A Morte do Lidador, de Alexandre Herculano
Fonte:
HERCULANO, Alexandre. A morte do lidador. São Paulo : Logos,
1959. p. 41-51 (Antologia da Literatura Mundial).
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A
MORTE DO LIDADOR
Alexandre
Herculano
I
- Pajens! Ou arreiem o meu ginete murzelo; e vós dai-me o meu
lorigão de malha de ferro e a minha boa toledana. Senhores cavaleiros,
hole contam-se noventa e cinco anos que recebi o batismo, oitenta que
visto armas, setenta que sou cavaleiro, e quero celebrar tal dia fazendo
entrada por terras da frontaria dos mouros.
Isto dizia na sala de armas do castelo de Beja Gonçalo Mendes da Maia,
a quem, pelas muitas batalhas que pelejara e por seu valor indomável,
chamavam Lidador. Afonso Henriques, depois do infeliz sucesso de Badajoz,
e feitas pazes com el-rei Leão, o nomeara fronteiro da cidade de Beja,
de pouco tempo conquistada aos mouros. Os quatro Viegas, filhos do bom
velho Egas Moniz, estavam com êle, e outro muiots cavaleiros afamados,
entre os quais D. Ligel de Flandres e Mem Moniz - que a festa de vossos
anos, Senhor Gonçalo Mendes, será mais de mancebo cavaleiro que de capitão
encanecido e prudente. Deu-vos el-rei esta frontaria de Beja para bem
a haverdes de guardar, e não sei se arriscado é sair hoje à campanha,
que dizem os escutas, chegados ao romper d'alva, que o famose Almoleimar
correr por êstes arredores com dez vêzes mais lanças do que tôdas as
que estão encostadas nos lanceiros desta sala de armas.
- Voto a Cristo - atalhou o Lidador - que não cria
em que o senhor rei me houvesse pôsto nesta tôrre de Beja para estar
assentado à lareira da chaminé, como velha dona, a espreitar de quando
em quando por uma seteira se cavaleiros mouros vinham correr até a barbacã,
para lhes cerrar as portas e ladrar-lhes do cimo da tôrre da menagem,
como usam os vilãos. Quem achar que são duros de mais os arneses dos
infiéis pode ficar-se aqui.
- Bem dito! Bem dito! - exclamarem, dando grandes risadas, os cavaleiros
mancebos.
- Por minha boa espada! - gritou Men Moniz, atirando o guante ferrado
às lájeas do pavimento - que mente pela gorja quem disser que eu ficarei
aqui, havendo dentro de dez léguas em redor lide com mouros. Senhor
Gonçalo Mendes, podeis montar em vosso ginete, e veremos qual das nossas
lanças bate primeior em adarga mourisca.
- A cavalo! A cavalo! - gritou outra vez a chusma, com grande alarido.
Dali a pouco, ouvia-se o retumbar dos sapatos de ferro de muitos cavaleiros
descendo os degraus de mármore da tôrre de Beja e, passados alguns instantes,
soava só o tropear dos cavalos, atravessando a ponte levadiça das fortificações
exteriores que davam para a banda da campanha por onde costumava aparecer
a mourisma.
II
Era
um dia do mês de julho, duas horas depois da alvorada, e tudo
estava em grande silêncio dentro da cêrca de Beja: batia o sol nas pedras
esbranquiçadas dos muros e tôrres que a defendiam: ao longe, pelas imensas
compinas que avizinhavam o têso sôbre que a povoação está assentada,
viam-se ondear as searas maduras, cultivadas por mãos de agarenos para
seus novos senhores cristãos. Regados por lágrimas de escravos tinham
sido êsses campos, quando formoso dia de inverno os sulcou o ferro do
arado; por lágrimas de servos seriam outra vez umedecidos, quando, no
mês de julho, a paveia, cercada pela fouce, pendesse sôbre a mão do
ceifeiro: chôro de amargura havia aí, como, cinco séculos antes, o houvera:
então de cristãos conquistados, hoje de mouros vencidos. A cruz hateava-se
outra vez sôbre o crescente quebrado: os coruchéus das mesquitas convertiam-se
em campanários de sés, e a voz do almuadem trocava-se por toada de sinos,
que chamavam à oração entendida por Deus.
