concluído com as plantas e árvores que até agora estão em uso de serem cultivadas neste Brasil.

Alviano: Quando não houvera outras, essas eram bastantes para lhe dar nome de abundante em frutos.

Brandonio: Pois as que estão até o dia de hoje agrestes por falta de cultivadores são infinitas; e pôsto que não é possível podê-las trazer tôdas à memória, irei tratando sòmente das que me ocorrerem. E assim demos o primeiro lugar, pela formosura da planta, ao cajá, que na Índia se chama ambare, do qual para tantas coisas lá se servem, e aqui para nenhuma senão para se comer depois de maduro, com deixar um azedo gostoso e muito cheiro nas mãos: outra fruta chamada uticroy do tamanho de uma grande pinha, de tanto gôsto que tenho por sem dúvida, ser melhor que a perada e marmelada tão estimada do mundo, o qual se dá em uma árvore muito grande; araticú, de feição das jácas da Índia, não má fruta; outra sorte do mesmo araticú, chamado apê, mais pequeno, e grande no gôsto, de modo que não há quem se acabe de fartar delas (e um amigo meu fazia dêles fÍlhós com ficarem maravilhosos); mangava, fruta que pode ser estimada entre as boas que há no mundo, a qual semelha às sorvas de Portugal; o abundante cajueiro, o qual demonstra que, de soberbo por se desviar das demais árvores, leva o fruto ao revéz de tôdas, porque as castanhas, que nas demais se escondem no amago delas, nestes cajús campêiam por fora, em forma que na cabeça da fruto se arrematam de feição que mostra a quem o não conhece, que por ali teve principio; é formoso e gostoso pomo, do qual se sustenta muita gente em todo o tempo que duram. A bondade de suas castanhas passo em silêncio, porque já tenho tratado delas. Janamacaras, cuja planta é à feição de cardos, e dão uma fruta vermelha gostosíssima no comer; pitombas, que são semelhantes a ameixas; massarandubas, que se parecem com as cerejas; gabiraba, do modo de azeÍtonas, e são dôces; gotis, que são do tamanho de ovos; garuatás, fruta branca e comprida, que se come chupada, com deixar muito gôsto; zabucai é uma árvore grande, que dá umas pinhas, dentro nas quais se acham castanhas gostosas para comer; abaiba, semelhante aos dedos da mão, tem o sabor de figos; enguas, que são semelhantes a alfarrobas, e dôces no gôsto; macujé, fruta excelentíssima, da feição de pêras; joambos, como ameixas brancas; peiti, que semelham a datiles mui gostosos; canafístula, que se cria nos matos em grandes canudos bastecidos de sua medula.

Alviano: Pois, valha-me Deus, como se não leva para Portugal, para se usar lá dela?!

Brandonio: Nem na mesma terra se aproveitam de semelhante fruto. Verdade seja que, por ser a planta agreste, parece êle também um pouco agreste; mas, se fôr cultivado, não tenho dúvida que seja tão bom como o que se usa em Portugal. E deixando de parte esta canafístula, vamos continuando com o nosso pomar; porque ainda tenho muitas plantas que transpor nele, das quais a primeira seja um fruto a que chamam piqueá, de que já tratei, que dá no seu miolo quase um como clarificado de açúcar muito gostoso; quamocá, outra fruta, vermelha, semelhante a ginjas; iba-mirim, como limões: uti, fruta comprida; gostosa no comer; ubacropari, como pêssegos; comixá, fruta miuda, à feição de murtinhos; grexiuruba, outra a modo da zamboa; eicajerús, do modo de ameixas mousinhas; não-taiaambus são semelhantes a ameixas brancas; ubaperunga, como uvas bastardas pequenas, que dão mostra de nesparas; ubapitanga, da feição de ginjas; tatajuba, semelhante a pêssego, de cuja planta comida a raiz mata a sêde, por grande que seja; morosis, que são apropriados a murtinhos; quiabo, fruta de massaroca, como beringelas: mamão, pomo do tamanho do marmelo, muito adocicado; araçá, do tamanho da fruta nova, de muito gôsto, do qual se faz boa marmelada; há outro modo de araçá, por sobrenome açú, por ser maior e mais estimado para se comer. Estas são as frutas que de presente me ocorreram, com me ficarem outras infinitas por dizer, de que não sou alembrado, que os moradores da Brasil por negligência deixam estar até agora agrestes, espalhadas pelos matos, as quais, se foram cultivadas, se avantajariam em bondade e gôsto.

Alviano: Certamente que me tendes suspenso com tanta diversidade de frutos, quantos tendes nomeado, dos quais não tão sòmente podereis formar um pomar, senão cem mil; e assim estou já de todo arrependido de haver tido o Brasil em diferente reputação do que êle merece.

Brandonio: Folgo de vos retratardes, e porque não suceda invejardes os alamos e choupos do nosso Portugal, com que se ornam grandemente semelhantes pomares e jardins, vos quero dar em seu lugar crescidos e alevantados coqueiras, que não menos zunido fazem com suas folhas açoitadas do vento. E com êles demos por hoje fim à nossa prática, porque se vão fazendo horas de nos recolhermos.

Alviano: Assim seja à condição que amanhã venhais às horas costumadas a êste mesmo pôsto.

 

 

 

Diálogo Quinto

 

 

Brandonio: Não quero que me agradeçais o haver vindo a este pôsto mais cedo do que costumava; porque quis nisto fazer fôrça à minha vontade, o que é tão valorosa façanha, como a que David fêz em vencer o gigante.

Alviano: E de que causa nasceu fazerdes vós essa fôrça?

Brandonio: Determinava alçar-me com a mensagem de não cumprir a palavra, que vos tinha dado, de vos relatar tôdas as grandezas do Brasil, porque, imaginando que tinha já saltado o maior barranco, com haver tratada da abundância dos frutos, como por êles se faziam os moradores desta terra ricos, examinei a memória para decorar o que havia mais que dizer, e achei que fôra o salto curto, e que tinha ainda por diante outros barrancos maiores e mais dificultosos a perder de vista, que são os que o dia de hoje tenho entre as mãos para haver de tratar; porque se me representam tantas aves de diversas qualidades, tantos incógnitos pescados, diferentes na natureza e forma, desconhecidos no mundo, tantas silvestres feras, estranhas nas figuras e inclinações, que requeriam grandes volumes para se haver de tratar de tôdas elas. Estas coisas me faziam grande carranca para me haver de retirar do prometido; mas, vendo que o não podia fazer sem ficar mal reputado, arrazei-me a passar avante, com descorrer por aquelas coisas que os elementos que rodeiam a terra cio Brasil encerram dentro de si, sem tratar do mais alevantado dêles, que é o fôgo, porque de todo o tenho por estéril, que a salamandra, que se diz criar-se nêle, entendo por fabulosa; porque, quando as houvera, nas fornalhas dos engenhos de fazer açúcares do Brasil, que sempre ardem em fôgo vivo, se deveram de achar. E como a seu consorte mais vizinho é o ar, quero começar por êle o que pretendo, que será tratar das aves, assim domésticas, como agrestes, que se acham por todo êste terreno. As domésticas são inumeráveis galinhas, das quais são algumas maiores das ordinárias; muitos e bons galipabos, que se produzem com facilidade, por ser o clima disposto para a criação dêles; pombas, patos e adens de excelente comer, e estas são as aves, que neste Brasil se criam em casa, as quais abundam com grande multidão de ovos.

Alviano: Pois em que parte do mundo se poderão achar, para efeito de se criarem à mão, mais dessas que tendes nomeadas? Ao menos eu nunca as vi em Espanha, pôsto que das agrestes se acham muitas de diferentes castas e muita estima.

Brandonio: Neste particular lhe sobrepuja sumamente tôda esta província, que, se me derdes atenção, e a mim me ocorrer à memória o nome e natureza delas, vos causará espanto; pôsto que, por muito que diga, sempre deve de ficar curto.

Alviano: Dou-vos a minha palavra de não distrair o pensamento em outra coisa senão em vos escutar.

Brandonio: Além das aves domésticas, de que tenho feito menção, se acham pelos bosques e campos grande multidão de jacus, que são como galinhas silvestres, de tanta estima, que lhes não fazem vantagem as mesmas galinhas, pôsto que sejam muito gordas; e outra ave, chamada aquaham, da mesma maneira, e não de menos estima; outras a que chamam mutús, que são do tamanho de um grande galipabo, não menos pezados que êles; jaburu que é muito maior que um pavão, bastante pela sua grandeza a abundar meia dúzia de companheiros, pôsto que famintos, com ser carne assás saborosa. Outra ave a que chamam uruis, que não desmerece o nome de boa; inhapupé, semelhantes às perdizes de nossa Espanha e não sei se me alargue a dizer que são melhores; inhambbuaçú, também como as mesmas perdizes e do seu tamanho; nambús, não maiores que as codornises, as quais não invejam em bondade, gôsto e sabor aos tão estimados faisões da Europa; rôlas sem conta assás gordas, que a pouco trabalho se tomam; da mesma maneira codornises e pombas torcazes. Em tôdas estas aves agrestes se faz prêsa à custa de pouco trabalho; e assim ficam servindo, quase como as domésticas, aos moradores da terra.

Alviano: E que modo se tela na caça delas?

Brandonio: Tomam-se com armadilhas e laços, e também à espingarda e flecha; porque neste Brasil não se usa de caça das aves, como em Portugal, por não se quererem os homens dar a isso. Acham-se também pelos campos uns pássaros, a que chamam anuns, de uma qualidade estranha, que, além do seu canto semelhar a chôro, não têm nenhum modo de sangue, nem nunca se lhes achou, e são de uma côr preta tristonha.

Alviano: Nova coisa é para mim a natureza desse pássaro: porque nunca ouvi dizer de outro que carecesse totalmente de sangue.

Brandonio: Pois assim passa, que êstes pássaros o não têm. Hyendayas são outros pássaros que se criam no sertão; e, ao tempo da colheita das novidades, principalmente dos milhos, descem às fraldas do mar para se aproveitarem do cevo delas, e nisto são tão importunas que custa muito trabalho o defendê-las dêles; porque não basta grandes gritos nem estrondos de bacias, nem o matarem-nas às pancadas, para se desviarem das milharadas; em tanto que já vi alguns homens, postos em afronta com elas.

Alviano: Dêsse modo deviam de ser as harpias.

Brandonio: Se tiveram o rosto da feição que os poetas as pintam, não duvidara que eram as próprias. Outro pássaro se acha, chamado sabiá, da feição do melro de Espanha, e antes cuido que é o próprio, porque cantam como eles, sem lhes faltar mais que um dobrete; rouxinóis, pôsto que não tão músicos como os da nossa terra, por carecerem daquele doce dobrar e requebros, que os outros têm, porque todos os pássaros do Brasil são faltos de semelhante suavidade; cujujuba é um pássaro pequeno e de bico revolto, o qual, em se vendo prêso, cerra voluntàriamente o sesso, sem fazer mais por êle purgação, até morrer.

Alviano: Também morrerá de não comer, que, pois sente tanto a prisão, deve de fugir disso.

Brandonio: Parece que quer escolher antes semelhante maneira de morrer, porque se sabe dêle que não deixa de comer. Macugagá é uma ave que dá grande e contínuos brados, repetindo muitas vêzes êste seu próprio nome; tucano, ave formosíssima, emplumada de várias côres, de sorte que alegra a vista a contemplação delas; canindés se chama a um pássaro, que, com ser pequeno de corpo, tem o rabo muito comprido; apeçú é ave que tem quatro esporões, a modo dos de galo; gurainheté, pássaro de penas amarelas e pretas; garateuma, ave de côr loura, formosíssima; anacans, de feição de papagaio, mas não são da mesma espécie. Outro pássaro chamado pelo nome da terra guarainguetá, cuja estranha qualidade quero deixar em silêncio, por me não alargar em referí-la.

Alviano: Antes vos peço que me digais tudo o que souberdes a respeito.

Brandonio: Êste pássaro tem tão grande amor aos filhos, que, para os não furtarem, vai lavrar o seu ninho de ordinário a par de alguma toca, aonde as abelhas lavram mel, as quais, por esta maneira, lhe ficam servindo de guardas dos filhos, porque, como todos arreceiam de se avizinhar a elas, temendo o seu áspero aguilhão, ficam os filhos livres de perigo; aos quais mostram tanto amor, que, para efeito de os sustentar, se vão lançar por entre alguns bichos, que se lhe apegam nas carnes, sem arreceiarem que lh’a comam, havendo por coisa suave padecerem as dores que êles lhe causam a troco de terem, por esta via, a sustentação certa para os filhas, a que os dão a comer, quando têm fome, e só para isto os trazem tanto à mão; e êstes pássaros são emplumados de várias côres.

Alviano: Não se escreve mais dos pelicanos para encarecimento do amor que têm aos filhos.

Brandonio: Também há outros pássaros, aos quais chamamos pica-páu, por dar uns golpes com o bico nos troncos das árvores, tão grandes, que tôda pessoa que os ouvir, se ignorar a qualidade do pássaro, julgará sem dúvida ser machado, com que se corta madeira. Outra ave povoa os campos desta terra, de belíssimas penas, chamada tamatianguaçú a qual vôa sempre muito por alto, por onde vai formando umas vozes, que parecem humanas. E da mesma maneira há outra que lhe não é inferior na formosura da plumagem, chamada curiquaqua, um passarinho que, com não ser maior de um ovo, tem o bico de mais de meio palmo de comprido, ao qual dão por nome arassari. Outra ave chamada miguá, semelhante a pato. Girubas são uns pássaros que criam por barracas, que têm as penas de verde côr de mar; e da mesma maneira outra chamada pirariguá. Os dias passados me trouxeram a amostrar um pássaro, que me disseram chamar-se japú, de uma côr amarela, digna de estimar. Guirejuba são umas aves azuis, assás prezadas da gente da terra; e assim outra ave chamada tiquarem, e outra de côr vermelha, chamada guaxe. Também há outra sorte de pássaros, cujo canto forma o choro de uma criança, que tem por nome cunhatanaipe. Tucanoçú é outra sorte de ave, que tem o bico do tamanho de um palmo, com o corpo não ser grande; e outro pássaro a que chamam taraba. E entre êstes se acham as arveloas e andorinhas do nosso Portugal.

Alviano: As andorinhas tenho eu por africanas, e que de li se passam pelo verão à Espanha a fazer seus ninhos, e maravilho-me darem-se desta parte.

Brandonio: Sim, dão em muita quantidade. Outra ave, por nome peitica, a qual é tão molesta e agourenta para o gentio da terra, que os obriga a fazer grandes extremos, quando a topam ou ouvem cantar, como adiante direi, quando tratar dos costumes da terra. Também se acham grandíssimas emas, das quais tenho por fabuloso o dizer-se que comem ferro, porque nunca soube que o comessem, pôsto que tenho visto muitas. Estas emas, quando correm, abaixam uma asa, e a outra dão ao vento, cruzando-a a modo de vela latina, e assim correm mais que um cavalo; da mesma casta há outras que chamam seriemas, as quais se ajudam dos pés e asas para o correr, com o que ficam sendo velozíssimas, sem nunca se alevantarem da terra.