Era esta a resposta dada pela raça goda aos filhos d'África e do Oriente,
que diziam, mostrando os alfanges: - "é nossa a terra de Espanha".
- O dito árabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito séculos a
escrever-se. Pelaio entalhou com a espada a primeira palavra dela nos
cerros das Astúrias; a última gravaram-na Fernando e Isabel, com os
pelouros de suas bambardes, nos panos das muralhas da formosa Granada:
e esta escritura, estampada em alcantis de ontanhas, em campos de batalha,
nos portais e tôrres dos templos, nos bancos dos muros das cidades e
castelos, acrescentou no fim a mão da Providência - "assim para
todo o sempre!"
Nesta luta de vinte gera;'oes andavam lidando as gentes do Alentejo.
O servo mouro olhava todos os dias para o horizonte, onde se enxergavam
as serranias do Algarve: de lá esperava êle salvação ou, ao emnos, vengança;
ao menos, um dia de combate e corpos de cristãos estirados na veiga
para pasto dos açôres bravios. A vista do sangue enxugava-lhes por algumas
horas as lágrimas, embora as aves de rapina tivessem, também, abundante
ceva de cadáveres de seus irmãos! E êste ameno dia de julho devia ser
um dêsses dias por que suspirava o servo ismaelita.
Almoleimar descera com os seus cavaleiros às campinas de Beja. Pelas
horas mortas da noite, viam-se as almenaras das suas talaias nos píncaros
das serras remotas, semelhantes às luzinhas que em descampados e tremedais
acendem as bruxas em noites de seus folguedos: bem longe estavam as
almenaras, mas bem perto sentiam os escutas o resfolegar e o tropear
de cavalos, e o ranger das fôlhas sêcas, e o tinir a espaços de alfange
batendo em ferro de caneleira ou de coxote. Ao romper d'alva, os cavaleiros
do Lidador saíam mais de dois tiros de besta além das muralhas de Beja;
tudo porém estava em silêncio, e só, aqui e ali, as searas calcadas
davem rebate de que por aquêles sítios tinham vagueados almogaures mouros,
como o leão do deserto rodeia, pelo quarto de modôrra, as habitações
dos pastôres além das encostas do Atlas.
No dia em que Gonçalo Mendes da Maia, o velho fronteiro de Beja, cumpria
os noventa e cinco anos, ninguém saíra, pelo arrebol da manhã, a correr
o campo; e, todavia, nunca tão de perto chegara Almoleimar; porque uma
frecha fôra pregada a mão em um grosso sovereiro que sombreava uma fonte
a pouco mais de tiro de funda dos muros do castelo. Era que nesse dia
deviam ir mais longe os cavaleiros cristãos: Lidador pedira aos pajens
o seu lorigão de malha de ferro e a sua boa toledana.
Trinta fidalgos, flor da cavalaria, corriam à rédea sôlta pelas campinas
de Beja; trinta, não mais, eram êles; mas orçavam por trezentos os homens
d'armas, escudeiros e pajens que os acompanhavam. Entre todos avultava
em robustez e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe
ondeavam, como flocos de neve, sôbre o peitoral da cota d'armas, e o
terrível Lourenço Viegas, a quem, pelos espantosos golpes da sua espada,
chamavam o Espadeiro. Eram formoso espetáculo o esvoaçar dos balsões
e signas, fora de suas fundas e soltos ao vento, o cintilar das cervillheiras,
as côres variegadas das cotas, e as ondas de pó que se alevantavam debaixo
dos pés dos ginetes, como se alevanta o bulcão de Deus, varrendo a face
de campina ressequida, em tarde ardente de verão.
Ao largo, muito ao largo, dos muros de Beja cai a atrevida cavalgada
em demanda dos mouros; e no horizonte não se vêem senão os topos pardo-azulados
das serras do Algarve, que parece fugirem tanto quanto os cavaleiros
caminham. Nem um pendão mourisco, nem um albornoz branco alvejam ao
longe sôbre um cavalo murzelo. Os corredores cristãos volteiam na frente
da linha dos cavaleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se
nos matos e transpõem-nos em breve; entram pelos canaviais dos ribeiros;
aparecem, somem-se, tornam a sair ao claro; mas, no meio de tal lidar,
apenas se ouvem o trote campassado dos ginetes e o grito monótono da
cigarra, pousada nos raminhos da giesteira.
A terra que pisam é já dos mouros; é já além da frontaria. Se olhos
de cavaleiros portuguêses soubessem olhar para trás, indo em som de
guerra, os que para trás de si os volvessem a custo enxergariam Beja.
Bastos pinhais começavam já a cobrir mais crêspo território, cujos outirinhos,
aqui e ali, se alteavam suaves, como seio de virgem em viço de mocidade.
Pelas faces tostadas dos cavaleiros cobertos de pó corria o suor em
bagas, e os ginetes alagavam de escuma as rêdes de ferro acaireladas
d'ouro que so defendiam. A um sinal do Lidador, a cavalgada parou; era
necessário repousar, que o sol ia no zênite e abrasava a terra; descavalgaram
todos à sombra de um azinhal e, sem desenfrear os cavalos, deixaram-nos
pascer alguma relva que crescia nas bordas de um arroio vizinho.
Tinha passado meia hora: por mandado do velho fronteiro de Beja um almogávar
montou a cavalo e aproximou-se à rédea sôlta de uma selva extensa que
corria à mão direita: pouco, porém, correu; uma frecha despedida dos
bosques sibilou no ar: o almogávar gritou por Jesus: a frecha tinha-se
embebido ao lado: o cavalo parou de repente, e êle, erguendo os braços
ao ar, com as mãos abertas, caiu de bruços, tombando para o chão, e
o ginete partiu desenfreado através das veigas e desapareceu na selva.
O almogávar dormia o último sono dos valentes em terra de inimigos,
e os cavaleiros da frontaria de Beja viram o seu transe do repousar
eterno.
- A cavalo! A cavalo! - bradou a uma voz tôda a lustrosa companhia do
Lidador; e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura de malha
dos ginetes, soou uníssono, quando todos os cavaleiros cavalgaram de
um pulo; e os ginetes rincharam de prazer, como aspirando os combates.
Grita medonha troou ao mesmo tempo, além do pinhal da direita. - "Alá!
Almoleimar!" - era o que dizia a grita.
Enfileirados em extensa linha, os cavaleiros árabes saíram à rédea sôlta
de trás da escura selva que os encobria: o seu número excedia em conco
vêzes o dos soldados da cruz: as suas armaduras lisas e polidas contrastavam
com a rudeza das dos cristãos, apenas defendidos por pesadas cervilheiras
de ferro e por grossas cotas de malha do mesmo metal: mas as lanças
dêstes eram mais robustas, e as suas espadas mais volumosas do que as
cimitarras mouriscas. A rudeza e a fôrça da raça gótico-romana ia, ainda
mais uma vez, provar-se com a destreza e com a perícia árabes.
III
Trinta
fidalgos, flor da cavallaria corriam à rédea solta pelas campinas de
Béja; trinta, não mais, eram elles; mas orçavam por trezentos homens
d´armas, escudeiros e pagens que os acompanhavam. Entre todos avultava
em robustez e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe
ondeavam como frocos de neve sobre o peitoral da cota d´armas, e o terrível
Lourenço Viegas, a quem pelos espantosos golpes da sua espada chamavam
o Espadeiro. Era formoso espectaculo o esvoaçar dos balsões e signas,
fôra de suas fundas, e soltos ao vento, o scintillar das cervilheiras,
as cores variegadas das cotas, e as ondas de pó, que se alevantavam
debaixo dos pés dos ginetes, como as alevanta o bulcão de Deus, varrendo
a face da campina resequida, em tarde ardente de verão.