Alviano: Em Africa se acham muitas, e a mesma qualidade ouvi já relatar delas.

Brandonio: De papagaios há inumerável quantidade, que ansão umas aves azuis, assás prezadas da gente da terra; com fazerem por onde passam grande gralhada, e são bons para se comerem; e dêstes há diferentes castas, como são os que chamam papagaios reais, conhecidos pelos encontros das asas, que têm vermelhas, e são os mais estimados para se ensinar a falar. Outra casta, a que chamam coriquas, que, ainda que não são tão formosos, quando dão em falar, o fazem muito bem. Outros, que se têm por estrangeiros, chamados cyia. E da mesma maneira araras, grandes e formosas, que também falam, quando são ensinadas. E outra espécie, quase desta mesma qualidade, a que dão o nome de toins, de pequeno corpo e mui lindos, que explicam arrezoadamente tudo o que lhes ensinam; e dêstes tais os mais estimados são os que se chamam quaisquaiais, de penas pardas, pretas e verdes.

Alviano: Tenho visto em Portugal alguns papagaios, que se levaram de cá, de côres diferentes, mas tão compassadas que davam mostra de serem feitas à mão.

Brandonio: Assim o são: porque, para se haver de dar essas côres aos tais papagaios, os despem das penas, e na carne que ao tirar delas lhe fica envolta em sangue, lhe acomodam, pelas partes que querem, certas peles de rãs, que têm propriedade de lhes comunicar as tais côres.

Alviano: Folgo de saber isso, porque entendia que eram naturais, com vos afirmar que me tendes maravilhado com tanta sorte de pássaros e aves, quantas me tendes nomeadas, de tão várias e estranhas qualidades, do que infiro que em nenhuma das partes do mundo se poderão achar mais cópia delas, e é muito poder-vos alembrar os seus nomes com serem tão arrevezados.

Brandonio: Pois ainda me ficam outras tantas por nomear, por me não ser possível fazer conserva na memória de tanta diversidade delas, que ainda não tratei das muitas sortes de aves de volataria, que se acham nesta terra. As aves são tôdas de tanta bondade, que as melhores, criadas em Irlanda, não poderão ter nunca com elas comparação. A de mais estima destas aves é uma sorte delas a que chamam garataurna que, como o rei, lhe criou a natureza corôa na cabeça, quase ao modo de crista de galo, que entre tôdas as aves de volataria pode levar o prêço em ligeireza e agilidade, que tem para caçar; e porque pelo pouco venhais em conhecimento do muito, vos quero contar o caso que vi suceder a uma ave destas. Um homem assás nobre, capitão-mor por Sua Magestade de uma das capitanias do Estado, tinha um pássaro dêste já doméstico, que criava em casa, o qual, alevantando-se acaso da alcandora, se foi pôr sôbre um monte de pedras que estavam juntas dali perto. Houve vista dêle um grande gato e, cuidando que tinha a presa certa, se foi chegando para o pássaro mui alapardado com tenção de o atropelar e levar nas unhas; mas êle, tanto que sentiu vir o gato, alevantou uma perna, ficando sôbre a outra; e ambos estiveram assim por um pequeno espaço, imaginando um de se cevar no outro, e o outro no outro; até que, alevantando a cabeça o gato, se lhe lançou em cima o gavião, e desta sorte engarrafou nêle com as unhas, que, a pouco espaço, abrindo o gato as mãos e pernas, ficou morto, e quando lhe quiseram acudir, já o estava.

Alviano: Cousa estranha é essa pela fereza dêsse animal e fôrças de que é dotado.

Brandonio: Pois ainda vos direi mais que dali a poucas dias trouxeram de presente ao senhor da casa um leitão arrazoadamente grande, o qual, soltando-se nela, deu o gavião sôbre êle, e em breve espaço lh’o tiraram das unhas morto.

Alviano: Não deve ser de pequena bondade o pássaro que a tanto se arroja, e folgara de saber de que modo se caça com êle nesta terra.

Brandonio: Não se aproveitam destas aves para caça, e em parte têm desculpa os que o podiam fazer e não fazem, por ser a terra muito coberta de matos, e não é possível poderem-se soltar sem se perderem. Afora os desta casta, há outro modo de falcão ou gavião, que não sei de que espécie seja, também mui ágil para caça, mas não tão grande, como os de que fiz menção, de que um dos tais se chama piron e outro gambia-piruéra, e outra casta a que chamam eixua, e outra semelhante, que tem por nome taguató, e outros guará-guará, e também guaquaque; e do mesmo modo jaqueretú, o qual é assás feio na composição. E entre estes todos, há uma casta chamada tuindá, que caça de dia e de noite. Tôdos estes pássaros, que tenho nomeado, são de bico revolto e de unha retorcida.

Alviano: Muitas mais aves de volataria há logo nesta terra do que em Irlanda nem em outra parte do mundo.

Brandonio: Tôdas as que tenho nomeado são excelentes para o uso da caça; porque levam na unha qualquer galinha, por grande que seja, e alcançam a mais ligeira ave, quando a seguem. Outros pássaros, há que não se mostram senão ao pôr do sol, já quase noite, em grandes bandos, e não pequena gralhada, a que chamam burahú, e eu os comparo aos aivões da nossa terra. Kacum se chama uma ave, que nunca dorme, e faz da noite dia.

Alviano: Acham-se desta parte por ventura aves noturnas?

Brandonio: Sim; porque há dessa casta rodas as que se conhecem em Portugal, e ainda outras que nunca lá se viram; e também há buitres que cá se conhecem com o nome de urubú, maiores que os da Europa. Demais das aves de que tenho tratado, há infinidade de outras, que se sustentam de pescados, e pastam sôbre os rios e alagôas, tôdas de maravilhoso gôsto no comer, como são patas e adens fermosíssimas, e outra sorte desta qualidade, a que chamam Airires, patoris, massaricos, sericos, colhereiras vermelhas e brancas, que dão maravilhosas plumagens. Outra sorte, a que chamam caram, a modo de massaricos; gaquara, que é uma ave que não pesca senão de noite; gararina, que de ordinário mora dentro das águas. De tôdas estas aves se acham grande quantidade por todos os rios e alagôas, e se tomam com facilidade à espingarda, frecha, e outros modos, que para isso buscam. E com isso confesso que tenho esgotado a memória de tudo o que tinha conservado nela para haver de dizer acerca das aves, com me ficarem outras muitas, que me não vieram à notícia.

Alviano: Tendes dito tantas delas, que me maravilha haverdes lhes podido recitar os nomes e propriedades, como tendes feito; e assim, conforme ao prometido, parece-me que vos fica agora obrigação de vos passar a tratar dos pescados que são os habitantes do terceiro elemento das águas, conforme a ordem que dissestes tínheis determinado de levar enfiada vossa prática.

Brandonio: Já que me queireis obrigar pela palavra, antes de me meter por elas, não quero deixar de vos dizer uma cousa de muita consideração, de que não tenho visto menção, que não é das que menos podem fermosentar o elemento aéreo, a qual é que, nos anos sêcos, costuma nestas partes a descer do sertão inumeráveis borboletas de diversas côres, que quase ocupam e enchem com a sua multidão o côncavo do ar mais baixo; as quais tôdas levam diretamente o seu caminho enfiadas com o Norte, sem, por nenhum caso, se desviar daquele rumo; de maneira que nunca vi ferro tocado na pedra imã que tão direito se inclinasse ao Norte; e em tanto sucede isto assim, que se acaso, pelo caminho por onde vão passando, encontram com algum grande fôgo, antes se contentam de alevantar no alto, para haverem de passar por cima dêle, com levarem o seu rumo direito, do que se desviarem para uma das partes, que lhes foram mais fácil; com esta ordem vão correndo sempre, em igual multidão, por espaço de doze e quinze dias até passarem, dando remate à sua jornada com se afogarem nas águas do mar.

Alviano: Cousa estranha é essa e assás digna de consideração, e creio que deve de haver causa que obrigue a essas avesinhas (sic) a buscarem diretamente o Norte.

Brandonio: Assim o tenho para mim; mas não me quero cansar em a especular, por não vir a me lançar em algum rio, como Aristóteles, e antes me contento de dar princípio ao que tenho para dizer dos pescados que habitam no terceiro elemento das água. Dos quais é bem que demos o primeiro lugar ao regalado vejupirá, porque creio dêle que, entre os demais peixes de posta, pode levar a palma a todos em bondade, e que lhe fica muito inferior o prezado solho da nossa Espanha; carapitanga, outra sorte de pescado medianamente grande, muito gostoso; cavalas, das quais tôdas as que se tomam nêste Estado são excelentes; o peixe chamado serra, tão prezado na India Oriental; camaropim, pescado grande e de bom comer, cujas escamas são do tamanho de um meio quarto de papel, aos quais vi fazer uma cousa estranha, na qual me mostraram claramente haver também amor entre êstes mudos nadadores.

Alviano: E que é que lhes vistes fazer para conjecturardes que havia neles amor?

Brandonio: Em uma tapagem, que estava feita em certo rio, para pescarem nela (a que nesta terra chamam gambôa), se chegaram dois peixes de semelhante espécie, dos quais entrou um para dentro, ficando o companheiro de fora; o que entrara, tapando-se-lhe a porta, ficou preso, e com a vasante da maré, foi tomado e morto. O companheiro, ou para melhor dizer consorte, que tal devia ser, que ficara de fora, esteve esverando por êle todo o tempo que a maré lhe deu lugar para o poder fazer, mas tanto que as águas foram faltando, por não ficar em sêco, se desviou daquela parte, e se foi, com dar primeiro algumas pancadas grandes com o rabo sôbre as águas, quase querendo mostrar com elas o sentimento que levava e depois tornou a continuar a mesma paragem por espaço de seis ou oito dias, sempre ao tempo que a maré enchia, como que vinha buscar o companheiro no lugar onde o perdêra, e ali dava as mesmas pancadas na forma das de primeiro.

Alviano: Não é pequeno argumento êsse para se provar que em tôda cousa vivente se pode achar amor, pôsto que em uns em mais quantidade, e em outros em menos.

Brandonio: Pois assim passa, como vo-lo tenho referido. Também se pescam muitos dourados, meros, morêas, pescadas, tainhas, cações, albacóras, bonitos, lavradores, peixe espada, peixe agulha, charéos, salmonetes, sardinhas; tôdas estas sortes de pescados são gordos e gostosos para se comer.

Alviano: Os mesmos se acham em Portugal.

Brandonio: Pois aqui os há em mais quantidade. E antes de passar mais avante, vos quero dizer da estranheza de um peixe, se assim se deve chamar, o qual é conhecido por peixe boi, nome que lhe foi pôsto por se semelhar no rosto quase com o mesmo animal, pôsto que é maior dois tantos, não em ser alevantado, mas na largura e compridão; porque em alguns desta espécie se acha mais pêso do que têm dois bois. Este pescado se toma e pesca às farpoadas pelos rios aonde desembocam os dágua doce, e comido tem o mesmo sabor e gôsto da carne de vaca, sem haver nenhuma diferença de uma coisa a outra, em tanto que, se misturarem ambas as carnes em uma panela dificultosamente se conhecerá a uma da outra. E por êste respeito se come êste pescado cosido com couves e se faz dêle picados e almondegas, com aproveitar para tudo o de que se usa da carne de vaca, e a algumas pessoas a dei eu já a comer e lhes não disse o que era, e ficaram entendendo que comiam carne de vaca.

Alviano: Pois não deixara eu de ter muito escrúpulo, se nos dias de peixe usasse desse pescado; porque entendera que comia carne.

Brandonio: Êsse mesmo houve já nesta terra e foi questão assás debatida; mas determinou-se por teólogos que era realmente peixe e que por tal devia de ser recebido realmente,visto ter semelhante peixe a sua habitação sempre nas águas, e não sair nunca a pastar fora delas. Ubarana é bom pescado; e da mesma maneira outro chamado guibicuaraçú. Camorim é um peixe pequeno a que chamam peixe pedra, por ter outra dentro na cabeça em lugar de miolos; e por muito sadio é assás estimado por doentes, com se pescarem em grande quantidade.

Alviano: Nunca ouvi dizer de fera, ave, nem peixe, que tivesse dentro na cabeça pedra em vez de miolo.

Brandonio: Pois êstes peixinhos a têm, como tenho dito. Corimã é pescado de feição de tainhas, mas maiores e mais gordas; carapeva é peixe estimado por gordo, o qual se acha no mar e também nos rios dágua doce; curumatã é reputado por savel de Portugal, porque são da própria feição, e têm tantas espinhas como êle; piranha é pescado pouco maior de palmo, mas de tão grande ânimo que excedem em ser carniceiros aos tubarões, dos quais, com haver muitas desta parte, não são tão arriscados como estas piranhas, que devem de ter uma inclinação leonina, e não se acham senão em rios dágua doce: têm sete ordens de dentes, tão agudos e cortadores, que pode mui bem cada um dêles fazer ofício de navalha e lanceta, e tanto que êstes peixes sentem qualquer pessoa dentro nágua: se enviam a elas, como fera brava, e a parte aonde a ferram levam na boca sem resistência, com deixarem o osso descoberto de carne, e por onde mais frequentam de aferrar é pelos testículos, que logo os cortam, e levam juntamente com a natura, e muitos índios se acham por êste respeito faltos de semelhantes membros.

Alviano: Dou-vos minha palavra que não haverá já coisa na vida que me faça meter nos rios desta terra; porque ainda que não tenham mais de um palmo dágua imaginarei que já são essas piranhas comigo, e que me desarmam da coisa que mais estimo.

Brandonio: Bem podeis entrar por todos os rios sem receio, que nela em tôdas se acham estas piranhas, antes sòmente ouvi dizer que as havia no rio de São Francisco, e no Una e outros semelhantes, que são bem conhecidos, e se sabe criarem-se neles piranhas, as quais são boas de comer, e se pescam ao anzol, pôsto que primeiro se perdem muitos, porque os cortam com os dentes. Há outra casta, de pescado, que chamam peixe-galo, por ter o espinhaço muito alevantado. Salé é de outra casta e também assás bom; suaçú, é peixe que tem grandes olhos gostosíssimo de comer; saúna que é a modo de mugéns, mandeu da feição de solhos; roncadores, corcovados e baiacús, cuja propriedade estranha em ser peçonhento causa espanto.

Alviano: E de que modo têm essa peçonha?

Brandonio: Êste pescado, além de não ser muito grande, semelha a sapo e o fel dêle é tão finíssima peçonha, que tôda pessoa, que o come ou coisa que fosse tocada nele, não pode escapar de perder a vida, por ser o mais refinado veneno de todos quantos se acham no Brasil; e, com tudo, quando se tira o fel a êste pescado, de maneira que se não quebre, nem se espalhe, tocando por algumas partes do corpo, se come a carne do pescado assada ou cosida sem nenhum impedimento.

Alviano: Não o houvera eu de comer de nenhuma maneira, porque sempre cuidara que levava do fel.

Brandonio: Pois ainda tem êste peixe outra propriedade, a qual é que, depois de estar morto, se lhe esfregam a barriga, vai logo inchando como sapo. Tamoatés são outros que se armam, e depois que o estão, as suas escamas parecem lâminas; arares se armam também da mesma sorte, e têm a cabeça maior que o corpo; jacundã é peixe dágua doce, excelente para se dar a comer a doentes; piabas e saras possuem a mesma propriedade; tararira é pescado de muitas espinhas, que cria dentro na cabeça uns bichos. Também há muitas tartarugas, que, com ser peixe marítimo, vem a desovar na terra, e nela, de ovos que põem, tiram seus filhos.

Alviano: Com já haver muitas vêzes ouvido tratar dessas tartarugas, nunca me disseram delas essa propriedade.

Brandonio: Pois passa na forma que tenho dito. Também se acham muitos camarões, assim no mar, como pelas alagôas, em terra, de estranha grandeza, e da mesma maneira cágados.

Alviano: Não passeis mais avante; porque tendes tratado de tantas castas de pescado, de diferentes qualidades e naturezas, que faz confusão o considerar nos modos dêles.

Brandonio: Pois vos poderei dizer que a terra dêste Brasil è tão caroável de produzir pescados, que nos campos por onde nunca os houve, quando pelo inverno se formam neles alagôas, logo se acham nelas uns peixes, a que chamam muçús, semelhantes a enguias, e quantidade grande de camarões; de modo que tôdas as pessoas que vivem pelo sertão se sustentam dêles, com mandarem meter de noite uns covas, com algum cevo dentro, pelas tais partes, e de madrugada os mandam tirar cheios de semelhantes pescados.

Alviano: Se com tanta facilidade se tomam, não devem de padecer os moradores desta terra falta dêle.

Brandonio: Dos semelhantes que se tomam em cóvos há muita cópia.

Alviano: E de que modo se pesca o demais peixe nesta terra?

Brandonio: Com redes e trasmalhos; e em certas tapagens, que se fazem por alguns esteiros, aonde com a crescente da maré entra muito peixe, e, depois de estar dentro, lhe tapam a porta, e, como as águas falecem, ficam quase em sêco, e os tomam sem trabalho; mas a principal pescaria, de que se aproveitam os demais moradores dêste Estado, é a que mandam fazer por negros em jangadas, os quais nelas saem fora ao mar alto, aonde ao anzol pescam peixes grandes e formosas, com os quais se tornam a recolher ao por do sol, e desta sorte se toma muito pescado.

Alviano: E porque não se aproveitam de ir pescar no alto em barcos, como fazem as chinchas do nosso Portugal?

Brandonio: Porque não está em uso; e algumas pessoas, que o começaram a fazer, desistiram logo disso. Também se criam, pelas alagôas e rios, um animal a que chamam capivára, os quais vivem nas águas e pastam sôbre a terra, semelhantes à lontra na natureza, mas não nas feições, o qual é bom para se comer.

Alviano: E êsse animal é reputado por peixe ou por carne?

Brandonio: Por carne se reputa, porque a tem êle muito boa e gostosa; além de que, conforme rezam era bem que fosse tido por carne, por pastar na terra, que é ao que se deve de ter respeito para semelhantes dúvidas. Além destas capiváras, se acham também pelos mesmos rios e alagôas uns lagártos grandíssimos, a que os naturais da terra chamam jacaré, mas não tão carniceiros como os da India. Estes lagartos põem ovos ao modo do de pato, mas não são redondos, porque são algum tanto chatos, os quais têm em chôco dentro na água, sòmente com olharem para êles porque a sua vista é bastante para produzir neles os filhos, como as aves o fazem com o calor das penas; e ao tempo nascem dêles lagartinhos.

Alviano: Isso parece história, a que se não pode dar crédito.

Brandonio: Pois não o tenhais por coisa fabulosa, porque a mim me trouxeram uns ovos dêstes, que se acharam dentro na água, e, quebrados, sairam de cada um dois lagartinhos já vivos, que se meneavam de uma parte para a outra. E com isto me haveis por escuso de tratar mais dos pescados, dando-me licença para que me passe aos mariscos, que há muitos e diversos nesta província.

Alviano: Não vos vi tratar das baleias, que de fôrça deve de haver muitas, pelo ambar que lançam na terra.

Brandonio: Sim, há; porque nesta casta se acham muitas e mui grandes, principalmente no verão, e delas saem algumas à costa de que se faz azeite de peixe; e na Bahia matam muitas às farpoadas alguns biscainhos de que fazem o mesmo azeite, por ser coisa que tomaram por ofício. Mas o cuidardes que as baleias lançam o ambar na terra, é engano manifesto; porque não há tal, que a causa de vir à terra não é outra senão que essas mesmas baleias e outros grandes pescados o vão buscar para o comerem no profundo das águas marítimas, aonde nasce em grandes arrecífes, e, com a fôrça que fazem para o espedaçarem, se quebram alguns pedaços, uns grandes, e outros mais pequenas, que depois o mar lança à costa, aonde se acham; pôsto que há poucos dias que me certificaram uma coisa, que sucedeu nos limites do Rio Grande, assás verdadeira, a qual desbarata tudo o que acima digo, acêrca da criação do ambar.

Alviano: Pois não me tenhais isso em segredo.

Brandonio: Afirmaram-me dois homens dignos de fé é crédito pelo haverem visto com o olho, que nas praias do Rio Grande, no Cabo Negro, um morador da mesma capitania, por nome Diôgo de Almenda, condestable da fortaleza, achara nela um páu do comprimento de um braço e quase da mesma grossura, que o mar lançara à costa, o qual tinha dois esgalhes de rama na ponta, um dêles já quebrado, e outro inteiro, que tinha algumas fôlhas sêcas, que semelhavam as de assipréste, e por êste páu vinha pegado ao modo que o faz a resina pelas árvores, três ou quatro onças de ambar-gris, muito bom, que parece que no fundo das águas se criam também em árvores, da sorte daquele páu, que dão o ambar por resina. E se assim é, enganaram-se os que entenderam até agora que nascia como arrecifes, e deram no alvo os que queriam que fôsse resina; porque o páu achado dá disso bastante prova. E porque o haver-se achado êste páu não é coisa em que possa haver dúvida, faço volta a tratar dos mariscos, dos quais os primeiros quero que sejam quantidade grande de polvos, lagostins e lagártos, que se tomam pelos arrecifes nas conjunções das águas vivas, quando a maré está já descoberta de todo.

Alviano: E de que modo os tomam a tal tempo?

Brandonio: Tomam-nos de noite com fachos acesos, donde o tal marisco, espantado da luz dêles, se deixa tomar sem fugir. Também há soma grande de perseves, e outro marisco, a que chamam lapas, caramujos, e ostras, das quais se acha tão grande multidão, que quase ficam servindo de ordinário mantimento aos moradores desta terra, principalmente aos que vivem chegados ao mar. E destas ostras vi já algumas tamanhas, e não digo por encarecimento, que era necessário ser partido o seu miolo às talhadas com faca, para se haver de comer. Dão-se pelos rios salgados, nas margens dos mesmos rios, e pelos pés, ramos e troncos de uma árvore, a que chamam mangue, de que já tenho tratado.

Alviano: Acham-se por ventura, nas tais ostras, pérolas ou aljofares, como se acham nas que se pescam na costa das Indias?

Brandonio: Não creio que sejam estas ostras, de que trato, dessa qualidade; porque as ostras, de que se tiram as pérolas nas Indias, se pescam no mar alto, e as de cá se tomam pelos rios; pôsto que em algumas, depois de assadas ao fôgo, se acham algumas pérolas, que já vêm desbaratadas dêle, mas isto ràramente, e eu tenho em casa uma destas que vos darei.

Alviano: Folgarei com ela para a mostrar no reino, a poder dizer que no Brasil também se acham pérolas.

Brandonio: Da mesma maneira há muitas amejoas, e outro marisco a que chamam sapimiaga, e sobretudo um de qualidade estranha, a que dão nome de sernambin.

Alviano: Que qualidade é a desse marisco?

Brandonio: Diferente da que têm todos os mais, porque se acha nele sangue, na forma que o têm os pescados, sem embargo de estar encerrado na sua concha, coisa de que todo outro semelhante marisco carece, e sobretudo o que mais espanta é que, nas conjunções das luas, lhe acode o menstro, como costuma a vir às mulheres.

Alviano: Não ousarei eu contar isso em Portugal.

Brandonio: Pois aqui vos poderei dar em prova da verdade que trato todos os moradores dêste estado; porque não o perguntareis a nenhum dos antigos da terra, que vos não assele o que tenho dito por verdadeiro.

Alviano: Não duvido, que seja assim, mas eu não me quero obrigar a buscar essas provas.

Brandonio: Ninguém vos pode obrigar a que creais senão o que quiserdes; mas no que digo não há dúvida. Acham-se também na terra diferentes castas de cangrejos, que são verdadeiro sustento dos pobres, que vivem nela e dos índios, naturais e escravos de Guiné, pela muita abundância que há dêles, e pouco trabalho que dão em se deixarem tomar; há uma casta dos tais, a que chamam uçá, e outra siri, e também goajá, e da mesma maneira guoazaronha. Aratú é outra casta deles, que se tem por contra peçonha, pôsto que eu o não experimetei. Também se acham uns de outra qualidade a que chamam garauçá e sobretudo os guanhamus, cuja natureza causa espanto.

Alviano: Pois não ma deixeis encoberta.

Brandonio: Esta sorte de cangrejo faz sua habitação em terra, ao longo dos rios salgados, por covas e lapas, que nela fazem com tirarem a terra para fora, para lhes ficar despejado o lugar de baixo, ao modo que as formigas fazem os seus formigueiros, e dali se sustentam com as hervas e frutos, que se produzem na terra, porque, ainda entre as sementeiras cultivadas, fazem a sua morada, com lhes fazerem assás dano. Estes tais se tomam, tirados das covas e por fora delas, com serem maravilhoso comer, e criarem dentro em si grandes e formosos corais; e, o que mais espanta, é que, com as primeiras águas, que costuma a chover por estas partes pelo mês de janeiro ou fevereiro, saem de suas furnas em grandes esquadrões, donde se espalham pelo sertão quase uma légua, ocupando os campos, aonde nunca chegou o salgado, nem sombra dêle, E por os tais se tornam inumeráveis, e ainda de irem êles, de per si, a meter pelas casas das pessoas, que por aquelas partes moram, com serem os que se tomam por esta maneira os mais gordos e gostosos para se comerem. E dizem os naturais, quando se acham estes cangrejos por esta maneira, que andam ao atá, que sôa tanto como andarem lascivos.

Alviano: Maravilhosas coisas que ides dizendo, as quais, se houveram chegado à notícia dos antigos, creio que houveram compôsto sôbre elas grandes volumes, das quais nós não fazemos caso, como se não foram dignas de muita admiração.

Brandonio: Isso é por respeito de já serem entre nós muito sabidas e usadas, e de tudo o que se trata desta maneira não causa espanto. Mas, porque tenho ainda muito que dizer das feras agrestes e domésticas, será bem que deixemos o mar, e ponhamos a prôa em terra, que é o quarto elemento, de que ainda não tratamos a respeito das feras.

Alviano: Assim vos peço que o façais.

Brandonio: Não me envergonho agora de vos confessar uma fraqueza minha, a qual é que desejei sumamente de furtar o corpo por me não meter no labirinto de haver de tratar das várias castas, diferentes naturezas, estranhas feições, arrevesados nomes das feras agrestes e domésticas, de que é povoado todo êste grande terreno brasiliense; mas a obrigação da palavra, que vos tenho dado, me faz atropelar por tudo com acometer a jornada, o que farei com entenderdes que não pode a memória capacitar, nem o engenho distinguir, o muito que havia para dizer sôbre semelhante matéria, da qual vos afirmo de antemão que, por muito que diga, me há de ficar os dois terços por dizer; e com êste pressuposto quero dar princípio ao que já tenho entre as mãos. Começarei pelo netunino, ligeiro e belicoso cavalo, dos quais, posto que há muitos, abundara inumerável quantidade nestes campos americanos, em tanto que nos de Buenos Aires se não criára tanta cópia dêles, mas têm crueis inimigos que os perseguem com lhes tirarem a vida; os quais são os escravos de Guiné, que os matam sem reparo, para os haverem de comer, em qualquer parte que os acham, e ainda aos regalados e de muito prêço furtam das estrebarias, onde estão, para o mesmo efeito. E deixando isto de parte, algo que os cavalos desta terra são grandes sofredores de trabalho, com andarem desterrados; porque, ou seja pôr serem mais duros dos cascos, ou pela terra ser menos pedregosa, não têm necessidade de ferraduras; e sucede de ordinário a um cavalo dêstes correr-se nele, em uma tarde, canas, argolinha e pato acompanhado tudo de muitas carreiras, e às vêzes continuam neste exercício três e quatro dias a réu, com terem para tudo alento, e os acharem tão inteiros no principio como no cabo; sendo assim que um só exercício dêstes bastára para aguar vinte cavalos das de Espanha, e estes têm alento para tudo, com comerem mal, porque o seu mais ordinário mantimento é herva, a que nesta terra chamam capim; e de maravilha se lhe dá um pouco de milho, por quanto não se acha tôdas as vêzes que se busca.

Alviano: E quanto vale um cavalo dêsses?

Brandonio: Alguns que eram sumamente bons, vi já vender por quinhentos cruzados, e outros por menos; mas, quando no cavalo se acham as partes de ginete, sem manha má, sempre vale ao redor de duzentos cruzados.

Alviano: São de tanta dura os cavalos nesta terra como em Portugal?

Brandonio: Sim, são, e ainda mais; porque aqui não se enxerga em um cavalo ser velho, a respeito de tão ágil está para todo trabalho o de quinze a dezesseis anos, como o de quatro.

Alviano: Dão-se também destas bandas bestas muares?

Brandonio: Sim, dão, mas não as há.

Alviano: Não vos entendo êsse modo de falar.

Brandonio: Pois declarar-me-ei mais. Digo que se dão, porque de alguns asnos cavalares, que se mandaram vir do Reino, se produziram maravilhosos machos e mulas; mas, elas mortas secou a geração dêles, sem haver quem se quizesse cansar em mandar buscar outros, ou ao menos um asno e asna, para que se produzissem dos semelhantes na terra: e por isso disse que se davam bem as bestas muares, mas que as não havia.