Ao
largo, muito ao largo, dos muros de Béja vai a atrevida cavalgada em
demanda dos mouros; e no horizonte não se vêem os topos pardo-azulados
das serras do Algarve, que parece fugirem tanto quanto os cavalleiros
caminham. Nem um pendão mourisco, nem um albornoz branco alveja ao longe
sobre um cavallo murzello. Os corredores christãos volteiam na frente
da linha dos cavalleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se
nos matos, e transpõem-nos em breve; entram pelos cannaviaes dos ribeiros;
apparecem, somem-se, tornam a sair ao claro: mas no meio de tal lidar
apenas se ouve o trote compassado dos ginetes, e o grito monótono da
cigarra, pousada nos raminhos da giesteira.
A
terra que pisam já é de mouros; é já além da fronteira. Se os olhos
de cavalleiros portuguezes soubessem olhar para trás indo em som de
guerra, os que para trás de si os volvessem a custo enxergariam Bejá.
Bastos pinhais começavam já a cobrir mais ondeado território, cujos
outerinhos aqui e alli se alteavam suaves como seio de virgem em viço
de mocidade. Pelas faces tostadas dos cavalleiros cobertos de pó corria
o suor em bagas, e os ginetes alagavam de escuma as redes de ferro acaireladas
de ouro, que os defendiam. A um signal do Lidador a cavalgada parou;
era necessário repousar, que o sol ia no zenith e abrazava a terra:
descavalgaram todos à sombra de um azinhal, e sem desenfrear os ginetes
deixaram-nos pascer alguma relva, que crescia nas bordas de um arroio
vizinho.
Tinha
passado meia hora: por mandado do velho Fronteiro de Béja um almogavar
montou a cavallo, e aproximou-se à rédea solta de uma selva extensa,
que corria à mão direita; pouco, porém, correu; uma frecha despedida
dos bosques sibilou no ar: o almogavar gritou por Jesus: a frecha tinha-se-lhe
embebido no lado: o cavallo parou de repente, e elle, erguendo os braços
ao ar com as mãos abertas, cahiu de bruços, tombando para o chão, e
o ginete partiu desenfreado através das viegas, e desappareceu na selva.
O almogavar dormia o ultimo sonno dos valentes em terra de inimigos,
e os cavalleiros da fronteira de Béja viram o seu trance do repousar
eterno.
“A
cavallo! A cavallo! – bradou a uma voz toda lustrosa a companhia do
Lidador; e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura de malha
dos ginetes, soou unisono, quando todos os cavalleiros cavalgaram de
um pulo: e os ginetes rincharam de prazer, como aspirando os combates.
Uma
grita medonha troou ao mesmo tempo além do pinhal da direita. – “Allah!
Almoleimar! – era o que dizia a grita.
Enfileirados
em uma longa linha, os cavalleiros árabes saíram à rédea solta de trás
da escura selva que os encubria: o seu numero excedia cinco vezes o
dos soldados da cruz: as suas armaduras lisas e polidas contrastavam
com a rudeza das dos christãos, apenas defendidas por pesadas cervilheiras
de ferro, e por grossas cotas de malha do mesmo metal: mas as lanças
destes eram mais robustas, e as suas espadas mais volumosas do que as
cimitarras mouriscas. A rudeza e a força da raça gothico-romana iam
ainda mais uma vez provar-se com a destreza e com a perícia árabes.
IV
Como longa fita de muitas côres, recamada de fios d'ouro e refletindo
mil acidentes de luz, a extensa e profunda linha dos cavaleiros mouros
sobressaía na veiga entre as searas pálidas que cobriam o campo. Defronte
dêles, os trinta cavaleiros portuguêses, com trezentos homens d'armas,
pajens e escudeiros, cobertos dos seus escuros envoltórios e lanças
em riste, esperavam o brado de acometer. Quem visse aquêle punhado de
cristãos, diante da cópia d'infiéis que os esperavam, diria que, não
com brios de cavaleiros, mas com fervor de mártires, se ofereciam a
desesperado transe. Porém, não pensava assim Almoleimar, nem os seus
soldados, que bem conheciam a têmpera das espadas e lanças portuguêses
e a rijeza dos braços que as meneavam. De um contra dez devia ser o
iminente combte; mas, se havia aí algum coração que batesse descompassado,
algumas faces descoradas, não era entre os companheiros do Lidador,
que tal coração batia ou que tais faces descoravam.
Pouco a pouco, a planura que separava as duas hostes tinha-se embbido
debaixo dos pés dos cavalos, como no tórculo se embebe a fôlha de papel
saindo para o outro lado convertida em estampa primorosa. As lanças
iam feitas: o Lidador bradara Santiago, e o nome de Alá soara em um
só grito por tôda a fileira mourisca.
Encontraram-se! Duas muralhas fronteiras, balouçadas por violento terremoto,
desabando, não fariam mais ruído, ao bater em pedaços uma contra a outra,
do que êste recontro de infiéis e cristãos. As lanças, topando em cheio
nos escudos, tiravam dêles um som profundo, que se misturava com o estalar
das que voavam despedaçadas. Do primeiro encontro, muitos cavaleiros
vieram ao chão: um mouro robusto foi derribado por Mem Moniz, que lhe
falsou as armas e trapassou o peito com o ferro de sua grossa lança.
Deixando-a depois cair, o velho desembainhou a espada e gritou ao Lidador,
que perto dêle estava:
- Senhor Gonçalo Mendes, ali tendes, no peito daquele perro, aberto
a seteira por onde eu, velha dona assentada à lareira, costumo vigiar
a chegada de inimigos, para lhes ladrar, como alcatéia de vilãos, do
cimo da tôrre de menagem.
O Lidador não lhe pôde responder. Quando Mem Moniz proferia as últimas
palavras, êle topara em cheio com o terrível Almoleimar. As lanças dos
dois contendores haviam-se feito pedaços, e o alfanje do mouro cruzou-lhe
com a toledana do fronteiro de Beja.
Como duas tôrres de sete séculos, cujo cimento o tempo petrificou, os
dois capitães inimigos estavam um defronte do outro, firmes em seus
possantes cavalos: as faces pálidas e enrugadas do Lidador tinham ganhado
a imobilidade que dá, nos grandes perigos, o hábito de os afrontar:
mas no rosto de Almoleimar divisavam-se todos os sinais de um valor
colérico e impetuoso. Cerrando os dentes com fôrça, descarregou um golpe
tremendo sôbre o seu adversário: o Lidador recebeu-o no escudo, onde
o alfanje se embebeu inteiro, e procurou ferir Almoleimar entre o fraldão
e a couraça; mas a pancada falhou, e a espada desceu, faiscando, pelo
coxote do mouro, que já desencravara o alfanje. Tal foi a primeira saudação
dos dois cavaleiros inimigos.
- Brando é o teu escudo, velho infiel; mais bem temperado é o metal
do meu arnês. Veremos agora se na tua touca de ferro se embotam os fios
dêste alfanje.
Isto disse Almoleimar, dando uma risada, e a cimitarra bateu no fundo
do vale penedo desconforme desprendido do píncaro da montanha.
O fronteiro vacilou, deu um gemido, e os braços ficaram-lhe pendentes:
a espada ter-lhe-ia caído no chão, se não estivesse prêsa ao punho do
cavaleiro por uma cadeia de ferro. O ginete, sentindo as rédeas frouxas,
fugiu um bom pedaço pela campanha, a todo o galope.