Alviano: Agora vos tendes declarado.

Brandonio: Também há nesta terra quantidade grande de gado vacum; todo de muitas carnes e gordura, excelente para se comerem, que dão infinidade de leite, do qual não se sabem ou querem aproveitar, e a maior utilidade que do tal gado tiram, são os novilhos, de que se fazem bois mansos para serviço dos engenhos e das lavouras, com ser das melhores fazendas que há na terra. E conhecia eu um homem que tinha mais de mil cabeças de gado vacum, dividido por currais, dos quais tirava grande proveito; e outros têm menos, pôsto que todos pretendem ter currais de vacas, por ser fazenda de muita importância.

Alviano: E por quanto se vendem cada uma vaca e novilho?

Brandonio: A vaca, sendo boa, é estimada nestas capitanias da parte do Norte, em quatro e cinco mil réis, e o novilho, que serve já para se poder meter em carro, a seis e a sete mil reis; e um boi já feito vale doze até treze mil réis. E êste é o prêço mais ordinário. Também se produzem na terra muitas ovelhas, carneiros e cabras, em tanto que das ovelhas parem muitas de um ventre dois carneiros, e das cabras a dois e a três cabritas.

Alviano: Isso é coisa estranha; e pois tanto multiplica o gado, de semelhante espécie não deve de carecer a terra de queijos, nem de lã.

Brandonio: Antes não há nela nenhuma coisa dessas, porque seus moradores não se querem lançar a isso; que podendo ter grande quantidade de lã de ovelhas, ainda que não fôra mais que para enchimento de colchões, se contentam antes de comprar a que trazem do Reino a três e a quatro mil réis; e da mesma maneira os queijos, E passa esta negligência tanto avante, que, com se dar semelhante gado grandemente na terra, não se querem dispor à cria dêle, contentando-se cada um de criar sòmente o que lhe basta para provimento de sua casa, que não pode ser maior vergonha.

Alviano: Isso é uma coisa que convém não tratar dela por honra do Brasil.

Brandonio: Dêste gado, ovelhum e cabrum; se forma também outra espécie, da qual eu já tive e muito; a qual é uns mestiços, filhos de ovelhas e de cabrão, que, representando a feição de ambos os pais, tomam de um uma coisa, e do outro a outra, com que se forma quase outro animal diferente na composição e são excelentes para se comerem.

Alviano: Nunca ouvi tratar dessa nova casta de animal, nascido de semelhante mistura.

Brandonio: Pois aqui no Brasil os há, e tive já muitos dêles, como tenho dito, pelo que não vos fique disso nenhum escrúpulo. Também há muitos porcos, excelentes, dos da casta do nosso Portugal, cuja carne, por se ter por muita sadia, se manda dar a doentes.

Alviano: Pois eu me achei, um dia dêstes passados, em casa de um enfermo, o qual, perguntando ao médico se poderia comer carne de porco, lha defendeu com grandes encarecimentos.

Brandonio: No princípio da doença, sempre se teria por acertado deixar-se de usar dela, mas, no seu decurso, não se acha que houvesse feito dano a algum enfêrmo; pôsto que êstes modernos médicos querem perverter isto, que sempre foi aprovado pelos antigos, pode ser que o façam sòmente por serem reputados por cientes, sem outro fundamento.

Alviano: Assim o fazem muitos com notável prejuízo dos enfermos; mas folgarei que me digais se todo êsse gado, de que tendes tratado, era natural da terra, e o acharam já nela os nossos Portuguêses quando a vieram povoar, ou se foi mandado trazer de Espanha.

Brandonio: Nenhum gado dos que tenho referido havia nesta província, antes se trouxe todo para ela de Portugal, exceto alguns cavalos e éguas, que vieram do Cabo Verde, por se haverem lá produzido primeiro que nestas partes; e se quereis ouvir das naturezas e qualidades das alimarias, que havia na terra natural de cá, dai-me atenção, e pode ser que vos faça arcar as sobrancelhas de espantado.

Alviano: Dizei tudo, porque me tendes disposto para vos ouvir.

Brandonio: Acham-se por estas partes, muitos animais, a que chamam anta, do tamanho de um boi, os quais se criam pelos campos, e se caçam à espingarda e em fojos, e tem boa carne para se comer.

Alviano: E a pele é como a que nós usamos?

Brandonio: Da mesma maneira, mas não se servem delas, por não se disporem a cortí-las e concerta-las, e, sem nenhum beneficio, as deixam perder; também há inumerável

quantidade de veados, corças e porcos.

Alviano: E êsses animais tomam-se de modo que se costuma de caçar em Portugal?

Brandonio: Não; porque sòmente se matam à espingarda e à frecha, com os irem esperar aos postos aonde costumam de continuar, e também com armadilhas e fojos; e desta maneira se tomam grande quantidade dêles, com ser carne muito boa para se comer, semelhante a de Portugal. Os porcos são de diferentes castas, como é uma a que chamam teaçú, e outra taitetê, que são os nomes por que são conhecidos os tais porcos, por serem uns maiores, e outros mais pequenos; e todos os de semelhante casta têm os embigos nas costas, diferentes dos que vieram de Espanha, porque parece que assim os quis criar a natureza.

Alviano: Coisa estranha essa, e será dura de crêr a quem dela não souber muito.

Brandonio: Pois nisto não há dúvida, por ser coisa assás sabida; e pôsto que êstes animais se matam à espingarda e frecha, e por armadilhas e fojos, como tenho dito, todavia há uma casta dêles, que se caça por um modo estranho; o qual é que vai o caçador à parte aonde já tem feito certo o bando dêles, e ali, antes de se mostrar, escolhe uma árvore que lhe fique mais acomodada para poder subir nela, quando lhe fôr necessário, e como a tem preparada, mostra-se ao bando dos porcos com dar, alguns brados, os quais, tanto que o sentem, arremetem a êle, como leões, para o espedaçarem. O prevenido caçador se acolhe logo à árvore, aonde espera que o bando dos porcos chegue a êle, que incontinente o fazem, roendo-lhe as raízes e tronco, por não poderem chegar ao que se acolheu em cima; mas o pronto caçador, como os vê envoltos naquela braveza, não faz mais que, com agudo dardo, que leva nas mãos, picar um dos porcos, de modo que lhe tire sangue, donde os outros em lho vendo correr, arrematam a morder ao que está sangrado, e êle, por se defender, morde também aos que o perseguem; e assim se vão dessangrando uns aos outros, enganados com o cevo do sangue, que cada um de si derrama, até que travam todos uma cruel batalha, na qual se vão espedaçando com os dentes até caírem mortos, estando a tudo isto o caçador seguríssimo assentado sôbre a árvore, donde com muito gôsto espera o fim da contenda para colher o despojo, o que faz de muitos porcos, que no mesmo lugar ficam mortos, os quais faz levar para sua casa, donde ordena dêles o que lhe parece, por ser carne de maravilhoso comer.

Alviano: Aprazível e deleitosa caça deve de ser essa, por se fazer prêsa de tão pouco custo; tomara eu ocupar-me sempre em semelhante exercício.

Brandonio: Pois aqui não se exercitam nele senão os índios naturais da própria terra. Também se acha quantidade grande de outro animal, a que chamam pacas, o qual é muito maior que lebre, listado de pardo e branco, cuja carne, por gorda, é semelhante da de porco, mas mais gostosa para se haver de comer. Cotia, que é um animal pequeno, que se faz doméstico, e anda pelas casas, quando o querem trazer nelas; e também outra sorte dos semelhantes, a que chamam Coati e assim uns como o outro são bons para se comerem. Tatú é um bicho, que se vê pintado nos mapas pela sua estranheza e feição, de que é composto; porque anda armado de umas couraças, à maneira das que nós usamos, com não serem pouco fortes, e debaixo de semelhante armadura agasalham o seu pequeno corpo. E dêstes tais se acham muitas, que se estimam para a mesa.

Alviano: Êstes dias atrás passados me mostraram um dêsses bichos, que me fêz maravilha de ver o modo dêle.

Brandonio: Eu quis levar um para Portugal, mas não pude sair com a minha pretenção, por me morrer no mar.

Alviano: Não fôra lá pouco estimado.

Brandonio: Jarataquáqua é animal do tamanho de um gozo, de côr parda, da mais rara e estranha natureza, de quantos o mundo tem, a qual é que se acaso, andando pastando pelo campo, fôr acometido de alguma pessoa, que o pretenda tomar, vai fugindo dela; mas, quando se vê apertado, larga, para sua defensão, uma ventosidade que é poderosa, com o seu ruim cheiro, de abater e lançar por terra, sem acordo tôda cousa viva que o segue, quer seja homem, quer cavalo, quer cão, ou outra qualquer sorte de animal, sem nenhum reparo, e ali fica arvoado, sem dar acordo de si, por três ou quatro horas; e, o que faz maior maravilha, é que os vestidos, sela, estribos, ou a coleira do cachorro, a que alcança o ruim cheiro da ventosidade, nunca mais aproveita para nada, e se deve de entregar ao fôgo para que o consuma. E não basta ao homem, a quem isto sucedeu, lavar-se uma, dez nem vinte vêzes dentro n’água para efeito de perder aquele ruim cheiro, antes prevalece nêle por espaço de oito ou dez dias, até que, com o tempo, se vai gastando. E a mim me sucedeu, estando um dia vendo pesar açúcar, e entrar na casa de um homem, ao qual havia mais de sete dias que havia tocado a ventosidade do animal, e com vir já lavado muitas vêzes, cabelo e barba feita, e outro vestido, tanto foi o mau cheiro, que de si lançou que nos obrigou, aos que ali estavamos, a desamparar a casa e sair fugindo para fora, com ignorarmos o caso, até que êle próprio contou o que lhe havia sucedido.

Alviano: Cousa estupenda é essa, e certamente indigna de se poder crêr pela sua estranheza e raridade; assim aconselhara eu aos reis e príncipes que buscassem modo de indústria para criarem semelhantes animais domésticamente, em forma que não soltassem a ventosidade senão quando lhe fosse mandado; porque com isso venceriam grandes exércitos sem arriscarem espadas,

Brandonio: Pois não o tenhais por graça; porque dessa maneira sucederia, quando fôra cousa que se podera pôr em efeito. Também se acham na terra muitos coelhos, dos nossos de Portugal, não por serem naturais de lá, mas parece que se deviam de transmontar alguns, que de lá vieram, e dos tais produziram os muitos que agora há. Também há outra casta dos naturais, a que chamam sauja, mas mais pequenos; e outros, por nome punari, de rabo grande semelhante a rato; e da mesma maneira apariás, que são excelentes para se comerem; e assim uma casta dêles, muito pequenos a que chamam mocó, os quais se fazem domésticos, e se trazem pela casa, para contra os ratos, por serem grande perseguidores dêles. Também há outra sorte, a que chamam reruba, que todos são da espécie de coelhos, uns pequenas, e outros mais grandes.

Alviano: Não há tantos em Portugal e nisso parece que lhefaz o Brasil muita vantagem.

Brandonio: Aquostimeri é um animal pequeno, o qual tem o rabo tamanho que lhe baste para se cobrir todo com êle; e assim, quando o topam, não se lhe enxerga mais que o rabo, porque o corpo lhe fica escondido debaixo. Mocó ou guaqui, por outro nome, são uns bichos do tamanho de um laparo, com os quais dispensou a natureza que tivessem bolso debaixo da barriga, dentro no qual agasalham os filhos, depois que os parem; e quando caminham os levam ali dentro metidos, e estando parados, os soltam para que pastem e comam pelo campo, e, querendo outra vez caminhar, os tornam a receber.

Alviano: E êsse bolso é por ventura aberto até as entranhas?

Brandonio: Não, porque tem uma pele sôbre a outra, e, na de fora, se forma semelhante bolsinho.

Alviano: Maravilhosas cousas me ides contando, com as quais me tendes suspenso.

Brandonio: Tamendoaçú é um animal de côr parda e branca, do tamanho de um poldro de seis meses; o qual tem o rabo tão comprido e largo, que é bastante a cobrí-lo todo dos pés até a cabeça; e a sua carne é muito boa de comer. Também há na terra diversos modos de raposas, grandes caçadoras, principalmente de galinhas, que lhes não escapam, quando lhes podem chegar.

Alviano: Quanto a essas, melhor fôra que as não houvera, porque em tôda parte são daninhas.

Brandonio: Irara é um animal do tamanho de um gato, de côr negra, focinho comprido, a boca de feição de coelho, cujo verdadeiro mantimento são formigas e delas se sustenta.

Alviano: Não sei de que modo possa ajuntar tantas formigas, que bastem para a sua sustentação, por ser a caça muito miuda.

Brandonio: Usa para o efeito de uma estranha invenção, a qual é que vai buscar os formigueiros e outros lugares por onde costumam a andar formigas, e ali, lançado em terra, bota fora da boca a língua, a qual, por ser muito comprida, e ter muita viscosidade, se cobre incontinente de formigas que, uma atrás outras, concorrem a buscar o cevo, e, como o bicho sente que se ajuntaram já muitas, recolhe a língua para dentro, com levar nela um arresoado bocado, e, êle comido, torna a largá-la outra vez, e muitas até se fartar do seu mantimento, que por outra maneira não lhe é dificultoso o buscá-lo.

Alviano: Também não carece de muita consideração o modo dêsse animal, e qualidade de sua sustentação, a qual, com parecer dificultoso, lhe fica sendo fácil pela indústria de que se aproveita.

Brandonio: Também há nesta terra muitos cameleões, que se chamam pela lingua natural dela senebu, os quais são grandes e fermosos, e de côr verde, que é a sua natural; e acontece estarem sôbre uma árvore, por espaço de dois e três dias, sela se mudarem dela, parece que sustentando-se do vento, como escrevem os naturais.

Alviano: Pois é de saber se êsses cameleões mudam também a côr, como êles afirmam.

Brandonio: Sim, mudam; porque eu vi já muitos, que, postos sôbre panos de diferentes côres, depois de estarem sôbre êles por algum espaço, vão tomando quase a mesma côr, pôsto que não tão perfeita, nem distinta; e o gentio da terra os come e diz dêles ser boa carne. Tejú é um sardão grande perseguidor de galinhas, e contudo estimado para se haver de comer. Gia é animal de feição de rã, e tamanho como um cágado, muito bom para se haver de comer, e quem quer que o tiver não carecerá de boa ceia. Também há nesta terra um estranho animal ao qual os nossos portugueses chamam preguiça, e o gentio natural ahum, em cuja qualidade, por ser assas notória me quero cansar em vo-la relatar.

Alviano: Antes vos peço que o façais muito em particular, porque dêsse animal não sei, nem tenho ouvido dizer nada até agora.

Brandonio: Esta preguiça é do tamanho de um cachorro, pôsto que não tão alevantada, de um estranho rosto e feições, tem a côr parda e preta, e as mãos e pés com dedos mui distintos e acompanhados de grandíssimas e agudas unhas: é bicho dotado por natureza de grande freima e preguiça, em tanto que, para haver de subir ou baixar de uma árvore, pôsto que pequena, gasta pelo menos dois dias de tempo, e pela terra lhe sucede o mesmo para se haver de mover pequeno espaço; porque para alevantar e estender um braço, e depois fazer o mesmo do outro para ir avante, faz intervalo de um bom quarto de hora, sem bastar, para que se mova com mais alguma pressa, açoutes, feridas, nem ainda fôgo; porque, da mesma maneira e pelo mesmo compasso vai mostrando as mãos e pés, como se lhe não fizeram nada; e tem tanta fôrça nêles, que aonde quer que aferra, não há poder lhos desaferrar, senão com grande trabalho. Os filhos, enquanto são pequenos, trazem sempre consigo pegados pelo corpo; porque êles têm cuidado de se aferrarem no pai ou mãe, de maneira que nunca os largam até serem grandes.

Alviano: De cada vez me ides contando mais estranhezas, e tais que, pela qualidade delas, não capacita o entendimento podê-las haver no mundo.

Brandonio: Pois, no que vos vou dizendo, não me arredo em nada da verdade, nem haverá quem a ela possa pôr glosa. Aguará-açú são uns animais à feição de cão. Maracaia são de feição de gato, pôsto que do mato, muito fermosos, por terem todo o corpo listado. Tiquaam é outro gato, também do mato, mui agourento para os índios, em tanto que, se acaso os encontram, tendo começado qualquer jornada, desistem logo dela, por lhes parecer que lhes não pode suceder bem, havendo visto semelhante bicho. Heirate é um animal grande, o qual sóbe sôbre as árvores, aonde vê que há mel, do modo que o fazem os gatos, e depois de estarem em cima delas, com os dentes e unhas furam o tronco para haverem de

comer o mel, e assim se fartam dêle, sem arreceiarem o aguilhão das abelhas.

Alviano: Deve de ter êsse animal a natureza de urso, em ser inclinado ao mel.

Brandonio: Eu não sei que natureza é a sua, mas sei que o seu verdadeiro mantimento não é outro; juparra é outro animal grande caçador, e a êle caçam também os índios com cachorros, para o haverem de comer; quoandú é uma casta de ouriço da feição dos de Portugal, de que também os índios se aproveitam para seu mantimento; guasuni é cachorro do mato, medianamente grande; jagararuapem é um animal, não muito grande, grandíssimo caçador e matreiro para semelhante arte.

Alviano: Já que tão bem sabe caçar êsse animal, não deve padecer de fome.

Brandonio: Nunca se ocupam senão da caça. Já tereis visto os fermosos e lindos saguins, que se criam nesta província, donde os levam para Portugal, com serem lá estimados pelo seu bom cabelo, pequeno corpo, feições de rosto, e viveza dos espíritos.

Alviano: Dessa qualidade tenho visto muitos, e ainda tenho um em casa, de que fizeram presente os dias passados; e são bichos de muita consideração.

Brandonio: Confesso-vos que arreceio de vos dizer dos bugios, porque há tanto que contar dêles, que pode ser que me tenhais por fabuloso; mas, como estou em parte aonde posso logo abonar minha verdade, direi o que souber da matéria. Nesta terra se produzem grande quantidade de bugios, de diferentes castas, uns muito grandes, e outros mais pequenos; os grandes são chamados guaribas, dos quais direi por derradeiro. Dêstes, que não são tamanhos, se conhecem diferentes habilidades e costumes, dos quais o primeiro seja que têm de costume ir furtar o milho pelas milharadas, quando êle está devez, e para o efeito se previnem dêste modo: antes de descerem das árvores, elegem dentre si três ou quatro espias, que dividem pelas partes por onde melhor se descubra o campo de cima de grandes árvores, os quais estão sempre vigiando com o olho aberto; e os demais bugios, havendo-se com esta prevenção por seguras, descem abaixo a fazer,seu furto, levando cada um dêles, por uma estranha invenção, a três e quatro espigas, e se não forem sentidos, se recolhem com elas; mas, se acaso vem gente, estando ainda ocupados no furto, lhes fazem sinal as espias, com darem certos brados, que como são ouvidos dos demais, se recolhem com presteza no estado em que se acham; e se acaso as espias se descuidaram, e sobreveio gente, sem lhes haverem dado sinal, estando êles ocupados no furto, fazem o melhor que podem; e o primeiro que fazem é arremeterem às sentinelas, e aos bocados as espedaçam, com lhes darem por esta via o castigo do seu descuido.

Alviano: Não pode fazer mais, nem governar-se com melhor providência uma pessoa racional; e folgara de saber que modo há para se tomarem êsses bugios, porque vejo levar muitos dêles mansos a Portugal.

Brandonio: Tomam-nos com laços e armadilhas, dos quais um escravo meu lhes fazia uma assás galante; a qual era que tomava uma botija de boca estreita e a meava de milho, e assim a punha lançada no chão com alguns grãos por fora ao redor da boca dela; e tendo assim a botija preparada na parte onde os bugios costumavam a vir fazer seus furtos, tanto que algum chegava a ela, vendo os grãos de milho, depois de os comer, olhava pelo buraco a ver se achava mais, e tanto que os divisava dentro, metia a mão pela boca da botija, e quando a queria tornar a tirar para fora já cheia de milho, o não podia fazer, porque, como a metera vazia, pôde bem caber pelo buraco, mas, trazendo-a cheia, não lhe era possível podê-la tornar a tirar para fora, por êste modo ficava prêso; como ignorava que lhe era necessário tornar a soltar o milho, para poder levar a mão, o que fazia era sòmente dar muitos gritos até que ao rebate dêles acudia o caçador a lhe lançar um laço, com o qual depois de quebrar a botija, o trazia para casa.

Alviano: Modo de caçar é êsse, em que eu sempre me exercitara, pelo gôsto que havia de ter de ver prêso aquele animal por semelhante via.

Brandonio: Outra coisa estupenda vi contar dos mesmos bugios, pôsto que a não possa testificar de vista, mas afirmaram-me pessoas dignas de fé; a qual é que, quando o rebanho dêstes animais vai fazendo o seu caminho pelo inverno, se acaso encontra algum rio crescido, que lhe empida a passagem, porque a nado o não podem fazer, pelo intervalo dos filhos pequenos que consigo levam, usam de uma maravilhosa indústria para não deixarem de continuar o seu caminho, a qual é que buscam duas árvores crescidas, que fiquem fronteiras uma da banda daquem do rio e a outra dalem, e subidos à árvore, da parte donde se acham logo em uma rama dela, que pende sôbre o rio, se aferra um dos tais bugios com as mãos, deixando o corpo dependurado para baixo, e àquele se lhe ajunta outro, com lhe fazer da mesma maneira presa com as mãos na petrina, e logo outro, e muitos, até que se forma dor êste modo uma corda de bugios, e como está bastantemente comprida embalança tanto com ela, de uma parte para outra, até que o último bugio, dos de baixo, possa aferrar com as mãos a rama da árvore que lhe fica vizinha da outra parte, na qual, fazendo fôrça, vai atezando a corda pouco a pouco, e depois que o está, por riba dela passam os demais bugios com seus filhos às costas; e, como tais estão já da outra parte, o primeiro, que se aferrou do tronco na árvore oposta, solta também as mãos dela, e fica da outra parte com os companheiros; porquanto a que está de além não se solta, tendo a corda em perfeição até que o outro passou por esta via, e se ajunta com os demais.

Alviano: Cousa é essa que, pela sua raridade, não sinto tanta confiança em mim, que me atreva a contá-la no Reino; porque arrecearei que me dêem apupadas.

Brandonio: Pois aqui achareis muitas pessoas que assim vo-lo afirmem. A outra sorte de bugios se chama guaribas, os quais são muito maiores e têm barba, e no modo que vivem e providencia com que se governam, quase que se querem parecer com a gente humana. Estes fazem sempre sua habitação por cima de grandes matos e crescidos arvoredos juntos em cabildas, donde estão em contínua grita, que se ouve de muito longe, e tôda pessoa que ignorar a causa terá para si serem vozes humanas, ou som de instrumentos, porque daquela maneira respondem. Estes guaribas costumam a fazer-se a barba uns aos outros, quando as têm crescidas, ajuntando-se para isso de certas pedras agudas, unhas e dentes; e quando se lhes tiram com algumas frechas e delas são ligeiramente feridos, tornam com muita brevidade a tira-la logo do corpo; e com acendida cólera a arremessam contra o que lha atirou, intentando fazer o mesmo que lhes fizeram, e a ferida curam depois com facilidade, aplicando-lhe certas ervas só dêles conhecidas. E quando sucede serem feridos de ferida penetrante e mortal, conhecendo seu mal, antes de se entregarem a morrer, se dependuram na árvore em que estão, liando na rama dela o rabo, de sorte que morrem ali dependuradas, sem caírem para baixo, tanto aborrecem o serem presas de seus matadores.

Alviano: E quando êsses guaribas encontram acaso com algum homem por êsse matos, folgara de saber se o deixam passar livremente, sem lhe fazerem mal.

Brandonio: As vêzes a deixam passar, porque não reparam nele, e outras o perseguem com carrancas e biocos e outros medos que lhe fazem; em tanto que eu vi já um mamaluco, filho da terra, vir assás afrontado, de perseguido dêles, e me afirmou que tanto o apertaram que se via em termos de se perder. Também se acham nesta terra umas onças ou tigres muito listados, do tamanho de um bezerro, grandes perseguidores do gado doméstico, do qual costumam matar muito.

Alviano: E de que modo o matam?

Brandonio: Com nenhum outro senão com se arremessarem a êle, e lhe darem com a mão uma bofetada sôbre a cabeça com tanta fôrça que é bastante - oh cousa maravilhosa! - a lhe quebrar os cascos por muitas partes, com lhe espargir os miolos, morrendo logo a vaca ou novilho a que isto aconteceu, sem por a parte de fora lhe fazer ferida, nem mostrar sinal por onde recebera tanto dano.

Alviano: Folgara de saber se assim como acomete e mata o gado, o faz também à gente.

Brandonio: A homem branco não ouvi dizer nunca que matassem, mas aos índios e negros de Guiné sim, quando se acham muito famintos. Também há outra desta mesma espécie, de menor corpo, a que chamam susurana, que costuma de matar alguns bezerros e gado miúdo. Não são tão daninhos como os outros. Não quero calar as diferentes castas de cobras peçonhentas, que se acham por tôda esta província, como são jararacas, saracucús, cobra de coral, e outra a que chamam cascavel, porque tem uns nós no rabo semelhantes a êles, e quando os meneia com fôrça formam um som que se parece com eles. Estas tôdas são peçonhentíssirnas, e matam as pessoas a que mordem em breve termo, e por isso são mui temidas. Outra sorte há também de cobra, muito mais grande, a que chamam boaçú, e nós cobra de veado, porque comem, engulindo um inteiro, quando o tomam. Caçam dependuradas sôbre árvores, e de salto fazem a sua presa; e já sucedeu arremessarem-se a homens que mataram, com lhes meterem o rabo pelo sesso, por ser parte aonde logo acodem com êle. E destas semelhantes cobras vi uma tão grande que tenho temor de dizer a sua grandeza, temendo de não ser crido, e se afirma também delas uma cousa assás estranha, a qual é que, depois de mortas e comidas dos bichos, tornam a renascer como a Fênix, formando novamente sôbre o espinhaço carne e espírito.

Alviano: Isso tenho eu por causa indigna de se poder pôr em prática, porque não mostra nenhuma aparência de poder ser verdade, por encontrar às leis da natureza.

Brandonio: Já vos disse que eu não o vi, mas ainda me atrevo a vos mostrar pessoas, que vos afirmem haver experimentado o caso, assim como vo-lo tenho relatado. E com isto vos confesso que não me acho para mais, nem me atrevo passar avante, pôsto que me ficam ainda muitos animais terrestres de que podera fazer menção.

Alviano: Tendes dito de tantos, e mostrado tantas maravilhas de suas naturezas e qualidades, que não sei que vos possa ficar mais por dizer, senão dos costumes dêste gentio da terra, e é a última cousa de que prometestes tratar.

Brandonio: Para isso é necessário que cobre novo alento e novo ânimo, por ser matéria tanto comprida como dificultosa; e para dar remate à esta nossa prática, o que sumamente desejo, amanhã vos virei buscar a êste mesmo pôsto, às horas costumadas.

 

 

 

Diálogo Sexto

 

 

Brandonio: Assim como o que tem caminhado grandes jornadas, na derradeira se apressa mais para haver de chegar à sua pousada, e nela descansar do trabalho que tem passado, assim havendo eu no dia de hoje de dar cumprimento à minha obrigação, nesta última prática me apressei mais do acostumado em vir ocupar êste pôsto, no qual há já pedaço vos espero.

Alviano: Confesso meu descúido, de que foi a causa uma visita; contudo, se soubera que éreis já aqui vindo, atropelára pelas obrigações de cumprimento por vos vir buscar.

Brandonio: Ainda não haveis feito falta e para dar princípio ao que tenho entre mãos, digo que bem vos deve de alembrar haver-vos já mostrado o comprimento e largura de tudo quanto nós os Portuguêses temos povoado nesta costa brasiliense, e da mesma maneira as cidades, vilas e lugares, capitanias que pelo distrito de tôda ela se acham, com as coisas de que abundam, e assim das que carecem; tratei também do bom céu, e melhor temperamento de que goza todo êste terreno, sua riqueza, fertilidade e abundância de mantimentos, gados, aves e pescados, das quais coisas deveis de ter inferido, quando não queirais ser reputado por herege das coisas do Brasil, o quanto vos enganáveis em o julgardes por ruim terra.

Alviano: Estou já bem arrependido do meu engano, e não pouco corrido de haver perseverado nele; mas, com tôdas as suas abundâncias que me tendes representado, vejo que, pôsto que tudo lhe sobeje pela fertilidade do seu terreno, vem a padecer muitas faltas, das quais me alembra haverdes atribuido a culpa à negligência comum e pouca indústria dos seus povoadores; mas faltou-vos por dizer o que se poderia fazer para semelhante falta ter emenda.