Mas o Lidador tornou a si: uma forte sofreada avisou o ginete de que
seu senhor não morrera. À rédea sôlta, lá volta o fronteiro de Beja;
escorre-lhe o sangue, envolto em escuma, pelos cantos da bôca: traz
os olhos torvos de ira: ai de Almoleimar!
Semelhante ao vento de Deus, Gonçalo Mendes da Maia passou por entre
os cristãos e mouros: os dois contendores viram-se, e, como o leão e
o tigre, correram um para o outro. As espadas reluziam no ar; mas o
golpe do Lidador era simulado, e o ferro mudando de movimento no ar,
foi bater de ponta no gorjal de Almoleimar, que cedeu à violenta estocada;
e o dangue, saindo às golfadas, cortou a última maldição do agareno.
Mas a espada dêste também não errara o golpe: vibrada na ânsia, colhera
pelo ombro esquerdo o velho fronteiro e, rompendo a grossa malha do
lorigão, penetrara na carne até o osso. Ainda mais uma vez a mesma terra
bebeu nobre sangue gôdo misturado com sangue árabe.
- Perro maldito! Sabe lá no inferno que a espada de Gonçalo Mendes é
mais rija que a sua cervilheira.
E, dizendo isto, o Lidador caiu amortecido; um dos seus homens de armas
voou a socorrê-lo; mas o último golpe d'Almoleimar fôra o brado da sepultura
para o fronteiro de Beja: os ossos do ombro do bom velho estavam como
triturados, e as carnes rasgadas pendiam-lhe para um e para outro lado
envôltas nas malhas descosidas do lorigão.
V
Entretanto os mouros iam de vencida: Mem Moniz, D. Ligel, Godinho Fafes,
Gomes Mendes Gedeão e os outros cavaleiros daquela lustrosa companhia
tinham praticado maravilhosas façanhas. Mas, entre todos, tornava-se
notável o Espadeiro. Com um pesado montante nas mãos, coberto de pó,
suor e sangue, pelejava a pé; que o seu agigantado ginete caíra morto
de muitos tiros de frechas lançadas. De roda dêle não se viam senão
cadáveres e membros destroncados, por cima dos quais trepavam, para
logo recuarem ou baquearem no chão, os mais ousados cavaleiros árabes.
Como um promontório de escarpados alcantis, Lourenço Viegas estava imóvel
e sabranceiro n meio do embate daquelas vagas de pelejadores que vinham
desfazer-se contra o terrível montante do filho de Egas Moniz.
Quando o fronteiro caiu, o grosso dos mouros fugia já para além do pinhal;
mas os mais valentes pelejavam ainda à roda do seu moribendo. O Lidador
êsse tinha sido pôsto em cima de umas andas, feitas de troncos e franças
de árvores, e quatro escudeiros, que restavam vivos dos dez que consigo
trouxera, o haviam transportado para a saga da cavalgada. O tinir dos
golpes era já muito frouxo e sumiam-se no som dos gemidos, pragas e
lamentos que soltavam os feridos derramados pela veiga ensangüentada.
Se os mouros, porém, levavam, fugindo, vergonha e dano, a vitória não
saíra barata aos portuguêses. Viam perigosamente ferido o seu velho
capitão, e tinham perdido alguns cavaleiros de conta e a maior parte
dos homens de armas, escudeiros e pajens.
Foi neste ponto que, ao longe, se viu erguer uma nuvem de pó, que voava
rápida para o lugar da peleja. Mais perto, aquêle turbilhão rareou vomitando
do seio basto esquadrão de árabes. Os mouros que fugiam deram volta
e gritaram:
A Ali-Abu-Hassan! Só Deus é Deus, e Maomé o seu profeta!
Era, com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tânger, que estava com seu exército
sôbre Mertola e que viera com mil cavaleiros em socorro de Almoleimar.
VI
Cansados de largo combater, reduzidos a menos de metade em número e
cobertos de feridas, os cavaleiros de Cristo invocaram o seu nome e
fizeram o sinal da cruz. O Lidador perguntou com voz fraca a um pajem,
que estava ao pé das andas, que nova revolta era aquela.