Brandonio: Condeno minha pouca memória, com vos dizer que isso se remediará, quando a gente que houver no Brasil fôr mais daquela que de presente se há mistér para o grangeamento dos engenhos de fazer açúcares, lavoura e mercearia, porque então os que ficarem sem ocupação de fôrça hão de buscar alguma de novo de que lancem mão, e por esta maneira se farão uns pescadores, outros pastores, outros hortelões e outros tecelões, e exercitarão os demais ofícios, dos que hoje não há nesta terra na quantidade que era necessária houvesse; e como isto assim suceder, logo não haveria falta de nada, e a terra abundaria de tudo o que lhe era necessário, enxergando-se ao vivo a sua grande fertilidade e abundância, com não ter necessidade de coisa nenhuma, das que se trazem de Portugal, e quando a houvesse, fôra de poucas.

Alviano: Quando totalmente o Brasil se podera sustentar sem o provimento que lhe vem todos os anos de Portugal, nunca o podera fazer, se lhe não vier gente por ser o com que êle se povoa.

Brandonio: Enganai-vos nisso, porque o Brasil tem já em si tanta gente que basta para. o povoar, e, ainda antes de poucos anos, lhe ficará sendo sobeja; porque a capitania de Pernambuco, com as mais do Norte, pode já hoje pôr em campo mais de dez mil homens armados, nos quais entrem muitos de cavalo. E porque nos imos desviando da matéria sôbre a qual havemos hoje de tratar, que é sôbre os costumes gerais da terra, lhe quero começar a dar principio com dizer primeiro brevemente do que guardam os nossos Portuguêses, dos quais, os que não são mercadores, se ocupam em suas lavouras, como tenho dito, e para o efeito fazem a sua habitação pelos campos, aonde têm sua família, em casas que para isso fazem fabricar, umas de telha e outras de pindoba ou sapé, que é uma rama com que se fazem semelhantes coberturas; e pôsto que têm suas casas de moradas nas vilas e cidades, não fazem residência nelas, porque no campo é a sua ordinária habitação, aonde se ocupam em granjear suas fazendas e fazer suas lavouras, com a sua boiada e escravos de Guiné e da terra, que para o efeito têm deputados, porque a maior parte da riqueza dos lavradores desta terra consiste em terem poucos ou muitos escravos; sustentam-se de suas criações, tendo de ordinário um pescador, que lhes vai a pescar no mar alto e também aos rios, donde lhes trás pescado bastante para sua sustentação.

Alviano: E êsse pescador é cativo ou fôrro?

Brandonio: Não é senão escravo cativo do gentío da terra ou de Guiné, e também dos forros, que para o efeito assoldadam a troco de pequeno prêmio; e muitos usam também de caçadores, que lhe trazem cópia grande de caça, e com isto e o mais de suas criações, leite de seus currais, muito açúcar, vivem abastadamente.

Alviano: Pois dizei-me se usam todos, geralmente, de comerem farinha da terra?

Brandonio: Alguns, e não poucos, usam também de pão, que mandam amassar e coser em suas casas, feito de farinha, que compram do Reino, ou mandam buscar às casas das padeiras, porque há muitas que vivem dêsse oficio. As mulheres se trajam muito bem e custosamente, e quando vão fora caminham em ombros de escravos, metidas dentro em uma rede.

Alviano: E não fôra melhor em cadeira, ou em palanquim, como os da Índia?

Brandonio: Não, porque a rede é excelente para se andar nela por caminhos e da cadeira seria trabalhoso usar-se, com respeito que sucedem estarem as igrejas desviadas, e da mesma maneira as visitas que fazem às suas amigas e parentas; e também costumam de levar consigo, para seu acompanhamento, além dos homens que levam de pé ou de cavalo, duas ou três escravas do gentío de Guiné ou da terra, que se não desviam de ir sempre ao redor da rede, a que acomodam uma alcatifa por baixo. Os homens têm seus cavalos em que costumam andar, com os trazerem bem ajaezados, principalmente quando entram com êles em algumas festas; em suma são quase todos liberais, belicosos e grandemente amigos da honra, pela qual se aventuram a muitas coisas.

Alviano: Tudo isso tenho bem enxergado nas pessoas com quem conversei; demais que os acho a todos muito bem falantes.

Brandonio: Assim é; porque já vos disse que o Brasil era academia aonde se aprendia o bom falar, e isto baste por agora acêrca dos brancos; porque temos muito que dizer dos costumes do gentío da terra. Primeiramente êste gentío não tem rei a que obedeça e sòmente elegem alguns principais, aos quais reconhecem alguma superioridade, principalmente nas coisas da guerra, porque nas outras fazem o que lhes parece melhor.

Alviano: E a quem pertence a eleição dêsses principais?

Brandonio: Pôsto que alguns sucedem por herança de seus pais e avós, todavia a maior parte dêles se elegem de per si, porque basta ser bom cavaleiro e reputado por tal, para todos lhe darem obediência; moram pelos campos em umas casas que fazem, muito compridas, cobertas de palha, divididas por muitos ranchos; porque cada casal, com sua família, tem o seu, a que êles chamam lanços, sem se meter parede nem outra cobertura entre uns e outros.

Alviano: Não devem logo de ser ciosos das mulheres, nem das filhas.

Brandonio: Antes o são em grande maneira, e sôbre isso fazem mil extremos. Antigamente, e ainda até hoje no sertão, andavam e andam todos despidos, assim homens, como mulheres, sem usarem de coisa alguma, para com ela haverem de cobrir suas partes vergonhosas.

Alviano: Deviam de ouvir contar de nosso padre Adam, enquanto esteve em estado de graça.

Brandonio: Mas já agora o gentío que habita entre nós anda coberto, os machos com uns calções e as fêmeas com uns camisões grandes de pano de linho muito alvo, e os cabelos enastrados com fitas de seda de diferentes côres, costumes que introduziram entre êles com assás trabalho os Padres da Companhia; porque não havia quem os fizesse apartar de sua natureza, que os incitava a andarem nús.

Alviano: E tem êsse gentío, por ventura, algum rito ou cerimônia de crença?

Brandonio: Não tem nenhum; e se algum modo de adoração fazem, pôsto que não se lhe conhece, é ao diabo, ao qual dão o nome de juruparim.

Alviano: Se êles a tal santo se encomendam, não é muito que suas obras pareçam a êle.

Brandonio: E por isso se diz geralmente que êste gentío do Brasil carece na sua língua, de três letras principais; as quais são F, L, R - em sinal de que não tem fé, lei, nem rei; são todos inclinadíssimos a guerras, e entre si as têm sempre travadas uma nação com a outra; comem carne humana, o que mais fazem por vingança, como adiante direi, que para sustentação; afirmam que têm por tradição de seus antigos passados, que São Thomé lhes mostrara o uso da mandioca, de que se sustentam, que dantes não usavam dela, nem conheciam a sua qualidade, mas isso sem nenhum fundamento.

Alviano: [Isso não devia] de ser; pois não sabemos, nem lemos de São Thomé que passasse nestas partes.

Brandonio: Isso podia Deus fazer quando fôsse servido, como fez que Abacave levasse o comer ao profeta Daniel ao lago dos leões, aonde estava encerrado; mas, como disse, êstes índios não dão, em prova do que querem dizer, alguma razão que concluinte seja. Costumam de dar liberalíssimamente tudo quanto têm, e se lhes pede, com muita facilidade, pôsto que aventurem a ficar despidos, como muitas vêzes sucede, em forma que se não enxerga entre êles, rosto nenhum de ambição.

Alviano: Disso se lhe pode ter grandes invejas, por ser coisa de que a nossa Espanha anda muito desviada.

Brandonio: Tudo o que até agora tenho dito dos costumes dêstes índios, foi falar em geral; e vindo ao mais particular, primeiramente digo que, quando a êste gentío lhe parem as mulheres, a primeira coisa que elas fazem no instante que acabam de parir, e pode ser que ainda sem terem bem livrado, é ir-se meter no mais vizinho rio ou alagôa de água fria, que acham, na qual se lavam muitas vêzes, e, depois de bem lavadas se recolhem para casa, aonde já acham o marido lançado sôbre a rede em que costumam dormir, como se fôra êle o que parira, e ali o regalam, e é visitado dos parentes e amigos, e a parida se exercita nos ofícios manuais de casa, fazendo o comer, e indo buscar água ao rio, e lenha no mato, como se nunca parira.

Alviano: E como é possível que a água não faça dano a essas paridas, fazendo-o às nossas qualquer pequeno ar em Portugal?

Brandonio: Antes lhes serve esta de medicina e preservativo para lhes não fazer o parto dano, pelo costume que têm de se lavarem sempre nos rios, e pescarem neles; e assim não quero deixar em silêncio um caso que me sucedeu a êste propósito. Indo caminhando eu a cavalo por um oiteiro abaixo em um dia muito chuvoso, na ladeira achei uma Índia assentada no meio da estrada, envolta quase tôda em sangue, e ao redor dela também derramado muito; querendo eu saber a ocasião daquilo, me respondeu que havia parido naquele lugar, e que o sangue era do parto; perguntando-lhe mais pela criança que parira, me disse que um grande golpe d’água, que por ali corria da chuva, pela rigeira de um carro, lh’a havia levado para baixo; piquei então o cavalo depressa para acudir à criança, que não perecera, e achei-a meia morta, atravessada na mes[ma estrada, detida pela raiz de uma árvore,fiz] mão dela à raiz de uma árvore, fi-la recolher logo por um meu escravo, e depois, sendo entregue a outra escrava de leite, para lh’o haver de dar, viveu e chegou a ser grande.

Alviano: E as mulheres portuguêsas, que habitam esta terra, usam por ventura de semelhante costume?

Brandonio: Por nenhum modo, antes se guardam do ar, como as de Portugal, pôsto que não continuam tanto a cama.

Alviano: Não nade haver mais bárbaro costume dêsse que me tendes referido; e creio que Por todo o mundo se não achara seu semelhante, nem era lícito que o houvesse senão entre êstes índios, que não faço diferença dêles às brutas feras.

Brandonio: Enganai-vos grandemente nisso; que pôsto que usam dêste e de outros semelhantes costumes que aprenderam, e lhes ficou em uso dos seus passados, todavia se acha neles bons discursos e agudas respostas, e não se deixam enganar de ninguém. Aos filhos ensinam de pequenos a que sejam guerreiros e inclinados a guerras, e para o efeito os adestram no arco e frecha, de medo que, com terem pequeno corpo, são grandes frecheiros, para que os exercitam na caça, e as femeas, como lhes a idade dá para isso lugar, servem a seus pais, enquanto não casam.

Alviano: E que estilo é o que têm no seu recebimento?

Brandonio: As sobrinhas são as verdadeiras mulheres dos tios;e quando as querem tomar por tais, não se lhes pode negar; assim pela maior parte, se casa o tio com a sobrinha, filha de seu irmão ou irmã. E também casa o pai a filha com quem lhe parece bem; pôsto que para isso se usa um modo assás galante, o qual é que o mancebo que se namora de qualquer donzela, o remédio mais certo de alcança-la é ir-se ao mato com um machado e fazer lenha, sem o fazer a saber a ninguém; a qual, depois de feita, acarretam às costas em feixes, e a vai lançar ao rancho aonde habitam o pai e mãe da sua afeiçoada: e em semelhante exercício continua por espaço de alguns dias, com o qual dão a entender sua tenção, e nunca por esta via se lhe nega a esposa.

Alviano: Devem de ter logo êstes noticia do modo com que Jacó ganhou a sua amada Raquel, e parece que neste uso o querem imitar. E é de saber se tomam mais de uma mulher.

Brandonio: Podem tomar três e quatro, e ainda sete ou oito, segundo a valentia e esforço, de que cada um é dotado, que a isso se tem principalmente respeito, e a ser homem que possa bem sustentar as mulheres, que toma à sua conta para êsse efeito.

Alviano: Pois como não têm essas mulheres brigas entre si, causados dos ciúmes que de fôrça devem de ter umas das outras?

Brandonio: Por nenhum caso se lhes alembra, isso; antes são muito conformes, cousa que é digna de fazer grandes invejas. As donzelas, enquanto o são, se conhecem pelos cabelos, que trazem cortados, mas tanto que as fazem donas, o deixam crescer, sem nisso haver engano.

Alviano: Aprovo o costume, principalmente havendo nêle a certeza que tendes dito; mas faltou-vos por dizer se êsses índios que se fazem paridos, ocupando o lugar das mulheres, estão muitos dias lançados na rede.

Brandonio: Não, senão aqueles que bastem para serem visitados dos amigos e parentes. E nas visitas que se fazem uns aos outros, guardam também um estranho costume, o qual é que, quando se chegam a ver, a mulher que está na casa, ou a que de novo vem de fora, sendo já de perfeita idade, se põe sentada aos pés do hospede, que chegou ou do que visita, e ali, com um choro muito sentido e magoado, lhe está recitando, por grande espaço, as cousas passadas, que sucederam a seus pais e avós, de infortúnios, acomodadas tôdas a provocarem as máguas, sem aquele que é chorado responder palavra; de modo que semelha mudo enquanto dura o choro; e depois dêle acabado, o recebem e agasalham o melhor que podem a seu uso.

Alviano: Tivera eu por grande agouro o ver-me chorar, e não consentira, por nenhum modo, que tal se me fizesse.

Brandonio: Como todos andam despidos, tomam por abrigo contra o frio da noite fazer fogueira ao longo das redes, onde dormem, e corno a casa é muito comprida e tôda aberta por dentro, e as redes muitas, que se por ela armam, vêm por esta maneira a ter muitas fogueiras dentro em si, com as quais se aquecem de sorte que não padecem frio, pôsto que estejam despidos.

Alviano: E de que móvel é que usa êsse gentío para seu serviço?

Brandonio: De nenhum outro mais do que da rede, em que dormem, e de uma cuja, que é um meio cabaço, em que vão buscar água, com haver na comunidade três ou quatro fornos de barro em que cosem a farinha, feitos ao modo de alguidares; e com isto sòmente se têm por mais ricos do que Creso com todo o seu ouro, vivendo tão contentes e livres de tôda ambição, como se foram senhores do mundo.

Alviano: Êsse costume me faz grandes invejas, porque se me representa nêle a idade dourada; mas contudo deve de ter, de fôrça, cada um dêsse gentío mantimento de que se sustenta, porque, sem isso, não lhe era possível ter de comer para si e sua família.

Brandonio: Nem disso fazem cabedal, porque têm de costume, pelo tempo das sementeiras, fazer suas roças, aonde vão todos juntos a semear e a plantar seus mantimentos, e [nisso ocu]pam alguns dias até que lhes parece que os têm feitos para lhes poder durar por todo o decurso do ano, e pelo mesmo modo acodem depois a lhes dar suas limpas, e fazer o mais benefício necessário; e como dão cabo a êste trabalho, se exercitam em suas caças e pescarias, de que tomam grande quantidade assim de feras como de pescados, por sereia todos bons mestres de tal exercício. E quando têm necessidade de farinha mandam às roças, que são gerais, para dela a fazerem; porque às mulheres toca semelhante ofício e o de aparelhar a comida, a qual sempre têm prestes, feita a seu modo, para quando o marido chega de fora.

Alviano: Não é mau costume êsse de ser o mantimento geral, quando não houvera nele engano.

Brandonio: Por nenhum caso o há; porque ninguém colhe mais daquilo de que tela necessidade para sua sustentação, e por esta via vela o mantimento a abranger a todos; e quando há também falta dêle, ninguém carece dela. Têm mais de costume, quando querem ir às suas caças e pescarias, para as quais se ajuntam muitos, o primeiro, que se alevanta antes de amanhecer, anda pelo terreiro, e, a grandes brados, prega aos demais que se alevantem e botem a preguiça de parte, saindo dos ranchos, por ser já tempo de se porem a caminha, e com esta pregação vai continuando por algum espaço, até que todos tomam suas armas, com as quais se põem a caminho.

Alviano: Serve-lhes logo o índio de espertador.

Brandonio: Sim, serve; porque nunca falta um que faça semelhante ofício. Verdade seja que os seus principais lhe ordenam estas saidas mais por rogo que por império.

Alviano: E êsses principais dominam porventura muitas gentes, ou que jurisdição têm nêsse cargo, que lhes atribuis?

Brandonio: Em cada aldeia há um principal, que não reconhece superioridade a outro, senão quando sucede haver algum tão cavaleiro que, pelo medo que têm dêle, lhe guardam o respeito; mas os ordinários são obedecidos dos da sua aldeia quase por zombada; porque, nas cousas ordinárias, cada um faz o que quer, sem embargo do principal lhe ordenar a contrário, mas, nas cousas tocantes à guerra, lhe guardam mais respeito; porque êle é o que as trata e ordena, determinando o que se deve fazer com receber as embaixadas e dar resposta a elas, pôsto que, para o assentar das pazes ou mover novamente guerra, se segue e guarda o parecer dos mais antigos. E certamente que, se êste gentío tivera mais obediência aos seus capitães, que foram mui valorosos soldados, segundo as fôrças e ânimo de que são dominados, e muita ousadia que sempre mostraram no acometer do inimigo; mas as superstições de que usam, com darem crédito a seus feiticeiros , os desbaratam e lançam a perder as mais das vêzes.

Alviano: Pois que é o que tratam com êsses feiticeiros?

Brandonio: Para haverem de determinar qualquer guerra, se ajuntam em unta casa redonda, que só para o efeito têm alevantada no meio da praça de suas aldeias, a que chamam carpe, e ali decretam as causas que têm para fazerem guerra ao inimigo, e o modo com que devem de prosseguir nela, estando presente a tudo o seu feiticeiro, que é qualquer índio ou Índia, que se finge sê-lo. E a êste tal toca aprovar ou desaprovar a jornada, com prometer bom ou mau sucesso, para o que usam de uma cousa assás ridiculosa, a qual é que, quando afirmam que vencerão os inimigos, mostram untas redes pequenas, dizendo que nelas os hão de meter a todos manietados, como se fossem peixes, e outras vêzes, com uns abanos que têm lavrados de palma, prometem haverem-nos de enxotar de modo que logo se ponham em fugida; e tanto crédito dão a esta vaidade, que têm por sem dúvida que assim lhes há de suceder.

Alviano: Pois quando lhe isso sai pelo contrário, conto se não desenganam ser tudo mentira?

Brandonio: Nada basta a lhes tirar do pensamento semelhante erronia, em que seus pais os puseram, com haverem já recebido grandíssimos danos por darem crédito a êstes feiticeiros; e, para prova disto, vos quero contar uma história assás galante, a qual foi que nos tempos passados houve um feiticeiro dêstes, que afirmou aos índios que a terra, para adiante, havia de produzir os frutos de por si, sem nenhuma cultura nem benefício; portanto que bem podiam todos folgar e dar-se à boa vida com se lançarem a dormir, porque a terra teria cuidado de lhes acudir com os mantimentos a seu tempo. Tanto crédito lhe deram os pobres índios, que o fizeram de maneira que lhes êle aconselhou, com virem a padecer, por esta via, a mais trabalhosa fome, que nunca se sabe haver nêste Estado; em tanto que chegaram, obrigados da necessidade, a se venderem a si e as mulheres e filhos por uma espiga de milho, que não pode ser maior miséria.

Alviano: Comparo isso ao dos bugios, que me contastes, que metiam a mão pela boca da botija vasia, e depois a não podiam tirar, e por não saberem largar o que apanharam se deixavam cativar; donde infiro que gentes que a semelhante cousa dão crédito, devem de ser da maneira dos mesmos bugios.

Brandonio: Já vos disse que não careciam de bom entendimento, pôsto que estão tão cegos como êstes feiticeiros (que o não são nem nada), que se não acabam de desenganar de sua falsidade e mentira. A guerra determinada, a primeira cousa que ordenam é mandarem fazer os caminhos mui limpos, rasos e largos, para sairem por êles e tornarem, quando vierem vitoriosos; e do mesmo usam quando são visitados de algum honrado hóspede. E, em o dia determinado para a partida, tem cuidado o seu principal de ante-manhã sair ao terreiro, e por roda dêle anda fazendo uma pregação, e a grandes brados anima a todos os seus soldados, que pelejem e cometam ao inimigo valorosamente, alembrando-lhes para isso algumas façanhas e vitórias dos seus passados e fraqueza do inimigo.

Alviano: Não fazem mais os nossos capitães e generais nas ocasiões, que lhes importa animarem as suas gentes.

Brandonio: Pois êste costume é antiquíssimo entre êste gentío; a pregação feita, não preparam grandes bagagens, porque cada um leva consigo o que lhe é necessário para alguns dias; e quando lhes falta, o buscam pelos campos, matos e rios, porque dêles se sustentam. As armas que levam são arco e frecha, espadas curtas de um páu pesado e forte, que desbaratam e põem por tema qualquer parte do corpo aonde assenta o seu golpe, e os cabos das tais espadas levam emplumadas de penas de várias côres, e da mesma maneira as cabeças, para com isso se fazerem mais temidos; as rodelas, que também consigo levam, são grandes e pintadas, feitas de um páu leve, bastante a lhes cobrir todo o corpo, com que se reparam das frechas do inimigo.

Alviano: Não são más armas essas, e se o ânimo fosse igual, não deixaram de fazer boas emprêsas.

Brandonio: Êsse têm êles muito grande, como já disse; mas de sorte que, se indo caminhando com tôda esta bravosidade, ouvirem cantar um pássaro, do qual já fiz menção, agourento para êles, desamparam a jornada, e se tornam a recolher; e da mesma maneira, pôsto que vão para acometer alguma grande empresa, se, antes de chegarem a tal parte, encontrarem acaso alguns poucos inimigos e os matarem, se contentam com isso, tornando-se a recolher, com deixarei o demais por fazer.

Alviano: Pois não me gabeis semelhante gente de animosa, porque quem isso faz, não pode ter semelhante virtude.

Brandonio: Pois ainda vos direi mais que, quando entendem que são sentidos, e que não podem por êsse respeito sair com a sua pretenção, na mesma parte aonde disto se certificam, largam as armas, e sem elas se tornam a recolher, e então o que mais corre fugindo e primeiro chega à aldeia, de onde partiram, êste tal é reputado por mais valente; porque dizem ser acompanhado de grande alento e fôrças, por haver corrido mais que os companheiros.

Alviano: Bem há que gente tão arrevezada nos costumes faça de covardia esforço.

Brandonio: Pois ainda não concluo por aqui, porque em semelhantes ocasiões para poderem melhor correr, serrafaçam as pernas com facas até derramarem muito sangue, tendo para si que ficam por esta via mais ágeis para caminharem com mais presteza.

Alviano: Não lhes gavo essas prevenções de melhor fugirem.

Brandonio: Também o fazem para melhor chegarem. E sempre acometem a batalha ou escaramuça com muito ânimo, e todo guerreiro que nela mata inimigo às suas mãos, ou ajuda a aterrar nêle para o matarem, pôsto que sejam seis ou sete pessoas, tomam tôdas nome, e ficam dali em diante reputados por cavalheiros e se podem riscar.

Alviano: Tocai-me isso dos nomes e das riscas mais pelo miudo, para que vos fique entendendo.

Brandonio: O nome tomam todos aqueles que mataram ou ajudaram a aterrar no inimigo morto, o que fazem desta maneira: na madrugada do dia seguinte, depois de haver procedido a batalha ou assalto muito de madrugada, estando ainda todos lançados em suas redes, se alevantam os tais, e a grande brados vão dizendo: eu me hei de chamar daqui por diante fulano (aplicando-se o nome que querem), porque tenho morto a meu inimigo em campo, o que vai repetindo por muitas vêzes, e por êste nome quero ser conhecido e nomeado daqui em diante; e tôdos lhe fazem ao passar muita festa, e lhe dão salvas, principalmente as mulheres. O riscar é que fazem umas riscas pelo corpo de preto, a qual lhes fica servindo para o diante de insígnia militar, e também se assinalam riscando com fôgo, ou picando aquela parte que querem riscar com uma agulha, e estando em sangue fresco, lhe aplicam tinta preta, que é bastante para lhe fazer ficar sinal para sempre.

Alviano: Não gavo muito essa cavalaria nem modo de insígnia militar.

Brandonio: Pois ainda vos direi mais que, pôsto que êste gentío pelo campo mate o inimigo às estacadas, ou com tão poderosos golpes que o parta pelo meio, como o não matou com lhe quebrar a cabeça, logo hão que o morto não é morto, nem o matador se pode jactar de lhe haver dado a morte, nem poderá tomar nome nem riscar-se.

Alviano: Logo, dessa maneira, não morreu o que não tem a cabeça quebrada?

Brandonio: Assim o cuidam êles, e passa isso tanto avante que depois de haverem ganhado alguma aldeia ou lugar do inimigo, a primeira coisa que fazem é acudirem aos cemitérios, donde desenterram os cadáveres que ali estão enterrados, e a todos vão quebrando a cabeça, com ficar tão reputados por valente o que quebra por esta via, podendo gozar de tôdas as honrarias militares, como aquele que a quebrou pelejando no campo, aonde teve a vida em risco de a perder.

Alviano: Ora, não me digais mais que esta gente é dotada de entendimento, porque não vo-lo-ei de crêr.

Brandonio: Ninguém vos pode obrigar a que creais senão o que quiserdes, nem à mim que deixe de relatar a verdade do que tenho tomado à minha conta. Quando cativam alguns dos inimigos os levam para suas aldeias, aonde os soltam das prisões,

Alviano: E se os têm soltos corno lhes não fogem?

Brandonio: Não fogem porque as aldeias estão distantes umas das outras, e assim não lhes é possível poderem fugir sem serem logo achados pelo rasto, porque em o saberem fazer fazem vantagem aos cães de caça; e além disso, atinam tanto que eu vi algumas vêzes a certos índios, que para haverem de atinar para a parte por onde querem ir por entre brenhas altas, que não mostravam caminha, não fazem mais que com uma frecha apontarem direitamente para o lugar com lhe ficar aquele horizonte tanto na memória que fizeram o seu caminho sem o errarem em coisa alguma; de mais que também são os cativos bem guardados.

Alviano: E para que querem êsses cativos, senão fôr para resgate?

Brandonio: Sabei quanto isso passa pelo contrário que poderei afirmar, e não o tenhais por fábula, que se a êstes índios lhes derem pelo resgate de um cativo dêstes, principalmente se fôr branco, outro tanto ouro quanto se afirmava que tinha Creso, e juntamente tôdas as riquezas do mundo, o não deram.

Alviano: Muito me dizeis.

Brandonio: Pois assim passa; quando antes o querem matar no terreiro, o que fazem por êste modo: mandam primeiramente ao tal cativo se lhe faça, entre os seus, a vontade em tudo quanto queira ou peça, em tanto que, se desejar a mulher do próprio principal, e a pedir, não se lhe nega, tudo isto para efeito de que se desmelanconise e vá engordando; e como lhes parece que já o está, o que logo fazem é ordenar um grande caminho muito limpo, desde o lugar da aldeia até onde passa o rio, e o caminho feito, fazem sabedor ao prêso de como já é chegado o tempo para haver de ser morto em terreiro, atando-lhe uma corda por debaixo dos braços, com lhe ficarem livres êles e as mãos; e de modo fazem esta atadura, que deixam duas pontas compridas à corda, cada uma por sua parte, e com grandes gritas e festas o levam desta maneira, pelo caminho que tenho dito, ao rio, dentro no qual o lavam muito bem, desde os pés até a cabeça; e como está lavado, o tornam a trazer para a aldeia com os mesmas cantos, bailes e lestas e ali, pôsto no terreiro, se chegam a êle seis ou sete valentes e robustos mancebos, que lançam mão das portas da corda, e a têm em têso, de modo que o desaventurado prêso se não possa bolir, porque em o querendo fazer para alguma das partes, o tiram pela outra, e desta maneira o têm em talas, até que entra o matador pelo terreiro muito arrogante, emplumado todo de penas de várias côres, e, com vagarosos passos, rodeado dos principais cavaleiros, se vai chegando contra o prêso, e tanto que se lhe põe em fronte, com soberbas palavras e arrogantes meneios, lhe diz que tem muita razão de se alegrar por vir a morrer às mãos de um tão grande e bravo cavaleiro, como êle o é, e muito mais de suas carnes haverem de ser sepultadas nos ventres de tantos valorosos e principais e soldados, como os que estão por roda, os quais só por isso esperam, por ser melhor assim, que serem comidos e sepultados nos ventres de imundos bichos; por tanto que cobre ânimo, e se farte de ver o sol. E se a estas palavras desmaia o pobre prêso, é julgado de todos por pusilânime e covarde; mas se também lhe ronca dizendo que parentes lhe ficam vivos que o saberão bem vingar, e que por isso morre contente, se reputa valeroso. Mas contudo, quer suceda de uma maneira quer de outra, o matador lhe ameaça com a espada a cabeça, mostrando querer descarregar o golpe, e tanto que o pobre, de assombrado dêle, a quer desviar ou abaixar a cabeça, segunda logo com outra tão possante que lhe fende a cabeça pelo meio, e antes de cair em terra já lh’a leva feita em miudas rachas, com outros muitos que lhe dá. E se suceder que o prêso, ao tempo de lhe descarregarem o golpe, fôr tão manhoso e tiver tantas fôrças que, com os braços e mãos, que lhe ficam livres, arrebatar a espada ao matador, escapa da morte, porque para êsse efeito lh’as deixam livres.

Alviano: Grande façanha é a que faz por êsse modo êsse cavaleiro matador!

Brandonio: Não a têm êles por pequena; e depois do desaventurado morto por esta via, o entregam às velhas, a quem pertence o dividirem-lhe os quartos, e pôrem-nos a coser e assar, espedaçados para servirem de iguanas aos circunstantes, repartindo-se por todos, que comem aquela humana carne com grande gôsto, mais por vingança que por matarem com ela a fome.