- Os mouros foram socorridos por um grosso esquadrão - respondeu tristemente
o pajem. - A Virgem Maria nos acuda, que os senhores cavaleiros parece
recuarem já.
O Lidador cerrou os dentes com fôrça e levou a mão à cinta. Buscava
a sua boa toledana.
- Pajem, quero um cavalo. Onde está a minha espada?
- Aqui a tenho, senhor. Mas estais tão quebrado de fôrças!...
- Silêncio! A espada, e um bom ginete.
O pajem deu-lhe a espada e foi pelo campo buscar um ginete, dos muitos
que andavam já sem dono. Quando voltou com êle, o Lidador, pálido e
coberto de sangue, estava em pé e dizia, falando consigo:
- Por Santiago que não morrerei como vilão da beetria onde entrou cavalgada
de mouros!
E o pajem ajudou-o a montar o cavalo.
Ei-lo o velho fronteiro de Beja! Semelhava um espectro erguido de pouco
em campo de finados: debaixo de muitos panos que lhe envolviam o braço
e o ombro esquerdo levava a própria morte; nos fios da espada, que a
mão direita mal sustinha, levava, porventura, ainda a morte de muitos
outros!
VII
Para onde mais travada e acesa andava a peleja se encaminhou o Lidador.
Os cristãos afrouxavam diante daquela multidão de infiéis, entre os
quais mal se enxergavam as cruzes vermelhas pintadas nas cimeiras dos
portuguêses. Dois cavaleiros, porém, com vulto feroz, os olhos turvados
de cólera, e as armaduras crivadas de golpes, sustinham todo o pêso
da batalha. Eram êstes o Espadeiro e Mem Moniz. Quando o fronteiro assim
os viu oferecidos a certa morte algumas lágrimas lhe caíram pelas faces
e, esporeando o ginete, com a espada erguida, abriu caminho por entre
infiéis e cristãos e chegou aonde os dois, cada um com seu montante
nas mãos, faziam larga praça no meio dos inimigos.
- Bem-vindo, Gonçalo Mendes! - disse Mem Moniz. - Quiseste assistir
conosco a esta festa de morte? Vergonha era, de feiot, que estivesses
fazendo teu passamento, com todo o repouso, deitado lá na saga, enquanto
eu, velha dona, espreito os mouros com meu sobrinho junto desta lareira...
- Implacáveis sois vós outros, cavaleiros de Riba-Douro, - respondeu
o Lidador em voz sumida- que não perdoais uma palavra sem malícia. Lembra-te,
Mem Moniz, de que bem depressa estaremos todos diante do justo juiz.
Velho sois; bem o mostrais! - acudiu o Espadeiro. - Não cureis de vãs
porfias, mas de morrer como valentes. Demos nestes perros, que não ousam
chegar-se a nós. Avante, e Santiago!
- Avante, e Santiago! - responderam Gonçalo Mendes e Mam Moniz: e os
três cavaleiros deram rijamente nos mouros.
VIII
Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que no mês de julho de 1170
se deram na veiga da fronteira de Beja, notá-los-á de fábulas sonhadas;
porque nós, homens corruptos e enfraquecidos por ócios e prazeres de
vida afeminada, medimos por nossos ânimos e fôrças, a fôrça e o ânimo
dos bons cavaleiros portuguêses do sécuo XII; e todavia, êsses golpes
ainda soam, através das eras, nas tradições e crônicas, tanto cristãs
como agarenas.
Depois de deixar assinadas muitas armaduras mouriscas, o Lidador vibrara
pela última vez a espada e abrira o elmo e o crânio de um cavaleiro
árabe. O violento abalo que experimentou lhe fêz rebentar em torrentes
o sangue da ferida que recebera das mãos de Almoleimar e, cerrando os
olhos, caiu morto ao pé do Espadeiro, de Mem Moniz e de Afonso Hermingues
de Baião, que com êles se ajuntara. Repousou, finalmente, Gonçalo Mendes
da Maia de oitenta anos de combates!
Já a êste tempo cristãos e mouros se haviam descido dos cavalos e pelejavam
a pé. Traziam-se assim à vontade, e recrescia a crueza da batalha. Entre
os cavaleiros de Beja espalhou-se logo a nova da morte do seu capitão,
e não houve ali olhos que ficasem enxutos. O despeito do próprio Mem
Moniz deu lugar à dor, e o velho de Riba-Douro exclamou entre soluços:
- Gonçalo Mendes, és morto! Nós todos quantos aqui somos, não tardará
que te sigamos; mas ao menso, nem tu, nem nós ficaremos sem vingança!
- Vingança! - bradou o Espadeiro com voz rouca, e rangendo os dentes.
Deu alguns passos e viu-se o seu montante reluzir, como uma centelha
em céu proceloso.
Era Ali-Abu-Hassan: Lourenço Viegas o conhecera pelo timbre real do
morrião.
IX
Se já vivestes vida de combates em cidade sitiada, tereis visto muitas
vêzes um vulto negro que em linha diagonal corta os ares, sussurrando
e gemendo. Rápido, como um pensamento criminoso em alma honesta, êle
chegou das nuvens à terra, antes que vos lembrásseis do seu nome. Se
encontrou na passagem ângulo de tôrre secular, o mármore converte-se
em pó; se atravessou, pelas ramas de árvore basta e frondosa, a fôlha
mais virente e frágil, o raminho mais tenro é dividido, como se, com
cutelo sutilíssimo, mão de homem lhe houvera cerceado atentamente uma
parte; e, todavia, não é um ferro açacalado: é um globo de ferro; é
a bomba, que passa, como a maldição de Deus. Depois, debaixo dela, o
chão achata-se e a terra espadana aos ares; e, como agitada, despedaçada
por cem mil demônios, aquela máquina do inferno estoura, e de roda dela
há um zumbir sinistro: são mil fragmentos; são mil mortes que se derramam
ao longe. Então faz-se um grande silêncio vêem-se corpos destroncados,
poças de sangue, arcabuzes quebrados, e ouvem-se o gemer dos feridos
e o estertor dos moribundos.
Tal desceu o montante do Espadeiro, rôto dos milhares de golpes que
o cavaleiro tinha descarregado. O elmo de Ali-Abu-Hassan faiscou, voando
em pedaços pelos ares, e o ferro cristão esmigalhou o crânio do infiel,
abriu-o até os dentes. Ali-Abu-Hassan caiu.
- Lidador! Lidador! - disse Lourenço Viegas, com voz comprimida. As
lágrimas misturavam-se-lhe nas faces com o suor, com o pó e com o sangue
do agareno, de que ficou coberto. Não pôde dizer mais nada.
Tão espantoso golpe aterrou os mouros. Os portuguêses seriam já apenas
sessenta, entre cavaleiros e homens d'armas: mas pelejavam como desesperados
e resolvidos a morrer. Mais de mil inimigos juncavam o campo, de envôlta
com os cristãos. A morte de Ali-Abu-Hassan foi o sinal da fugida.
Os portuguêses, senhores do campo, celebravam com prantos a vitória.
Poucos havia que não estivessem feridos; nenhum que não tivesse as armas
falsadas e rôtas. O Lidador e os demais cavaleiros de grande conta que
naquela jornada tinham acabado, atravessados em cima dos ginetes, foram
conduzidos a Beja. Após aquêle tristíssimo préstito, iam os cavaleiros
a passo lento, e um sacerdote templário, que fôra na cavalgada com a
espada cheia de sangue metida na bainha, salmodeava em voz baixa aquelas
palavras do livro da Sabedoria:
"Justorum autem animae in manu Dei sunt, et non tangent illos
tormentum mortis".
FIM
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