Alviano: Bem mal se pode julgar se a comem por vingança, se por gôsto.

Brandonio: Por vingança se tela entendido que o fazem. E as tripas e intestinos botam as velhas em uns alguidares e com grandes cantos e bailes andam à roda dêles com umas canas nas mãos, nas quais trazem atados alguns anzois que lançara sôbre as tripas, fingindo com grandes risos que estão pescando dentro nelas.

Alviano: Por fim que, com esta bárbara crueldade, se hão sòmente por satisfeitos?

Brandonio: Ainda fazem mais, por que têm já muitos vinhos preparados, precedendo logo grandes borracheiras, que duram por espaço de alguns dias.

Alviano: Os dias passados, indo visitar um amigo meu à sua fazenda, me não deixaram dormir tôda uma noite uns índios que andavam nas suas borracheiras, na qual formavam uns cantos, qual eu nunca outros semelhantes vi.

Brandonio: Êsse é o seu costume mais ordinário, porque para efeito de se emborracherem, aparelham muitos vinhos que fazem do sumo de canas de açúcar, que vão buscar pelos engenhos, e também de mel e de uma fruta que chamam cajú, e, juntos em roda muitos homens e mulheres, estão nêsse canto todo um dia e noite inteira, sem dormirem, bebendo sempre de ordinário muito vinho até caírem todos por terra sem acordo, e às vêzes saem também dali alguns não pouco escalavrados.

Alviano: E que metros ou cantigas são essas que cantam em tanto espaço de tempo?

Brandonio: Nenhuma outra mais que alevantar o primeiro a voz, e dizer o pássaro está sôbre a folha, ou a folha sobre a água, ou outra coisa semelhante, e com isto vão continuando sempre, dizendo uns e respondendo outros, por todo o espaço que lhes dura a borracheira, servindo as mulheres de tiple, por aleventarem a voz mais delgada.

Alviano: Custoso entretimento, pois passam todo um fria e noite sem dormirem, com despenderem tanto vinho; mas se acaso cativam algumas mulheres, folgara de saber se as matam também nêsse terreiro, como aos homens.

Brandonio: As vêzes as matam e outras não, que é quando sucede toma-la alguns dos vencedores por sua mulher ou manceba; e por êste modo escapam da morte, enquanto o que a tomou à sua conta assim o determina, sem lhe dar mais exercício de trabalho do que às demais mulheres, suas naturais; mas a grata é que, se algumas destas cativas acerta de fugir, e vai prenhe, depois de estar entre os seus posta em salvo, e chega a parir, o próprio avô, e ainda a mesma mãe, matam a criatura nascida e a comem, dizendo que o fazem ao filho de seu inimigo; porque a mãe foi sòmente um bolso em que se criou e aperfeiçoou a tal semente, sem tomar nada dela; e por êste modo usam de mil crueldades em outros casos semelhantes.

Alviano: Não me espanto de semelhante barbaridade, a respeito de outras muitas que já me tendes contado, e cuido que tudo isso deve de nascer de não haver, entre essas gentes, rasto algum de amor.

Brandonio: Antes se acham entre êles muitos que deram bastante prova de o terem assás grande, e para isso vos quero contar uma galante história, que aconteceu há pouco tempo em uma capitania das dêste Estado. Estava entre os petiguáras uma mulher cativa dos tabajáras, que são seus capitais inimigos, a qual, sem embargo de a ter por manceba um petiguára, andado o tempo, determinaram os demais juntamente com êle, que pode ser que fosse o principal autor, de matarem a pobre tabajara para efeito de a comerem, a qual tinha já tomado estreita amizade com outra Índia das dos petiguáras, irmã do namorado que fora; e esta, ouvindo tratar entre êles da morte que pretendiam dar à cunhada e amiga, estimulada pelo amor que lhe tinha, lhe manifestou o perigo em que estava, aconselhando-lhe que fugisse dêle, com se oferecer a lhe fazer companhia. Aceitou a outra a conselho e oferta, e a amiga não desistiu de sua promessa, com fazerem ambas juntamente à fugida, a qual lhes sucedeu tão bem, sem serem achadas, vieram aportar à povoação dos brancos, onde a que era de nação tabajára, achando-se entre os seus, que por ali à roda habitavam, se foi para suas aldeias, aonde sendo reconhecida de seus pais e parentes, lhes deu conta do muito que devia à outra Índia, sua amiga, pela haver livrado da morte, o que lhe foi agradecido de todos, e ficou vivendo entre êles; mas não passaram muitos dias que os tabajáras, esquecidos do que havia passado, trataram de fazer na petiguára o que os outros queriam fazer na sua natural, e o puseram por obra sem bastarem rogos da pobre Índia, sua parenta, para se livrar a companheira do que dela se ordenava; por fim, chegado o prazo, a puseram em terreiro para efeito de a matarem, o que vendo a amiga, parece que não esquecida ainda da obrigação em que lhe estava, arremeteu contra o esquadrão dos parentes, como uma leoa, e por fôrça lh’a tirou das mãos, levando-a consigo à casa de alguns brancos, com a livrar por esta maneira de indigna morte que se lhe aparelhava, pagando-lhe na própria espécie o amor que lhe tinha mostrado, quando se resolvera a fugir dos seus, por lhe dar a vida.

Alviano: Poucos exemplos haveis de achar semelhantes entre tanta barbaridade.

Brandonio: Pois também vos posso afirmar que, com ser este gentío assás lascivo por natureza, há muitas donzelas entre êles, que amam sumamente a castidade, como são umas, que totalmente fogem de ter ajuntamento viril, pretendendo de se conservarem virgens, e para que o possam melhor fazer, se exercitam no arco e na flexa, com andarem de ordinário pelos campos e bosques, à caça de brutas feras, nas quais fazem grandes prezas, recreando-se neste exercício, pelo qual desprezam todo outro.

Alviano: Essas tais deviam de ouvir contar de Diana e de suas ninfas, e pela imitar tomam a caça por exercício; e com tudo não me persuado a crêr delas que hajam de ser continentes, por ser dom da alma, que o não estima senão quem conhece o seu preço, e como a essas falta o tal conhecimento, não vejo coisa por que haja de cuidar que possam guardar essa continência.

Brandonio: Cuidai vós o que quiserdes, que eu não vô-lo possa tolher, nem deixar de louvar as tais, por se saberem desviar do fôgo na parte aonde êle mais arde; o que se deixa bem ver em outro costume, o qual é que, quando são visitados de algum nobre hóspede, principalmente se é branco, os agasalham primeiramente sôbre uma rede aonde os fazem assentar, que é o que lhes serve de cadeiras, e o principal fica em outra, e antes de travarem prática se brindam um ao outro com um petimbabo de fumo de tabaco, que para o efeito lhe trazem; e isto feito, depois de o tal hóspede manifestar ao que viera, e o principal lhe dar resposta, lhe entrega logo uma donzela ou filha sua por mulher, para que a tenha por tal enquanto ali estiver, que não pode ser mais bárbaro costume.

Alviano: E os brancos aceitam o usar dessas Índias, sendo gentias?

Brandonio: Muitos o não fazem, antes as rejeitam dissimulando com êles; mas não que o digam ao principal, que lh’a deu, porque se haveria por muito afrontado. Dos inimigos que matam, depois de se fartarem de suas carnes, tomam um pedaço dela, que depois de sêca envolvem dentro em um grande novêlo de fio de algodão, e desta maneira o guardam com muito cuidado; e quando sucede fazerem alguma grande borracheira, para mais se alegrarem nela desenvolvem a carne do novela, e dela fazem muitas partes em pequenas feveras, que repartem entre todos, para que as comam: e isto costumam fazer em sinal de vingança que tomaram e vitória que tiveram.

Alviano: Não lhe gavo o modo de semelhante vingança.

Brandonio: Pois sabei enquanto são vingativos, que, depois de matarem os inimigos, lhes tiram os dentes, os quais enfiam por cordeis, fazendo dêles um colar, com porem os grandes queixais nos extremos e os mais pequenas no [meio; e eu vi um] dêstes que pesava quatorze arrateis, e por aqui considerareis o grande número de dentes que nêle haveria.

Alviano: Não lhes hão de dar os lapidários muito dinheiro por essas pedras, porque as tenho por ruins, para haver de ser engastadas.

Brandonio: Tudo isto fazem, imaginando que assim se vingam melhor, e reina neles em tanto esta natureza de vingança que, se acaso, caminhando por um caminho, derem uma topada em algum páu ou pedra, não passam avante até por vingança arrancarem ou quebrarem aquilo que lhes fêz dano; e com serem vingativos, são também alguns dêles sumamente crueis, porque um homem de crédito me contou que vira a um índio dêstes, vindo de um assalto, que fôra dar a certa aldeia de inimigos com outros muitos, trazer seis crianças, que não chegava a maior a ter ano perfeito de idade, dependuradas em um páu, que levava às costas, como galinhas, a metade da parte de diante e a outra de trás; e que, depois de caminhar assim com elas por grande espaço, as pusera sobre uma pedra, donde com uma faca lhes foi quebrando a cada uma das crianças a cabeça a golpes pequenos, que nelas lhe dava, para que assim lhes ficasse sendo maior o tormento, sem demonstrar nenhum rasto de piedade aos gemidos e choros das pobres crianças.

Alviano: Nunca de nenhum Polifemo, Lestrigen, ou Scita, se contou semelhante crueldade.

Brandonio: Costuma também êste gentío, para efeito de mostrar maior frieza e bizarria, furar o rosto pelo beiço de baixo e também pelas queixadas, por onde metem umas pedras verdes ou brancas de feição de botoques, com as quais têm para si que andam galantes e gentis-homens.

Alviano: Êsse costume devia de lhes ensinar algum demônio, e à sua imitação o usam com darem maior mostra nele de sua grande barbaridade.

Brandonio: Pois com tôda ela sabem muito bem dividir os tempos do ano em grande conformidade, regulando-se para isso com os frutos de certas árvores, quando amadurecem; porque então sabem que é o tempo chegado de suas sementeiras, e outros exercícios em que se ocupam, e também conhecem quase tôdas as estrelas dos céus, que nós conhecemos, pôsto que lhes aplicam nomes diferentes.

Alviano: É muito haver êsse conhecimento entre semelhante gente.

Brandonio: Destes costumes, que até agora tenho tratado, são dos que usam no sertão o gentío que por êle habita, sem terem comércio nem conhecimento dos brancos, que os que andam entre nós e estão debaixo da doutrina dos religiosos vivem já muito desviados de semelhantes costumes; porque sabem a doutrina e batizam os filhos, com se casarem na forma do sagrado concilio, e não têm mais de uma mulher, com andarem vestidos, e juntamente aprendem a ler, a escrever e a contar; e saem alguns dêles destros no canto, e assim são bons charameleiros, pôsto que sempre tiram à sua natural inclinação, como se viu em um caso, que sucedeu os dias passados.

Alviano: E que caso foi êsse?

Brandonio: Os Padres da Companhia ensinaram a um dêstes índios, por sentirem nele habilidade, a ler e a escrever, canto e latinidade, e ainda algum pouco das artes, mostrando-se êle em tudo muito ágil e de bons costumes, chegaram a lhe fazer dar ordens menores, e cuido que ouvi dizer que também as de epístola e evangelho, para o ordenarem em sacerdote de missa. Mas o bom do índio, obrigado de sua natural inclinação, amanheceu um dia despido, e se foi, com outros parentes seus para o sertão, aonde exercitou seus bárbaros costumes até a morte, não se alembrando dos bons que lhes haviam dado.

Alviano: Isso só basta para corroborar a minha opinião; mas folgára que me dissesseis si se acham nesta província mais castas de gentío, que uma, assim como entre nós há francêses, inglêses, italianos e outros.

Brandonio: Sim, acham-se, porque há muita diversidade de castas dêles, assim como: aimorés, tupinambds, tabajaras, petiguáras, tapuias e outros.

Alviano: E vivem todos êsses, por ventura, com tanta brutalidade, como dos que tendes tratado até agora?

Brandonio: Quase todos se parecem na vivenda, exceto os tapuias que se diferençam grandemente nela, mias não em barbaridade.

Alviano: Pois dizei-me de que modo vivem êsses tapuias?

Brandonio: Di-lo-ei em suma brevemente; porque se vão já fazendo as horas de recolhermos e darmos remate à nossa prática. Estes tapuias vivem no sertão, e não têm aldeias nem casas ordenadas para viverem nelas, nem menos plantam mantimentos para sua sustentação; porque todos vivem pelos campos, e do mel que colhem das árvores e as abelhas lavram na terra, e assim da caça, que tomam em grande abundância pela frecha, se sustentam, e para isto guardam esta ordem: vão todos juntamente em cabilda assentar seu rancho na parte que melhor lhes parece, alevantando para isso algumas choupanas de pouca importância, e dali vão buscar o mel e caça por roda, por distância de duas ou três léguas. E enquanto acham esta comedia, não desamparam o sítio, mas, tanto que ela lhe vai faltando, logo se mudam para outra parte, aonde fazem o mesmo; e desta maneira vão continuando com sua vivenda sempre no campo, com ajudar sítios, sem se cansarem em lavrar nem cultivar a terra; porque a sua frecha é o seu verdadeiro arado e enxada, a qual também não usam juntamente com o arco, como faz o demais gentío; porque com ela tomada sobre mão, com a encaixarem em uns canudos, que no dêdo trazem, fazem tiros tão certeiros e com tanta fôrça que causa espanto, de modo que quase nunca se lhe vai a caça, a que lançam a frecha por esta via. E eu vi os dias passados a um dêstes fazer um tiro sem arco, que, além de dar no alvo a que atirara, passou uma grossa porta de parte a parte. Também são na fala diferentes; porque o demais gentío os não entende, por terem a linguagem arrevesada; trazem os cabelos crescidos como de mulheres, com serem geralmente tão temidos de todo o mais gentío, que é bastante um só tapuia para fazer fugir muitos; e assim entram muito poucos por grandes aldeias muito confiados, e delas tomam tudo o que querem, sem ninguém lhes vir à mão; e ainda as próprias mulheres lhes deixam levar, tão grandíssimo medo lhes têm cobrado. E com isto me parece que tenho já chegado ao limite de minha obrigação, o menos mal que pude, deixando-vos agora o campo aberto para poderdes condenar o Brasil por ruim terra, como de princípio fizestes, se virdes que, com as verdades que dêle tenho dito, se lhe pede de justiça atribuir Semelhante nome dos avisados; porque dos néscios não trato, que os seus ruins discursos os desculpam.

Alviano: Tendes-me já tão convertido à vossa seita, que por tôda parte por onde quer que me achar, apregoarei, do Brasil e de suas grandezas, os louvores que elas merecem.

 

 

 

FIM